sábado, 11 de agosto de 2018

A nova ordem mundial do petróleo


A nova ordem mundial do petróleo

"Na nova ordem mundial do petróleo, só uma elite inteiramente corrompida e rebaixada, do ponto de vista moral, e completamente imbecilizada, do ponto de vista intelectual, pode abrir mão do controle estatal de seus recursos energéticos nacionais já conquistados"

 
30/07/2018 10:04
Reprodução
Créditos da foto: Reprodução
 
Nas duas últimas décadas do século passado, a Guerra Irã-Iraque, entre 1980 e 1988, a Guerra do Golfo, entre 1990 e 1991, e o fim da URSS, em 1991, atingiram em cheio alguns dos maiores produtores e exportadores mundiais de petróleo, dividindo e enfraquecendo a OPEP, e destruindo a capacidade de produção russa. Foi um período de anarquia no mercado mundial de petróleo, e ocorreu no mesmo momento em que as grandes corporações petroleiras privadas promoveram uma grande desconcentração e "desverticalização" do seu capital e de suas estratégias, enquanto o petróleo era transformado num "ativo financeiro" cujo preço era renegociado diariamente nas Bolsas de Nova York e Londres. Entretanto, no final dos anos 90 e início do século XXI, esta tendência foi revertida de forma abrupta e radical. E tudo começou, surpreendentemente, pelas próprias petroleiras privadas anglo-americanas, que comandaram - a partir de 1998 - uma nova revolução na indústria privada do petróleo, envolvendo-se num processo gigantesco de fusões de empresas que já eram as maiores do mundo, e que deram origem às atuais Exxon-Mobil, ConocoPhillips, Chevron, BP, Total, ou mesmo, à norueguesa StatoilHydro.

Esse terremoto inicial assumiu logo em seguida novas formas com a reestatização e reorganização das grandes empresas energéticas russas, chinesas e indianas, junto com a expansão das empresas estatais da Arábia Saudita e de vários outros países incluindo o Brasil, sobretudo depois da descoberta do petróleo em águas profundas, em 2006. E de um passo decisivo com as novas formas de exploração intensiva do petróleo de xisto que recolocou os EUA entre os três maiores produtores mundiais de óleo. Uma transformação tão rápida e profunda que levou o grande especialista norte-americano, Michael Klare em petróleo, a afirmar que o mundo havia entrado numa "nova ordem energética internacional", caracterizada pela hiperconcentração do capital petroleiro privado, pela multiplicação das grandes petroleiras estatais, e pela crescente hegemonia do nacionalismo econômico e do "nacionalismo energético", entre as grandes potências do sistema mundial, mesmo entre as chamadas "potências liberais", incluindo os Estados Unidos de Donald Trump, o último dos "conversos". E de fato, 20 anos depois do início desta transformação, cerca de dois terços das reservas de petróleo do mundo se concentram no território de 15 países, e em 13 deles são de propriedade estatal; das 20 maiores empresas petroleiras do mundo, 15 são estatais e controlam 80% das reservas mundiais. As outras cinco empresas são privadas e controlam menos de 15% da oferta mundial do petróleo. Por isso, tem toda razão Daniel Yergin – outro grande especialista americano – quando diz que nos dias de hoje as principais decisões relativas ao petróleo – da definição dos preços ao traçado das grandes estratégias – são tomadas pelos Estados nacionais e suas grandes empresas públicas.

É muito difícil identificar uma causa única que explique esta revolução na ordem mundial do petróleo. Mas é possível pelo menos destacar algumas turbulências fundamentais, que ocorreram simultaneamente. No plano econômico, o enorme crescimento dos países asiáticos e, em particular, da China e da Índia, que produziu um verdadeiro "choque de demanda" sobre o mercado mundial de petróleo. Por outro lado, no plano geopolítico, a guerra quase contínua no Oriente Médio, que já se prolonga desde 2001, provocando um verdadeiro "choque de expectativas" negativas no mercado mundial, com a perspectiva de uma guerra permanente envolvendo as grandes potências, e quase todos os países de dentro e fora daquela região com grandes reservas de petróleo. Por fim, como consequência destes acontecimentos intensificou a concorrência das grandes potências, e sua luta para conquistar e monopolizar os novos recursos descobertos neste período, sobretudo no Canadá, Venezuela e Brasil. Assim mesmo, olhando de maneira mais ampla, se pode dizer também que esta nova "ordem do petróleo" é de fato um produto de longo prazo da expansão do sistema interestatal capitalista, ocorrida na segunda metade do século XX. Não se trata apenas da entrada da China e da Índia; trata-se de um sistema com 200 Estados nacionais que disputam hoje um recurso absolutamente escasso, concentrado e essencial para sua sobrevivência como sociedades e economias nacionais, mas também como unidades territoriais soberanas que participam de uma luta sem quartel pelo poder e pela riqueza mundial.

Nesse contexto geopolítico, e nessa nova ordem mundial do petróleo, só uma elite inteiramente corrompida e rebaixada, do ponto de vista moral, e completamente imbecilizada, do ponto de vista intelectual, pode abrir mão do controle estatal de seus recursos energéticos nacionais já conquistados. 

José Luís Fiori  é Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional, e do Programa de Pós-Graduação em Bioética e Ética Aplicada da UFRJ; Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPq/UFRJ, "Poder Global e Geopolítica do Capitalismo", www.poderglobal.net, e do Laboratório de "Ética e Poder Global", do PPGBIOS e consultor do GEEP-FUP.
*Publicado originalmente no site a AEPET - Associação dos Engenheiros da Petrobrás

Mídia monopolista incita permanentemente a violência contra os excluídos, diz Zaffaroni


Mídia monopolista incita permanentemente a violência contra os excluídos, diz Zaffaroni

A questão democrática e a midiatização do processo judicial no Brasil foi o tema central do debate que lotou o salão do Hotel Continental, em Porto Alegre, na noite de quinta-feira (2)

 
06/08/2018 13:47
Eugenio Raúl Zaffaroni analisou a influência da mídia no sistema penal da América Latina. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Créditos da foto: Eugenio Raúl Zaffaroni analisou a influência da mídia no sistema penal da América Latina. Foto: Guilherme Santos/Sul21
por Marco Weissheimer
A questão democrática e a midiatização do processo judicial no Brasil foi o tema central do debate que lotou o salão do Hotel Continental, em Porto Alegre, na noite de quinta-feira (2). O responsável pela lotação do espaço foi o jurista argentino, Eugenio Raúl Zaffaroni, principal conferencista da noite. Ministro da Suprema Corte Argentina de 2003 a 2014 e diretor do Departamento de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Buenos Aires, Zaffaroni, desde 2015, é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de ser vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal. E a situação do Direito Penal na América Latina foi um dos principais temas abordados no evento promovido pelo Instituto Novos Paradigmas (INP), que vem promovendo uma série de encontros no Brasil e no Exterior para debater a crise do estado democrático de direito.
No atual contexto de avanço do estado de exceção, “o senhor representa o Direito e a Razão”, disse Tarso Genro, presidente do conselho programático do INP, ao apresentar o conferencista da noite. Zaffaroni falou sobre este cenário, destacando o papel da mídia e do sistema penal como um todo na construção de uma cultura punitivista na sociedade que, para ele, representa uma séria ameaça à democracia e à segurança das pessoas. “Todos temos experiências de condenações midiáticas, casos onde a condenação vem antes do devido processo penal. No meu país, os juízes têm medo da mídia. Hoje, na Argentina, há juízes sendo perseguidos pelo conteúdo de suas sentenças. É a primeira vez que vejo isso acontecer desde que retornamos à democracia, em 1983”, relatou.
O estereótipo do criminoso
Para o magistrado argentino, há hoje, em praticamente toda a região da América Latina, um monopólio midiático responsável pela construção de uma visão única da realidade, o que é incompatível com a democracia e com uma sociedade plural. O que vivemos em nossa região, assinalou, são monopólios midiáticos com um discurso único que alimenta uma cultura punitivista que acaba contaminando toda a sociedade. “No México, a mídia faz um discurso racista dizendo que os mexicanos são historicamente violentos. Nos países do Cone Sul, a mídia dá grande ênfase ao noticiário policial. Essa mídia monopolista está permanentemente incitando a vingança e a violência contra uma classe, a dos excluídos. O estereótipo do criminoso entre nós é o adolescente de bairros precários”.
Essa cultura, disse ainda Zaffaroni, aumenta a seletividade do sistema penal como um todo. “Todo sistema penal é seletivo. A pena é um fato político, uma expressão de poder. O direito penal habilita o poder punitivo, mas também limita esse poder. Nós exercemos o controle jurídico do exercício desse poder e precisamos nos esforçar para diminuir esse nível de seletividade”. Falando da realidade argentina, o jurista apontou um fato novo que estaria agravando o nível e a natureza dessa seletividade. “O grande perigo deste momento, ao menos em meu país, além dessa seletividade estrutural do sistema penal, é o surgimento de uma seletividade persecutória, onde o inimigo passa a ser o opositor político, o que representa um sintoma totalitário. Na Argentina isso é muito claro. Fala-se de lawfare, mas talvez seja melhor falar de law far (longe do direito)”. “Está se perdendo todos os limites”, acrescentou. “Pela primeira vez, em 35 anos de democracia, voltamos ter presos políticos”.
“Poder financeiro quer ocupar lugar da política”
Para Zaffaroni, esse cenário está inserido no marco de um novo poder planetário engendrado pela globalização: o poder do capital financeiro que busca o máximo de rendimento no menor espaço de tempo e alimenta pulsões para tomar o lugar da política e dos políticos. “Esse poder financeiro é uma pulsão de totalitarismo que quer ocupar o lugar da política, enfraquecendo o Estado. O objetivo desse poder é criar uma sociedade com 30% de incorporados e 70% de excluídos. Entre o incluído e o excluído não existe mais nenhuma relação dialética como havia entre o explorador e o explorado. O excluído é absolutamente descartável”. Esse sistema, disse ainda Zaffaroni, precisa da mídia e do sistema penal para reforçar o aparato repressivo.
A pretensão desse poder financeiro global de enfraquecer o Estado e ocupar o lugar da política representa uma ameaça para toda a humanidade, advertiu o magistrado. “A humanidade só tenta impor limites quando sente medo. A Declaração dos Direitos do Homem surgiu porque o mundo ficou apavorado com a Segunda Guerra Mundial e o surgimento da bomba atômica. Estamos vivendo um momento regressivo, mas a criatividade política não surge nos períodos de bonança. Vivemos um período de resistência e é preciso lembrar que o Direito é luta. Ao longo da história, os direitos sempre foram arrancados na luta”, destacou Zaffaroni que vê a América Latina com capacidade de resistir à ofensiva desse poder financeiro global:
“A América Latina não vai ficar calada. Ela tem uma dinâmica própria. É um mosaico formado por todos os excluídos do mundo: povos originários, africanos, imigrantes da Europa subdesenvolvida. Estamos sincretizando culturas. Precisamos virar Hegel de cabeça para baixo. Todas as culturas descartadas por ele estão se sincretizando entre nós. Por isso, nada de depressão. É tempo de resistir”.
A conferência de Zaffaroni foi debatida por Maria Helena Weber, professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alexandre Wunderlich, Doutor em Direito pela PUCRS, e Domingos Savio Dresh da Silveira, Procurador Regional da República e professor da Faculdade de Direito da UFRGS.
Visibilidade, cegueira e o Direito Penal
Maria Helena Weber utilizou o par “visibilidade e cegueira” para falar do papel desempenhado pela mídia hoje. “A realidade vai sendo enquadrada por diferentes tipos de recorte que envolvem desde os critérios que definem as fontes consultadas até o apagamento de outros tipos de recorte”. Esse enquadramento, acrescentou, apresenta uma realidade dramatizada insidiosa que naturaliza o preconceito, a violência e a indignidade.
Alexandre Wunderlich destacou a premissa básica que embasou a fala de Zaffaroni: o Direito Penal tem a função de limitar o poder punitivo do Estado. “Nunca conseguimos aplicar essa premissa. Passamos a década de 90 promulgando novas leis penais e provocando um inchaço do Direito Penal, criminalizando todas as condutas que os meios de comunicação consolidaram no imaginário social como passíveis de pena. Estamos vivendo a perda da dignidade do Direito Penal. A magistratura tem que colocar o Direito Penal no seu lugar”.
Na mesma linha, Domingos Savio afirmou que estamos vivendo um estado de exceção com um subproduto inesperado: em função da necessidade de resistir a ele, está juntando as pessoas que estavam dispersas e esse auditório aqui hoje é uma prova disso. Lembrando uma reflexão de Pierre Bourdieu, ele comentou o papel desempenhado pela televisão hoje, observando que “é próprio do estado de exceção que as palavras percam seu sentido”. “A TV se tornou um perigo para a democracia. Ao invés de ser um instrumento de comunicação, ela se tornou árbitro da existência social, definindo aquilo que existe e o que não existe. E ninguém chama isso de censura”.
Publicado originalmente no Sul21

O político, o economista e o plano


O político, o economista e o plano

A conversa se passa durante a Grande Depressão nos Estados Unidos, mas serviria ao Brasil de hoje

 
06/08/2018 15:10
Reprodução
Créditos da foto: Reprodução
por João Sicsu
Em algum lugar do tempo e do planeta, o político como protagonista e o economista como figurante trocam argumentos e revelam vontades e iniciativas para revigorar a economia por meio de um plano. O país enfrenta a pior situação econômica de sua história. O governo, desacreditado, adotou políticas que agravaram os problemas sociais.
O governo cortou gastos públicos e paralisou seus investimentos em nome do equilíbrio fiscal. A economia paralisou no fundo do poço. Estamos em uma economia com milhões de desempregados. Brotam pelas ruas de todos os lugares moradias precárias e moradores sem moradias. A fome voltou. A fraqueza alimentar e as condições de higiene deixam o ambiente propício a adquirir doenças.
A miséria alcançou os pobres e a pobreza atingiu a classe média. Houve sinais que indicam o aumento do número de suicídios, dos distúrbios mentais e do alcoolismo. Os vulneráveis foram os mais atingidos: idosos, mães e pais solteiros, crianças, indivíduos com deficiência e os negros pobres.
O ódio predominou. O motivo do ódio é que cidadãos ou grupos sociais são vistos, uns pelos outros, como concorrentes pelas vagas de emprego e pelos espaços públicos. Cresceu a impaciência com a democracia e com as leis. A intolerância emergiu. Quando a economia gera escassez, em paralelo, cria um ambiente favorável ao individualismo e de tensão e insatisfação entre cidadãos e grupos contra tudo e todos.
O político fez um diagnóstico preciso da situação:
“As riquezas encolheram para níveis fantásticos, os impostos aumentaram, nossa capacidade de pagar qualquer coisa caiu, governos de todos os tipos têm enfrentado séria redução da arrecadação, o dinheiro está parado nas correntes de comércio...
E continua: as fazendas improdutivas estão por todos os lados, as poupanças de muitos anos de milhares de famílias se foram. Mais importante, uma multidão de cidadãos desempregados enfrenta o problema assustador da existência e um número igualmente grande trabalha por pouco dinheiro. Apenas um otimista tolo pode negar a realidade sombria do momento.”
O político propôs o que fazer:
“Esta nação pede ação e ação agora. Nossa principal e maior tarefa é colocar os cidadãos para trabalhar. Este não é um problema insolúvel se o enfrentarmos com sabedoria e coragem. Isso pode ser conseguido em parte pela contratação direta pelo próprio governo, tratando a tarefa como trataríamos a emergência de uma guerra, mas, ao mesmo tempo, por meio deste emprego, realizando projetos extremamente necessários para estimular e reorganizar o uso de nossos recursos naturais.”
O político propôs como deve fazer a recuperação do emprego:
“... Pela insistência de que os governos federal, estadual e local ajam urgentemente ... Pela unificação das atividades de socorro (à economia), que hoje são frequentemente dispersas, antieconômicas e desiguais. Isso pode ser apoiado pelo planejamento nacional e supervisão de todas as formas de transporte e de comunicações e outros serviços que tenham um caráter eminentemente público. ... Nós devemos agir e agir rapidamente.”
O economista respondeu à pergunta frequente: É possível fazer isso tudo com o governo tendo déficit orçamentário?
Em uma situação econômica de tal gravidade, o economista sentenciou: “...Todos os governos têm grandes déficits.” O ponto focal para ele não era a existência de déficits, mas onde deveriam ser utilizados os recursos tomados emprestados pelo governo para cobrir os déficits. Disse o economista: “É muito melhor, de qualquer forma, que os empréstimos sejam tomados para financiar obras, se essas obras forem de alguma utilidade, que para o propósito de pagar seguro-desemprego...”
Embasando a proposta do político, o economista revelou a sua confiança na inciativa e afirmou:
“Eu enfatizo muito a política das autoridades públicas. São elas que devem começar o movimento de partida da atividade (econômica). Você não pode esperar que os indivíduos gastem muito mais quando já estão, alguns deles, se endividando. Você não pode esperar que empresários se lancem em ampliações dos negócios enquanto eles estão tendo perdas. São as autoridades públicas que devem encontrar maneiras sábias de gastar para dar início ao movimento de partida (da economia).”
O político tem um programa de obras públicas e de reformas. As obras públicas objetivam acabar com o desemprego o mais rápido possível. As reformas são para estabelecer uma nova institucionalidade para que a economia possa funcionar em completa normalidade social e com pleno emprego.
Ao saber do plano do político, o economista lhe escreveu uma carta com os seguintes dizeres: “Você está empenhado em dupla tarefa, recuperação e reforma: a recuperação do emprego e a aprovação das reformas empresariais e sociais - que estão muito atrasadas. Para a primeira, velocidade e resultados rápidos são essenciais. A segunda pode ser urgente também, mas a pressa será prejudicial, e a sabedoria de propósito de longo prazo é mais necessária que a realização imediata. Será por meio do aumento do prestígio de sua administração pelo sucesso na recuperação (do emprego) em tempo curto que você terá a força capaz de realizar uma reforma de longo alcance”.
A situação econômica e social descrita é real. Embora muito semelhante, não é um retrato da economia brasileira atual. O plano também seria adequado ao Brasil dos dias de hoje.
É uma descrição da economia norte-americana durante a depressão dos anos 1930. O político é o presidente Franklin Delano Roosevelt e o economista é John Maynard Keynes. O Plano de Roosevelt era o New Deal, abrangente e ousado, aplicado com sucesso. Um plano, tal como foi o New Deal, somente foi bem-sucedido por ter sido aplicado por uma verdadeira liderança política, que uniu o país em torno das suas ideias.
O Brasil precisa dessa combinação: uma liderança política e um plano de recuperação de tudo, de todos e em todos os lugares.
 
Publicado originalmente na Carta Capital

Atenção, eleitor: Não caia no engodo chamado 'ranking dos políticos'


Atenção, eleitor: Não caia no engodo chamado 'ranking dos políticos'

O ranking é uma armadilha perfeita para pescar eleitores indecisos que normalmente estão distantes dos assuntos políticos e buscam informações na internet durante o período eleitoral para escolher seus candidatos

 
06/08/2018 15:03
Reprodução
Créditos da foto: Reprodução
 
por João Filho, The intercept
 
Há seis anos, tem circulado na internet um conto do vigário chamado Ranking dos Políticos. 
 
É um site que ranqueia os congressistas eleitos para a Câmara e o Senado e virou referência em avaliação da atuação parlamentar de candidatos em períodos eleitorais. 
 
A página é bonita, as ferramentas são excelentes, fáceis de usar, e tem uma boa base de dados sobre a atuação dos políticos. 
 
É possível, por exemplo, consultar os processos judiciais de todos os parlamentares e filtrar por partido ou estado. 
 
O site passa a impressão de credibilidade e independência, mas a sua principal função, o ranking que classifica os parlamentares do melhor para o pior, não passa de uma armadilha liberal para a massa incauta de eleitores que busca informações na internet para escolher seu candidato.
 
Logo na entrada do site, uma mensagem anuncia a independência do grupo: “O Ranking existe para fornecer informações sobre quem é quem no Congresso Nacional. Não temos rabo preso com ninguém. Não somos filiados a nenhum movimento, grupo ou partido. Não temos relação com o Governo. Temos apenas três bandeiras: Anti-Corrupção, Anti-Privilégios, Voto Consciente.” 
 
No Twitter, o caráter isentão é reforçado: “Nosso objetivo é oferecer informação para ajudar de forma objetiva as pessoas a votarem melhor”.
 
Mas isso não é verdade. 
 
Há outras bandeiras que movem os criadores do ranking. 
 
E o empunhamento ou não dessa bandeiras influi diretamente no posicionamento dos políticos dentro do ranking. 
 
A ideologia do site só fica clara para os visitantes que se dispuseram a perder tempo vasculhando-o em busca de informações que deveriam estar claras para quem acessa apenas o ranking. 
 
Em letras miúdas no fim da página “Sobre“, o ranking afirma que tem “firmes valores e princípios a respeito de temas econômicos” e que levanta bandeiras (perceba que já não são mais apenas aquelas três bandeiras em destaque na página inicial) que foram “conquistadas pela civilização nos últimos séculos” como a “livre iniciativa, na propriedade privada, no regime de mercado”. 
 
Não fica claro para quem não se aprofunda no site que há um viés liberal impregnado nos critérios adotados pelos seus criadores e aplicado por conselheiros ligados ao mercado e ao grande empresariado.
 
O ranking diz se basear nos ‘gastos, na assiduidade, na fidelidade partidária nos processos judiciais e na qualidade legislativa”. É nesse último quesito que está engodo. Quem define os critérios de qualidade é um conselho “totalmente independente, e composto por profissionais com reconhecida capacidade analítica e boa reputação no mercado”. Agora, vamos conferir alguns integrantes desse conselho “totalmente independente”:
 
Gustavo Franco –  ex-presidente do Banco Central de FHC. Saiu recentemente do PSDB para se filiar ao partido Novo e irá presidir a Fundação Novo, ligada ao partido.
 
Dalton Luis Gardiman –  economista-chefe do Bradesco, cargo que exerceu também nos bancos Credit Agricole, Credit Lyonnais, CLSA (Asia) e Deutsche Bank
 
Flavio Amary –  diretor da Fiesp e presidente do Secovi-SP. É empresário do ramo imobiliário e filho de Renato Amary, que já foi deputado estadual, federal e prefeito de Sorocaba (SP) pelo PSDB (hoje está no PMDB).
 
Diogo Costa – cientista político que já trabalhou em Washington para a Atlas Network, uma organização financiada pelos irmãos Koch e cujas “fundações associadas realizaram centenas de doações para think tanks conservadores e defensores do livre mercado na América Latina, inclusive a rede que apoiou o MBL.”
 
Carlos Alberto Borges – CEO da construtora Tarjab.
 
Daniel Minerbo – administrador que trabalhou para o Morgan Stanley em São Paulo “prospectando clientes de alta renda para investir na plataforma do banco em Nova York ou em Genebra”
 
Bernardo Wjuniski – diretor da Medley Global Advisors, uma consultoria que pertence ao Financial Times.
 
Há outros 13 conselheiros, todos com o mesmo perfil pró-mercado. São eles os responsáveis por definir a “qualidade legislativa”, que é disparado o critério mais importante para determinar o posicionamento dos parlamentares no ranking. A lista dos 20 melhores políticos eleitos do Brasil é hilária e não resiste a uma googlada.
 
Sabe quem faz parte do Conselho Estratégico do Ranking dos Políticos? 
 
O “independente” Flávio Rocha, que até pouco tempo atrás era o candidato à presidência da República pelo partido da Igreja Universal. 
 
Outro conselheiro estratégico é Eduardo Mufarej, fundador do movimento RenovaBR que, junto com Nizan Guanaes, Armínio Fraga e Luciano Huck, pretende preparar e financiar novas lideranças políticas.
 
Os donos do site, Alexandre Ostrowiecki e Renato Feder, são empresários que comandam a Multilaser, uma empresa de eletrônicos que fatura na casa do bilhão e que já teve seu nome envolvido com política algumas vezes. 
 
A empresa foi uma das que compraram a briga entre Doria e Amazon e fez uma doação de tablets para a prefeitura, numa jogada de marketing perfeita para ambas as partes. 
 
Renato Feder foi também o responsável pela maior doação recebida pela campanha do então candidato a prefeito de São Paulo.
 
A Multilaser, vejam só que coincidência, é filiada ao Lide — a empresa de lobby da família Doria — e possui contratos com o governo federal e o paulista. 
 
No jogo de abertura da Copa no Brasil, quando Dilma foi vaiada, a Multilaser distribuiu 20 mil cartazes para os torcedores que vinham com um recado: “Na hora do Hino Nacional abra este cartaz e mostre para todos que está na hora do Brasil vencer de verdade.” 
 
Os cartazes exibiam a estrela do PT e as mensagens: “Fora incomPTtentes” ou “Fora corruPTos”.
 
A meritocracia do ranking é muito peculiar. 
 
Para se estar bem posicionado, basta seguir a cartilha do mercado e do alto empresariado. 
 
Os parlamentares que votaram contra o impeachment da Dilma, a PEC do teto dos gastos, a intervenção militar no Rio e a redução da maioridade penal, por exemplo, perderam muitos pontos no ranking. 
 
Já a corrupção, que o site informa ser uma de suas principais bandeiras, tem peso mínimo no ranqueamento. 
 
Uma condenação por roubo de dinheiro público não influencia tanto para a posição no ranking desde que a atuação parlamentar esteja alinhada ao que pensa os donos e os conselheiros que comandam o site.
 
A deputada Luiz Erundina (PSOL), que não responde a nenhum processo, aparece em 505° lugar no ranking geral. 
 
O senador José Medeiros (Pode), que teve seu mandato cassado por fraude essa semana, aparece em 80° e é considerado o 3° melhor congressista do seu estado.
 
O Ranking dos Políticos diz em suas diretrizes que acredita “na defesa dos direitos humanos”, mas considera o deputado Luis Carlos Heinze (PP) o 5° melhor congressista do Brasil. 
 
Além de ter sido condenado por  improbidade administrativa por desviar verba do orçamento, o deputado pepista já foi processado por afirmar publicamente que índios, gays e quilombolas “não prestam”.
 
Diferente do site, a página do Facebook do Ranking dos Políticos escancara bem mais a ideologia que o norteia e coloca em xeque a sua declarada independência política-partidária. 
 
Além de ter um importante filiado do partido Novo entre seus conselheiros, o grupo tem feito uma série de entrevistas com candidatos, sendo que os últimos 3 entrevistados são do partido … Novo. 
 
Talvez seja apenas uma dessas coincidências do destino.
 
No site há a possibilidade de se criar o seu próprio ranking, utilizando seus próprios critérios de avaliação, o que é bastante interessante para o eleitor. 
 
Mas isso não compensa o impacto do ranking oficial, que se tornou uma importante ferramenta eleitoral para dourar as candidaturas de direita e centro-direita.
 
O PSDB comemorou em seu site oficial o bom desempenho no ranking de Shéridan, que ficou entre os 100 melhores do país e a melhor de Roraima. 
 
“É uma ferramenta eficiente e transparente para que a população possa acompanhar o nosso trabalho. Na política brasileira temos, sim, bons políticos que agem com ética e responsabilidade”, afirmou a tucana meses depois de ter seus bens bloqueados pela justiça por ter usado um avião do estado de Roraima para transportar o Mc Sapão, que animou sua festa de aniversário.
 
Shéridan aparece hoje no ranking com 450 pontos, acumulados graças a sua pontuação no critério Qualidade Legislativa. 
 
Os casos de corrupção em que Sheridan está envolvida foram irrelevantes para o seu posicionamento no ranking. 
 
O inquérito que apura se ela comprou votos para favorecer o ex-marido e uma outra ação civil de improbidade administrativa tiraram apenas 20 pontos.
 
O senador Flexa Ribeiro, que é candidato à reeleição ao Senado pelo Pará, comemorou sua ótima posição no ranking com um vídeo lindo e emocionante, que quase me faz ter vontade de votar no sujeito. 
 
O tucano aparece como o segundo melhor senador do Brasil, mesmo tendo sido preso na Operação Pororoca e pego pagando o aluguel da sua antiga construtora com verba indenizatória do senado.
 
No Facebook, Ana Amélia se disse honrada em liderar o ranking, que, segundo ela é uma “importante ferramenta apartidária que avalia a atuação dos 594 parlamentares.”
 
A primeira posição de Ana Amélia se dá fundamentalmente por sua agenda liberal no Senado, mas as pessoas divulgam como se frequência, transparência e negação de privilégios fossem os critérios determinantes.
 
O próprio Ranking dos Políticos resolveu homenagear a escolha de Ana Amélia como vice da chapa tucana produzindo um meme no Facebook que será muito útil para a campanha eleitoral de Alckmin:
 
Ao lado do Movimento Vem Pra Rua, fundado por Rogério Chequer — um ex-conselheiro do ranking e que hoje é candidato ao governo de São Paulo pelo Novo —, o Ranking dos Políticos integra a Frente Pela Renovação, que reúne entidades cujo principal objetivo é “eleger o maior número possível de Deputados Federais e Senadores, íntegros e comprometidos com uma agenda centro-liberal de renovação”.
 
O ranking já foi citado por vários importantes veículos da imprensa e sempre é tratado como se fosse neutro e isento. 
 
Em julho passado, a TV Cultura e a Band usaram suas concessões públicas para divulgar o Ranking dos Políticos, ocultando quem está por trás da iniciativa e quais os verdadeiros critérios que definem o ranqueamento. 
 
O tom das reportagens é sempre o mesmo: “veja como a tecnologia pode auxiliar o eleitor nas próximas eleições.”
 
As informações elencadas nesse texto não devem ser novidade para algumas pessoas, mas provavelmente são para a grande maioria do eleitorado e serve como utilidade pública. 
 
O ranking é uma armadilha perfeita para pescar eleitores indecisos que normalmente estão distantes dos assuntos políticos e buscam informações na internet durante o período eleitoral para escolher seus candidatos. 
 
Avise aos amigos e parentes sobre o que está por trás do Ranking dos Políticos.
 
Publicado originalmente no The Intercept