domingo, 19 de novembro de 2017

Transamazônica, 45 anos | Presença indígena é a tábua de salvação da floresta Capítulo I

ESPECIAL

Transamazônica, 45 anos | Presença indígena é a tábua de salvação da floresta

Primeiro capítulo da série de reportagens sobre a BR-230, baseada em um relato de viagem pelo Pará

Brasil de Fato | Marabá (PA)
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Espécies nativas à margem do rio Pucuruí evidenciam a contribuição dos Parakanã para a proteção da Amazônia / Daniel Giovanaz
Em 25 de outubro de 2016, cem moradores dos municípios Palestina do Pará e Brejo Grande do Araguaia armaram um piquete na ponte que une o Tocantins ao Pará pela BR-230. A estrutura de concreto de 900 metros sobre o rio Araguaia foi concluída em 2010, mas o governo federal não cumpriu a promessa de asfaltar 12 km a oeste, do lado paraense.
Era o terceiro protesto, pelo mesmo motivo, em menos de um ano. E todos terminaram com a renovação do compromisso, por parte do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), de que o trecho seria pavimentado “o mais breve possível”.
Marco zero da rodovia Transamazônica no Pará no sentido Atlântico-Pacífico, a ponte sobre o rio Araguaia simboliza a angústia da população à beira da estrada. Quando o governo Lula (PT) retomou a obra, somavam-se quase 20 anos de espera, durante os quais a travessia era feita de balsa.
Para quem não está acostumado ao clima equatorial, os 12 km sem pavimentação podem parecer bobagem. O problema é que, na temporada de chuvas, de dezembro a maio, a estrada de terra se transforma em um lamaçal. O atoleiro é tão grande que pode impedir o tráfego de carros e caminhões por semanas inteiras.



(Foto: Daniel Giovanaz)
As carências em infraestrutura não se resumem à pavimentação incompleta da rodovia. Dos três primeiros municípios paraenses cortados pela Transamazônica, São Domingos do Araguaia é o que tem o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): 0,594 – apenas o 4.284º no ranking brasileiro, que contempla 5.565 municípios. Em todos os três, o pior dos critérios analisados é a educação.
Erro de cálculo
Em meados de 1970, o Nordeste brasileiro enfrentou um período de calor e seca tão intenso que derreteu o coração de um general. Em visita a Pernambuco, o ditador Emílio Garrastazu Médici, então presidente da República, ficou inconformado com o desamparo da população sertaneja. “O chefe da nação não pode compreender a existência de compatriotas vivendo em condições tão precárias”, declarou em junho, em um discurso no centro de Recife. “Isso não pode continuar”.
Quando Médici retornou a Brasília, o antídoto para a miséria que havia testemunhado no semiárido estava pronto – ao menos, na cabeça dele. A ideia era desocupar áreas do polígono das secas e, ao mesmo tempo, utilizar os sertanejos como mão de obra na realização do chamado Plano de Integração Nacional (PIN).
O projeto respondia a uma necessidade identificada pela ditadura brasileira na região Norte. A Amazônia estava repleta de vazios demográficos, e o povoamento daquelas áreas supostamente férteis, com chuvas em abundância, poderia alavancar a produção agrícola e unir o Brasil em torno de um ideal de nação.
"Terras sem homens para homens sem terras". A frase atribuída ao general após a visita ao sertão passou a ser repetida com entusiasmo nos meses seguintes, acompanhada do slogan do PIN, de cunho nacionalista: “Integrar para não entregar [a Amazônia ao capital estrangeiro]".
Sonho adaptado
A meta era assentar 100 mil famílias, a maior parte no entorno de Altamira, município paraense que passou a ser chamado de capital da Transamazônica. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) repassaria ao chefe de cada família, além dos custos de deslocamento, um lote de 100 hectares, uma casa e um salário mínimo, para iniciar os trabalhos agrícolas, durante seis meses.
Segundo o jornal Folha do Norte, em 16 de julho de 1971, os colonos ainda receberiam “financiamento do Banco do Brasil, principalmente para cultivos de café e cacau, com carência de três anos e oito para quitar a dívida”. Tudo foi feito a toque de caixa, sem nenhum laudo ambiental ou estudo de viabilidade econômica.
O primeiro passo era abrir a estrada. Médici propôs que ela tivesse 8 mil km e ligasse os dois oceanos, Atlântico e Pacífico, do litoral brasileiro ao peruano. Conforme o “milagre econômico” dava sinais de cansaço, o sonho sofreu adaptações.
As obras da BR-230 começaram em setembro de 1970, e o primeiro trecho foi inaugurado em agosto de 1972, com uma solenidade às margens do rio Xingu, em Altamira. Quando a construção foi interrompida, a rodovia tinha 4.223 km de extensão, pouco mais da metade do projeto original: de Cabedelo, no litoral da Paraíba, até Lábrea, na região sul do Amazonas. Quatro mil operários trabalharam até 1975 naquela obra faraônica, cujo custo nunca foi divulgado pelo governo militar.
No final de 1978, devido a conflitos com famílias tradicionais paraenses pela regularização de terras, os Programas Integrados de Colonização (PIC) foram desativados. Com a consequente suspensão das políticas federais de colonização, o número de famílias assentadas nos três polos de povoamento no Pará – Marabá, Altamira e Itaituba – não passou de oito mil.
Quarenta e cinco anos depois, o slogan e o jargão cunhados por Médici soam como piada pronta. A migração foi menor do que o esperado e os índices de desenvolvimento da região Transamazônica estão entre os piores do país. A estrada, no período chuvoso, é quase impraticável, e o capital internacional está com os dois pés enterrados na floresta.  
Ruínas da siderurgia
A 120 km da ponte sobre o rio Araguaia, Marabá é a cidade mais populosa às margens da Transamazônica paraense. Os 267 mil habitantes estão divididos em 17 distritos – seis na área urbana e onze na zona rural –, banhados pelos rios Tocantins e Itacaiunas.
Máquinas quebradas, equipamentos enferrujados, toneladas de ferro e madeira ao relento. No coração do Distrito Industrial de Marabá, por onde cruza a Estrada de Ferro Carajás (EFC), operada pela Vale, salta aos olhos o que parece ser um cemitério da indústria siderúrgica.



(Foto: Daniel Giovanaz)
Na década de 1980, dez empresas se instalaram na cidade para criar um polo de transformação do minério da Serra dos Carajás em ferro-gusa, matéria-prima para produção de aço.
A curva de faturamento foi positiva até 2008, quando os principais compradores, China e Estados Unidos, passaram a produzir ferro-gusa em seus próprios territórios e reduziram as importações – para minimizar os impactos da crise mundial.
Esse movimento econômico, somado às multas e ao descumprimento de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) por crimes ambientais e trabalho análogo à escravidão, levou ao fechamento de oito das dez companhias siderúrgicas do município.
O crime ambiental cometido pelas empresas do setor era o desmatamento ilegal de áreas da Amazônia para obtenção de carvão vegetal, que é misturado ao minério de ferro em altas temperaturas para formar o gusa. Na zona rural de Marabá, milhares de plantas nativas deram espaço a pés de eucalipto e pinus, a maioria dos quais jamais será encaminhado às siderúrgicas, por falta de demanda ou de capital para bancar as operações.
O total das multas aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) chegou a R$ 280 milhões, e a oferta de empregos no polo siderúrgico caiu de 10 mil para 250, desde 2008.
Os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que 18,6% da população está ocupada no município. A cada dez pessoas, quatro tinham rendimento mensal inferior a meio salário mínimo – cerca de R$ 396,00, nos valores da época.
Apesar da recessão econômica que afetou o setor siderúrgico, Marabá tem o terceiro maior o Produto Interno Bruto (PIB) do estado graças à atividade pecuária, à indústria madeireira e de cerâmica e à mineração de cobre e manganês.
Os desafios da prefeitura são semelhantes aos de qualquer metrópole brasileira. Transporte caro e ineficiente, concentração de terras, ocupações irregulares de terrenos públicos na área urbana, precariedade nos serviços de saúde: o índice de mortalidade é maior que 117 dos 144 municípios paraenses.
Batizada em homenagem ao título de uma obra de Gonçalves Dias, Marabá é conhecida como Cidade Poema. A palavra, em tupi-guarani, era usada para designar mestiços, crianças com deficiência física ou o mais novo entre dois irmãos gêmeos. Como eram considerados um prenúncio de desgraças e tragédias na aldeia, estes últimos eram sacrificados logo após o nascimento.
Os sobreviventes
Em termos de arborização das vias públicas, Marabá está entre as 200 piores cidades do país, em plena Amazônia. A orla do rio Tocantins, na região conhecida como “Marabá Pioneira”, é o ponto turístico mais visitado nos fins de tarde, quando se torna um mirante para o pôr-do-sol.

(Foto: Felipe Carrelli)
No restante do dia, quem passeia pela orla vê no horizonte outros tons de amarelo-alaranjado, não tão agradáveis quanto os do poente: são as queimadas, cada vez mais comuns no perímetro urbano.
Mesmo assim, a prefeitura trabalha com a possibilidade de receber a certificação estadual Município Verde. Para isso, a área queimada ou desmatada precisa ser inferior a 40 km² ao ano, por cinco anos consecutivos. Em 2015, os terrenos devastados chegaram a 46km², o que adiou os planos da Secretaria Municipal de Meio Ambiente.
A construção da BR-230, além de legitimar a derrubada de árvores centenárias, afetou ao menos 18 povos indígenas e significou o extermínio de milhares de pessoas. Não há um número preciso de mortos, mas é consenso entre os historiadores que várias comunidades foram invadidas ou “recortadas” em nome do PIN.
De acordo com o Censo 2010, habitam a região cerca de 4,2 mil Apyterewa, 4 mil Kayapó, mil Xikrin do Rio Catete e 800 Parakanã.
Ponto fora da curva
É sábado à tarde e o calor chega a 34º C. Um casal Kayapó caminha pelo shopping center Pátio Marabá, na margem norte da Transamazônica, e se senta em um café. Ele pede uma Coca-Cola; ela, uma água mineral e um pedaço de pudim. O telefone celular, sobre a mesa, toca um pop japonês.
O que poderia ser digno de nota em outras regiões é, decerto, uma cena comum na Cidade Poema. Com a parte superior da cabeça raspada e a pele coberta de desenhos coloridos, indígenas de várias etnias caminham pelos corredores, aproveitam o ambiente climatizado e tornam o lugar menos enfadonho.
Os hábitos de consumo são tão improváveis quanto o pudim saboreado pela mulher Kayapó. Enquanto uns fazem fila em uma franquia de açaí industrializado, outros se detêm na vitrine da loja de bombons, que não vende nenhum sabor local. Em vez de cupuaçu ou castanha, as trufas têm recheio de morango, torta alemã e floresta negra.
Os índices de infraestrutura e urbanização fazem de Marabá um ponto fora da curva na Transamazônica paraense. A explicação é simples: o desenvolvimento e a ocupação do município precedem as obras da BR-230. Entre 1890 e 1970, a cidade foi palco de três ciclos de extrativismo com alta lucratividade – borracha, castanha-do-brasil e garimpo de ouro e diamante.
É preciso seguir na rodovia por mais alguns quilômetros para dimensionar o fracasso do projeto de Médici para ocupação da Amazônia.
O asfalto virou lenda
De Marabá a Novo Repartimento, a “princesinha da Transamazônica”, são 180 km – pelo menos a metade, em estrada de terra. De carro ou de moto, na estação seca, o deslocamento requer de três a quatro horas.
Além da rodovia esburacada e poeirenta, o que contribui para a lentidão do percurso são as obras de pavimentação. De meia em meia hora, próximo ao município de Itupiranga, uma das pistas é bloqueada para terraplanagem e compactação do solo.



(Foto: Daniel Giovanaz)
Junior tem 18 anos e passa o dia na BR-230, de olho no relógio e de ouvidos atentos ao rádio comunicador. Há dois meses, ele é um dos responsáveis por avisar os colegas para liberar ou bloquear um dos sentidos da pista, conforme sinaliza o cronômetro.
Depois de abandonar o trabalho em um lava-rápido em Itupiranga, Junior está contente com a função que desempenha na Tamasa Engenharia. A marmita é “caprichada”, a empresa assina a carteira de trabalho e, volta e meia, um motorista irritado ajuda a quebrar a monotonia da jornada. Naquela mesma semana, um caminhoneiro sacou a pistola para fora da janela, atropelou os cones no meio da pista e esbravejou contra a demora nas obras – relata o funcionário, com a objetividade de quem não tem “nada a ver com isso”.
O trabalho de Junior e o estresse dos caminhoneiros estão garantidos pelos próximos dois anos. A conclusão da obra está prevista para 2019, porque aqui o trabalho não avança no inverno, de dezembro a maio. Pelo contrário, as chuvas mexem com o terreno e, em alguns trechos, exigem que as obras de pavimentação recomecem do zero.



(Foto: Daniel Giovanaz)
“Essa história de asfalto já virou lenda”, resumiu o motorista de uma caminhonete com placa de Marabá. “Não era nem para ter feito isso aqui [aberto a estrada], derrubado tudo. Mas, já que fez, termina logo!”.
Onde há fumaça…
Se na orla do rio Tocantins as queimadas aparecem como minúsculos pontos no horizonte, quem percorre a Transamazônica no sentido Marabá-Novo Repartimento tem o desprazer de testemunhar o estrago de perto.



(Foto: Daniel Giovanaz)
A população local parece acostumada ao cheiro forte e ao espetáculo às avessas que o fogo proporciona. Ninguém sabe de quem é o terreno, ninguém sabe se esta queimada – ou aquela outra – foi crime ou acidente.  
Em Cajazeiras, a 67 km de Marabá, famílias inteiras passam rente às labaredas com a expressão indiferente. O semblante das crianças uniformizadas, a caminho da escola, não revela nenhum incômodo com a fumaça ou com o calor que emana das folhas e galhos secos. A 50 metros de distância, um grupo de jovens toma banho no rio Cajazeiras e sequer vira a cabeça para olhar as chamas. Faz parte da rotina.



(Foto: Daniel Giovanaz)
Onde não há foco de queimada, é porque a selva já virou pasto. Novo Repartimento tem um rebanho estimado em um milhão de cabeças de gado. Nos arredores do município, para qualquer lado que se olhe, predominam os descampados, áreas de criação extensiva. A exceção fica por conta da terra indígena Parakanã, que levanta uma hipótese corroborada ao longo da BR-230 no Pará: os povos originários são a tábua de salvação da floresta.
A mata fechada, o canto de pássaros nativos e os vários tons de verde, que se sobrepõem na margem esquerda da estrada, contrastam com o capim rasteiro dos terrenos dedicados à pecuária no lado oposto.
Uma placa, coberta de poeira e com as letras quase apagadas, permite ler que aquela terra foi homologada pelo Decreto 248, de 29 de outubro de 1991. São 351,7 mil hectares, com a situação jurídica regularizada.



(Foto: Daniel Giovanaz)
Os Parakanã, que se autodenominam Awaeté, ou “gente de verdade”, tiveram o primeiro contato com não-índios em 1910, à beira do rio Pacajá. Após 60 anos de conflitos e mortes, atribuídas a garimpeiros e fazendeiros da região, a etnia retomou a curva positiva de crescimento populacional graças ao Programa Parakanã, uma parceria entre a companhia de energia elétrica Eletronorte e a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Em 2016, os Parakanã bloquearam por três dias a ponte sobre o rio Bacuri, entre Novo Repartimento e Marabá, para exigir que aquela estrada fosse asfaltada. A falta de pavimentação, segundo eles, dificulta o acesso a serviços de saúde. Na ocasião, os indígenas também reivindicavam a presença de médicos na própria aldeia, mas nenhuma das demandas foi atendida.
Puaca e reflorestamento
A estrada de terra segue até a região central de Novo Repartimento. Logo na entrada do perímetro urbano, um comércio de carros sucateados a céu aberto dá uma dimensão do volume de poeira que sobe, sempre que um automóvel cruza a rodovia.



(Foto: Daniel Giovanaz)
Durante a estação seca, a poeira fina que não assenta na estrada esconde valas e buracos sobre a pista. É o que os habitantes da região Transamazônica chamam de “puaca” – um pesadelo para os motociclistas de primeira viagem.
Se o cinza é a cor do asfalto e dos restos de queimada que se multiplicam à beira da rodovia, o marrom simboliza os caminhos abertos e nunca fechados, os sonhos carentes de realização: a poeira de um passado que embaça a visão e tinge tudo ao redor. Ambos, cinza e marrom, sufocam o verde da floresta e se impõem como legado perverso da presença do homem branco por estas paragens.
Novo Repartimento tem 72 mil habitantes, dos quais metade vive na zona rural. Não há consenso sobre a origem do apelido “princesinha da Transamazônica”, mas sabe-se que os operários da BR-230 têm certo carinho por aquela localidade, onde estiveram acampados por vários meses na década de 1970.
Antes de se tornar um município, em dezembro de 1991, a área recebeu migrantes do território vizinho, a vila de Repartimento, inundada do para construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí. A empreiteira que assumiu as obras da barragem foi a Camargo Corrêa, a mesma que pavimentou parte da BR-230 no Amazonas. Vinte e cinco mil homens trabalharam na represa até a inauguração, em janeiro de 1985.
A região central de Novo Repartimento é um dos ambientes urbanos mais agradáveis da Transamazônica paraense. As famílias, mesmo com crianças pequenas, parecem não ver problema em passear pelas ruas e praças à noite – coisa rara em outros municípios à beira da rodovia. Essa sensação de segurança é derrubada pelas estatísticas: em 2014, Novo Repartimento integrou a lista das 200 cidades mais violentas do Brasil.
Na zona rural do município está o assentamento Tuerê, segundo maior da América Latina, com 290 mil hectares. Os projetos do Incra funcionam como resistência ao modelo predominante de agronegócio, baseado na monocultura de soja, pecuária extensiva e corte de madeira.
A partir de 2011, a produção de cacau assumiu um papel relevante na economia local. Com o apoio da Comissão do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), criada pelo Ministério da Agricultura, pequenos produtores passaram a ter suporte técnico para investir no plantio de cacau.



(Foto: Daniel Giovanaz)
Novo Repartimento tem quase duas mil famílias produtoras, e 60% das amêndoas de cacau do município vêm do Tuerê.
Maranhense de Caxias, Seu Chico vive na área do Tuerê e é o maior cacauicultor de Novo Repartimento. Quando chegou à cidade, em 1975, ele tinha 22 anos e sabia decor a recomendação dos governos militares: “A gente vinha para a região para desmatar, se não perdia o lote. Hoje é o contrário, o governo [federal] apoia quem preserva”.
Como o cacau precisa de sombra, a produção funciona como estímulo ao reflorestamento – um contraponto à devastação provocada pela pecuária extensiva. Além de ampliar a renda das famílias, a proposta da Ceplac é frear o desmatamento dentro da área do Tuerê: entre 2001 e 2011, o número de árvores derrubadas cresceu seis vezes.
Metade da produção de cacau de Seu Chico é “sombreada” por árvores de grande porte nativas da Amazônia, como o mogno-brasileiro. No assentamento Tuerê, são produzidas mais de 20 variedades de alimentos, a maior parte grãos, frutas e verduras. A orientação do Incra é que a produção seja orgânica, sem agrotóxicos, e que não haja nenhum tipo de desmatamento.
O boi pede passagem
Apesar das iniciativas de resistência, o município não escapou da “tentação do gado”. Em Novo Repartimento, a pecuária se tornou a principal atividade econômica há pelo menos 30 anos. Antes, a receita das famílias era baseada nos cultivos de maracujá, café e cupuaçu, com baixo valor agregado. Na proporção atual, são 14 bois para cada ser humano, e a renda per capitapraticamente dobrou.



(Foto: Daniel Giovanaz)
Os moradores explicam a opção pela pecuária sem encostar na calculadora. Enquanto o gado “dá lucro desde que nasce”, um pé de cacau leva até quatro anos para começar a dar frutos. Sem contar as doenças que vez ou outra destroem a lavoura.
Como os assentamentos desafiam a tendência de concentração de terras no Brasil, Novo Repartimento costuma ser mencionada como referência positiva na disputa fundiária que ocorre às margens da Transamazônica. Mas está cada vez mais difícil sustentar essa fama.
Equipes da Superintendência Regional do Incra estão com dificuldade de levantar dados atualizados sobre o Tuerê, porque parte dos lotes foi ocupada ou invadida por “laranjas” de grandes proprietários de terra da região. São cada vez mais recorrentes as ameaças e pressões a profissionais do setor técnico do Instituto, que tem razões para temer pelo pior.
De janeiro a maio de 2017, o Brasil registrou 37 assassinatos em conflitos fundiários, um recorde segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Dos 1.536 conflitos que ocorreram na zona rural em 2016, 1.295 estão relacionados à luta pela terra, pela água ou a situações de despejo envolvendo latifundiários e indígenas, ambientalistas ou pequenos produtores.
De acordo com a organização Global Witness, o Brasil é o país que mais assassina pessoas em meio a conflitos agrários. E a Transamazônica paraense está olho do furacão, como será descritona próxima reportagem da série.
Edição: Luiz Felipe Albuquerque

Transamazônica, 45 anos | O pretérito imperfeito que une Belo Monte à BR-230. Capítulo II

ESPECIAL

Transamazônica, 45 anos | O pretérito imperfeito que une Belo Monte à BR-230

Segundo capítulo da série sobre a rodovia Transamazônica, baseada em um relato de viagem pelo Pará

Brasil de Fato | Altamira (PA)
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Usina hidrelétrica de Belo Monte alavancou os índices de desmatamento em terras indígenas no entorno da rodovia / Daniel Giovanaz
A migração nordestina para a Amazônia foi menor do que previa o general Emílio Garrastazu Médici – terceiro a ocupar a Presidência durante a ditadura militar –, mas as famílias retirantes deixaram suas digitais em cada povoado às margens da Rodovia Transamazônica. É quase uma contradição geográfica: à medida que se avança pelo Pará no sentido leste-oeste, o legado cultural nordestino aparece de maneira mais evidente aos olhos do viajante.
As camisas dos clubes de futebol de Belém – Paysandu e Remo – são substituídas pelas cores do Sport Recife, do Moto Club de São Luís e de seus rivais. Nos restaurantes à beira da estrada, é mais fácil encontrar baião de dois do que pato no tucupi.
Da cidade de Novo Repartimento, de onde partimos, até Anapu, são 180 quilômetros. Menos de 90 quilômetros separam Anapu da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Embora a pavimentação incompleta não seja novidade para quem percorre a Transamazônica paraense, existem dois elementos que tornam a situação ainda mais grave.
O primeiro é a ponte quebrada sobre o Rio Arataú, entre Maracajá e Pacajá. Em 16 de dezembro de 2015, a estrutura de concreto se rompeu enquanto o caminhoneiro João dos Santos Gouvêa fazia a travessia – ele não resistiu aos ferimentos e morreu no hospital.
Quase dois anos depois, o que existe é uma ponte alternativa em metal e madeira. E a travessia é lenta: um carro de cada vez.
(Fotos: Daniel Giovanaz)
De domingo a domingo, o paraense José Peixoto faz a vigilância diurna dos equipamentos que serão usados na construção de uma nova ponte, a partir de dezembro. Para se proteger do sol, acompanhado da esposa, ele se deita em um colchonete sob os destroços e passa a tarde lendo jornais e revistas em quadrinho. O almoço eles pescam no Rio Arataú e preparam ali mesmo, em uma cozinha improvisada.
O segundo agravante é a chamada Ladeira da Velha, no município de Pacajá. Uma das descidas mais íngremes e perigosas da BR-230, o trecho também era conhecido pelos buracos na estrada de terra até 2015, quando foi pavimentado com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal.
Existem pelo menos três versões sobre o nome dado àquela ladeira, que também serve como apelido para a comunidade vizinha. A mais conhecida diz respeito a uma idosa que teria sido atropelada no local. Outra hipótese sugere que a tal "velha" foi uma saqueadora, que se aproveitava da vulnerabilidade dos caminhoneiros obrigados a passar a noite na estrada, devido ao atoleiro. Na terceira e última versão, a personagem é uma espécie de anjo da guarda para os viajantes, que lhes oferece comida e abrigo na estação chuvosa.
Como descrito na primeira reportagem desta série, buraco na Transamazônica é sinônimo de atoleiro no inverno e de "puaca" no verão. Após o asfaltamento da ladeira, os acidentes e as colisões entre ônibus e caminhões são cada vez menos recorrentes.
(Foto: Daniel Giovanaz)

 
Nas subidas e descidas não pavimentadas, em meio a densas nuvens de poeira – ora vermelha ora amarronzada – se veem máquinas e tratores estacionados ao lado da pista, para socorrer os motoristas desavisados.
Um emblema da violência
Anapu tem 27 mil habitantes e significa "ruído forte" na língua tupi. Até hoje, o barulho mais alto que se ouviu naquela região foram os seis disparos de arma de fogo contra a missionária estadunidense Dorothy Stang, em 12 de fevereiro de 2005. O crime contra a religiosa, que pertencia à Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur, repercutiu em todo o planeta e tornou-se um símbolo da violência nos conflitos agrários no Brasil.
Com atividade pastoral vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e à Comissão Pastoral da Terra (CPT), irmã Dorothy defendia o reflorestamento de áreas degradadas no entorno da Transamazônica. Ao mesmo tempo, mediava disputas pela posse de terras em meio à floresta e reivindicava a reforma agrária como remédio para a superexploração sofrida pelos trabalhadores da região.
A missionária morreu aos 73 anos, a mando do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, condenado a 30 anos de prisão. Os executores também foram condenados, com penas que variam entre 17 e 27 anos de cadeia.
A agricultura de Anapu é baseada nos cultivos de café, banana, manga, arroz, feijão, açaí, milho e melancia, em pequenas propriedades. Toda essa produção, somada, não chega nem à metade do lucro proporcionado pela pecuária extensiva, pelo carvão vegetal e pelo corte de madeira ilegal. Ou seja, as atividades mais rentáveis são as que mais destroem a floresta, e quem ousa enfrentar os madeireiros e latifundiários da região assume o risco do martírio.
O ruído forte provocado pelo assassinato de irmã Dorothy ainda ressoa. Apesar dos esforços para redução dos conflitos na região, o município é cada vez mais associado a violações de direitos no campo. Segundo os moradores, essa tendência se deve à migração recente de madeireiros de Marabá, que mudaram de ares após a quebra do polo siderúrgico e passaram a comercializar madeira ilegal em Anapu.
Em 2015, o município assistiu a outra trágica repercussão da morte de Dorothy Stang: Wilson Gonçalves Barbosa, funcionário contratado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para vigiar o acesso ao Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança, no qual a missionária trabalhava, também foi assassinado.
Sobre o Rio Xingu
Percorridos os 90 quilômetros de Anapu até a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, salta aos olhos o asfalto esburacado, na maior parte do trajeto em linha reta, com desvios em estrada de terra. Ao final daquele trecho, acontece o único encontro entre a Transamazônica e o Rio Xingu.
Não há ponte de concreto, nem as famosas pinguelas de madeira: a travessia se faz de balsa ou a nado. A empresa que opera o transporte fluvial sobre o Xingu é a Rodonave Navegações, e o percurso leva menos de sete minutos.
Valnei mora com a tia Maria de Lourdes em um casebre próximo à linha de chegada da balsa, no sentido Altamira. De segunda a sábado, ele paga R$ 16,00 (ida e volta) para trabalhar na empresa Zopone Engenharia como motorista de caminhão.
(Foto: Daniel Giovanaz)
Com 60 anos de Transamazônica, Maria de Lourdes acorda cedo para tomar café com o sobrinho e acompanhar o movimento da balsa, que funciona 24 horas por dia. A casa onde ela vive com Valnei está marcada com o algarismo 22, além do número que usualmente compõe os endereços postais no Brasil. O rapaz explica que aquele é o "número de selagem" – o que significa que a casa deles está em 22º lugar na ordem de despejos e indenizações para construção de uma ponte sobre o Rio Xingu.
A maquete está pronta há dois anos, e a casa de Maria de Lourdes foi medida mais de uma vez para fins de indenização, mas não há previsão para início das obras. "Deve ser a crise", especula o sobrinho.
Tempos verbais
A 600 metros do desembarque da balsa, o motorista que segue pela BR-230 no sentido leste-oeste vê despontar, do lado esquerdo da rodovia, a estrutura insólita da barragem de Belo Monte. Em meio à floresta, ou ao que sobrou dela, o horizonte impõe aos olhos um encontro sugestivo entre o passado e o futuro.
Nessa metáfora paisagística, a estrada assume o papel de passado – um projeto fracassado de ocupação da Amazônia, que resultou na degradação da floresta e em baixos índices de desenvolvimento humano. A hidrelétrica, pelo contrário, vende um futuro de crescimento econômico e geração de energia em grandes proporções, como nunca se viu no Norte do país.
(Foto: Daniel Giovanaz)
Segundo o projeto apresentado pela empresa geradora, Norte Energia S.A., a usina de Belo Monte poderá produzir o equivalente a 10% do consumo nacional e será a maior hidrelétrica brasileira.
É preciso cruzar a ponte sobre o canal de fuga e olhar mais de perto para entender que a usina que vende o futuro tem uma cara inconfundível de passado. Das 18 turbinas, só seis estão em funcionamento. Desde janeiro de 2011, foram investidos mais de R$ 30 bilhões na obra, cujo custo estimado era de R$ 16 bilhões.
Em pouco tempo, o projeto mais ousado de aproveitamento da bacia do Xingu para produção de energia se transformou em um símbolo de inadimplência socioambiental e de violações dos direitos da população atingida.
Na era da "sustentabilidade", Belo Monte é uma reprodução do velho modelo de desenvolvimento predatório na Amazônia, que visa a produtividade sem medir as consequências para a natureza.
Qualquer semelhança com os problemas decorrentes da própria rodovia Transamazônica não é mera coincidência. Ambas, estrada e usina, são ações inconclusas, carentes de finalização – o que se costuma chamar de pretérito imperfeito. O futuro, nesse caso, nada mais é que um elemento de dúvida, que alimenta ilusões a partir do que está em aberto. Ilusões de que, um dia, a estrada será toda pavimentada; de que as turbinas vão todas funcionar; de que talvez seja possível compensar os danos causados à floresta ou às pessoas.
Dossiê Belo Monte, produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA) em junho de 2015, apresenta uma série de prejuízos causados pela usina no entorno do município de Altamira. O documento lista, desde a degradação das águas subterrâneas que abastecem a cidade, até impactos para as comunidades indígenas. Os assassinatos cresceram 80% nos primeiros três anos de obra, e uma a cada quatro crianças passou a apresentar quadros de desnutrição.
Segundo o dossiê
O anúncio do projeto Belo Monte atraiu cerca de 15 mil pessoas para a cidade, da noite para o dia. O fluxo massivo de operários, que movimentou o setor de comércio e serviços no período das obras, fez despencar os indicadores de saúde e educação. Mais da metade dos migrantes não conseguiram emprego ou foram demitidos após o fim da construção, e muitos não conseguiram voltar às suas cidades de origem.
Em cinco anos, o número de atendimentos dobrou no hospital municipal São Rafael. Ao mesmo tempo, o número de acidentes de trânsito aumentou 144%, o que contribuiu para a falta de leitos. Em 2015, o índice de homicídios em Altamira chegou a 124 a cada 100 mil habitantes, uma taxa 37% maior do que Honduras, país com mais homicídios percentuais no mundo.
Nos municípios que compõem a área de influência da usina, o número de reprovações escolares aumentou 73,5% no ensino médio, desde 2010. O Conselho Tutelar de Altamira chegou a atender 2 mil casos por ano de crianças e adolescentes em situação de abandono ou maus tratos.
A escola estadual de ensino médio Polivalente foi a única reformada em decorrência do projeto Belo Monte – conforme uma das condicionantes para assinatura do contrato. Do outro lado do muro, o centro de ensino Professora Dairce Pedrosa Torres padece à espera de uma verba municipal para pintura, ampliação e construção de uma biblioteca.
Para que fosse autorizada a construção da hidrelétrica, a Norte Energia também precisou pagar R$ 126 milhões em compensações ambientais. No entanto, cerca de 80% foram destinados pelo Ibama a investimentos fora da bacia do Xingu. O resultado é que, entre 2008 e 2013, o desmatamento no interior das terras indígenas afetadas por Belo Monte foi equivalente a 193,4 km².
Uma manhã no cais
Altamira é o terceiro maior município do mundo. A cidade recebeu a alcunha de "capital da Transamazônica" em 1972, quando foi palco da cerimônia de inauguração do primeiro trecho da rodovia.
São 159,7 mil km² de extensão territorial – maior que países como Portugal, Suíça e Irlanda – e 110 mil habitantes, quase todos concentrados à margem do Rio Xingu.
A região mais populosa do município fica a quase 800 km do centro geográfico. O calçadão da orla do Xingu foi reinaugurado em setembro de 2015, com uma praça de alimentação, um palco para shows e várias quadras de esporte iluminadas.
Os atletas amadores costumam brincar até às 21 horas. À medida que escurece, o espaço dá lugar a usuários de crack, alcoólatras e pessoas em situação de rua. A luz dos refletores das quadras é rapidamente substituída por holofotes em tom de vermelho, azul e verde, projetados no interior de bares que funcionam como pontos de prostituição nas ruas perpendiculares à orla.
De agosto de 2014 a julho de 2015, a área desmatada na Amazônia aumentou 63%, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia. Naquele período, Altamira foi o terceiro município mais desmatado do país, com 110 km².
O movimento começa cedo no cais, a 200 metros da praça de alimentação. Famílias indígenas, das etnias Arara e Parakanã, se reúnem em torno das lanchas – chamadas de "voadeiras" – e embarcam de volta para as aldeias. A viagem pode durar até três dias, rio acima.

(Foto: Daniel Giovanaz)
Para efeitos de localização, a barragem da usina de Belo Monte fica à esquerda de quem contempla o Xingu desde a orla, a duas horas de voadeira.
O café servido pelos pilotos é preto e doce, à moda da Transamazônica paraense. Para uma xícara, são quatro ou cinco colheres de açúcar. Os indígenas parecem conhecer a equipe que trabalha nas embarcações: fluentes ou não em português, todos se chamam pelo apelido.
Seu Tonico é um dos únicos que toma café amargo – e faz cara feia. Amazonense de 69 anos, ele é diabético e acorda às seis da manhã com o canto do galo, que cria dentro de uma balsa de passeio ancorada na orla.
A função do Seu Tonico é tomar conta da balsa, que tem mais de dez câmeras de segurança para evitar furtos de motores e equipamentos náuticos. Quem arrumou o trabalho para ele foi o sobrinho Tonho, o "dono do negócio todo".
Tonho é o apelido de Antônio Santos, maior empresário do transporte fluvial de Altamira. Proprietário da empresa Juliana Santos Embarcações, ele tem uma equipe de pilotos que conduz indígenas e turistas pelo Rio Xingu, além de fabricar e vender as famosas voadeiras.
O interior da balsa onde vive Seu Tonico poderia ser confundido com uma residência qualquer no centro de São Paulo – não fosse o canto do galo, o barulho da água e a vista da floresta equatorial no horizonte. Tem TV, sofá, geladeira, fogão e todos os eletrodomésticos de um apartamento de classe média. O freezer está cheio de latas de refrigerante e cerveja, que ele revende para os pilotos que trabalham na concorrência.
A esposa, dona Danilma, é maranhense de Imperatriz e mora há dois anos na balsa, em Altamira. As lembranças de infância remetem todas ao garimpo, onde a mãe dela trabalhou como cozinheira a serviço da empresa britânica Serabi Gold. Por 14 anos, Danilma viveu na comunidade Jardim do Ouro em Itaituba, município à beira do rio Tapajós a 500 km de distância, pela Transamazônica. A família ganhou pouco dinheiro, mas ao menos aprendeu que ouro não é amarelo, como se diz "aqui fora" – e sim, "vermelho como o sol quando demora para se pôr".
Com o casal também vive Marcos, criança que Seu Tonico adotou com um mês de vida. Filho de uma mulher solteira, de Itaituba, o menino tem sete anos e gosta de ver desenhos animados na TV. Passa o dia todo na balsa. Não sabe ler, mas foi registrado este ano e deve ir à escola em 2018. Nunca perguntou pela mãe.
Escambo
O dia nem amanheceu e a balsa está cheia de visitantes. Um dos primeiros a chegar para tomar café é o pescador Zacarias. Até 2012, ele vivia com o filho adolescente na ilha do Mansur, que precisou ser evacuada para a construção da barragem de Belo Monte.
Seu Zacarias e as outras cinco famílias que moravam na ilha receberam indenizações e migraram para outras localidades à beira do rio Xingu. Com a comunidade desintegrada, o pescador teme a solidão: o filho dele acaba de se alistar e deverá servir o exército nos próximos meses.
Na nova casa, que fica em um terreno conhecido como Recanto dos Canários, ele pesca muito menos do que antes. A venda do peixe no varejo, motivo da estadia em Altamira neste fim de semana, não é mais suficiente para pagar as contas do mês.
Para construir a barragem, a Norte Energia precisou dinamitar áreas no fundo do rio, próximas à ilha do Mansur. A maior parte das praias do Xingu foram destruídas. As mudanças no ecossistema fluvial e a iluminação excessiva, dia e noite, causaram a morte de milhares de peixes. Para completar a renda, Seu Zacarias decidiu plantar mandioca, maxixe, melancia e pimenta.
A migração forçada contribuiu para o aumento dos conflitos entre indígenas, ribeirinhos e pescadores que viviam em áreas alagadas. Estes últimos nem sempre aceitam mudar de profissão, como fez Zacarias, e passam a buscar áreas de pesca em terras indígenas e unidades de conservação ambiental. É muita gente para pouco espaço e pouco peixe.
As indenizações também produziram novos problemas. Quem vivia nas ilhas fluviais optou por receber uma compensação em dinheiro ou um imóvel em um reassentamento construído pela Norte Energia. Para aqueles que preferiram receber em dinheiro, o cálculo da indenização não incluiu o preço dos terrenos – a maior parte, sem escritura –, mas apenas o valor das casas.
Como Altamira tornou-se alvo de especulação imobiliária, desde que foi anunciado o projeto Belo Monte, o preço dos terrenos aumentou a tal ponto que os expropriados não conseguiram adquirir lotes no entorno da cidade: passaram a viver de aluguel ou de forma improvisada à margem do Xingu. Os que aceitaram mudar para o reassentamento da Norte Energia têm carências relacionadas ao acesso a escolas, creches e postos de saúde.
Dois caciques – entre os centenas de indígenas atingidos pela barragem – também aparecem para fazer o desjejum na balsa do Seu Tonico. Eles contam que vieram a Altamira para buscar os “presentes” concedidos pela empresa Norte Energia: madeira, fardos de refrigerante e galões de gasolina.
Essa relação de escambo, que remete à chegada dos portugueses no século XVI, também foi descrita no Dossiê Belo Monte, produzido pelo ISA. Em vez de serviços públicos, estima-se que a empresa distribuiu aos indígenas, até 2015, cerca de dois milhões de litros de combustível, 366 barcos e voadeiras, 578 motores para barcos e 98 geradores de energia, além bens de consumo como televisão e bebidas.
Entre 2010 e 2012, o dossiê indica que cada aldeia recebeu uma mesada de R$ 30 mil em compras. Parte dos indígenas abandonou a roça, a pesca e a caça, e a desnutrição cresceu 127% com o consumo de produtos industrializados.
Os indígenas afirmam não ter recebido qualquer presente da Norte Energia, assim como a empresa nega tê-los cooptado para evitar protestos contra as obras da hidrelétrica.
A cada mês, a empresas de transporte fluvial de Altamira levam em média 60 mil litros de combustível para as aldeias rio acima.
Acompanhe a sequência desta viagem, que retrata os problemas socioambientais e a diversidade de culturas à margem da Transamazônica paraense.
Edição: Vivian Fernandes