À greve, para
evitar uma 'Guernica' brasileira
Saul Leblon
Há
80 anos o fascismo destruía Guernica para revogar avanços sociais e O Globo
endossava a fúria mentindo, como hoje.
Um registro curto, mas claro incluído no
especial do Valor Econômico sobre os 80 anos do bombardeio de Guernica, em 26
de abril de 1937, revela que o jornal O Globo manipulou o noticiário da crise
espanhola à época, naquela que foi a primeira operação aérea massiva da história
contra uma população civil.
A barbárie fascista dissimulada pelo
jornalismo da família Marinho – da qual não há registro de pedido desculpa até
hoje—imortalizou-se na arte de Picasso em um monumental grito de horror de sete metros de comprimento por três de
altura.
Em óleo sobre tela o pintor deu
universalidade a uma das mais torturantes sensações do martírio humano.
Aquela que despenca sobre a existência
de homens e mulheres indefesos abalroados pelas grandes massas de forças que
dominam a história de uma época.
Expressas em artefatos bélicos ou
artefatos econômicos essas colisões implodem as referências do cotidiano num
vácuo de destruição, perda, perplexidade, prostração e descrença.
Durante dias sucessivos ao massacre de
Guernica o Globo flanou nesse vácuo e o alimentou.
Com a sua especialidade.
As manchetes do jornal sobre a
responsabilidade pela tragédia, que passaria à história como um preâmbulo do
que ocorreria depois em Auschwitz, primeiro levantariam dúvidas sobre a
autoria.
Depois se tornariam categóricas.
Todo o esforço do martelete conservador
destinava-se a convencer a opinião pública brasileira de que a responsabilidade
pelas 50 toneladas de explosivos despejados contra a comunidade basca pela
Legião Condor, da força aérea nazista -aliada
do golpismo espanhol, seria dos ‘vermelhos’.
Sim, os ‘vermelhos’, dizia o Globo em
manchete.
Os ‘lulopetistas’ da época.
Assim denominados os socialistas, os
anarquistas, os comunistas, os trotsquistas, os democratas, os cristãos progressistas...
‘Vermelhos’.
Culpados, segundo o jornal, pelo
experimento nazista que testou em Guernica todo o arsenal destrutivo
desenvolvido pela máquina de guerra aérea de Hitler, já de olho em alvos mais
abrangentes.
‘Os vermelhos’, insistiria a ardilosa
máquina de camuflagem de guerra.
Não a sublevação da extrema direita
contra a República dos Trabalhadores, que vencera o pleito legislativo de 1936
- a exemplo do que já ocorrera em 1931, mas cujo repto não seria reconhecido
pela elite do dinheiro e do poder.
Essa que partiu para o cerco e o golpe
contra o mandato das urnas até desembocar no divisor de águas de Guernica.
Lembra algo?
Sim.
E o escárnio jornalístico, ainda que não
apenas ele, também.
O conjunto enlaça a fúria da cavalgada
fascistas do mundo de 1937 às horas decisivas de 2017 vividas no Brasil.
Infelizmente neste caso a seta do tempo
não se quebrou.
O martelete da propaganda agigantou-se.
Hoje opera uma máquina de jornalismo de
guerra de dimensões inimagináveis há 80 anos.
O alvo agora são 200 milhões de ‘bascos’
submetidos a uma lavagem diuturna, para convencê-los de que a sede não deve ser
saciada com água.
Prescreve-se ao contrário vinte anos de
privação.
O austericídio e o politicídio - destinado
este a desintegrar o Partido dos Trabalhadores, são ogivas siamesas do mesmo
bombardeio.
Compõem uma fogueira destinada a
inocular prostração, desmoralização e descrédito na democracia e na sua
capacidade de comandar o desenvolvimento, de modo a reduzir a sociedade a uma
‘Guernica’ de joelhos diante do diktat dos mercados.
Sobretudo, porém, trata-se de camuflar a
responsabilidade conservadora pela enorme bola de fogo de desmonte e destruição
que envolve toda a estrutura produtiva brasileira nesse momento.
O rescaldo de um ano sob o maçarico
golpista compõe uma fornalha de recursos e esperança só mitigada por
quantidades industriais de cinismo midiático.
O Brasil é hoje um vasto cemitério de
obras paradas (R$ 55 bilhões), fábricas fechadas, ferrugem encastoada em
projetos estratégicos e um estuário de desemprego fluvial feito de 13 milhões
de sobras humanas.
Na versão espanhola, em 1937, foram
quatro horas de ataques aéreos sucessivos, com intervalos aleatórios para a
troca do repertório que o engenho nazista queria testar contra alvos vivos e
adensados.
Os seis mil habitantes da cidadela basca
que na versão do Globo teriam se autoimolados.
Guernica estava no meio do caminho da
sublevação do general de Exército Francisco Franco.
Devastá-la para atingir Bilbao
tornara-se crucial para compensar o fracasso da tentativa anterior de tomar o
poder central republicano em Madri.
A operação genocida irmanou duas
conveniências.
Ambas impulsionadas pelo ódio à
democracia social das frentes amplas, vitoriosas em duas das três eleições
legislativas realizadas na Espanha depois que a crise obrigou a monarquia a
ceder espaço à República e ao voto popular.
O republicanismo progressista espanhol
assustava os donos de um mundo dividido entre a depressão de 29 e o
desconhecido.
A elite, o alto clero e o Exército
espanhol não aceitaram a continuidade da experiência republicana autorizada
pelas urnas de 1936 por diferença mínima de votos contra a Falange direitista.
Pronunciamentos golpistas sucederam-se
em diferentes pontos do país na forma de um jogral conhecido.
Conflitos irromperiam em seguida em
escalada de violência, com anarquistas e socialistas já enfrentando o levante
fascista no campo das armas.
Não, não é Caracas. É da experiência
republicana espanhola que se fala aqui.
Guernica abrigara ‘vermelhos’ foragidos
de um desses embates com tropas sublevadas.
A tocha de fogo na qual se transformou
80% do seu perímetro urbano pavimentaria o caminho da guerra civil que iria sangrar
a Espanha durante três anos.
Era um preâmbulo do que viria depois em
todo o mundo.
As vísceras do século XX estavam
explicitadas ali opondo dois projetos de futuro.
O jornal O Globo se pôs a serviço de um
deles, exercitando aquilo que sabe fazer melhor: manipular o discernimento da
sociedade diante das escolhas decisivas da história.
A demonização dos ‘vermelhos’ é o
esperanto dessa operação.
De jornalismo de guerra.
Em 1937, a mensagem escrita com ferro,
fogo e sangue, alertava para o embate cruento entre o anseio popular por
democracia social e a resposta da interdição emitida pelos detentores da
riqueza e da alma de um mundo que não cabia mais nos limites ditados por seus
donos.
O primeiro ensaio de um governo
progressista espanhol para ampliar esses limites havia durado pouco (1931 a
1933).
Mas o suficiente para assustar as elites
pelo que falava ao corpo e ao imaginário das grandes massas populares.
Seu apelo reformista e anticlerical – a
igreja espanhola era uma extensão do poder do dinheiro - descortinara
possibilidades de outra sociedade mesmo sem efetivá-la.
Havia forte demanda por ela no ar.
Os acenos republicanos na Espanha
traziam um pedaço da oferta.
Instituiu-se – insista-se, na Espanha em
1931- o casamento civil, o divórcio e o voto feminino.
Os aluguéis foram congelados. Os
salários reajustados.
A educação pública tornou-se o espaço
laico destinado a propiciar às crianças um mesmo ponto de partida igual para
todos.
Os latifúndios tiveram sua extensão limitada.
As terras da Igreja Católica foram
circunscritas.
Iniciou-se uma reforma agrária - cuja
timidez, porém, desencadearia conflitos internos que enfraqueceriam a frente
progressista e contribuiriam para sua derrota nas eleições seguintes, em 1933.
Mas não só.
A lufada de ar fresco atingiu em cheio o
nó górdio que rege o poder na sociedade: as relações de trabalho.
Aquilo que Vargas faria no Brasil 12
anos depois, em 1943 – e que o golpe agora se dedica a desmontar em 2017 - a República espanhola anunciaria
pioneiramente em 1931.
A República dos Trabalhadores, assim
autodenominada, decretou uma espécie de CLT que estendia às famílias
assalariadas a jornada de oito horas de trabalho, férias remuneradas, direito à
aposentadoria, sindicalização, licença maternidade etc.
A profusão das mudanças congestionadas
na sabotagem conservadora, ademais das divergências no governo, desgastaria o
poder republicano.
A derrota eleitoral para um diretório de
forças conservadoras (CEDA) em 1933 jogaria a população espanhola em um
liquidificador de regressão política e social de virulência equivalente à
vivida hoje no Brasil.
A restauração agiu corretamente.
Como agem os batalhões com prazo de
validade para operar o serviço sujo.
A mesma sofreguidão desavergonhada, a
mesma sensação de um exército de ocupação a saquear direitos e patrimônio - como
as escórias parlamentares em assembleia permanente contra o povo.
O efeito pedagógico do desmonte acendeu
o discernimento popular.
Em 1936, o conservadorismo seria derrotado nas
urnas por uma frente progressista maior que a de 1931.
Deu-se então a escalada golpista.
O
que a elite imaginava ser uma blitzkrieg, dada a supremacia de meios e recursos
- do judiciário ao exército, passando pelo dinheiro, a igreja e a imprensa - bateu
de frente com a consciência popular agigantada pela curta, mas intensa,
experiência republicana.
Franco não venceria, como venceu em
1939, não fosse o apoio decidido de Hitler e Mussolini ao golpe na forma de
aviões, bombas e tropas.
Além do ‘experimento’ em Guernica,
Berlim enviou 19 mil soldados para apoiar a sublevação, enquanto governos
democratas da Inglaterra e França se abstiveram de uma solidariedade efetiva à
legalidade.
A inferioridade republicana só não foi
maior graças à mobilização das brigadas internacionais.
Elas trariam dezenas de milhares de
voluntários de todo o mundo para a trincheira libertária e socialista, a
maioria, porém inexperiente a compor uma resistência militarmente dispersa e politicamente fragmentada.
O conflito civil especialmente doloroso
abriria os olhos do mundo para a encruzilhada da história em meio à desordem
capitalista para a qual os mercados só tinham – como hoje - um remédio a
oferecer.
Esse que o golpe despeja agora no Brasil
na forma de um bombardeio de artefatos de arrocho, desemprego, desmonte e
alienação econômica, que ameaça desintegrar o futuro nacional em uma imensa ‘Guernica’
de fogo.
A destruição do povoado basco explicitou
o teor explosivo desse acerto de contas entre as possibilidades da democracia
social e do planejamento público, de um lado, e o fascismo de outro.
Muitos dos que ainda teimavam em não
enxergar a gravidade da escalada viram nas
labaredas de Guernica o potencial destrutivo que a desordem simbolizada
na quebra de 1929, nos EUA, encerrava.
A incapacidade dos mercados para superar
impasses geopolíticos e financeiros que se arrastavam desde a Primeira Guerra
tornara-se uma ameaça à humanidade.
A desordem clamava por uma nova ordem.
As demandas por pão, terra, teto,
trabalho, dignidade e poder popular ecoavam sua pertinência em outro projeto de
futuro acenado pela arrebatadora vitória socialista na Revolução de 1917 na
União Soviética.
As escolhas e suas consequências
ganhavam transparência nas esquinas do mundo.
O poder de esclarecimento dos fatos se
infiltrava no imaginário das nações.
À revelia do dinheiro e dos seus
veículos de propaganda jornalística.
A democracia se tornava perigosa para as
classes proprietárias.
Foi nesse divisor que a fábrica de
manipulação do Globo reagiu à altura no Brasil.
Como Franco fez na Espanha.
Ambos atribuíram o crime à vítima:
Guernica fora uma perversidade do sionismo comunista, acusava o generalíssimo.
A resposta definitiva de Picasso não se
limitou à pintura.
Indagado por um oficial nazista em Paris
se fora o autor de ‘Guernica’, fuzilou: ‘Não, foram vocês’.
A roda-gigante da manipulação, das
interdições e sacrifícios atingira um ponto de saturação em que o efeito
adicional de cada linha a mais de cinismo é o descrédito.
Estamos falando de 1937 na Espanha...
O que avultava era o mesmo anseio hoje
órfão de respostas no Brasil.
Por novos espaços de futuro; pelo direito de
escolher e experimentar novas formas de se viver – indissociáveis da renovação
em modos sustentáveis de se produzir; por uma repactuação generosa capaz de
resgatar a sociedade da areia movediça da polarização imobilizante, da qual não
se escapa facilmente depois da imersão...
A guerra civil espanhola durou três
anos; o poder franquista estendeu-se por quase quarenta anos.
Pegou carona na escalada nazista e
sobreviveu a ela, como um tampão imprescindível à tarefa de asfixiar a
respiração libertária que só agora com o Podemos
volta a injetar ar fresco ao pulmão político espanhol.
Derrotar uma experiência social não
esgotada por meio da repressão, da judicialização, da mentira, da guerra e das
bombas não significa vencê-la, mas interditá-la.
A diferença ajuda a entender a longeva
manutenção da salmoura repressiva na sociedade espanhola, da qual só se
libertaria quase quatro décadas depois da guerra civil, a partir da morte de
Franco, em 1975.
A estreiteza da opção fascista esclarece
boa parte do longo eclipse armado.
Mas não esclarece tudo.
As divisões passionais no campo
republicano entre socialistas, democratas, anarquistas, comunistas e
trotsquistas – que espelhavam divergências internacionais naquela bifurcação
entre duas guerras, uma Revolução Socialista e uma crise sistêmica do
capitalismo - dificultariam sobremaneira a construção das linhas de passagem
imprescindíveis entre o presente de uma sociedade cindida e o futuro promissor
acenado pelo projeto progressista.
Esse emparedamento do conflito empurrou
a solução para o campo das armas, onde a direita tinha maior capacidade de
arregimentação bélica, como mostrou a tragédia de Guernica.
Erguer pontes para trazer um pedaço da
classe média e do PIB para fora do golpe é o desafio correlato que as forças
progressistas enfrentam hoje no Brasil.
Não é um desafio a ser enfrentado no
veludo da retórica.
Trata-se de uma capacitação de força e
consentimento a ser sedimentada nas ruas.
Mas em torno de uma proposta de repactuação do
país e do seu desenvolvimento.
A direita - o ódio elitista, o
preconceito belicista contra as demandas populares - jamais sentará à mesa de
negociação se não for conduzida a isso pela mudança na correlação de forças e
no imaginário da sociedade.
Seu projeto é a longa salmoura
franquista expressa no Brasil na suspensão da Carta de 1988 por vinte anos.
Colocada diante desse esbulho, segundo o
qual os desafios do desenvolvimento se tornam insolúveis na vigência da justiça
social, a sociedade se reduz a um objeto inerte, um estorvo do mercado.
O
regime autoritário se impõe por dedução.
Para desarmar essa bola de fogo o campo
progressista não pode ceder no essencial.
A pedra angular da travessia consiste em
saltar o deserto conservador com o impulso da ousadia e da criatividade que
fizeram a bandeira republicana espanhola, de fato, ser vista como a porta para
um novo futuro.
Um futuro no qual caiba um modo de vida
urbano renovado, com arquitetura singular para a solução dos problemas
habitacionais e de mobilidade, mas também de integração e segurança.
Um futuro no qual o repto de soberania
no pré-sal configure uma ‘opção norueguesa’ de uso sagrado dos recursos
num pacto de futuro sustentável e justo
para a infância brasileira de hoje e de amanhã.
Um futuro no qual salvar os rios urbanos
e preservar os demais, por exemplo, seja uma aposta coletiva na regeneração do
convívio humano com a natureza, impulsionando os requisitos intrínsecos a essa
interação.
Um futuro no qual a educação de
qualidade para todos seja a nova catedral da cidadania.
Um futuro no qual a prática da
democracia na solução das divergências – inevitáveis - se intensifique em
sintonia com as oportunidades de comunicação e escuta forte inscritas na
tecnologia digital.
Um futuro no qual o eixo principal de
consenso seja fazer do Brasil uma referência mundial de inovação em políticas
públicas, na cooperação para o desenvolvimento convergente de todos os povos.
É essa ocupação desassombrada da rua
pela ousadia, e do imaginário pela possibilidade de outro futuro, que poderá
abortar a longa noite conservadora determinada a encapsular a nação em uma Guernica
de recessão e desencanto - com o país, com a política e com a vida.
Há uma pedra no meio do caminho.
A repactuação de um futuro amplo entre
visões distintas do presente requer a largueza generosa de princípios e
horizontes.
Esse sempre foi um apanágio dos
libertários, dos socialistas, dos comunistas, dos cristãos progressistas, dos
democratas e liberais sinceros.
Da república de todos, enfim.
Acolhedora e desassombrada, assim deve
ser a ocupação das ruas e da pauta política para, de fato, alcançar também os
corações e mentes fatigados de toda a gente brasileira.
Parar hoje em greve geral é o repto da Guernica
brasileira para mover a engrenagem virtuosa de uma verdadeira república de
iguais.
Arriba.