quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Contornos do “socialismo petista”

Contornos do “socialismo petista”

O Centro Sérgio Buarque de Holanda (CSBH), responsável pela preservação e pela publicização do arquivo histórico do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, vem editando a coleção Cadernos Perseucujo terceiro volume, O Socialismo nas Resoluções de Encontros e Congressos do Partido dos Trabalhadores, foi recentemente publicado. Trata-se, substancialmente, de uma coletânea de trechos selecionados em meio aos documentos aprovados nas instâncias máximas do partido, que busca sintetizar os debates estratégicos e as tentativas de estabelecer os contornos de um projeto societário, o chamado “socialismo petista”. O volume apresenta também uma entrevista com José Genoino e textos de Gleisi Hoffman e Marilena Chaui, além de uma breve apresentação elaborada pelo próprio CSBH, em que se recuperam os propósitos da coleção, comprometida com a difusão da história das lutas da classe trabalhadora e com a transformação da realidade.
No primeiro artigo, o de Hoffman, a senadora e presidenta do PT apresenta rápidas considerações acerca da atualidade do pensamento de Marx, calcadas em passagens pinçadas de O Capital e do Manifesto Comunista. É interessante notar que o breve artigo menciona, a título de exemplo, alguns pensadores de diferentes afiliações intelectuais e ideológicas, entre eles Slavoj Zizek e Thomas Piketty, cujos trabalhos, segundo Hoffman, expressam a permanência ou o aprofundamento de problemas políticos discutidos por Marx. Ainda que afirme categoricamente que “somente a teoria marxista, em suas variantes, fornece uma explicação realmente consistente dos conflitos e das crises capitalistas” (p. 12), esses acenos do artigo para autores que operam com outros referenciais, ou que nem mesmo compartilham do ideário socialista, parecem cunhados para indicar a vocação pluralista e antidogmática tantas vezes reivindicada pelo PT, preocupação que muitos dos documentos da coletânea também permitem entrever.
Em seguida, o ensaio “Fim da ideologia? Algumas razões para ser socialista”, de Marilena Chaui, agrega elementos à discussão propriamente teórica que o volume pretende fomentar. Chaui apresenta o conceito de ideologia, trata de alguns dos pilares do pensamento materialista dialético e, para criticar a matriz neoliberal, recupera sua história e as medidas econômicas concretas que essa ideologia inspirou. Sua análise leva à conclusão de que o neoliberalismo é totalitário, uma vez que recusa “a especificidade das diferentes instituições sociais e políticas para torná-las homogêneas, definindo todas elas como empresas”, pautadas pelas noções ideológicas de eficácia, competição e mérito; ao se impor, a ideologia neoliberal “encolhe o espaço público e alarga o privado” (p. 33), não para promover liberdade, mas para fomentar exclusão.
A peça seguinte, uma entrevista com o ex-deputado federal e ex-presidente do PT José Genoino, conduzida por Luana Soncini, Gustavo Codas e Rogério Chaves, configura um dos pontos mais interessantes e marcadamente autocríticos da publicação. Propondo uma reflexão acerca da história do partido e de sua própria trajetória no PT, o entrevistado afirma a pertinência da aposta petista na radicalização da democracia, mas critica o pragmatismo ao qual o partido teria aderido a partir das próprias experiências de governo, assim como o fato de que, apesar da ofensiva neoliberal dos anos 1990, mesmo para o PT, “o debate sobre o socialismo saiu do centro da política” (p. 48). Em outubro de 2017, ocasião da entrevista, Genoino não escondia certo pessimismo em relação ao cenário político e eleitoral do país, argumentando que “o fascismo penetrou no tecido social de maneira muito profunda” (p. 61), o que somente reforçaria a necessidade da disputa ideológica acerca do socialismo: “Ou fazemos esse debate com altivez, com ousadia, ou, então, entramos nele derrotados” (p. 58).
Completam o volume os dezessete documentos que compõem a seção “O PT debate o socialismo”, extraídos das resoluções partidárias. Os primeiros, referentes aos encontros nacionais realizados até 1984, afirmam o compromisso petista com a construção do socialismo, definido como uma “sociedade sem exploradores” (p. 68), “em que cada um e todos possam ter iguais oportunidades para realizar suas potencialidades e aspirações” (p. 70), mas distanciam o projeto petista das experiências stalinistas (o chamado “socialismo real”) ou social-democratas de outros países, insistindo que o conteúdo concreto do socialismo brasileiro será construído cotidianamente, a partir das experiências de luta e organização da classe trabalhadora. Contudo, já a partir de 1984, e com mais ênfase no período seguinte, até o início dos anos 1990, ganha espaço a discussão sobre a importância do acúmulo de posições no aparelho do Estado, e já em 1987 se evidencia uma definição mais matizada do que seriam a burguesia e as classes dominantes no Brasil, de modo a justificar a ampliação do leque de partidos e forças sociais com as quais o PT pretendia compor chapas eleitorais e governos. Consolidava-se o chamado programa democrático-popular, compatível com o “socialismo petista”, que se definirá, no 1º Congresso do partido, em 1991, como “radicalização da democracia”. À época, argumentou-se que, apesar da ofensiva ideológica da direita, o I Congresso esteve centrado na discussão do socialismo, o que demonstrava a vitalidade do PT como partido classista e socialista. Mas também é significativo, e a própria coletânea o indica, que ao longo do restante da década de 1990 a importância da temática para o partido parece retroceder.
Somente as 35 páginas finais do volume trazem documentos votados a partir da eleição de Lula, o que talvez seja incompatível com a importância política dos balanços das experiências petistas de governo para os que seguem interessados em discutir ou construir o socialismo. A coletânea se encerra com um documento aprovado no 6º Congresso Nacional do PT (2016), ocorrido durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, que denuncia o golpe institucional orquestrado contra a presidenta eleita e expõe as linhas gerais da estratégia petista para enfrentá-lo. Também nele o tema do socialismo parece relegado a um papel secundário, quase ornamental, ao passo que se reafirma a centralidade da recuperação da máquina do Estado. Embora o documento expresse que não se devem ignorar os erros e insuficiências do partido na avaliação dos governos Lula e Dilma, a ênfase é colocada sobre seus êxitos (“porque foi contra eles que os golpistas agiram e seguem agindo”, p. 182), e – ao menos em meio aos trechos da resolução selecionados para a coletânea – os equívocos reconhecidos não são apontados, de modo que não há, propriamente, uma autocrítica.
Se é certo que a perseguição seletiva do Judiciário a Lula, com a evidente intenção de tirá-lo do pleito presidencial de 2018, não foi suficiente para impedir que a força eleitoral e a relevância social do Partido dos Trabalhadores levassem Fernando Haddad ao segundo turno, não é menos verdadeiro que a oposição de direita, e em especial sua figura mais caricatural – mas, ao mesmo tempo, a mais ideológica –, Jair Bolsonaro, soube explorar com sucesso todo o desgaste do petismo para vencê-lo nas urnas. Apesar de sua evidente incapacidade política, de sua história de oportunismo, da imensa galeria de declarações absurdas que proferiu durante sua vida pública, e mesmo anunciando aos quatro ventos um programa radicalmente contrário aos direitos e interesses dos trabalhadores, Bolsonaro foi eleito, confirmando os prognósticos amargos que Mano Brown, convidado a falar no palanque de Haddad, apresentou sem meias palavras: “Se não está conseguindo falar a língua do povo, vai perder mesmo”.
Antes mesmo que o governo eleito tenha tomado posse, a agenda de ataques que já era nítida para todos aqueles que fizeram parte na frente única que defendeu a candidatura petista contra o retrocesso que o bolsonarismo representa vai se materializando e já começa a incomodar segmentos amplos da população. Apesar disso, estaremos às cegas se não formos capazes de entender os fatores que, em primeiro lugar, permitiram a ascensão desse projeto. Passada a eleição, talvez caiba ao PT levar muito a sério a recomendação feita por Brown: “tem uma multidão que não está aqui, que precisa ser conquistada”. Como exercício de síntese da história de um partido, a coletânea O Socialismo nas Resoluções de Encontros e Congressos do Partido dos Trabalhadores mostra ainda que, apesar das vaias de alguns, o conselho do rapper, além de atual e urgente, nada tem de estranho às posições oficiais e históricas que o petismo reivindica como suas.
A publicação deste volume dos Cadernos Perseu deve favorecer as reflexões dos interessados em conhecer algumas das principais temáticas que compuseram o debate socialista no Brasil dos últimos quarenta anos, sempre a partir da situação peculiar do PT, um partido informado por diversas tradições teóricas e atravessado pela contradição entre um ideário radical e os dilemas da “governabilidade”. Trata-se de um lançamento muito bem-vindo, seja como iniciativa de divulgação documental, seja como estímulo aos debates em âmbito partidário e no conjunto da sociedade.
Richard Martins é historiador, mestre em Ciência Política e doutorando em História Social pela Unicamp, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)

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