sábado, 13 de julho de 2013

Bela lição a alguns indigentes morais

Boaventura Santos: “Desculpe, Presidente Evo”

12/7/2013 15:49
Por Boaventura de Sousa Santos - de Lisboa


Esperei uma semana que o governo do meu país lhe pedisse formalmente desculpas pelo ato de pirataria aérea e de terrorismo de Estado que cometeu, juntamente com a Espanha, a França e a Itália, ao não autorizar a escala técnica do seu avião no regresso à Bolívia depois de uma reunião em Moscou, ofendendo a dignidade e a soberania do seu país e pondo em risco a sua própria vida. Não esperava que o fizesse, pois conheço e sofro o colapso diário da legalidade nacional e internacional em curso no meu país e nos países vizinhos, a mediocridade moral e política das elites que nos governam, e o refúgio precário da dignidade e da esperança nas consciências, nas ruas e nas praças, depois de há muito terem sido expulsas das instituições. Não pediu desculpa. Peço eu, cidadão comum, envergonhado por pertencer a um país e a um continente que são capazes de cometer esta afronta e de o fazer de modo impune, já que nenhuma instância internacional se atreve a enfrentar os autores e os mandantes deste crime internacional.
O meu pedido de desculpas não tem qualquer valor diplomático mas tem um valor talvez ainda superior, na medida em que, longe de ser um ato individual, é a expressão de um sentimento coletivo, muito mais vasto do que pode imaginar, por parte de cidadãos indignados que todos os dias juntam mais razões para não se sentirem representados pelos seus representantes. O crime cometido contra si foi mais uma dessas razões. Alegramo-nos com seu regresso em segurança a casa e vibramos com a calorosa acolhida que lhe deu o seu povo ao aterrar em El Alto. Creia, senhor Presidente, que, a muitos quilômetros de distância, muitos de nós estávamos lá, embebidos no ar mágico dos Andes.
O senhor Presidente sabe melhor do que qualquer de nós que se tratou de mais um ato de arrogância colonial no seguimento de uma longa e dolorosa história de opressão, violência e supremacia racial. Para a Europa, um Presidente índio é sempre mais índio do que Presidente e, por isso, é de esperar que transporte droga ou terroristas no seu avião presidencial. Uma suspeita de um branco contra um índio é mil vezes mais credível que a suspeita de um índio contra um branco. Lembra-se bem que os europeus, na pessoa do Papa Paulo III, só reconheceram que a gente do seu povo tinha alma humana em 1537 (bula Sublimis Deus), e conseguiram ser tão ignominiosos nos termos em que recusaram esse reconhecimento durante décadas como nos termos em que finalmente o aceitaram. Foram precisos 469 anos para que, na sua pessoa, fosse eleito presidente um indígena num país de maioria indígena.
Evo
Evo unificou a Bolívia com o respeito aos ritos e tradições dos índios locais
Mas sei que também está atento às diferenças nas continuidades. A humilhação de que foi vítima foi um ato de arrogância colonial ou de subserviência colonial? Lembremos um outro “incidente” recente entre governantes europeus e latino-americanos. Em 10 de novembro de 2007, durante a XVII Cúpula Iberoamericana, realizada no Chile, o Rei de Espanha, desagradado pelo que ouvia do saudoso Presidente Hugo Chávez, dirigiu-se-lhe intempestivamente e mandou-o calar. A frase “Por qué no te callas” ficará na história das relações internacionais como um símbolo cruelmente revelador das contas por saldar entre as potências ex-colonizadoras e as suas ex-colônias. De facto, não se imagina um chefe de Estado europeu a dirigir-se nesses termos publicamente a um seu congênere europeu, quaisquer que fossem as razões.
O senhor Presidente foi vítima de uma agressão ainda mais humilhante, mas não lhe escapará o fato de que, no seu caso, a Europa não agiu espontaneamente. Fê-lo a mando dos EUA e, ao fazê-lo, submeteu-se à ilegalidade internacional imposta pelo imperialismo norte-americano, tal como, anos antes, o fizera ao autorizar o sobrevoo do seu espaço aéreo para voos clandestinos da CIA, transportando suspeitos a caminho de Guantánamo, em clara violação do direito internacional. Sinais dos tempos, senhor Presidente: a arrogância colonial europeia já não pode ser exercida sem subserviência colonial. Este continente está a ficar demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a distância entre elas e tantos europeus, como eu, que veem na Bolí­via um país amigo e respeitam a dignidade do seu povo e a legitimidade das suas autoridades democráticas.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Dizer o quê?

Barbosa viaja de graça para assistir a jogo da Copa e filho arruma emprego na Globo

5/7/2013 12:41
Por Redação - de Brasília


Luciano Huck recebeu o ministro Joaquim Barbosa (de costas) em seu camarote, no Maracanã
Luciano Huck recebeu o ministro Joaquim Barbosa (de costas) em seu camarote, no Maracanã
O uso de recursos públicos para o pagamento das passagens aéreas do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, de ida e volta no trecho Brasília-Rio, não consiste em qualquer irregularidade, segundo afirmou um jurista ao Correio do Brasil, na condição de anonimato. Ainda que ele não tivesse qualquer compromisso oficial na cidade, apenas o desejo de assistir ao jogo entre Brasil e Espanha, no camarote do apresentador da Rede Globo Luciano Huck, no Maracanã, o trânsito entre a Capital Federal e a residência da autoridade, que é no município, franquia-lhe a liberdade para ir e vir neste percurso.
Mas a distância entre o discurso de cunho moralista do presidente do STF e a prática do cidadão Joaquim Barbosa o colocou em xeque perante a opinião pública, logo após a divulgação das notícias de que tanto o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), quando da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), utilizaram-se dos benefícios concedidos ao cargo para cumprir agendas pessoais ou, no mínimo, heterodoxas. Barbosa, que outrora frequentava as redes sociais como uma espécie de “vingador” dos bons costumes e algoz dos ‘mensaleiros’, tem visto sua sua imagem derreter nas últimas horas.
“Joaquim Barbosa também foi pro Maracanã com dinheiro público! Não tem virgem na zona! E o filho vai trabalhar no Caldeirão do Huck”, enxovalhou o cronista José Simão, em seu blog, ao assinalar que o filho de Barbosa, Felipe, foi contratado para trabalhar com o dono do camarote que ele frequenta, em jogos no Maracanã, como lembrou o jornalista Fernando Brito, editor do site Tijolaço: “O Dr. Barbosa é habitué do camarote, no qual já assistiu ao amistoso Brasil e Inglaterra, na reabertura do Maracanã. Afinal, o Dr. Barbosa não é chegado a mordomias”.
Brito acredita que Barbosa “não tenha previsto que ele próprio pudesse ser vítima de uma acusação lançada assim ao país, como fato indominável, sem direito de uma explicação ou análise ponderada. Ou que não creia na famosa cítara jurídica de que a honra é como um baú de penas que, aberto ao vento, não há como reparar. Ou daquela outra, sobre a mulher de César”.
Filho na Globo
Felipe Barbosa, filho do presidente do STF, é formado em comunicação social e entrou para a equipe de produção do programa Caldeirão do Huck, na Rede Globo, conforme publicou a jornalilsta Keila Jimenez, em sua coluna no diário conservador paulistano Folha de S. Paulo Outro Canal, nesta sexta-feira.
“Procurada pela coluna, a Globo e fontes na produção da atração negaram a contratação de Felipe. Disseram que ele foi apenas fazer uma visita ao Projac, no Rio. Mais tarde, a emissora confirmou a contratação”, afirma a jornalista.
– Foi um péssimo momento para o ministro Barbosa usar seus créditos na cota aérea do STF, e pior ainda por ter o filho empregado no programa de TV do apresentador. No primeiro caso, porque o discurso se distancia da prática. E no segundo, a presença do presidente da mais alta corte de Justiça do país no camarote de Luciano Huck sugere a ideia obvia de que ele teria usado de sua influência para arrumar um emprego para o filho na Rede Globo, alvo hoje da suspeita de dever milhões de reais aos cofres públicos, em impostos sonegados. A assessoria do ministro, desta vez, cochilou – disse o jurista ao CdB.
Barbosa acompanhou a partida ao lado do filho Felipe no camarote de Huck. Por meio de sua assessoria de imprensa, o Supremo informou que apenas o ministro viajou de Brasília ao Rio com as despesas pagas pelo STF. Os voos de ida e de volta ocorreram em aviões de carreira. O Tribunal também confirmou que não havia na agenda de Barbosa nenhum compromisso oficial no Rio durante o final de semana.
O uso desenfreado de recursos da Corte para viagens fora da agenda oficial já foi revelado nos últimos meses. Os ministros têm usado dinheiro do STF para viagens durante o recesso, quando estão de férias, e para levar as mulheres em voos internacionais.
Ao longo dos últimos quatro anos (de 2009 a 2012), o total de recursos públicos gasto em passagens pelos ministros e suas esposas foi de R$ 2,2 milhões, sendo que R$ 1,5 milhão foi usado em viagens internacionais. No período, foram destinados R$ 608 mil para as mulheres de Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski – ainda na corte -, Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso e Eros Grau – já aposentados.
Barbosa também foi questionado pela reforma do banheiro do seu apartamento funcional, em Brasília, que custou mais de R$ 90 mil.

Extraído do Correio do Brasil

Para entender as mudanças no Egito

4 de Julho de 2013 - 14h39

Lejeune Mirhan: Egito muda o rumo da chamada “Primavera Árabe”



O mundo assistiu, desde domingo, àquilo que a BBC de Londres chamou de “a maior manifestação de massas da história da humanidade ocorrida em um só dia em um país”. Pura verdade. O Egito assistiu no domingo, 30 de junho, a 17 milhões de pessoas nas ruas. E nesta quarta, 3 de julho, foram 30 milhões. E esse que é o maior país árabe, possui 82 milhões de habitantes. Grosso modo, podemos dizer que 36% de sua população saíram às ruas para pedir o fim do governo de Mohamed Mursi.

Por Lejeune Mirhan*


Seria como imaginarmos que 72 milhões de brasileiros saíssem às ruas para protestar. Inimaginável. E olha que a Globo, em seu Fantástico domingo noticiava assim: “milhares de pessoas vão ás ruas no Egito” (sic). Se falasse centenas de milhares estaria mentindo.

Em função do peso político e estratégico para todo o mundo árabe e mesmo o Oriente Médio que tem o Egito, vale a pena refletir sobre os acontecimentos dos últimos dias. Até porque a grande imprensa (TVs e jornais burgueses), procurou dar um enfoque completamente distinto da realidade. Como essas empresas não fazem jornalismo e sim propaganda, servem a interesses de classe e de partidos conservadores, os que estão em outro campo precisam se posicionar.

Que erros Mursi cometeu?
As eleições de maio de 2012, de fato, foram as primeiras em 60 anos. Aos que não conhecem bem a história do Egito, desde que Gamal Abdel Nasser destituiu a monarquia do rei Farouk em 1952, em 60 anos apenas ele e mais dois generais egípcios governaram o país. Foi Anuar El Sadat, de 1970 até 1979, quando foi assassinado, e Hosni Mubarak, de 1979 até 2011, quando foi destituído e o Exército assumiu o comando do país por um ano e meio.

O que a mídia chamou de “primavera árabe”, nada teve de primavera. Os árabes mais conscientes, para refutar essa terminologia a chamam de “inverno árabe”. O que ela trouxe na essência não foram mudanças substanciais, rupturas, melhorias para o povo árabe. Trouxe o tal “gigante adormecido” de que a mídia tupiniquim tanto fala para enaltecer certos setores de uma direita reacionária, antidemocrática e despótica que não preza a democracia.

No caso do Egito e da Tunísia, os primeiros países árabes que tiveram eleições, venceram os partidos islâmicos conservadores. Em alguns aspectos da vida social e política acabaram por piorar as coisas para o povo. No caso específico do Egito, o governo dito “democrático” de Mursi governou única e exclusivamente para o seu partido, que é religioso e se chama Partido da Justiça e da Liberdade, braço política da Irmandade Muçulmana. Essa gente defende o Estado islâmico, a volta do Califado Islâmico. Eles têm saudades dos sultães otomanos que governaram o império islâmico por mais de 400 anos.

O Egito de Mursi não rompeu os acordos com o FMI. Ao contrário, se submeteu a eles. O grupo palestino que posa de revolucionário para a mídia, chamada Hamas, que é um partido islâmico e não integra a OLP, a resistência palestina que é laica, adora o Mursi. Até porque a Faixa de Gaza faz fronteira com o Egito e o grande sonho dos palestinos que vivem nessa área que é considerada a maior prisão a céu aberto do mundo, era de que a fronteira na cidade de Rafah fosse imediatamente aberta para o livre trânsito de pessoas e mercadorias. Que nada. Mursi a manteve fechada, obedecendo às ordens dos Estados Unidos e de Israel. Em certa medida até piorou a situação.

Para piorar as coisas, Mursi governou apenas para a sua Irmandade. Não era o presidente de todos os egípcios. É bem verdade que ele não era o candidato original da Irmandade. O nome que eles trabalhavam foi impugnado pela comissão eleitoral simplesmente porque tinha nacionalidade estadunidense. Mursi surgiu de última hora, sem preparo algum. Um completo incapaz.

Como disse, o Egito não tem tradição alguma de eleição e de democracia. E quando fez a primeira, a própria esquerda e setores nacionalistas e patrióticos, socialistas e comunistas acabaram dividindo-se em três grandes candidaturas. Estas ficaram em 3º, 5º e 6º lugar e não foram ao segundo turno. A soma deles, garantiria uma vaga no 2º turno. O principal deles, Hamdeen Sabahi, um homem de esquerda, ficou em 3º lugar e era apoiado pelo PC Egípcio entre outras forças. Hoje, Hamdeen é um dos líderes da chamada Frente de Salvação Nacional, que assumiu o comando ao país com a queda de Mursi.

Outro grave erro de Mursi foi a modificação da Constituição do país, que sempre foi laica. Nas mudanças operadas por ele em dezembro passado na calada da noite, introduziu mudanças que retrocederam em relação à laicidade do país. Começam as exigências do uso do véu pelas mulheres e proibições de venda de bebidas alcoólicas. Tal qual seu amigo e irmão da Irmandade, o pretenso sultão otomano da atualidade, Tayip Erdogan da Turquia, vem fazendo.

No entanto, houve uma gota d’água que irritou profundamente o povo árabe do Egito. Que Mursi apoiava e ajudava a financiar os terroristas jihadistas, salafistas, wahhabitas e da Irmandade no ataque que a Síria vem sofrendo há mais de dois anos todo mundo sabia. Mas, há um mês ele rompeu relações diplomáticas com a Síria, o mais antigo país árabe e dos mais antigos da humanidade. Seguiu claras orientações do imperialismo estadunidense, de Israel, mas principalmente da União Europeia que odeia Bashar Al Assad.

A Frente de Salvação Nacional

Os patriotas, nasseristas, comunistas e socialistas egípcios parecem ter aprendido lições da experiência da dispersão eleitoral do ano passado. Após a derrota eleitoral, agora se agruparam em uma frente ampla. Criaram a FSN que agrupa em torno de 30 partidos políticos de um espectro ideológico amplo. O Partido Comunista Egípcio não a integra formalmente, mas a apoia.

A Frente de Salvação Nacional é composta pelas seguintes organizações: Partido da Constituição – Mohamed El Baradei; Corrente Popular Egípcia – Hamdeen Sabahi; Partido do Congresso Egípcio – Amr Moussa; Partido da Nova Comitiva – Mounir Fakhri Abdel Nour; Partido do Egito Livre – Amr Hamzawy; Partido Social Democrata Egípcio – Mohamed Abu Ghar; Partido da Frente Democrática – Sakina Fouad; Partido dos Egípcios Livres – Ahmed Saeed; Aliança Democrática Revolucionária que inclui 10 partidos e movimentos revolucionários; Partido do Aglomerado – Gouda Abdel Khalek; Partido da Reforma e Desenvolvimento – Nosso Egito; Partido da Liberdade; Partido da Geração Democrática; Partido Socialista Egípcio; Aliança Popular Socialista; Socialistas Revolucionários; Partido da Paz Social; Partido Egito do Futuro; Partido da Dignidade; Assembleia Nacional para a Mudança e a Aliança dos Partidos Nasseristas. Além disso, é integrada pela Central Geral dos Camponeses, União Independente dos Camponeses e a Frente Nacional das Mulheres (fonte: www.orientemidia.org).

Um dos seus líderes, uma espécie de coordenador, é Mohamed El Baradei. Ele presidiu a Agência Atômica Internacional por cinco anos. Teria sido reeleito por mais um mandato como é da tradição na ONU, mas foi vetado pelos EUA. Seu maior crime: disse que o programa nuclear iraniano não visava à construção da bomba, tinha fins energéticos e científicos. Foi banido. Caiu em desgraça. Mas ganhou o Prêmio Nobel da Paz.

Baradei não é homem de esquerda. Talvez de centro. Um técnico. Teria sido imensamente votado nas eleições do ano passado, mas declinou de sua candidatura, abrindo espaços políticos para outras forças. Agora, é líder do Partido da Constituição. Foi duro contra o fundamentalismo religioso de Mursi e as mudanças na Constituição egípcia. Dialogava com as forças armadas em nome da FSN para as mudanças de rumo no país.

É preciso registrar as quatro reivindicações unitárias da Frente, apoiadas pelo PC Egípcio: 1. Renúncia imediata de Mursi; 2. Governo de transição com eleições em pelo menos seis meses; 3. Medidas econômicas em favor das massas populares e 4. Suspensão da atual Constituição e elaboração de uma nova. Esse é o programa que unifica toda a oposição.

O papel das forças armadas


As forças armadas egípcias tiveram grande papel na história. Apoiaram a derrubada da monarquia em 1952, deram sustentação para Nasser nacionalizar o canal de Suez e peitaram Israel em pelo menos dois confrontos diretos.

Uma das primeiras medidas de Mursi foi trocar o comando das forças armadas. Aposentou 12 generais de altas patentes e nomeou novos. Alguns mais jovens inclusive. Dentro de sua linha mais religiosa. No entanto, essas mexidas de nada adiantaram. Seu projeto político e religioso, de sua Irmandade, não conta com nenhum respaldo na tropa. Os militares egípcios defendem a laicidade do Estado, da mesma forma que isso na Turquia é um tabu. Não se admite o retorno de um Estado religioso e fundamentalista.

Esse jovem comandante do Estado Maior das Forças Armadas, Abdel Fattah Al Sisi, dialogava com a FSN. O ato do dia 30 de junho fora marcado pela oposição um mês antes. Já se sabia que ele levaria milhões às ruas. Diferentemente do Brasil, os partidos levaram sim suas bandeiras, suas faixas, suas reivindicações. O general Sisi dialogava com a oposição. Assim, no domingo, em pronunciamento à nação, deu ultimato ao presidente Mursi. Não para que ele saísse, mas para que ele mudasse os rumos da economia do país, formasse um governo que tivesse partidos de todas as correntes políticas.

Mursi não mudou de posição, nem arredou o pé. Foi inábil politicamente até seus últimos momentos na presidência. Discursou na TV Al Jazeera que transmite em inglês e na TV Al Mayadeen (libanesa) que transmite em árabe e reafirmou que nada mudaria. O máximo que fez foi admitir “certos erros”.

Isso enfureceu ainda mais as massas árabes. Já desde a manhã da quarta-feira (3) em todas as cidades egípcias o povo tomou conta das ruas e praças. Os cálculos eram de 30 milhões de egípcios protestando e pedindo a saída do presidente.

O ultimato venceu às 19h. Novamente, o general Al Sisi foi à TV. As imagens atrás do púlpito em que discursou tinham, além da bandeira nacional, as bandeiras das três forças militares. À sua esquerda e à sua direita, duas fileiras de cadeiras duplas com todas as lideranças nacionais, dos partidos, das Igrejas Coopta (a mais antiga Igreja cristã da terra), Islâmica, o presidente do Supremo Tribunal Federal de lá e organizações da sociedade civil. Mostrou ampla unidade nacional.

Nesse pronunciamento, ficava nomeado como novo presidente do Egito o jurista de carreira – cristão inclusive, o que mostra que o problema nunca foi religioso como muitos procuram mostrar – Adly Mansour. Que era vice-presidente da Suprema Corte desde 1992. Ela fora incumbido de reescrever, com auxílio de juristas, a constituição da República. Deve indicar a formação de um governo de união nacional. Fala-se no nome de Baradei para primeiro-ministro, para formar um governo “técnico”, que recupere aceleradamente a economia nacional.

No entanto, também no seio das forças armadas, o rompimento de Mursi com a nação Síria, da qual o Egito fora associado no que foi chamado de República Árabe Unida – RAU em 1958, caiu igual a uma bomba. Repercutiu de forma extremamente negativa essa atitude serviçal ao sionismo e ao imperialismo.

A repercussão na mídia burguesa

O que chamamos de mídia burguesa não passa de uma organização empresarial, capitalista, que vende propaganda. Nunca notícia. Está a serviço de um tipo particular de capitalismo, que é o financeiro. É golpista de primeira hora. Jamais teve apreço por democracia alguma. Muito ao contrário. Sempre que pode, em qualquer país do mundo, apoia abertamente golpes de Estado contra presidentes democraticamente eleitos. Criminaliza a política em geral. Aliena o povo. Embandeira-se falsamente com palavras de ordem “moral” e “ética”, mas seus protegidos são os maiores corruptos.

No caso do Egito, a cobertura não poderia ser diferente. A mídia golpista passou a defender o “presidente eleito democraticamente” e a “condenar o golpe de estado” (sic). A sua “democracia” é de fachada. Apega-se à forma e despreza o conteúdo. Faz o jogo do imperialismo, que queria ver Mursi no comando, para não abrir fronteira aos palestinos. Para financiar a derrubada do presidente sírio. Para ver o Egito se ajoelhar ao FMI.

No caso do Brasil, os comentaristas dos telejornais, em especial da tal Vênus Platinada, se contorceram em usar e abusar do termo “golpe militar”, “golpe de Estado”, “tomada de poder pelos militares”. A indignação dessa gente é completamente seletiva. Alinharam-se imediatamente aos golpistas em Honduras em 2011 e aos golpistas no Paraguai em 2012. Na maior cara dura. Agora, em completo desprezo aos 30 milhões que foram às ruas, se agarram a Mursi, não porque gostem dele, mas é o que eles têm de plantão para manter o mundo árabe na órbita imperialista.

Quem ganha e quem perde com as mudanças no Egito

É preciso ainda ver os rumos que as coisas irão tomar. Ainda não temos respostas para todas as perguntas. Nem temos ainda as perguntas certas a serem feitas. Mas, alguns palpites iniciais podemos e devemos oferecer.

A primeira certeza que tenho é de que o grande derrotado são os Estados Unidos. Se Mursi nunca foi o presidente do sonhos dos imperialistas, tampouco eles tiveram plenamente o controle de forma a indicar um aliado seu diretamente como Mubarak foi por 30 anos. Obama mesmo acaba de dizer que vai rever a ajuda militar em armamentos de 1,5 bilhão de dólares que todos os anos o Egito recebe desde 1981 (foram pelo menos 45 bilhões de dólares no período). Ainda que não fosse em dinheiro, essa ajuda sempre foi fundamental para armar o exército egípcio.

Sabemos que o que está em jogo ali não é essa ajuda. Mas, o acordo de paz com Israel, que Mursi preservou e agora volta à mesa e volta a assombrar os planejadores do Departamento de Estado dos Estados Unidos.

O segundo maior derrotado nesse processo é, sem dúvida alguma, a Turquia. Erdogan já vinha se isolando e enfrentando protestos populares cada dia maiores. Chegou a dizer que as manifestações que lá ocorriam tinham a mesma natureza que as do Brasil, como que para conseguir solidariedade da presidente Dilma. Que elas eram insufladas artificialmente para desestabilizar seu governo. Falso. As TVs turcas ignoraram completamente os milhões nas ruas do Egito durante todo o dia da quarta, 3 de julho. Ele deve estar apavorado neste momento. Deve temer sua sombra, mas em especial seu Exército, guardião da constituição e da laicidade do Estado turco.

Perde também o Hamas, o grupo palestino criado há 20 anos com a ajuda de Israel, que certas correntes que se dizem de “esquerda” no Brasil acham que é revolucionário. Não bastasse o seu financiador ter deixado o poder no Catar para seu filho de 33 anos, para onde na cidade de Doha eles mudaram o seu escritório político deixando Damasco por fazerem oposição ao presidente Bashar, agora se veem órfãos de seu outro aliado que é a Irmandade. Se já estavam isolados entre os palestinos pelas suas posições e distantes dos 13 partidos que integram a estrutura da OLP, da resistência palestina, que é laica e democrática, agora se isolam ainda mais.

Parece que vão pagando caro todos os que conspiraram pela derrubada do governo do presidente sírio, Dr. Bashar al Assad. A primeira que sai foi a que havia dito “Bashar tem que sair” (sic), que foi a “Hilária” Clinton. Depois, caiu o emir do Catar, Hamad Al Thani. Agora Mursi paga o seu preço. Quem será o próximo?

Sobre quem ganha, também só tenho uma certeza. As massas árabes da Síria foram para as ruas nesta quarta, 3 de julho. Dançaram e cantaram. Comemoraram a queda do traidor dos árabes. O grande vencedor é o jovem presidente Bashar. Ele aproveitou para dar uma entrevista para o jornal sírio Al Thawra (A Revolução), onde afirma que a maior derrota é do “islã político”. Sua frase exata: “todos os que usam a religião a serviço de seus interesses políticos ou de interesses de seus grupos, cairão, em todo o mundo, um depois do outro”. Tem sido profético o presidente sírio. Elogia o povo milenar egípcio, com forte pensamento pan-árabe.

Também nesse sentido, se fortalece o pensamento secular, pan-arabista, patriótico, que já vinha ganhando terreno desde as mobilizações de janeiro de 2011. Nesse sentido, fortalecem-se as forças de esquerda, socialistas e comunistas. Não por acaso, no mesmo dia 3 de julho o PC Libanês, o mais antigo do Oriente Médio, emitiu nota saudando o povo egípcio pela sua vitória nas ruas, com a queda de Mursi. A mesma coisa fez o PC Egípcio, que participou de todas as manifestações anti-Mursi.

Por fim, o fortalecimento da Rússia no cenário mundial. Ela que vinha apoiando desde o primeiro momento a resistência dos sírios aos ataques externos, agora, mais do que nunca, é alçada a país que os analistas burgueses chamam de global player. Veio para ficar. Seu poder e cacife ampliam-se consideravelmente. Sem falar da China. Mesmo que discreta, cresce no cenário internacional.

Desdobramentos e conclusões

Como já disse, é cedo para tirarmos muitas lições e conclusões. Muitos cenários podem ocorrer.

É provável que Baradei vire mesmo primeiro-ministro de um governo que recupere a economia nacional, rompa acordos com o FMI, atenda as aspirações básicas do povo, em especial dos mais pobres, criando empregos. Que retorne à soberania nacional. Que indique um secretário-geral da Liga Árabe, como é da tradição do Egito ocupar esse posto, que seja verdadeiramente comprometido com as causas árabes.

Mas que, fundamentalmente, restabeleça de imediato as relações políticas e diplomáticas com a Síria. Que se interrompa o financiamento e o apoio aos terroristas que atacam a Síria. Que se abra a fronteira do país com a Faixa de Gaza. Que apoie o processo de paz na Palestina. Enfim, que restabeleça o diálogo nacional com todas as forças políticas, entidades da sociedade civil e as centrais sindicais.

Podemos estar presenciando, agora sim, uma verdadeira primavera dos árabes. Quiçá o avanço em uma situação geopolítica que possa trazer a ampla independência nacional dos países árabes, que possa trazer democracia popular e bem-estar para as massas. Mais do que um desejo pessoal, é uma aspiração desse povo milenar que tantos legados deixou para toda a humanidade.

* Sociólogo, Professor, Escritor e Arabista. Colunista da Revista Sociologia da Editora Escala e colaborador do Vermelho. Foi professor de Sociologia e Ciência Política da Unimep entre 1986 e 2006. 



Extraído do Portal Vermelho