quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Em Minas Gerais, TAMBÉM, a mídia é "abafada"


Advogados tentam liberar jornalista que divulgou a Lista de Furnas

21/1/2014 10:44
Por Redação, com RBA - de Belo Horizonte

Irmã do senador Aécio Neves (PSDB-MG), Andrea Neves da Cunha é citada em processo
Irmã do senador Aécio Neves (PSDB-MG), Andrea Neves da Cunha é citada em processo
Os advogados do jornalista mineiro Marco Aurélio Flores Carone, diretor de redação que divulgou a Lista de Furnas no site de notícias novojornal.com, preso na manhã de segunda-feira em Belo Horizonte, ingressaram nesta terça-feira com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça mineiro. Carone foi preso a mando da juíza Maria Isabel Fleck, da 1ª Vara Criminal da capital mineira, após ter sido denunciado pelo Ministério Público estadual, em novembro do ano passado, por formação de quadrilha, falsificação de documentos públicos e particulares, falsidade ideológica, uso de documento falso, denunciação caluniosa majorada e fraude processual majorada. Todas as acusações são relativas ao contato entre o jornalista e o lobista Nilton Monteiro, que tornou pública a Lista de Furnas após ter colaborado com suposto esquema de desvio de dinheiro da estatal.
A juíza entendeu que ambos fazem parte de uma quadrilha cujo objetivo é “difamar, caluniar e intimidar” adversários políticos, e autorizou a prisão preventiva do jornalista para impedir novas publicações. Além disso, aponta o fato de que o NovoJornal seria financiado com dinheiro de origem ilegal, uma vez que o site não contaria com anunciantes suficientes para manter a página.
Carone, amparado pelo bloco parlamentar Minas Sem Censura, que reúne deputados estaduais de PT, PMDB e PRB, nega as acusações e denuncia perseguição política e investida dos aliados do senador Aécio Neves (PSDB) para calar o NovoJornal.
– Ora, se você estabelece a prisão preventiva para evitar a publicação de material jornalístico, está oficializada a censura prévia. Assim que terminar o recesso, vamos convocá-lo a prestar depoimento na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia (Legislativa do Estado de Minas Gerais). Nesse caso, ele pode vir mesmo estando preso, para denunciar a perseguição promovida pelo PSDB de Minas contra seus adversários políticos – adianta o deputado Rogério Correia (PT), vice-líder do bloco Minas sem Censura.
Correia diz já ter sido alvo de prática similar.
– Quando do surgimento da Lista de Furnas, encaminhei o relatório à Polícia Federal e, por isso, o vice-presidente nacional do PSDB tentou a cassação do meu mandato. É a mesma situação. A censura tem agentes no Ministério Público e no Judiciário, mas, quando é com a imprensa, quem organiza a perseguição é a própria irmã do senador, Andréa Neves – acusa.
O NovoJornal, em texto publicado no ano passado, acusa a irmã de Aécio, que é jornalista e integrará a direção da campanha a presidente do tucano, de ter procurado anunciantes do portal à época e intimidá-los para que parassem de investir no “jornaleco da oposição”. O senador Aécio Neves foi procurado por jornalistas, por meio do diretório nacional do PSDB para comentar o caso, mas não deu resposta à reportagem até o momento da publicação.
A Lista de Furnas é um documento que revela as quantias pagas a políticos de PSDB, PFL (hoje DEM) e PTB em esquema de desvio de verbas intermediado pelo publicitário Marcos Valério em 2000, com o objetivo de abastecer o caixa dois de campanha desses partidos nas eleições de 2002, caso que ficou conhecido como “mensalão tucano” por envolver os mesmos personagens e operações envolvendo denúncias contra o PT em 2005. O PSDB nega a existência do esquema, que pode ter movimentado mais de R$ 40 milhões, e a autenticidade da Lista de Furnas, embora a Polícia Federal tenha comprovado, em perícia, que a lista conta com a caligrafia de Dimas Toledo, então presidente da estatal de energia. O caso aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal; o julgamento contra o PT foi realizado entre 2012 e 2013, e condenou 36 pessoas.
Em entrevista realizada em agosto do ano passado e divulgada pelo Youtube, o ex-advogado de Nilton Monteiro Dino Miraglia afirmou que o caso de Furnas envolveria até o assassinato da modelo Cristiana Aparecida Ferreira, em agosto de 2000 – segundo ele, além de trabalhar como garota de programa para os integrantes do esquema, ela era ainda responsável por transportar o dinheiro desviado da estatal em malas. O assassinato, registrado como suicídio até a revelação de sinais de asfixiamento da modelo, seria queima de arquivo, uma vez que a modelo queria abandonar a quadrilha.
Miraglia abandonou a defesa do lobista Monteiro após ter a casa invadida por dez policiais militares que tinham mandato para procurar um documento falso, mas que teriam aproveitado a oportunidade para ameaçar sua vida. O motivo teria sido o pedido do advogado para enviar a Lista de Furnas ao STF.


Fonte: Correio do Brasil

Sobre a parcialidade da mídia


O vale de lágrimas é aqui

21/1/2014 13:26
Por Venício Lima - de Brasília

Na pregação cristã, ao contrário, o vale das árvores que choram foi se transformando no vale de lágrimas e até mesmo no vale da morte
Na pregação cristã, ao contrário, o vale das árvores que choram foi se transformando no vale de lágrimas e até mesmo no vale da morte
Assim como outros milhares da minha geração, nascidos em famílias católicas, ainda criança aprendi a popular oração “Salve Rainha” que inclui a súplica: “A vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas” (Ad te clamamus, exsules filii Hevae, ad te suspiramus, gementes et flentes in hac lacrimarum valle).
Segundo a Wikipedia, “a autoria da oração é atribuída ao monge Hermano Contracto, que a teria escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenan, na Alemanha. Naquela época, a Europa central passava por calamidades naturais, epidemias, miséria, fome e a ameaça contínua dos povos nómadas do Leste, que invadiam os povoados, saqueando-os e matando”.
Cresci repetindo mecanicamente esta súplica sem saber o que poderia ser “um degredado filho de Eva” ou, muito menos, por que razão estaríamos todos a “suspirar, gemer e chorar” num “vale de lágrimas”.
Com o tempo, ensinaram-me que o “pecado original” nos tornava a todos “degredados”, e que a expressão “vale de lágrimas” tinha sua origem numa passagem do Salmo 84 [na numeração da Bíblia Hebraica], conhecido como Salmo dos Peregrinos.
Anos mais tarde, me dei conta de que, no Salmo 84, o significado literal de “vale de lágrimas” é muito diferente daquele que prevalece na interpretação cristã dominante.
[Registro, embora este não seja o objetivo aqui, que palavras e expressões mudam de significação ao longo do tempo, da mesma forma que palavras são introduzidas no nosso cotidiano e passam a constituir uma nova linguagem, um novo vocabulário dentro do qual se aprisionam determinadas formas de pensar e ver o mundo. Ver, por exemplo, “A linguagem seletiva do ‘mensalão’“.]
Baca e as lágrimas
A tradução literal da passagem do Salmo 84 no original hebraico é:
“Bem-aventurados os homens cuja força está em Ti, em cujo coração os caminhos altos passando pelo vale de Baca, fazem dele um lugar de fontes; e a primeira chuva o cobre de bênçãos.”
Na Vulgata Latina (Salmo 83), no entanto, que serve de referencia para as interpretações cristãs, o “vale de Baca” é substituído por valle lacrimarum:
“Beatus vir cui est auxilium abs te ascensiones in corde suo disposuit in valle lacrimarum in loco quem posuit etenim benedictiones.”
Na verdade, a palavra hebraica “baca” significa tanto lágrima, choro, como bálsamo. As “balsameiras” (amoreiras) são árvores que “choram” porque produzem uma resina de cheiro agradável, o bálsamo, palavra que, figurativamente, significa conforto, lenitivo, alívio. Esta é razão pela qual o vale, ao norte de Enom, recebeu o nome de Baca: é o vale das árvores que “choram”. Ele era também a última etapa da peregrinação, na encruzilhada das estradas que vinham do norte, do oeste e do sul, com destino ao Templo em Jerusalém.
Os peregrinos, que chegavam até Baca, depois de uma longa caminhada, eram bem-aventurados e poderiam transformar as chuvas em fontes (de água) e de bênçãos.
Na pregação cristã, ao contrário, o “vale das árvores que choram” foi se transformando no “vale de lágrimas” e até mesmo no “vale da morte”, uma condição inescapável da vida humana, uma sequência de sofrimento e purgação para os pecadores na busca do perdão de Deus.
Um pastor presbiteriano assim descreve o vale de Baca:
“É muito indesejável. a) É árido. Não tem rios de alegria; os poços, cavados por alguns dos peregrinos que nos antecederam ou por nós mesmos são, muitas vezes, “cisternas rotas que não retêm as águas” (Jeremias 2.13). b) É pedregoso. Os peregrinos conseguem remover as pedras menores, não as grandes; a caminhada é muito sofrida; muitos tropeçam e caem. c) É escuro. As trilhas serpenteiam entre rochas de angústia e montanhas de pecado; o Sol da Justiça esconde-se por trás destas e o vale fica muito sombrio. d) É extenso. Os peregrinos sabem que Sião está à frente, mas não podem vê-la; a caminhada parece não ter fim. Muitos ficam desencorajados. e) É infestado. Há espíritos maus neste vale. Eles tentam; fazem insinuações malditas e sugestões blasfemas: armam ciladas, lançam os “dardos inflamados do maligno” (Efésios 6.11,16).
Esta é a significação que “vale de lágrimas” (Baca) tem na oração “Salve Rainha”. É um mundo pleno de misérias e obstáculos.
Ajuda divina
Toda essa introdução é para observar que um visitante estrangeiro que desembarque no Brasil e que tome como referência as notícias diariamente veiculadas na grande mídia brasileira se convencerá de que o “vale de lágrimas” da interpretação cristã do Salmo 84 é aqui, hoje e agora.
No enquadramento padrão do jornalismo praticado entre nós, até mesmo as notícias eventualmente “boas” são acompanhadas de comentários irônicos e jocosos insinuando que alguma coisa deu ou dará errado, mantendo-se o “clima geral” de que estamos vivendo numa permanente e irrecorrível sequência de sofrimento e purgação de pecados.
Dia desses, fiz um teste assistindo ao noticiário local da concessionária de televisão líder de audiência do Distrito Federal. Além das chamadas de abertura e passagem, nos três blocos de notícias, cada um com três matérias, todas tinham um enquadramento negativo e crítico: o hospital universitário, que finalmente iniciaria uma necessária reforma na sua maternidade, criava um novo problema para as grávidas, pois elas teriam que procurar outros hospitais; o subsecretário de Segurança era criticado (justamente) por referir-se a uma pessoa desaparecida e encontrada morta sob suspeita de ter sido assassinada por policiais como “um zé”; um incêndio no Cerrado, incomum nesta época do ano, tinha causado uma enorme fumaça e atrapalhado a visibilidade dos motoristas, mesmo combatido e controlado pelo Corpo de Bombeiros; em algumas regiões do Distrito Federal faltavam vagas para crianças de zero a cinco anos, perto de suas casas, nas creches públicas; as chuvas estavam provocando buracos nas ruas de uma cidade satélite onde as “bocas de lobo” estão entupidas e com as tampas quebradas; em outra satélite há um cruzamento onde a falta de um semáforo tem dificultado a travessia e provocado acidentes; e, por fim, o retrato falado de um suspeito de praticar sequestros relâmpago é divulgado com o inescapável comentário sobre a crise na segurança pública.
Por óbvio, o “vale de lágrimas” não é a única característica do jornalismo brasileiro que omite e/ou enfatiza seletivamente aquilo que atende mais ou menos aos seus interesses, implícitos e/ou explícitos. De qualquer maneira, o noticiário televisivo do Distrito Federal, escolhido aleatoriamente, é apenas um exemplo de um padrão que se repete várias vezes ao dia, todos os dias.
Não haveria nada de positivo eventualmente acontecendo e merecedor de ser noticiado neste pedaço do planeta “descoberto” por Cabral?
No jornalismo do “vale de lágrimas” que vem sendo praticado pela grande mídia, salvar o Brasil, só com ajuda divina.
Vamos todos rezar o “Salve Rainha”.
Venício Lima é professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor

Fonte: Correio do Brasil