domingo, 27 de setembro de 2020

Stiglitz: hora de mudar as regras da Economia

 

Stiglitz: hora de mudar as regras da Economia

Ganhador do Nobel adverte: responder à pandemia com mais neoliberalismo, como no Brasil, será trágico. Novo cenário exige ousar o contrário: direitos sociais, controle dos bancos e corporações, emissão de dinheiro para gerar trabalho

Por Joseph Stiglitz, no Financial Express | Tradução: Simone Paz |Imagem: Satoshi Kambayashi

O Covid-19 não é um vírus que dê oportunidades iguais: ele persegue as pessoas de saúde debilitada e aquelas cuja vida diária as expõe a um maior contato com outros. Isso significa que ele persegue desproporcionalmente os pobres, especialmente aqueles de países pobres; ou de economias avançadas como os Estados Unidos, mas onde o acesso à saúde não é garantido. Uma das razões pelas quais os EUA foram afetados pelo alto número de casos e de mortes se deve ao fato de terem um dos piores padrões de saúde na média entre as principais economias desenvolvidas — exemplificado pela baixa expectativa de vida (menor agora do que era até sete anos atrás) e os mais altos níveis de disparidades de saúde

No mundo inteiro, há diferenças marcantes na forma como a pandemia foi gerida, tanto em termos de sucesso dos países na preservação da saúde dos seus cidadãos e da economia, como na magnitude das desigualdades apresentadas. Há muitas razões para essas diferenças: o estado da Saúde pré-pandemia e suas desigualdades; a preparação de cada país e a resiliência de sua economia; a qualidade da resposta pública, incluindo a segurança na ciência e nos especialistas; confiança dos cidadãos na orientação do governo; e a forma como os cidadãos combinaram suas “liberdades” individuais com respeito aos outros, reconhecendo que suas ações gerariam efeitos externos. Os pesquisadores passarão anos analisando a força de vários efeitos.

Precisamos reescrever as regras da Economia de forma mais abrangente: Já existem dois exemplos de países que ilustram as prováveis lições que surgirão. Se os Estados Unidos representam um extremo, talvez a Nova Zelândia represente o outro. É um país em que um governo competente confia na ciência e nos pesquisadores para tomar decisões; um país onde existe um alto nível de solidariedade social — os cidadãos reconhecem que seu comportamento afeta os outros — e de confiança, incluindo a confiança no governo. A Nova Zelândia conseguiu controlar a doença e está trabalhando para redistribuir alguns dos recursos subutilizados para construir o tipo de economia que deve marcar o mundo pós-pandemia: uma economia mais verde e com maior base no conhecimento, com ainda mais igualdade, confiança e solidariedade. Existe uma dinâmica natural em ação. Esses atributos positivos podem ser construídos uns sobre os outros. Da mesma forma, podem existir atributos adversos e destrutivos que sobrecarregam a sociedade, levando a uma menor inclusão e maior polarização

Infelizmente, por pior que fosse a desigualdade antes da pandemia, e por mais que ela tenha exposto com força as desigualdades de nossa sociedade, o mundo pós-pandêmico pode vir a experimentar desigualdades ainda maiores — a menos que os governos façam algo. A razão é simples: a covid-19 não irá embora rapidamente. E o medo de outra pandemia irá persistir. Agora, há mais chances de que tanto o setor privado quanto o público assumam os riscos a sério. E isso significa que certas atividades, certos bens e serviços e certos processos de produção serão vistos como mais arriscados e caros. Embora os robôs também sejam atacados por vírus, eles são mais facilmente gerenciados. Portanto, é provável que os robôs, sempre que possível, pelo menos marginalmente, substituam os humanos.

Zoom substituirá, em parte, as viagens aéreas. A pandemia amplia a ameaça, para os trabalhadores, da automação de serviços pessoais pouco qualificados, que a literatura tinha visto como menos afetados, até agora. Isso ocorre, por exemplo, na educação e na saúde. Tudo isso significa que a demanda por certos tipos de mão de obra diminuirá. É quase certo que essa mudança aumentará as tendências de aceleração da desigualdade, de certa forma

Nova Economia, novas regras: A resposta fácil consiste em acelerar a qualificação e o treinamento para dar conta de acompanhar as mudanças do mercado de trabalho. Mas há boas razões para acreditar que só essas ações não serão suficientes. Será necessário um programa abrangente que reduza a desigualdade de renda. O programa precisa primeiro reconhecer que o modelo de equilíbrio competitivo (por meio do qual os produtores maximizam o lucro, os consumidores maximizam a utilidade e os preços são determinados em mercados competitivos que igualam a demanda e a oferta), que dominou o pensamento dos economistas por mais de um século, não oferece uma boa imagem da economia hoje, especialmente quando se trata de compreender o crescimento da desigualdade, ou mesmo o crescimento impulsionado pela inovação. Temos uma economia repleta de poder de mercado e exploração. As regras do jogo são importantes. O enfraquecimento das restrições ao poder corporativo, a diminuição do poder de barganha dos trabalhadores e a erosão das regras que limitam a exploração de consumidores, tomadores de empréstimos, estudantes e trabalhadores, agiram juntos para criar uma economia de pior desempenho, marcada pela maior busca de renta e maior desigualdade.

Precisamos de uma grande reformulação das regras da economia. Por exemplo, precisamos de políticas monetárias que não se concentrem só na inflação, e sim em garantir o pleno emprego de todos os grupos; leis de falências mais equilibradas, em substituição às que se tornaram mais favoráveis ao credor e proporcionaram muito pouca responsabilidade para os banqueiros que se envolveram em empréstimos predatórios; e leis de administração corporativa que reconheçam a importância de todas as partes interessadas, não apenas dos acionistas. As regras que governam a globalização devem ir além de apenas servir aos interesses corporativos; os trabalhadores e o meio ambiente devem ser protegidos. A legislação trabalhista tem de fazer um trabalho melhor para proteger os trabalhadores e fornecer mais espaço para a ação coletiva.

Embora a pandemia tenha revelado os enormes abismos entre os países do mundo, é provável que a mesma pandemia também aumente as disparidades.

Mas tudo isso não irá gerar a igualdade e a solidariedade de que precisamos, pelo menos não no curto prazo. Teremos de melhorar não apenas a distribuição de renda pelo mercado, mas também a maneira como a redistribuímos. Perversamente, alguns dos países com maior grau de desigualdade de renda de mercado, como os EUA, na verdade têm sistemas fiscais regressivos em que os mais abastados pagam uma parcela menor de sua renda em impostos do que os trabalhadores que estão mais abaixo na escala.

Na última década, o Fundo Monetário Internacional (FMI) reconheceu a importância da igualdade na promoção do bom desempenho econômico (incluindo crescimento e estabilidade). Os mercados por si próprios não prestam atenção aos impactos mais amplos que surgem de decisões descentralizadas, que, por sua vez, levam a empréstimos excessivos em moedas estrangeiras ou à desigualdade exacerbada. Durante o reinado do neoliberalismo, nenhuma atenção foi dada a como certas políticas (como a liberalização do mercado financeiro e das transferências internacionais de capital) contribuíram para uma maior volatilidade e desigualdade; nem a como outras mudanças de políticas — como as “reformas” previdenciárias, por exemplo — geraram maior insegurança individual; e maior volatilidade macroeconômica, ao enfraquecer os estabilizadores automáticos da economia.

As regras atuais moldam muitos aspectos das respostas de cada economia à Covid-19. Em alguns países, incentivaram a miopia e as desigualdades, duas características de sociedades que não administraram bem a Covid-19. Esses países não estavam preparados para a pandemia de modo adequado; eles construíram cadeias de abastecimento globais que não eram suficientemente resilientes. Quando a Covid-19 chegou, por exemplo, as empresas norte-americanas não conseguiram nem fornecer coisas simples como máscaras e luvas, muito menos produtos mais sofisticados, como testes e ventiladores.

Dimensões internacionais: A Covid-19 expôs e exacerbou as desigualdades entre os países — e, também, dentro dos países. As economias menos desenvolvidas tinham piores condições de saúde, sistemas menos preparados para lidar com a pandemia e pessoas vivendo em condições que as tornavam mais vulneráveis ao contágio; além disso, elas não contavam com os mesmos recursos das economias avançadas para responder às conseqüências econômicas.

A pandemia não será dominada enquanto não for controlada em todos os lugares, e a recessão econômica não será domada até que haja uma recuperação global robusta. É por isso que é uma questão de interesse próprio — assim como uma preocupação humanitária — que as economias desenvolvidas forneçam a assistência que as economias em desenvolvimento e os mercados emergentes precisam. Sem ela, a pandemia global persistirá por mais tempo do que de outra forma, as desigualdades globais aumentarão e haverá divergência global.

Embora o Grupo dos Vinte (G-20) tenha anunciado que usaria todos os instrumentos disponíveis para prestar esse tipo de ajuda, até agora ela tem sido insuficiente. Em particular, um instrumento usado em 2009 e facilmente disponível não foi empregado: uma emissão de 500 bilhões de dólares em Direitos Especiais de Saque (DES). Até o momento, não foi possível superar a falta de vontade dos Estados Unidos ou da Índia. O fornecimento dos DES seria de enorme ajuda para as economias em desenvolvimento e mercados emergentes — com baixo ou nenhum custo para os contribuintes das economias desenvolvidas. Seria ainda melhor se essas economias contribuíssem com seus DES para um fundo fiduciário a ser usado pelas economias em desenvolvimento para atender às exigências da pandemia.

Da mesma forma, as regras do jogo afetam não apenas o desempenho econômico e as desigualdades dentro dos países, mas também entre os países, e nessa arena as regras e normas que regem a globalização são centrais. Alguns países parecem comprometidos com o “nacionalismo da vacina”. Outros, como a Costa Rica, estão fazendo o que podem para garantir que todo conhecimento relevante para abordar a Covid-19 seja usado no mundo inteiro, de maneira análoga a como é atualizada, anualmente, a vacina contra a gripe.

A pandemia provavelmente causará uma onda de crises de dívida. Baixas taxas de juros — combinadas com os mercados financeiros das economias avançadas, que impulsionam empréstimos perdulários em economias emergentes e em desenvolvimento — deixaram vários países com mais dívidas do que podiam pagar, dada a magnitude da desaceleração induzida pela pandemia. Os credores internacionais, especialmente os privados, já devem saber que não é possível tirar água de pedras. Haverá uma reestruturação da dívida. a única questão é se será de forma ordenada ou não.

Enquanto revela os abismos entre os países do mundo, a própria pandemia também aumenta as disparidades e deixa cicatrizes duradouras, a menos que haja uma maior demonstração de solidariedade global e nacional. Instituições internacionais, como o FMI, trouxeram liderança global. Em alguns países também houve lideranças que lhes permitiram enfrentar a pandemia e suas consequências econômicas — incluindo as desigualdades que de outra forma teriam surgido. Mas, por melhores que tenham sido os sucessos em alguns lugares, são dramáticos os fracassos em outros. E os governos que falharam internamente dificultaram a resposta global necessária. À medida em que as evidências dos resultados díspares se tornam claras, esperamos que haja uma mudança de curso. A pandemia provavelmente continuará conosco por um bom tempo — e suas consequências econômicas por muito mais. Ainda há tempo para mudar o curso.

Celso Furtado

 

Celso Furtado

Imagem: Felipe Futada

Por RICARDO BIELSCHOWSKY*

A atualidade da obra do economista no centenário de seu nascimento

Vida e obra

Celso Furtado encarnou, talvez melhor do que ninguém, o desejo do desenvolvimento econômico e social da América Latina. Com audácia e criatividade, simbolizou por mais de meio século os esforços de várias gerações para pensar o desenvolvimento de forma autônoma, desde a perspectiva do “Sul”, ou seja, a dos países em desenvolvimento, da América Latina e, em particular, do Brasil. A biografia de Celso Furtado descreve a vida de um homem de ação e pensamento a serviço do desenvolvimento, em todas as dimensões da palavra. Com trinta livros publicados e mais 60 traduções em uma dúzia de idiomas, exerceu, no Brasil e no exterior, uma grande influência na teoria e na prática do desenvolvimento.

Celso Furtado nasceu em 26 de julho de 1920, em Pombal, no coração do sertão semiárido da Paraíba e do nordeste. Essa região de seca e pobreza extrema gerou um tipo de cultura popular e de ser humano que Furtado expressa claramente em sua autodefinição: “Eu sou como o cacto”. A expressão encerra os elementos que caracterizam a vida e obra de Furtado: austeridade e estoicismo, caráter e valentia, síntese condensada e densa, profundidade sem falso brilho. A essas características originais de sua terra natal se somaria a influência de sua vida no exterior.

A inícios de 1945, logo após formar-se em direito, embarca para a Itália, para lutar na Segunda Guerra mundial. Em 1947 se instala em Paris, onde em 1948 obtém um doutorado em economia na Sorbonne com uma tese sobre a economia colonial brasileira.

Em 1949 se une à equipe da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), que acabava de ser criada. O Secretario Executivo, Raúl Prebisch, nomeia-o diretor da Divisão de Desenvolvimento.

Nesse cargo, contribui em forma decisiva à formulação do enfoque estruturalista da realidade socioeconômica da América Latina, que analisa a especificidade de suas estruturas produtivas, sociais e institucionais e os problemas que apresentam para o processo de desenvolvimento.

O enfoque estruturalista recebeu várias contribuições de Furtado, entre as quais destacam-se: a perspectiva histórica, consagrada em seus livros sobre a formação econômica brasileira e latino-americana; a análise da tendência ao subemprego; em forma muito associada, a análise das relações entre crescimento e distribuição da renda no contexto latino-americano; e, por último, a incorporação de fatores socioculturais e ambientais à análise económica.

Em 1954, coordena um estudo sobre a economia brasileira, que dá suporte às técnicas de planejamento e que ajudaria na elaboração do Plano de Metas do presidente Juscelino Kubitschek, referência na história da industrialização brasileira.

Convidado por Nicholas Kaldor, passa os anos de 1957 e 1958 em Cambridge, Inglaterra, onde escreve Formação econômica do Brasil (Furtado, 1959a), clássico da historia econômica traduzida a nove idiomas. Essa obra capital do enfoque histórico-estrutural exerceu uma influência inestimável na formação de uma consciência nacional sobre a identidade histórica brasileira e, em consequência, sobre a necessidade de mobilização em favor de transformações profundas nos planos econômico, político e social.

Durante esses anos, escreveu também os ensaios que depois seriam reunidos em suas duas obras teórico-históricas mais importantes, a saber: Desenvolvimento e subdesenvolvimento e Teoria e política do desenvolvimento econômico (Furtado, 1961 e 1967). Nelas expressa conceitos fundamentais, entre eles o de que o subdesenvolvimento é um “processo histórico autônomo”, e que não pode considerar-se simplesmente como uma etapa do desenvolvimento econômico por que passam todos os países. E o de que, no contexto da periferia latino-americana, o crescimento tende a preservar o subemprego e a heterogeneidade tecnológica, a concentração da renda e um grau de injustiça social cada vez maior.

A mensagem era profética: sem uma profunda mobilização social e política, corre-se o risco de perpetuar o subdesenvolvimento.

A fins dos anos 1950, quando Furtado regressa ao Brasil depois de quase dez anos na Cepal, o nordeste sofria uma das secas mais dramáticas de sua história. O presidente Kubitschek lhe pede que prepare um plano para fazer frente à tragédia nordestina (Furtado, 1959b). Esse plano dará origem à Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), agência federal criada para promover o desenvolvimento na região mais pobre do Brasil. Os seis anos em que Furtado dirigiu a Sudene foram considerados o período do maior esforço institucional de todos os tempos em favor do desenvolvimento do Nordeste, buscando a reversão do atraso secular em que vivia a região.

Graças a esse desempenho se transforma no primeiro titular do Ministério do Planejamento e, a pedido do presidente João Goulart, em 1962 elabora o Plano Trienal de Desenvolvimento.

A intensa atividade política e executiva à frente da Sudene e do Ministério do Planejamento não diminuiu sua vitalidade intelectual: são desse período os livros A pré-revolução brasileira e Dialética do desenvolvimento (Furtado, 1962 e 1964).

O restante da década de 1960 é de exílio e fecundidade intelectual. O governo que surgiu do golpe militar de 1964 anula os direitos políticos de Celso Furtado. A vida no exílio se inicia na Universidade de Yale, e logo após Furtado se estabelece na França, onde por vinte anos será professor de Desenvolvimento Econômico da Universidade de Paris I-Sorbonne. Foi também professor em outras universidades, entre elas Columbia e Cambridge, onde foi o primeiro titular da cátedra Simón Bolívar. Integrou o Conselho Acadêmico da Universidade das Nações Unidas e foi membro do Comité de Planejamento do Desenvolvimento da ECOSOC/ONU.

A sequência de oito livros publicados — todos de ampla circulação — reflete a impressionante fecundidade intelectual de Furtado nesse período. Um dos elementos analíticos comuns a várias dessas obras é o conceito de que a industrialização na América Latina não conseguia eliminar a heterogeneidade estrutural e a dependência. Corresponde também a essa época sua análise pioneira sobre os vínculos entre o processo de crescimento e o da distribuição de renda, na qual Furtado argumenta que as características da oferta e da demanda nos países latino-americanos conduzem a processos que tendem a concentrar a renda e a confirmar a heterogeneidade social.

O conjunto de obras do período inspirou toda uma tradição de análise e reflexões na América Latina e no Brasil sobre a necessidade de transformar os estilos ou modelos de desenvolvimento econômico, de grande importância intelectual e política em toda a região.

Nos anos 1980 Celso furtado regressa ao Brasil. A crise da “década perdida” desses anos na América Latina levou-o a uma firme oposição ao tipo de ajuste exigido pelos credores internacionais, postura que articulou em três livros (Furtado, 1981, 1982 e 1983). Neles, insiste que a forma correta de realizar ajustes é pela via do desenvolvimento das forças produtivas, do progresso técnico, do investimento e do crescimento.

Em um desses livros, em 1982, o autor formula perguntas que lamentavelmente continuam vigentes tanto na América Latina em geral como no Brasil em particular.

Devemos aceitar a internacionalização cada vez maior dos circuitos monetários e financeiros, com a consequente perda da autonomia das decisões, numa fase em que o protecionismo dos países centrais se reafirma? Devemos renunciar a uma política de desenvolvimento? Que consequências sociais devemos esperar de uma prolongada redução na criação do emprego?

(Furtado, 1982, p. 64)

Ao longo dessa década, Furtado também se dedicou a escrever sua biografia, uma saborosa trilogia em que, a começar pelo poder de fixação e evocação dos títulos, tem seu lado poético de memórias sempre unido à elegante concisão da escrita e à densidade do pensamento rigoroso; A fantasia organizada, A fantasia desfeita, e Os ares do mundo (Furtado, 2014). Estas memórias são paralelas a seus estudos sobre a dimensão cultural do subdesenvolvimento, que originaram os livros Criatividade e dependência e Cultura e desenvolvimento em época de crise (Furtado, 1978 e 1984).

Reinserindo-se na vida política do país, que então retornava à democracia, Furtado foi embaixador do Brasil na Comunidade Econômica Europeia e, em 1986, ministro da Cultura do governo Sarney.

Nos anos 1990 e 2000 verifica-se amplo reconhecimento do aporte de Furtado no exterior. Integrou a South Commission e foi membro da Comissão Mundial para a Cultura e o Desenvolvimento, da Unesco. Em 1996, a Academia de Ciências do Terceiro Mundo cria o Prêmio Internacional Celso Furtado, para o melhor trabalho acadêmico no campo da economia política nos países não desenvolvidos.

Por ocasião de seus 80 anos, em 2000, a Academia Brasileira de Letras, da qual era membro, organizou a exposição Celso Furtado — Vocação Brasil, que também foi exibida na sede da Cepal, em Santiago.

O texto acima transcrito emocionou a todos que estavam presentes na cerimônia da UNCTAD em 2004. Celso Furtado faleceu naquele mesmo ano. Um maravilhoso trabalho de divulgação de sua obra vem sendo feito por sua viúva, a jornalista Rosa Freyre d’Aguiar. Ela emprega sua escrita refinada, sua erudição e fidelidade às ideias do mestre na organização e divulgação de suas obras. Recentemente, organizou e publicou um precioso livro de diários de Celso Furtado (2019) e acaba de organizar outro sobre suas correspondências, que está no prelo, e que também promete ser um belo livro. É uma beleza essa “parceria intelectual” entre a Rosa Freyre d’Aguiar e Celso Furtado.

Contribuições ao estruturalismo e sua atualidade

A liderança intelectual exercida pelo pensamento econômico de Furtado no campo do desenvolvimentismo progressista e nacionalista no Brasil deve-se à riqueza e abrangência da teorização estruturalista que formulava para entender a realidade brasileira.

Ele se descrevia como um militante intelectual a serviço da transformação política: “Não fui outra coisa na vida que um intelectual, mas sempre consciente de que os maiores problemas da sociedade exigem um compromisso com a ação (…)” (depoimento em Gaudêncio e Formiga, 1995, p. 39).

De fato, com o estruturalismo, transmitiu como ninguém o entendimento sobre a natureza do subdesenvolvimento brasileiro e o imenso desafio contido na realidade brasileira para um projeto de ação transformadora da sociedade.

As contribuições de Furtado à teoria estruturalista serão descritas na presente seção. Antes de fazê-lo, é necessário um breve registro dos elementos centrais à argumentação estruturalista cepalina.

Como descrito acima, Furtado chegou na Cepal em 1949, depois de ter defendido uma tese na Sorbonne sobre história colonial brasileira. Trabalhou naqueles anos inaugurais da agencia da ONU com Raúl Prebisch, o grande economista argentino fundador do pensamento estruturalista latino-americano. Desse encontro surgiu o método histórico estrutural, que Furtado usou em toda sua vida. É um método que faz a interação entre o enfoque “histórico-indutivo”, e o marco teórico estruturalista (“dedutivo”): a análise das estruturas subdesenvolvidas aparece como referência teórica genérica para o exame das tendências históricas, dando lugar a uma análise que toma em conta os comportamentos dos agentes sociais e a trajetória das instituições

O que é a teoria estruturalista difundida e enriquecida por Furtado, por que foi tão influente e por que é tão atual? Por que o estruturalismo e consequentemente toda a obra de Furtado são tão atuais?

A pergunta que cabe fazer antes de entrar nas contribuições do mestre é: O que é a teoria estruturalista difundida e enriquecida por Furtado, por que foi tão influente e por que é tão atual? Por que o estruturalismo e consequentemente toda a obra de Furtado são tão atuais? A resposta é simples e triste: porque apesar de alguns avanços socioeconômicos, o subdesenvolvimento na América Latina e no Brasil ainda não se desfez.

A teoria estruturalista clássica analisou o subdesenvolvimento latino-americano “periférico”, por contraste às economias “centrais”, em três aspectos básicos do subdesenvolvimento em nossa região, que se mantêm atuais.

Primeiro, o estruturalismo dizia nas origens que aqui na periferia há uma baixa diversidade da estrutura produtiva e exportadora, determinando uma pressão de demanda, em simultâneo em vários setores, difícil de administrar, ao tornar o processo de crescimento e industrialização muito exigente em matéria de investimento e de divisas estrangeiras. Hoje o “neo-estruturalismo” da Cepal não mais diz que há baixa diversidade, e sim decrescente e inadequada diversidade (decrescente, devido à desindustrialização, e inadequada porque nos falta a ponta tecnológica).

Segundo, o estruturalismo inaugural argumentava que existia em nossos países forte heterogeneidade estrutural, vale dizer, o fato de que alguns setores trabalhavam com produtividade elevada mas a grande maioria dos ocupados trabalhava com produtividades reduzidas. Isto infelizmente até hoje não mudou. O neo-estruturalismo atual reafirma que há enorme contingente de pessoas ocupadas com baixos níveis de produtividade, em relações de trabalho informais e precárias. Isso tanto era parte central de nosso subdesenvolvimento nos anos 1950 como continua sendo atualmente. Os reflexos são a enorme pobreza e a péssima distribuição de renda, apontando para uma demanda social insatisfeita por programas de proteção social, por reforma tributária redistributiva da renda, por elevação contínua do salário mínimo, por fortalecimento dos sindicatos para aumentar o poder de barganha dos trabalhadores, etc.

Terceiro, os estruturalistas, nas origens, diziam também, de um modo geral, que havia atraso institucional e consequentemente desperdício de parte do excedente econômico, devido a investimentos improdutivos e a consumo supérfluo, com empresariado e Estados nacionais pouco vocacionados ao investimento e ao progresso técnico. Com algumas adaptações, a teorização dos anos 1950 tem sua atualidade no que se refere a atraso institucional, ou a inadequação institucional para as tarefas do desenvolvimento:

♦ a institucionalidade deixa muito a desejar em termos de proteção social;

♦ o sistema educacional tem muitas insuficiências; e os sistema de C&T melhoraram no que diz respeito à produção acadêmica, mas são muito falhos no que diz respeito à inovação por empresas produtivas — por exemplo, não há empresas nacionais na indústria que sejam de grande porte, portanto capazes de aumentar o valor adicionado, porque lhes falta poder de mercado em escala internacional e capacidade de inovação;

♦ apesar do fato de que nossas economias são profundamente financeirizada, nossa institucionalidade financeira é precária em matéria de profundidade do sistema financeiro para acolher exigências de longo prazo, inclusive na esfera da habitação;

♦ não temos um bom sistema de proteção do meio ambiente, nos falta principalmente fiscalização e punição das transgressões, etc.

É interessante observar que foi com base nesse contraste entre países desenvolvidos e países da América Latina que surgiram todas as teses mais conhecidas da Cepal: análise das relações “centro–periferia” (de inserção internacional desfavorável), deterioração de termos de troca, desequilíbrio estrutural na balança de pagamentos, a tese estruturalista da inflação, a tese da resiliência do subemprego, etc.

Isto posto, passemos às principais contribuições de Celso Furtado ao estruturalismo. São três as mais marcantes:

1 – Furtado incluiu uma dimensão histórica de longo prazo à abordagem estruturalista, em Formação Econômica do Brasil(feb) e Formação Econômica da América Latina (Furtado, 1959 e 1969);

2 – fez a análise da tendência à continuidade do subemprego, em Desenvolvimento e subdesenvolvimento(Furtado, 1961); e

3 – fez a integração analítica entre estruturas produtivas e distributivas, em Subdesenvolvimento e Estagnação na ale Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico (Furtado, 1966 e 1967).

A contribuição de maior peso foi a inclusão da dimensão histórica de longo prazo, principalmente com o livro FEB. Nele, o autor visita a história econômica brasileira para conceder autonomia teórica e legitimidade empírica ao estruturalismo. De fato, feb é mais do que uma contribuição sobre história. Representa uma contribuição analítica de peso. Em meu livro sobre pensamento econômico brasileiro eu chamo o FEB de “a obra-prima do estruturalismo brasileiro” (Bielschowsky, 1995).

Uma das chaves empregadas no feb para o entendimento da formação econômica brasileira é a comparação entre o Brasil, entendido como colônia de exploração mercantil para exportação, e as colônias da América do Norte. Trata-se de um “keynesianismo” pela negativa: Furtado contrasta repetidamente as duas modalidades, argumentando que a norte-americana foi gradualmente diversificando seu aparelho produtivo, de forma concomitante a uma propriedade e uma renda mais desconcentradas do que aqui na colônia de exploração brasileira — ou seja, com maior homogeneidade produtiva e social. Aqui, o efeito multiplicador de renda e emprego vazava ao exterior, via importações, impedindo a diversificação produtiva, e mantendo boa parte da população em atividades de subsistência, com rendimentos correspondentes à baixa produtividade.

Na construção do argumento da formação do subdesenvolvimento como fenômeno histórico, Furtado mostra como, no “ciclo do açúcar”, não se cria mercado interno capaz de gerar uma economia diversificada que se auto-impulsione; e, com a pecuária no “hinterland”, é criada vasta economia de subsistência, que vai se perpetuando ao longo dos séculos da história nordestina, junto com a estagnação secular da própria agricultura canavieira.

O subdesenvolvimento vai se enraizando na estrutura produtiva nordestina e depois o mesmo vai ocorrer no centro-sul. É o Brasil da baixa diversidade produtiva e exportadora e da profunda heterogeneidade estrutural. Espelhando esse processo, instala-se profunda desigualdade social, em cujas condições estaria se processando a industrialização.

O que começa no nordeste se reforça com o “ciclo da mineração”: apesar de um maior fluxo de renda monetária, e mesmo estimulando toda uma ocupação territorial baseada no gado, a involução do ciclo do ouro vai dar lugar à extensão e perpetuação do subdesenvolvimento, vale dizer, baixa diversidade produtiva e heterogeneidade estrutural, com uma população trabalhando no campo de forma subordinada a grandes proprietários com relações de trabalho e remunerações precárias.

Isto não se desfaz no “ciclo do café”: o problema da mão de obra e a transição para o trabalho assalariado ocupam vários capítulos do livro (justificando a solução de imigração europeia): o ciclo do café representa a justaposição da modernidade do café sobre o subdesenvolvimento prévio. A mão de obra empregada no café não será nem o escravo liberto nem o vasto campesinato pobre distribuído pelo Brasil afora, que subsistia em minúsculas propriedades e em subordinação aos grandes latifúndios.

A formação de massa monetária com trabalho assalariado que compõe o mercado interno, embora viesse a ser a base para o posterior “deslocamento do centro dinâmico para a indústria” não seria capaz de desfazer a economia de subsistência. Mais ainda, o ciclo do café se fez com um fluxo de imigrantes europeus pobres, que ampliaria a disponibilidade de mão de obra cujos rendimentos do trabalho eram baixos, não acompanhando a elevação da produtividade do polo moderno, quando esse aumento eventualmente ocorria. Ou seja, o fluxo migratório ampliou a reserva de mão de obra, permitindo que a economia cafeeira se expandisse por muito tempo sem que os salários reais se elevassem.

Toda essa análise era datada: FEB foi publicado num momento em que era necessário confirmar a condução deliberada do processo problemático de industrialização então em curso. Ela vinha ocorrendo sobre estrutura produtiva e social atrasada, profundamente subdesenvolvida, e precisava de ação coordenada pela sociedade e pelo Estado para dar velocidade e eficiência ao crescimento com transformação estrutural.

O livro tinha mesmo que ser um marco na historiografia econômica. É um livro metodologicamente poderoso, que vai mostrando ao longo dos séculos os processos históricos de formação da estrutura econômica e social subdesenvolvida no Brasil. No FEB, o autor ainda é relativamente otimista, ou moderadamente cético. Dois anos mais tarde, em Desenvolvimento e subdesenvolvimento (Furtado, 1961), a grande novidade é a análise da tendência à continuidade do subemprego, já numa linguagem mais pessimista. Foi sua segunda contribuição ao estruturalismo. Ao que tudo indica, foi o primeiro intelectual a assinalar a tendência à resiliência do subemprego na América Latina.

Muito brevemente, seguem-se alguns dos elementos analíticos principais da obra:

1 – o subdesenvolvimento é uma das linhas históricas de projeção do capitalismo industrial central a nível global: a que se faz por meio de empresas capitalistas multinacionais modernas sobre estruturas arcaicas, formando “economias híbridas” (e profundamente “heterogêneas”) — uma teorização de 1961 que se pode considerar fundacional das teorias da dependência logo depois formuladas;

2 – o subdesenvolvimento é um processo em “si mesmo”, que tende a se perpetuar, e não uma simples “etapa de desenvolvimento” pela qual passam todos os países; e

3 – a estrutura ocupacional com oferta ilimitada de mão de obra se altera nas economias subdesenvolvidas de forma lenta, porque o progresso técnico, capital-intensivo, é inadequado à absorção dos trabalhadores ligados à vasta economia de subsistência. O sistema tende à concentração de renda, e a um grau de injustiça social crescente.

A terceira contribuição básica de Furtado (1966) ao estruturalismo é um desdobramento lógico das duas anteriores. No livro Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina nosso autor estava propondo um novo projeto para o Brasil, de crescimento com redistribuição de renda. Nesse esforço, fez a integração entre estruturas distributivas (e perfis de demanda) e estruturas produtivas (ou seja, padrões de oferta, que se realizam pela via da acumulação de capital e do progresso técnico).

São os seguintes os elementos principais da construção analítica:

1 – a composição da demanda, que reflete as estruturas de propriedade e renda concentradas, predetermina a evolução da composição da oferta, ou seja, o padrão de industrialização;

2 – o investimento, assim determinado, reproduz o padrão tecnológico dos países centrais, intensivo em capital e em economias de escala; isso mantém ilimitada a oferta de mão de obra, ou seja, não desfaz o enorme contingente de trabalhadores disponível a baixos rendimentos, o que por sua vez impede que o aumento de produtividade se traduza em aumento de salários; e

3 – o modelo é portanto de mudança estrutural voltada a uma elite consumidora.

A interação entre “estruturas” de demanda e de oferta determina um certo “modelo” ou “estilo” de crescimento. Isso foi analiticamente inovador, na época.

Furtado concluiu que o sistema tende à estagnação por rendimentos decrescentes de escala, queda na rentabilidade e, portanto, desincentivo ao investimento. Na falta de uma urgente redistribuição da renda, todos perderiam, trabalhadores e empresários, porque a economia estaria fadada a lento ou nenhum crescimento.

A conclusão de que a economia tenderia à estagnação foi criticada por razões teóricas e, principalmente, porque se mostrou empiricamente equivocada. A publicação, em 1967, sai na véspera do crescimento mais acelerado por que o país já passou, o do período chamado de “milagre perverso” — devido ao rápido crescimento aliado a forte concentração da renda.

O “estagnacionismo” não pode, porém, ofuscar o brilhantismo da análise, contido na inédita integração entre estruturas produtivas e estruturas distributivas para entender a dinâmica econômica. A construção analítica teve, ademais, na evolução das ideias brasileiras, o mérito de dar partida a uma história intelectual e de projeto político para o Brasil que está viva até hoje.

De fato, a obra abre toda uma temporada de debates e reflexões sobre crescimento e redistribuição de renda, numa trajetória que iria desaguar, muitos anos mais tarde, na estratégia de desenvolvimento proposta em vários documentos importantes do Partido dos Trabalhadores (1994 e 2002), ou seja, a do crescimento com redistribuição de renda pelo mercado interno de consumo de massa.

Vale a pena recordar em breves palavras essa trajetória. Alguns anos depois da publicação da obra, em 1969, e já com ampla evidência de dinamismo na economia brasileira, Maria da Conceição Tavares e José Serra escreveram o Além da estagnação (Tavares e Serra, 1973), argumentando que, infelizmente, o país pode, sim, ter uma economia muito dinâmica mesmo concentrando a renda, e que a concentração estaria sendo perversamente funcional ao modelo de acumulação de capital em curso, nos finais dos anos 1960 e inícios dos 1970. Em Análise do modelo brasileiro, Furtado (1972), argumenta que a forma de contornar a escassez de demanda resultante da má distribuição de renda teria sido a criação do sistema de crédito ao consumidor e o incentivo governamental ao aumento da renda da classe média. Esse tipo de recurso estaria substituindo de forma espúria a relação virtuosa entre investimento, produtividade e salários (“anel de feedback”) que permitiria um rápido crescimento econômico com melhoria da distribuição da renda.

A partir daí cria-se no imaginário coletivo das forças progressistas do país nos anos 1970 a ideia de que a restauração da democracia, além do valor superior da liberdade, teria a função de permitir que a população pressionasse os governos para mudar o modelo de desenvolvimento, de maneira a incluí-la como beneficiária do crescimento econômico.

Ou seja, pode-se aumentar salários e redistribuir renda sem precisar alterar de forma substancial a estrutura produtiva que existe, bastam algumas adaptações na produção de bens a perfis de rendimentos de famílias das classes menos favorecidas.

Anos mais tarde, com base em pesquisas com amostras de domicílio sobre consumo, realizada por vários pesquisadores, Antônio Barros de Castro, outro grande intelectual brasileiro na linha estruturalista — tal como Conceição Tavares e Carlos Lessa —, daria um novo salto de qualidade nessa evolução analítica. Segundo Castro (1990), as evidências empíricas mostravam que, toda vez que se aumentam os rendimentos da população pobre do país, o que se verifica é uma expansão na demanda por bens e serviços produzidos pelos segmentos “modernos” (alimentos processados, vestimentas, televisores, geladeiras, transporte, energia elétrica, etc), e a correspondente expansão da oferta. Ou seja, pode-se aumentar salários e redistribuir renda sem precisar alterar de forma substancial a estrutura produtiva que existe, bastam algumas adaptações na produção de bens a perfis de rendimentos de famílias das classes menos favorecidas. A estrutura produtiva brasileira estaria portanto, segundo Castro, preparada para acolher um modelo de crescimento com redistribuição de renda pelo mercado interno de consumo de massa.

Essa visão iria figurar, por exemplo, em documentos de campanha do Partido dos Trabalhadores (1994 e 2002), e em planos plurianuais dos governos Lula e Dilma (Ministério do Planejamento, 2003 e 2007).

Furtado deu outras contribuições analíticas importantes, além das três assinaladas acima. Sem entrar em detalhes, cabe apenas assinalar algumas:

1- exerceu grande influência na elaboração da teoria estruturalista da inflação por Noyola Vasquez (1957) e Osvaldo Sunkel (1958);

2 – nos anos 1970, sob a influência do Clube de Roma, Furtado (1974) argumentou que a disponibilidade de recursos naturais e a sustentação do meio ambiente colocavam limites à incorporação de todos os países no rol de nações desenvolvidas — o planeta não aguentaria —, de modo que o desenvolvimento universal não passa de um mito, do ponto de vista de sustentabilidade ambiental;

3 – como mencionado, em diferentes momentos nosso autor faz também toda uma contribuição à questão da dependência na cultura, argumentando que a América Latina tinha uma cultura persistentemente travada pela dependência a padrões produtivos e de consumo dos países desenvolvidos (Furtado, 1978 e 1984).

A modo de conclusão: breves especulações sobre a realidade brasileira de 2020, à luz do pensamento de Furtado

Já assinalamos na seção anterior a atualidade do pensamento estruturalista de Furtado relativamente ao subdesenvolvimento da América Latina e do Brasil. Arrisco, a título de meras especulações finais, imaginar como Furtado estaria pensando o Brasil de hoje. As considerações podem ser divididas em três partes: o ano anômalo e terrível da pandemia (curto prazo); tendências dos últimos anos e as prováveis tendências dos próximos anos (médio prazo); e proposições quanto a um projeto sobre o futuro (longo prazo).

Furtado estaria, obviamente, triste e apreensivo, quanto às perspectivas do Brasil de 2020 e dos próximos anos. Na perspectiva do longo prazo, como ele tendia a acreditar no futuro do Brasil mas desconfiava das elites, possivelmente manteria algum otimismo cauteloso, ressalvando que tudo depende da evolução política.

Sobre o ano corrente, 2020, obviamente ninguém imaginou uma crise como esta. Certamente, Furtado estaria angustiado com o que está ocorrendo no mundo em geral e, em particular, no Brasil. Estaria perplexo e chocado com a forma como a crise da saúde é administrada por aqui, e entre triste e indignado com o fato de que o país tem estado sobressaltado com um carregado clima político antidemocrático.

E estaria preocupado com a forma como o governo está administrando a crise econômica, gerando incertezas e atrasos na concessão de apoios a pessoas, empresas e estados e municípios, e com tremenda omissão no que se refere ao crédito aos pequenos e médios empresários. Imagino que estaria temendo que, quando a pandemia for finalmente controlada, por efeito de vacina eficaz, a saída da crise conterá, entre seus muitos problemas, o fato de que as pessoas e as empresas estarão muito mais endividadas do que no passado: as empresas umas com as outras, as empresas e pessoas físicas relativamente aos bancos (porque os juros parcialmente suspensos continuaram aumentando a dívida) e ao fisco (que adiou pagamentos) — resultando em falências e em concentração de mercados nas mãos das empresas de maior tamanho. E teria sérias dúvidas sobre a velocidade com que se superará a crise, no mundo e no Brasil. Provavelmente diria que a principal forma de superar a crise e a recessão é a via do gasto público, somada a um socorro à dificuldade de pagamentos das dívidas pelas pequenas e médias empresas e pelas pessoas físicas em geral.

Possivelmente, argumentaria também que antes da pandemia a economia brasileira estava patinando, e que faz tempo que as perspectivas andam desfavoráveis. O PIB brasileiro pré-Covid, em 2019, ainda era menor do que em 2013, e com base nessa evidência penso que diria que a formula adotada desde 2015 de cortar gastos para reduzir o déficit fiscal acentua a recessão, e que maior recessão implica em menor arrecadação e, portanto, em maior déficit fiscal, num circulo vicioso. E se oporia ao teto de gastos e à chamada regra de ouro no plano fiscal, tanto pelos efeitos negativos sobre a economia como pelos cortes perversos em saúde, educação, etc.

No plano das questões de longo prazo, que foi o campo por excelência do pensamento de Furtado, ele certamente estaria instigando proposições sobre um novo projeto de desenvolvimento, integral, que articule os planos macroeconômico, produtivo, social, ambiental, democrático e de soberania nacional. Nisto, o pensamento clássico dele é abrangente e metodologicamente sólido e iluminador.

Dado o método que ele usava, ao pensar o longo prazo, ele por certo começaria contextualizando o Brasil no mundo, e pensaria a economia brasileira diante do gigantesco problema de nossa inserção desfavorável nas novas relações centro–periferia — ou, como se diz hoje, na atual fase de globalização produtiva e financeira. Ele provavelmente começaria a reflexão fazendo considerações sobre isto e sobre o imenso desafio para nós da revolução tecnológica global e da mudança climática, e estaria se perguntando como aproveitar-se da nova geopolítica bipolar entre Estados Unidos e China.

Provavelmente acentuaria inicialmente também o fato de que o neoliberalismo, em conjunto com a crescente financeirização que o acompanhou nas últimas décadas, tem determinado crescimento medíocre, desindustrialização, desemprego, baixo investimento, redução da proteção social, piora na distribuição da propriedade e da renda, persistência de pobreza, e destruição da natureza.

E atacaria o projeto socioeconômico dos governos Temer e Bolsonaro, por agravar o subdesenvolvimento no Brasil. Estaria se opondo veementemente à proposição de deixar que as forças espontâneas de mercado operem livremente para que se resolvam os graves problemas econômicos e sociais que persistem no país. E estaria opondo-se à eliminação de uma série de direitos trabalhistas na reforma realizada durante o governo Temer, e à exposição dos trabalhadores mais pobres e vulneráveis a uma aposentadoria aos 65 anos de idade, realizada na recente reforma no atual governo.

No plano econômico, seu olhar desenvolvimentista e estruturalista estaria provavelmente apontando para a importância de se realizar um projeto governamental de forte ampliação da infraestrutura econômica e social — criticando, por exemplo, o projeto de privatização do saneamento básico, por sua irresponsabilidade social — e, muito especialmente, um programa radical de recuperação, modernização e diversificação da indústria brasileira. Penso que daria três motivos para a ênfase no setor industrial: a necessidade de enfrentar o problema crescente do desemprego; o fato de que é o setor de mais alta produtividade e o maior criador e difusor de inovações; e, não menos relevante, o fato de que sem indústria (sem substituição de importações e promoção de exportações industriais) nos faltarão os dólares para pagar as contas externas — tornando-nos crescentemente dependentes de entradas de capitais de curto prazo para fechar nossa balança de pagamentos, e sendo levados para isto a elevar os juros internos e, assim, a travar o crescimento.

Furtado estaria, possivelmente, sugerindo a elaboração de um novo projeto de longo prazo para o Brasil, e de acordo com a ideia de uma relação virtuosa entre Estado, empresas e trabalhadores em torno de quatro espaços de atuação do Estado:

1 – proteção social universal(acesso amplo a bens e serviços públicos, financiados com impostos progressivos, cobertura universal, previdência social pública e solidária, direito à assistência social), e elevação contínua do salário mínimo;

2 – macroeconomia de pleno emprego(com harmonia entre políticas de crescimento de políticas anti-inflacionárias, ou seja, pleno-emprego com estabilidade macroeconômica, salários acompanhando ganhos de produtividade, trabalho formalizado, sindicatos fortes), acompanhada dos devidos cuidados com a vulnerabilidade externa.

3 – programas e políticas industriais, tecnológicas e de infraestrutura com perspectivas de investimentos a médio e longo prazos, de modo a aumentar a diversidade produtiva, aumentar a produtividade e a competitividade da economia brasileira, e a dar espaço ao país para crescer sem problemas de balanço de pagamentos. E, muito especialmente, todo um estímulo aos investimentos nas frentes de expansão inscritas na lógica de operação da economia brasileira, como são os casos dos investimentos destinados ao mercado interno de consumo em massa, à infraestrutura econômica e social, e ao bom aproveitamento dos nossos imensos recursos naturais;

4 – harmonia entre crescimento e preservação da natureza, rigorosa fiscalização contra a destruição das florestas brasileiras e da biodiversidade em geral e contra os demais fatores de emissão de gás produtor de efeito estufa, etc, e exigência de boa governança dos nossos recursos naturais, no que se refere a impactos sociais e ambientais e a controle nacional sobre os recursos.

Estaria provavelmente sonhando com um Brasil solidamente republicano, democrático, soberano, absolutamente solidário com os direitos básicos da cidadania em todas as suas dimensões. E estaria provavelmente recomendando que a ação incipiente de crescimento com melhorias distributivas ensaiada nos anos 2000 e início dos anos 2010 tivesse continuidade e fosse aperfeiçoada, superando-se suas falhas e envolvendo em forma permanente a nação nas próximas décadas, num estilo de desenvolvimento com transformação socioeconômica beneficiadora da população como um todo.

*Ricardo Bielschowsky é professor de economia na UFRJ. Autor, entre outros livros, de Pensamento econômico brasileiro (1930-1964) (Editora Contraponto).

Publicado originalmente na Revista Rosa.

 

Referências


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