quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Dilma, na encruzilhada


11/08/2016 17:11 - Copyleft

Dilma, na encruzilhada

Com o desfecho se desenhando, claro, voltaram as análises dos erros cometidos. E nesse caso, muitos veem o erro capital na demora de Dilma.


André Roberto de A. Machado
Roberto Stuckert Filho/PR
Dizem que todo brasileiro é um técnico de futebol. Mas os vestibulandos sabem que a nossa população também é uma nação de orientadores vocacionais. Da mesma forma, os doentes dispõe de um especialista a cada esquina que pode sugerir aos enfermos tanto remédios clássicos como heterodoxos, além de uma lista enorme de benzedeiras, igrejas e afins. Agora a novidade, com o movimento “Escola Sem Partido”, é o desejo de formular uma política educacional sem debater com os educadores, tratando a matéria como assunto jurídico e legislativo. Não por acaso, professores fizeram circular na rede o meme “Eu apoio a Escola Sem Palpite”, numa clara crítica ao fato de que a maioria dos líderes e defensores desse movimento nunca foi um profissional de ensino.  A verdade é que palpitar é um esporte nacional. Uma prática às vezes simpática, galhofeira e outras simples demonstração do desprezo por certos conhecimentos especializados.   

Por dever de ofício, sempre observo a forma como as pessoas se apropriam do conhecimento histórico. E acho curioso o papel central que o palpite tem na mediação das pessoas com este saber. É quase uma vingança, uma subversão do homem comum contra um campo do conhecimento de que durante boa parte da sua existência reservou a sua essência a preservar o registro das ações dos homens de poder econômico e político. Assim, a história é recontada apenas para observar a inaptidão de certas decisões do passado, sem lembrar, é claro, que julgamos tudo isso do conforto do nosso lugar no presente, quando sabemos de coisas que nossos antepassados jamais poderiam ter certeza. 

Por algum motivo que ainda não entendi, cresci ouvindo palpites e mais palpites sobre Napoleão Bonaparte. Antes que fosse capaz de entender que ele era mais do que estereótipo do louco de hospício das esquetes de TV, já tinha ouvido várias vezes, entre risadas, sobre a sua imprudência ao enfrentar os russos tão próximo do inverno, caindo em uma armadilha aparentemente pueril. Não sei se o fascínio era maior por Napoleão ou por imaginar o gélido inverno russo, mas continuei ouvindo isso vida a dentro. Não deixa de ser curioso pensar que à frente de um exército poderoso e de uma das revoluções mais importantes da História, Napoleão conquistou ou subjugou quase toda a Europa, humilhou reis e o Papa e modificou o panorama político do Velho Mundo que viria, na sequência, a ter consequências decisivas na própria independência dos países americanos. Mas é descrito como quase um imbecil, logicamente porque se esquece de todos os outros componentes que estavam jogo, a começar pela própria imprevisibilidade dos tempos gastos em campanhas militares quando se está fora do tabuleiro do “War”. 

Decisões afoitas ou inibidas só são assim vistas depois do jogo jogado, quando perderam. Se vitoriosas, passam para o nosso imaginário como ousadia ou recuos táticos geniais. Mas os agentes, em seu próprio tempo, decidem com base nos dados que dispõem. Dessa forma, é cruel a análise, inclusive de parte da esquerda, que com frequência censura aqueles que decidiram caminhar para uma resistência armada contra o regime militar instaurado em 1964. Hoje é claro que a famosa “correlação de forças” tornava essa ação um suicídio. No entanto, como resistir ao exemplo cubano? 






Depois de Barbosa, o goleiro da fatídica final da copa do mundo de 1950, certamente não há brasileiro que teve a sua conduta mais questionada do que João Goulart, o presidente deposto pelo golpe de 1964. Vez por outra, volta-se a questionar porque Goulart não teria enfrentando os militares que se sublevavam, quase que o culpando pelos vinte anos de ditadura que se seguiram. O paralelo óbvio é de Allende que saiu morto do Palácio do Governo. Só não se costuma lembrar que isso não evitou a ditadura que se instalou no Chile, tampouco o fato de que o líder do golpe, o general Pinochet, tinha sido um pouco antes integrado ao governo de Allende. 

Aliás, há muitas proximidades entre o governo Allende e o último mandato de Dilma Roussef, para além da firme decisão de não renunciar, mesmo a beira do cadafalso: afinal, foram dois governos eleitos por uma margem muito estreita, assolados por uma paralisia de anos provocadas por um país dividido, instituições insurgentes e uma crise econômica que castigava os mais pobres. Não bastasse todas essas coincidências, é preciso lembrar que Allende imaginava que a solução para evitar um golpe e pacificar o país era a convocação de um plebiscito. No caso, a esperança era que a aprovação popular, enfim, legitimasse as suas propostas de reformas ou, em caso contrário, definisse a sua retirada do poder. 

Por uma dessas ironias da história, parece que a última estratégia de Dilma Roussef para barrar o impeachment no Senado é também a proposta de uma convocação de um plebiscito. Mas diferentemente de Allende, desta vez a consulta seria para a realização de novas eleições, talvez apenas para presidente, talvez gerais ou, quem sabe, até para uma Assembleia Constituinte. A própria incerteza sobre a abrangência do plebiscito, por si, demonstra como a proposta se move em um terreno pantanoso. 

A lógica por trás da proposta, liderada especialmente pelo senador Roberto Requião é simples: parte do entendimento de que Dilma não conseguiria reverter os votos necessários no Senado e que, mesmo que conseguisse, não teria condições de governabilidade, especialmente com a atual composição do parlamento. Tendo em vista esses dois fatores, oferecer a proposta de um plebiscito para convocação de novas eleições teria duas funções: por um lado, seria a demonstração máxima de que a presidenta afastada aceita negociar, inclusive abdicando do cargo num futuro próximo; em segundo lugar, acredita-se que o plebiscito poderia se tornar uma bandeira das esquerdas e talvez até dos opositores, devolvendo ao povo a decisão. É um pouco a esperança de conseguir reeditar o espírito da campanha das “Diretas Já”. Talvez seja justamente por isso que Dilma, em entrevista recente a BBC, defendeu o plebiscito contrapondo-se a um argumento dos líderes da Ditadura Militar: para Dilma, dizer que o plebiscito traria instabilidade política é o mesmo discurso que a Ditadura usou para negar por vinte anos as eleições diretas para presidente.  

Uma vez posta na mesa essa proposta, o mais interessante foi perceber a paralisia que provocou entre as esquerdas, dividas entre o apoio e a contrariedade à medida. Tornou-se comum ouvir de pessoas muito esclarecidas, acostumadas ao debate político: “que decisão difícil. Não sei o que dizer”. Não é por acaso: afinal, ainda que um grupo muito restrito vá decidir sobre esse encaminhamento, chamou-se os movimentos sociais para compartilhar o peso da decisão. Para esmagadora maioria, foi a primeira e, talvez a única vez, em que uma “escolha de Sofia” de dimensões nacionais pede uma resposta em tempo real. Sem saber os desdobramentos do futuro, há apenas especulações. Se vitoriosa, seria um custo necessário para barrar as mudanças em curso no governo interino? Mas, se eleito um governo de direita, isso não seria o mesmo que legitimar a mudança nas políticas de inclusão que foram eleitas em 2014? Quer se chamar o povo para decidir, mas ele já não o fez em 2014? Novas eleições não são uma forma de legitimar o golpe? É preciso lembrar que até mesmo o presidente do PT desprezou publicamente esta hipótese, na semana passada, lembrando as dificuldades legais para viabilizar a proposta em menos de dois anos. Em seguida, Rui Falcão veio ser novamente contrariado por Dilma, mostrando a dificuldade para se chegar a um acordo sobre essa decisão. 

São muitas questões sem resposta hoje. Não por acaso o gosto pelo palpite pareceu refluir. Mas certamente voltará daqui a alguns anos, ou talvez semanas, quando todos terão muita “certeza” de qual era o caminho certo a seguir.



Uma escolha para ganhar ou perder tudo

Durante as últimas semanas, ao pensar na encruzilhada que está posta à frente da presidenta Dilma, pensei nas semelhanças entre a sua situação e a de D. João VI em 1821. 

Por uma dessas fantasias nacionais, a figura de D. João VI entrou para o imaginário nacional como uma caricatura, já descrita em clássicos e, ultimamente, reforçado pelo cinema: um homem indeciso, sempre arrastando as decisões para a última hora. E, claro, um devorador de frangos apaspalhado, ideia que mais provavelmente cristalizou-se no anedotário carioca em função da espantosa demanda por carnes que se criou com a chegada de uma Corte Europeia. Nada mais falso. Ao encarar os fatos em perspectiva, percebe-se que D. João VI esteve diante de encruzilhadas difíceis durante todo o reinado, equilibrando-se entre uma conjuntura europeia hostil, a independência da sua colônia mais importante e uma tentativa de golpe organizada no paço. Apesar de todas as condições desfavoráveis, D. João VI sobreviveu e conseguiu manter a independência portuguesa num cenário de enormes pressões externas. A própria manutenção da enorme colônia americana até a década de 1820 é mais surpreendente do que a sua perda. 

A verdade é que D. João VI foi um político astuto e hábil. Mas, em 1821, chegara a sua prova mais difícil: no Rio passara-se a saber que, no ano anterior, um levante militar em Portugal iniciara uma Revolução que exigia a criação de uma constituinte e o retorno do rei para a Europa. A esta altura, antigas capitanias americanas já tinham deposto os governos escolhidos pelo rei, transformando-se em províncias  e elegendo pela primeira vez as administrações máximas desses territórios. Com certeza foi espantoso saber no Rio de Janeiro que uma província como a Bahia tinha se levantado e, correndo o risco de ser condenado por lesa majestade, os baianos declararam sua adesão ao movimento revolucionário do Porto. Por trás de tanto entusiasmo de baianos, paraenses e logo dos cariocas, estava a perspectiva de gozar de um governo liberal, constitucional, logo beneficiando-se de novidades incríveis como a liberdade de imprensa. Numa surpreendente velocidade, apareceram uma grande quantidade de tipografias e jornais espalhados por todo o território, onde antes só era permitida uma imprensa altamente controlada, sob censura régia. 

Como lembra Marco Morel, no fabuloso livro “As Transformações dos Espaços Públicos”, o surgimento da opinião pública no Brasil tem uma estreia nobre: toda a imprensa da época vai debater e opinar se D. João VI deveria ou não retornar a Europa, como era exigido pelas Cortes de Lisboa. De uma situação em que há poucos meses não havia liberdade para publicar uma coisa tola sem passar pela censura, agora qualquer homem com recursos suficientes ou influência para ser publicado poderia opinar sobre o destino do próprio monarca e da monarquia. Isabel Lustosa, em “Insultos Impressos”, livro no qual conta o que chamou de “guerra dos jornalistas” no começo da década de 1820, mostra como esse debate sobre a permanência ou não de D. João VI na América mobilizou toda a sociedade, com textos circulando em jornais ou mesmo panfletos, inclusive com participação do Paço.

Assim como Dilma, D. João estava em uma situação em que arriscava-se ganhar tudo ou perder tudo. Já vivera isso em 1807, mas na ocasião havia tropas francesas no seu encalço e uma marinha inglesa à beira de Lisboa que rapidamente podia transmutar-se de protetora à algoz. Portanto, fora uma questão de sobrevivência. Em 1821, não: as variáveis eram muitas. Como lembra a historiadora Márcia Berbel, no limite os revolucionários portugueses cogitavam até integrar-se à Espanha, então também tomada por um levante constitucional, caso D. João VI recusasse voltar a Europa ou tentasse retomar seus poderes absolutos.  Assim como agora, com Dilma, o que estava em jogo era saber se haveria uma decisão que permitiria que o monarca continuasse a liderar o processo político, retomar a legitimidade. O problema, lá como cá, é que em uma situação como essa não há avaliação política que consiga dar conta de todas as variáveis. 

E nestas situações sempre lembro de um episódio primoroso. Numa situação tão delicada, obviamente, D. João VI recorreu a pareceres feitos por homens de consideração no período. Um desses casos é narrado pelo historiador português Valentim Alexandre. Perguntado se o monarca deveria ficar no Brasil ou retornar a Portugal, o desembargador José Albano Fragoso foi incisivo: segundo ele, o Rei deveria voltar a Portugal porque jamais poderia garantir o controle do reino europeu com os recursos militares que tinha na América. Se fosse para Portugal, segundo Fragoso, ele ainda teria alguma chance de manter o domínio sobre o Brasil. Se ao contrário, insistisse em permanecer na América, perderia não só Portugal como não conseguiria manter a unidade dos domínios americanos já que, segundo Fragoso, as províncias do Norte, como Maranhão e Pará, seguiriam os destinos da Europa uma vez que os seus interesses estavam voltados para lá.

Como se sabe, talvez influenciado por essa análise, D. João VI decidiu retornar a Lisboa, mas não conseguiu manter o domínio americano. O que é interessante, no entanto, é que a análise do desembargador era absolutamente sensata. O quadro desenhado por ele é muito mais realista do que boa parte das análises feitas posteriormente por historiadores. Mas, como sabemos, as coisas saíram diferentes do que ele previa. Isto porque a política é muito mais dinâmica do que geralmente se supõe. 

Quem estará fazendo hoje o papel que coube ao desembargador Fragoso? Quem hoje poderá dizer estar seguro do caminho a seguir?



Devolver o poder ao povo?

Não é à toa que Dilma, a exemplo dos defensores da convocação de um plebiscito, ligou à iniciativa a mesma ideia que moveu às Diretas Já. No entanto, naquela época a luta era para que a população tivesse o direito de votar e hoje o problema é que se respeite o resultado das eleições de 2014. Dois problemas diferentes, mas nos dois casos está o lembrete de que o poder emana dos povos e que nenhum governo ou parlamento está acima dessa máxima. 

Trata-se de um argumento poderoso, mas nem sempre o suficiente para vergar as instituições. Tome-se sobre isso a década de 1830, na primeira reforma constitucional do Brasil, quando os liberais mais radicais ficaram inconformados com as próprias limitações impostas pelo Parlamento sobre o que deveria ser ou não modificado na constituição. O maior exemplo disso foi o veto imposto pelo Parlamento para que se discutisse o fim do Senado, uma das maiores defesas dos radicais que viam ali um resquício da Nobiliarquia e, na sua leitura, do Antigo Regime . Um dos maiores embates da época, o veto a essa discussão foi decidido por um voto de diferença, numa eleição em que os próprios interessados – os senadores com cargos vitalícios – decidiram a disputa. A vitória por um voto foi considerada como um escárnio e a solução dada por liberais radicais foi a de iniciar uma campanha reivindicando o poder popular como soberano sobre as instituições.

O artifício era simples: naquele tempo, para uma reforma constitucional, nas atas eleitorais tinha que constar uma autorização dos eleitores para que deputados fizessem as mudanças na Carta, deixando-se explícito o que podia ser modificado. Os ditos “exaltados” passaram a escrever na sua rede de jornais que bastava que as juntas propusessem autorizações amplas, nas quais fosse dada permissão para qualquer emenda constitucional, inclusive sobre o fim do senado. Há notícias de que algumas juntas eleitorais fizeram isso, mas a ação foi totalmente ignorada no Parlamento. 

Está aí um triste verdade que parece acontecer também hoje: afinal, a Câmara e o Senado parecem estar imune a qualquer argumento, a qualquer clamor que os retire de um roteiro já traçado e que culmina no impeachment. É como se estas instituições, assim como as do século 19, vivessem em uma realidade paralela, em um clube de notáveis. Pouco importam pareceres do Ministério Público que desmerecem o argumento de crime de responsabilidade, pouco importa o argumento que as manobras contábeis acontecem em quase todos os Estados Brasileiros, pouco importam as sérias acusações de corrupção contra membros do atual governo. Não é à toa que se disse que o julgamento do impeachment no Senado era uma fala para surdos. 

E aí se volta para a tática de convocação de um plebiscito para eleições gerais. Assim como estava na cabeça de Allende, os estrategistas de Dilma acreditam que essa é a única forma de chegar novamente a um consenso mínimo e revestir um governo de alguma legitimidade. É a ideia de devolver o poder de decisão ao povo e evitar que ele fique restrito ao Parlamento.

Mas há dois problemas aí. O primeiro deles é saber qual é o grau de sensibilidade dos senadores a esse clamor de devolver o poder ao povo. Em primeiro lugar porque, como dito acima, estes parecem viver no seu clube particular, imunes ao que acontece ao seu redor. As manifestações populares dos meses anteriores foram manipuladas nos discursos políticos, uma vez que cada lado usou apenas os protestos que lhes convinham para dar um lustro de credibilidade às suas decisões. Poucos tiveram a honradez de reconhecer de que o país está tristemente dividido e perigosamente conflagrado. 

O outro problema, pouco refletido, é saber os limites desse artifício de retornar o poder ao povo. Sim, porque se é tão importante reconhecer que o poder emana do povo, ao mesmo tempo é preciso ter em mente que as instituições só são fortes quando as regras não são quebradas, quando há estabilidade no sistema. As contínuas quebras na governabilidade geram uma descrença perigosa. 

Para os brasileiros, talvez o maior exemplo disso seja a nossa monarquia. Como se sabe, após dissolver a Constituinte de 1823, D. Pedro I impôs uma Carta Constitucional, a de 1824, que vai perdurar por todo o Império. Sempre lembram que D. Pedro I impôs nesta Carta a figura de um quarto poder, o Moderador, que tinha, entre outros atributos, o poder de dissolver o Ministério e também a Câmara dos Deputados. Talvez seja essa uma das maiores marcas de antipatia dos brasileiros por D. Pedro I, mas a verdade é que ele nunca chegou a usar esse poder para dissolver o Parlamento. Por outro lado, deixou essa “herança” para o filho que usou e se lambuzou desse recurso. 

A consequência disso foi um sistema de governo que a cada impasse político resolvia-se com sucessivas quedas de Gabinete de Ministros e, muitas vezes, de dissolução do Parlamento, neste caso recorrendo-se a novas consultas populares. A contínua convocação de eleições para resolver os impasses nem sempre era visto como algo positivo. As sucessivas quebras de governabilidade parecem ter sido mais fortes e imprimido um ar carnavalesco e farsesco ao sistema político do Império. 

Não por acaso, a literatura e o teatro do século 19 registraram o tom galhofeiro com o qual os cariocas viam as sucessivas quedas de governo e da Câmara dos Deputados. No final do século, França Júnior escreveu a famosa peça “Caiu o Ministério”, que trata exatamente do frenesi provocado por cada uma das mudanças de governo e como a cada uma delas o sistema caia em descrédito. A cena inicial da peça, passada no rua do Ouvidor, é o maior termômetro disso: vários homens, entre proeminentes políticos e aspirantes a cargos públicos, conversam sobre os acontecimentos como se estivessem em uma bolsa de apostas, tentando adivinhar qual seria o novo governo e como se beneficiar dele. Em uma história paralela, um golpista inglês tenta convencer o novo gabinete a lhe conceder um privilégio comercial para uma empreitada absurda: a criação de um sistema para subir o Corcovado puxada por cães. Até mesmo para o golpista, a situação política, com as sucessivas quedas de governo e parlamentos, era absurda e a maior ameaça para estabilidade política. O quadro pintado por França Pinto, de governo fracos, sempre à mercê de aproveitadores nacionais e estrangeiros, dá conta de como os brasileiros e os cariocas em particular viam o sistema monárquico.

No entanto, como sempre, nada supera a narrativa de Machado de Assis. Em “Um homem Célebre”, talvez o seu melhor conto, Machado narra as façanhas de Pestana, um homem frustrado por não conseguir produzir peças musicais ao estilo dos seus grandes mestres, como Mozart, mas que é um sucesso nas composições de polca, uma música muito popular no Rio do final do século 19. A história de Pestana é o brilhante resumo de Machado sobre a Corte no Rio de Janeiro: uma força criativa original que vive sob a vergonha de macaquear, e mal, a Europa. A questão é a que a composição de polcas de Pestana, como era comum à época, eram impressas por um editor e vendidas no comércio. As pessoas, então, reproduziam as composições nos pianos ou nos outros instrumentos das casas. 

Como um artifício para aumentar as vendas, o editor de Pestana dava nomes chamativos para as peças e, muitas vezes, vinculava esses nomes a acontecimentos políticos. As quedas de ministérios eram tão comuns, que muitas dessas músicas levavam nomes que lembravam esses episódios. Na cena final do conto, Pestana estava mortalmente doente. Seu editor não sabia disso e fora lhe pedir uma polca para marcar a subida dos conservadores ao poder. Constrangido, disse que Pestana fizesse isso quando ficasse bom de saúde, mesmo sabendo que isso não aconteceria. Pestana, também consciente do seu fim, fez o que segundo Machado foi a sua única piada: disse que estando melhor faria duas: uma para agora e a outra para quando os liberais subissem ao poder. O rodízio entre os grupos políticos era tão certo quanto a morte de Pestana e por isso ele podia deixar uma “herança” ao editor. Maior chacota com um sistema político, era impossível. 

O que talvez muitos não se deem conta é que atropelar as regras institucionais é ferir o sistema político mortalmente. 



Esperando Godot: a Carta aos Brasileiros

Escrevo essas últimas linhas quando o Senado acaba de votar o relatório do Senador Anastasia. Por uma larga margem de vantagem, o Senado aprovou o relatório e tornou a presidenta réu. Ao que tudo indica essa mesma margem deve ser mantida na votação final e Dilma deve ser apeada do poder em definitivo. 

Com o desfecho se desenhando, claro, voltaram as análises dos erros cometidos. E nesse caso, muitos veem o erro capital na demora de Dilma em lançar a “Carta aos Brasileiros”, na qual se comprometeria com a convocação de um plebiscito para novas eleições. A despeito sobre a eficácia ou não da medida, é fato de que o seu anúncio foi continuamente postergado, com a própria presidenta ironizando para os jornalistas o fato de que eram contínuos os pedidos de mudança na carta, entre os que estavam participando da sua redação. Daí, choveram comparações entre essa demora e o que teria sido a tônica do próprio governo, sempre lento, com um timing em eterno descompasso. Em resumo, passa-se a culpabilizar o próprio governo por sua queda por não ter sido capaz de criar um fato novo que revertesse o golpe. 

Mas não deixa de ser irônico que um democracia como a brasileira, uma das maiores populações e economias do mundo, aguardem uma carta de intenções como sua salvadora, como se estivesse “Esperando Godot”. Parece que muitos agora, com o desfecho quase certo, apontarão essa demora como o erro fatal, ocupando hoje o papel que o desembargador Fragoso teve para D. João VI no século 19: o de vender uma análise política e uma estratégia invencível. Ao que parece a temporada de palpite post factum só está começando. 

André Roberto de A. Machado é historiador e professor da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. 




Créditos da foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Presidenta ou presidente? A MINISTRA PRECISA VOLTAR A ESTUDAR

STF

Presidenta ou presidente?

Cármen Lúcia assume o STF e recusa-se ser chamada pelo feminino de presidente
por Redação — publicado 11/08/2016 19h32, última modificação 11/08/2016 19h36
Fernando Frazão | Ag. Brasil
Cármem Lúcia
Cármen Lúcia, presidente STF
A ministra Cármen Lúcia Rocha foi eleita ontem, quarta (11) para a presidência do Supremo Tribunal Federal para mandato de 2 anos, substituindo Ricardo Lewandowski –ela assume em setembro. Ela havia sido nomeada em 2006 por Lula. Foi uma eleição protocolar, pois o cargo é assumido em rodízio baseado no critério de antiguidade.  Assume o ministro (ou ministra) mais antigo que ainda não presidiu a Corte.
A ministra chegou marcando distância da presidenta Dilma Roussef–ao menos vocabular. Em meio a um julgamento ontem, Lewandowski, ao passar-lhe a palavra perguntou: “Concedo a palavra à ministra Cármen Lúcia, nossa presidenta eleita… ou presidente?”
Ela respondeu com ar sorridente: “Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa. Acho que o cargo é de presidente, não é não?”.
Mas a escolha não guarda relação com o fato de ela ter sido estudante ou considerar-se amante do vernáculo.  As duas fórmulas são aceitas quando uma mulher assume a presidência de qualquer órgão ou do país. Presidenta ou presidente.
O ex-presidente José Sarney, que gosta de ser lembrado mais como escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, do que como senador, governador ou presidente da República, escreveu alguns meses depois da eleição de Dilma Roussef em 2010:
“Presidenta, segundo o ‘Aurélio’, é ‘mulher que preside ou mulher de um presidente’, distinta de presidente, que é ‘pessoa que preside’ ou ‘o presidente da República’. O ‘Houaiss’ fala em ‘mulher que preside (algo)’ ou ‘mulher que se elege para a presidência de um país’ para definir presidenta e, para presidente, em ‘título oficial do chefe do governo no regime presidencialista’ -substantivo de dois gêneros. A forma tradicional, comum de dois gêneros, não tem nenhum sentido discriminatório. Mas presidenta tem mais um peso político que linguístico.”

Esperando Godot de Samuel Beckett


Esperando Godot de Samuel Beckett

Acontece que Ensslin trata Beckett ao lodo de Ionesco e outros representantes do gênero chamado Teatro do absurdo; e acontece que a leitura, pelo menos a primeira leitura, e as representações já tentadas confirmam esse aspecto da obra teatral do escritor franco-irlandês. Seriam, sim, peças vagamente metafísicas, mas principalmente de aspecto farsista, de aspecto cômico mais ou menos assim como A cantora careca ou A lição do franco-romeno Ionesco, tentando ridicularizar a nossa vida cotidiana para demonstrar o absurdo da nossa existência num universo absurdo. Concedo os aspectos cômicos e concedo o absurdo. Mas pretendo, antes de tudo, que este não é o verdadeiro Beckett: que seu teatro não é absurdo, mas uma espécie de antiteatro ou de não teatro, um gênero inteiramente novo, que parece absurdo só aos absurdos representados na plateia; e também aos que substituíram os nomes dos personagens Estragon e Vladimir, emEsperando Godot, por Didi e Gogo: em vez de vagabundos, como no original, aparecem palhaços. Está na hora de acabar com essa palhaçada.
Quando, em En Attendant Godot, se levanta o pano, o público vê uma paisagem inteiramente vazia; só há, no meio, uma árvore solitária. Esse vazio é povoado por dois vagabundos, Estragon e Vladimir, que pararam ali para esperar um certo Godot: não sabem quando ele chegará, nem sequer sabem por que esperam. Mas estão esperando Godot. Já estão ligeiramente desesperando e desesperados, até de viver, pois não poderiam viver sem Godot. Mas ele prometeu chegar. E este é o pretexto dos dois para viver juntos e esperar juntos. Por que juntos? Tampouco sabem. De vez em quando, um deles já tentou separar-se do outro, talvez fazendo uma espécie de excursão. Mas sempre volta. Nada feito. Só resta esperar. Até quando? Perguntam. Ninguém responde. A paisagem e o céu continuam vazios. Não acontece nada (“Rien se passe”). O única fato é este: esperam.
Entrementes, conversam. Mas não há tema de conversa, a não ser o de que o tempo passa e Godot não chega. Essa conversa é fatalmente muito monótona, repetitiva, um diálogo que é na verdade um monólogo, irresistivelmente cômico, farsista, como numa farsa de Ionesco. Afinal, a gente se diverte como pode, esperando Godot.
De repente, chega ou antes: chegam. Não é Godot. É Lucky com seu escravo Pozzo. Lucky, o dono, trata seu escravo com brutalidade inédita, pior que um cão. Devora uma galinha e joga-lhe só os ossos. Ao terminar a refeição, espanca-o. Pozzo aguenta tudo, mas não parece que Lucky esteja gostando muito disso. Obriga o escravo a dançar e cantar uma canção inteiramente absurda, cômica mesmo.
Agora, os dois vão partir. A despedida é uma troca de absurdas fórmulas de gentileza. Vladimir e Estragon chegam a rir. Mas seu riso acaba quando aparece um menino, um mensageiro, anunciando que Godot não chegará hoje de noite, chegará amanhã. O tempo passou sem se passar nada.
Segundo ato: um novo dia. Esperando Godot. Repete-se o mesmo diálogo vazio de sentido. Por um momento voltam os dois viajantes, agora um pouco mais velhos: Lucky é cego e Pozzo é mudo. Saem. Aparece o mensageiro: Godot não chegará hoje, mas amanhã certamente. Já não acreditam. Pretendem enforcar-se na árvore, mas as cordas se rompem. Que fazer? Esperar Godot? Última e inútil tentativa de revolta: “Vamos embora” – “Sim, vamos embora.” Mas não se mexem. Ficam imóveis. E cai o pano.
En Attendant Godot foi representado, pela primeira vez, em 13 de janeiro de 1953, num pequeno teatro de vanguarda, no Théâtre de Babylone, em Paris. Ficou em cartaz durante o ano inteiro. Teve o mesmo sucesso em Londres, em 1955, e em Nova York, em 1956. A peça foi traduzida para dezoito línguas e representada em todos os teatros do mundo, em Roma e Hamburgo, em Madri e Varsóvia, em Praga e Estocolmo. É, até hoje, o maior sucesso teatral de uma peça nova neste século. É um sucesso totalmente misterioso, inexplicável: uma peça teatral cuja ação consiste em não se agir, cujo enredo é este: não acontece nada. Não é teatro. No entanto, o público riu muito e saiu, depois, tremendo de angústia, como se o caso fosse o dos próprios espectadores. E todo mundo perguntou: quem é esse Beckett?
Samuel Beckett nasceu em 1906, em Dublin, mas de família rigorosamente protestante, de um rigor só compreensível na minoria de um país tão rigorosamente católico com é a Irlanda. Estudou filologia românica. Foi, durante três anos, professor de língua inglesa na École Normale Supérieure em Paris, esse berço de livre-pensadores, socialistas e anarquistas. Voltou para Dublin como professor de francês e italiano no Trinity College, a famosa universidade protestante da cidade. Passou por uma grave crise moral e nervosa, da qual ignoramos os detalhes. Em 1937, fixou-se em Paris; foi, durante certo tempo, espécie de secretário particular de Joyce, então já quase cego. Seu romance Murphy, escrito em inglês, não tinha sucesso, tampouco o romance Watt, em que aparece, pela primeira vez, o vagabundo típico de Beckett, esta vez a serviço do tirânico Mister Knott, que é o primeiro avatar de Godot. Beckett participou da Resistência Francesa; mas não se sabe de um concreto compromisso político seu. Voltou a escrever romances, mas em língua francesa: Molly; Malone Meurt. Em 1953, En Attendant Godot foi representado em Paris, como o sucesso que se sabe; depois em Londres e Nova York, como Waiting for Godot, em tradução inglesa realizada pelo próprio autor bilíngue. Mais tarde, Beckett traduziu para o inglês todas as suas obras escritas em francês, e para o francês todas as suas obras escritas em inglês. Em 1969, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Esperando Godot já não era representado em pequenos teatros de vanguarda, mas nas grandes casas, até na conservadoríssima Comédie Française, o teatro nacional da França. A obra virara um clássico. E começaram a chover as interpretações.
O filósofo marxista alemão Theodor W. Adorno foi o primeiro que esclareceu o sentido dos dois episódios de Lucky e do seu escravo Pozzo. Ninguém contesta mais, hoje, essa interpretação: os dois personagens são a representação dramática do capítulo Dono e servo, na Fenomenologia do Espírito de Hegel, interpretado por Marx como descrição (genialmente antecipada) do regime capitalista, em que Pozzo é explorado e maltratado por Lucky, sem este tirar verdadeira satisfação disso.
Já é menos segura a tese de Adorno sobre o segundo episódio: Lucky cego e Pozzo mudo significariam a tirania fascista, ou então a decadência do capitalismo. Mas certo é que se trata apenas de episódios. Beckett não acredita no papel decisivo das relações sociais, que apenas agravam, mas não determinam a condição humana. (Por isso mesmo, Beckett foi, embora representado em Praga, Varsóvia, Belgrado, Budapeste, Bucareste, atacado com veemência na União Soviética, como escritor representativo da última decadência europeia e ocidental.) O verdadeiro problema é, para Beckett, a condição metafísica do homem neste mundo, ao qual veio sem ter sido perguntado e sem saber aonde vai ser levado. O culpado dessa condição é, evidentemente, aquele que a criou. É espécie de teologia pessimista. Já no romance Watt aparece um dono implacável e inacessível, Mr. Knott, que é evidentemente o precursor de Godot; e o nome deste último é, sem dúvida, derivado deGod, a palavra inglesa que significa Deus.
É o Deus oculto ou desconhecido da teologia calvinista, que escolhe arbitrariamente quem será condenado ao Inferno, conforme o mistério inescrutável da Predestinação. O próprio Beckett manifestou isso claramente, em conversa com Haroldo Hobson: “Há uma frase maravilhosa em Santo Agostinho: Não desespere, pois um dos ladrões foi salvo; não presuma, pois um dos ladrões foi condenado”.
Mas assim como o episódio Lucky-Pozzo não pode ser citado para definir Beckett como marxista, assim a citação da frase de Santo Agostinho não pode ser empregada para definir Beckett como calvinista. Godot não salva nem condena: ele não vem como se não pudesse vir ou como se não existisse. Essa última hipótese é plenamente confirmada numa obra posterior de Beckett, em Fin de Partie, onde Hamm se dirige diretamente já não a Godot, mas ao próprio God, a Deus. Não recebendo resposta, Hamm exclama: “Le salaud! Il n’existe pas”, isto é: “Este miserável! Ele não existe”.
É esta a situação: vivemos num universo vazio; num universo imóvel; num silêncio total; sem esperança; sem meio de comunicação com os outros (e com o Outro). Eis um dos motivos do estranho bilinguismo de Beckett, que não acredita na língua francesa nem na língua inglesa nem em língua alguma. Por isso mesmo, reduz cada vez mais, nas obras posteriores, o diálogo-monólogo, até chegar, enfim, à espécie de pantomima simbólica em que os gestos (gestos sem sentido, aliás) substituem as palavras. Beckett parece, em suas obras posteriores, repetir sempre, e com radicalismo sempre mais feroz, a situação deEsperando Godot: seu tema é o mais universal de todos os temas, ao lado do qual não existem outros assuntos. Mas a língua humana não é capaz de exprimir esse tema, a não ser mediante metáforas e símbolos novos que não faltam ao grande escritor que Beckett é. A vida em sociedade? Veja-se Fin de Partie, onde Hamm é paralítico e cego; Nagg e Nell, os pais, sem pernas e recolhidos em recipientes de lixo. O esforço humano? Veja-se o curto romance Comment c’est, em que o homem passa três fases “antes de Pim, com Pim e depois de Pim”: antes de Pim, o homem é uma espécie de verme que, em noite totalmente escura, pretende avançar na lama de um pântano que o envolve (uma visão dantesca do Inferno); depois, encontra Pim que não quer responder às suas perguntas cada vez mais urgentes; enfim, já sem Pim, espera a chegada de Bom, que ele pretende torturar assim como já torturou Pim que, por sua vez, espera o próximo que pode atormentar. Enfim, Oh! Les beaux jours em que o monólogo de uma mulher sufocada pela lama nos pretende dar a lição definitiva contra nosso “otimismo perigoso e incurável”.
É preciso ter a coragem de dizer que Beckett, com pensador, é muito menos original do que parece. Não me refiro a Joyce, cuja influência – apesar das relações pessoais entre os dois escritores – só se sente em certos detalhes linguísticos. Mas o autor de Esperando Godotcertamente leu muito Schopenhauer que, embora considerando sem sentido o universo, não acreditava na salvação pelo suicídio (quando Vladimir e Estragon se querem suicidar, rompem-se as cordas). Antes penso nos ateus que Dostoievski descreveu com tanto horror e com tão íntima simpatia. Penso em Pirandello e sua dúvida quanto à identidade humana. E, sobretudo, em Kafka e sua teologia negativa: no dono do Castelo, que é inacessível e só concede autorização para viver na aldeia quando o agonizante já não precisa dela; e no tribunal do Processo que condena os inocentes porque não sabem de seu crime. Kafka e Beckett são os maiores divulgadores da angústia do século XX que se sabe perdido sem saber por que, embora, em Kafka, a culpa esteja acima de todas as dúvidas e, em Beckett, a condenação esteja certa acima de todas as dúvidas. Resta uma pergunta: como foi possível aos acadêmicos suecos conferir seu Prêmio, láurea dos esforços em prol do progresso da humanidade, ao autor dessa negação total, e esse profeta do vazio. E só resta uma resposta: porque o consideram absurdo, isto é, tão divertido como o franco-romeno Ionesco, que foi eleito para ocupar uma poltrona na Academia Francesa. Pois “a glória é um conjunto de equívocos em torno de um nome”.
19/6/1976

Publicado como divulgação do excelente livro As obras-primas que poucos leram, (Record, volume 3, Rio de Janeiro, 2006). E como homenagem de Sibila a um dos maiores críticos literários de todos os tempos.

Equipe de Meirelles tem primeira derrota na Câmara


11/08/2016 16:01 - Copyleft

Equipe de Meirelles tem primeira derrota na Câmara

Renegociação de dívidas é desfigurada após pressão de trabalhadores e de deputados.


AFONSO BENITES / El Pais
José Cruz / Agência Brasil
Chamada de dream team da gestão interina de Michel Temer (PMDB), a equipe econômica do Governo federal teve sua primeira derrota na madrugada desta quarta-feira na Câmara dos Deputados. O projeto de renegociação de dívida, considerado prioritário dentro do pacote de ajuste fiscal elaborado pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, foi completamente desfigurado e deixou de contar com uma série de medidas que ele considerava fundamentais.
 
Os deputados não resistiram às pressões de sindicatos e associações de servidores públicos e de parte dos governadores que entendiam que as contrapartidas colocadas no projeto de lei complementar 257/2016 eram difíceis de serem cumpridas. Os pontos mais polêmicos eram: 1) os que alteravam a lei de responsabilidade fiscal (este poderia resultar em demissão em massa no Judiciário); 2) o que impedia a concessão de reajuste salarial a servidores por até dois anos e; 3) o que proibia as unidades da federação a realizarem concursos públicos. Todas essas medidas deixaram de existir após longas negociações entre deputados da base e o Palácio do Planalto. Um dos argumentos dos deputados era de que essas medidas ferem a autonomia dos Estados.
 
Henrique Meirelles, no entanto, era contrário a essas mudanças, mas foi obrigado a acatá-las. As tratativas foram feitas diretamente com o presidente Temer e com o chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. Se o projeto fosse mantido dessa maneira, ele corria sério risco de não ser aprovado, segundo quatro deputados da base governista relataram ao EL PAÍS. “Ninguém aqui é louco de votar contra trabalhador do jeito que queriam que fizéssemos”, afirmou o deputado Júlio Delgado (PSB-MG).

 





Uma das poucas contrapartidas que os Estados terão de cumprir para terem suas dívidas junto à União renegociadas pelo período de 20 anos é a de impedir que seus gastos previstos no orçamento não supere a inflação dos últimos 12 meses. E foi esse o argumento usado pelo ministro da Fazenda para amenizar seu revés. “O importante é que o teto foi aprovado. Essa sim é a contrapartida. Isso é o fundamental”, disse após uma reunião com empresários e parlamentares, em Brasília.
 
Aliado de primeira hora do Governo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, seguiu na mesma linha. “O importante foi superar as dúvidas e pressões e garantir o que há de mais importante nessa matéria, que é a garantia do congelamento de gasto global dos Estados pela inflação”.
 
Apesar dos discursos, economistas avaliaram que o Governo teve de ceder bem mais dos esperava nesse momento. “O processo político ainda está conturbado, enquanto o impeachment da Dilma[Rousseff, presidente afastada] não terminar de ser votado, o governo ainda fica refém para não desagradar tanto os políticos. Além disso, tem o peso político das eleições municipais deste ano também”, avaliou o professor do IBMEC e estrategista da JK Capital, José Kobori.
 
Na análise dele, a manutenção dos gastos iguais à inflação não significa nenhuma economia. “Os políticos vivem em outra realidade. Nenhuma empresa pode gastar mais se não tem resultado positivo. O Estado só poderia aumentar gastos se evoluísse sua receita, caso contrário, pode-se aumentar o déficit, que já é alto”, afirma Kobori.
 
Especialista em contas públicas, Felipe Salto lamentou a redução das contrapartidas. “Nada mais justo do que exigir mudanças estruturais que aperfeiçoem o equilíbrio fiscal. Na ausência do limite para o gasto do pessoal, quem vai pagar a conta desse ajuste são os investimentos. Os governos vão continuar sujeitos a pressão das burocracias locais”.
 
Salto afirmou ainda que, nos próximos meses, o Governo terá de mostrar um projeto firme que traga mudanças efetivas pois corre risco de perder apoios. “Temer tem o dream team, mas a gordura da credibilidade dessa equipe está sendo queimada e não vai demorar muito para o mercado colocar o Governo na parede”, analisou.
 
O próximo teste de fogo de Temer na área econômica é a PEC do Teto de Gastos. Para não se arriscar tanto, a votação só ocorrerá depois das eleições municipais de outubro. Temer já poderá, então, se expor a enfrentar rompantes de impopularidade (partindo de números frágeis uma vez que apenas 14% aprovam o Governo) sem se preocupar com a saúde eleitoral dos deputados aliados e dele próprio, que, ao que tudo indica, já terá deixado para trás o impeachnent.


Créditos da foto: José Cruz / Agência Brasil

No Planalto, Temer realiza expurgo em massa

Governo Interino

No Planalto, Temer realiza expurgo em massa

Centenas de funcionários, censurados até na internet, são demitidos porque não apoiaram o golpe de Estado. E a devassa vai continuar...
por Renan Truffi — publicado 11/08/2016 04h33, última modificação 11/08/2016 12h38
PMDB / Divulgação
Pablo Rezende
Pablo Rezende, protegido do ex-governador Iris, mais um premiado pelo nepotismo (Foto: PMDB)
Em julho, o governo Michel Temer deu início a exonerações em massa na Esplanada dos Ministérios. Para abrir espaço e acomodar aliados da base, o governo decidiu retirar ocupantes de cerca de 2 mil cargos de confiança da gestão da presidenta Dilma Rousseff.
Na prática, a operação ganhou conotação de perseguição política. Isso porque, mesmo sob a condição de presidente interino, Michel Temer colocou, semanas antes, um auxiliar na Casa Civil, sob o comando do ministro Eliseu Padilha, para esmiuçar e investigar a ficha de nomeados e servidores tanto em cargos importantes como em postos estritamente técnicos.
O critério para a inclusão dos nomes dos servidores na lista de exoneração levava em conta, entre outras coisas, as atividades dos investigados nas redes sociais. Publicações contra Michel Temer, em apoio à presidenta Dilma Rousseff, fotos com o ex-presidente Lula ou simplesmente textos críticos aoimpeachment, foram razões suficientes. A relação de nomes foi controlada pela Casa Civil e, posteriormente, compartilhada com os ministérios para que cada pasta providenciasse a demissão dos citados. 
Na última semana, após concluída a fase de observações e início da limpa, um dos responsáveis escalados para a operação recebeu seu prêmio: foi nomeado superintendente em Brasília da Autoridade Pública Olímpica (APO). Trata-se de Pablo Rezende, de apenas 31 anos. Ele foi presidente nacional da Juventude do PMDB e é ligado ao ex-governador de Goiás Iris Rezende.
Em 2012, Pablo Rezende fez campanha em Goiânia para tentar se eleger vereador e gravou propagandas políticas com Iris Rezende e dona Iris, ex-deputada federal e esposa do político. “Ele costuma dizer que é sobrinho (deles), mas não é nada. Nem vereador conseguiu se eleger”, diz um assessor do partido.
Agora, Pablo vai ganhar salário bruto de 18 mil reais para exercer cargo relacionado ao principal evento do País. Com as deduções obrigatórias, Pablo deve passar a receber mais de 13 mil reais por mês.
Depois da nomeação, o jovem peemedebista, foi convidado a acompanhar Michel Temer na inauguração da Linha 4 do Metrô do Rio de Janeiro, por causa dos Jogos Olímpicos, mas sua nomeação para o cargo não colocou um fim na operação. O pente-fino político continua sendo operado por assessores especiais de Padilha, a quem Pablo Rezende chama de líder e mestre em postagens nas redes sociais.
Os casos mais emblemáticos das demissões em massa ocorreram nos ministérios da Cultura e da Saúde, onde foram exoneradas 81 e 73 pessoas, respectivamente. Não foram os únicos ministérios atingidos. Foram exoneradas também cerca de 60 pessoas no agora chamado Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. O Ministério de Minas e Energia perdeu outros 17 funcionários.
Ainda que o discurso oficial diga que a limpa tem como alvo os cargos de livre nomeação, os números mostram o contrário. Dos 73 exonerados na Saúde, por exemplo, 57 eram servidores públicos. Apenas 16 foram nomeados sem ter carreira pública. O corte no ministério de Ricardo Barros (PP-PR) chegou, inclusive, a atingir terceirizados.
Liu Leal, de 39 anos, consultora de Residência em Saúde de um dos eixos do Programa Mais Médicos, tinha um contrato de trabalho com o Ministério da Saúde. Em julho, fora do seu horário de trabalho, participou de uma audiência no Senado cujo objetivo era discutir a prorrogação do programa e da qual participou Barros.
O encontro registrou protestos por causa de uma possível revisão no tamanho do SUS, discutida abertamente pelo governo Temer. O ministro tratou a manifestação como legítima ao ser questionado pela imprensa, mas Liu foi procurada por gestores para ter seu contrato de trabalho rescindido dois dias depois.
Goya
O tribunal hediondo na visão de Goya, sempre atual (Francisco de Goya/Reprodução)
Diz Liu: “O meu caso foi uma perseguição. Fui ao Senado representando uma organização, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Há relatos de que eles estão ligando nas secretarias estaduais para dizer que, se nos contratarem, o diálogo vai ficar difícil. Os servidores estão ficando com medo e silenciados”.
Outro caso: uma funcionária do Palácio do Planalto, procurou um dos assessores de Temer para e dizer que gostaria de continuar no seu cargo. Inevitavelmente, o assessor mostrou no próprio celular uma foto da servidora em um dos protestos contra o impeachment.
“Por conta dessa foto, eu não vou poder te ajudar.” Procurou outros órgãos e ministérios, mas ouviu de um segundo gestor que ela fora vetada pelas mesmas imagens. Concursada, ela foi devolvida ao órgão de origem e pediu para não ser identificada, com medo de represálias também no atual ambiente de trabalho.
Os relatos provocaram receio entre os servidores que trabalham em órgãos da administração pública federal. Há a expectativa de que, se o impeachment for confirmado, mais exonerações devam acontecer, incluindo técnicos de áreas importantes.
Um dos parlamentares do PMDB no Congresso disse a CartaCapital que o governo Temer tem demorado para oferecer cargos de segundo e terceiro escalão, o que criou instabilidade para aprovação das pautas do governo interino no Congresso. A Casa Civil foi procurada e não respondeu os questionamentos de CartaCapital. Pablo Rezende não foi localizado para responder sobre sua nomeação.
Para o jurista da Universidade de Brasília (UnB) José Geraldo de Sousa Junior, as exonerações baseadas em fotos nas redes sociais ou em militância fora do ambiente de trabalho são práticas de sistemas autoritários, ao violarem os direitos fundamentais. 
Esclarece: “Os precedentes existem e são todos caracterizados por conjunturas de regimes ditatoriais. É um procedimento extremamente perigoso, porque inaugura uma política de administração que regride no tocante aos direitos fundamentais, inclusive do servidor público”.
*Reportagem publicada originalmente na edição 913 de CartaCapital, com o título "A Inquisição segundo Temer". Assine CartaCapital.