Como será o mundo após a pandemia?

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Foto: RAFAELA FELICCIANO/METRÓPOLES
O ano de 2020 definitivamente entrará para a história. Desde 31 de dezembro de 2019, quando a China alertou a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre uma pneumonia de origem desconhecida, a vida no planeta não é a mesma.
A Covid-19 impactou as relações humanas. Mais de três milhões de pessoas foram infectadas com a doença no planeta, em uma contagem que não para de crescer, inclusive no Brasil. Bilhões estão presos em casa, saindo apenas para atividades essenciais, tentando, do jeito que dá, conter o avanço do “mal invisível” e evitar o colapso do sistema de saúde.
A doença, que pode infectar qualquer pessoa, assusta pela grande quantidade de mortes – só no Brasil, mais de seis mil pessoas já faleceram em decorrência da Covid-19. Enquanto não houver uma vacina ou um tratamento eficaz que garanta a segurança de andar na rua sem máscara e sem medo de se contaminar e, pior, de infectar a própria família, o mundo não será o mesmo.
Da forma como nos divertimos ao modo como gastamos dinheiro, nada será como antes. Em isolamento, milhares de pessoas começaram a repensar o próprio estilo de vida. Será que precisamos comprar tanto? Conseguiremos estar em grandes aglomerações novamente?
Para especialistas e historiadores, a pandemia de coronavírus é o mais importante marco do século 21. Muitos se perguntam, então, qual o futuro das relações humanas e como tirar lições positivas da maior catástrofe mundial da última década, na qual já morreram, até o momento, 235 mil pessoas.
Ao Metrópoles, especialistas trazem algumas respostas.
Para Erci Ribeiro, mestre em psicologia e professora de sociologia no IESB, vivíamos, até essa crise, dentro de uma avalanche de intolerâncias e egocentrismo. O cenário era o de uma ode à individualidade, o que ela chama de “era da selfie e da própria satisfação”.
“Estamos, agora, em um processo que a psicologia chama de catarse, um caldeirão que ‘mistura’ medos, ansiedades e fragilidades políticas. Não se restringe a não termos mais contato físico uns com os outros, mas sobre reflexões a respeito de nossas responsabilidades e limites”, pondera.
Erci acredita que é possível que a vida pós-coronavírus seja menos cheia de intolerâncias religiosas e discursos radicais. Segundo ela, como a vida de todas as pessoas foi igualmente ameaçada pela doença, o olhar humano, independentemente de rótulos e crenças, deve prevalecer em um novo mundo.
“De forma positiva, vejo a possibilidade, findada a pandemia, da busca de diferentes estratégias para viver em sociedade. Essas reflexões podem culminar em um novo propósito de vida coletiva”, defende.
Ainda segundo a especialista, o retorno do convívio familiar é outro aspecto relevante. Com o isolamento social, que hoje é quase obrigatório para evitar que a pandemia se espalhe ainda mais, as pessoas que moram debaixo do mesmo teto têm a oportunidade de se reconectar. “Os contatos, outrora fragmentados, passam a ser contínuos”, diz. O resultado é uma humanização das relações, muitas vezes automatizadas pelo ir e vir da rotina em grandes cidades.
Presos dentro casa, relacionamentos em crise podem acabar, enquanto os que precisavam de mais tempo para reforçar elos serão beneficiados. A pandemia serviria como uma lente de aumento ao que precisa de conserto.
Para Erci, outra herança desse período será o debate mais intenso sobre questões de classe.
“Não estamos no ‘mesmo barco’, e diversos indivíduos começaram, somente agora, a entender isso. Quem já era economicamente vulnerável, precisará de ainda mais suporte para suprir necessidades básicas. Teremos que pensar nesses recortes ao reestruturar a sociedade”, defende.
Ela indaga, ainda, qual será o lugar das mulheres negras e pessoas com deficiência nesse cenário. “A questão do lugar de fala em relação à raça e ao gênero será crucial. Como será esse novo mundo para quem já sofre com a desigualdade histórica?”, questiona.
Ainda não há um consenso sobre como vamos gastar dinheiro no futuro pós-pandemia, mas, aparentemente, será um cenário de oito ou 80. Pesquisas atuais, com as do GuiaBolso, mostram que o brasileiro conseguiu reduzir muito os gastos, inclusive os considerados essenciais. Esse poderia ser o início de uma época com maior enfoque na educação financeira. “As intenções de compras foram reduzidas”, aponta a educadora financeira Catarina Sacerdote.
“Porém, o efeito psicológico de um longo período com tantas restrições pode ser o contrário. Um bom exemplo é que a loja da Hermès na China vendeu quase US$ 3 milhões no primeiro final de semana pós-quarentena. As pessoas também ficam com a sensação de que a vida é muito frágil e deve ser aproveitada ao máximo, assim que for possível. Esse discurso acaba prejudicando planejamentos de longo prazo e investimentos”, pondera.
Outro efeito emocional durante e pós-pandemia é o aumento dos casos de FOMO (sigla em inglês para fear of missing out, ou “medo de perder”) associados ao comércio. A pessoa que sofre com a sensação acabaria comprando demais com receio de não poder consumir no futuro.
“É preciso ter autoconhecimento. É importante, para evitar excessos, adicionar ao processo de escolhas elementos que possam trazer um cenário real do seu poder e necessidade de consumo, para evitar cair nos aspectos emocionais que o marketing e nós mesmos criamos”, ensina a educadora.
Para diminuir a circulação nas ruas, boa parte da população transferiu o escritório do trabalho para dentro de casa, o que deve ser uma tendência daqui para a frente. “O home office deve ser mais comum, porque muitos notaram que a produtividade continua igual ou até melhor em alguns casos”, defende Catarina.
Ela, no entanto, aponta algumas problemáticas que precisam ser repensadas.
“A tendência desse modelo é que as pessoas trabalhem mais, por um salário igual ou menor. Em um ambiente preparado para o trabalho, cuida-se da ergonomia do ambiente, da qualidade de conexão, de insumos técnicos, como notebooks, celulares e etc, o que não é feito em casa”, pondera.
Para a empresária e chef de cozinha Renata Carvalho, o hábito de se sentar com os amigos à mesa de um bar, ou de jantar fora com o crush, será cada vez mais escasso.
“Acredito muito nos eventos dentro de casa. As pessoas vão querer cozinhar para os amigos, pedir delivery. A gastronomia vai se manifestar muito dessa forma. Não só sobre preparar o próprio alimento, mas levar o coração do restaurante para a casa dos clientes”, diz.
Ela explica que, como o público não vai querer sair de casa e se colocar em risco de contaminação, é preciso que os restaurantes e bares se virem nos 30 para inventar novos jeitos de vender seus produtos. “Há uma crise maior em curso, que é a criativa. Precisamos, como empresários, testar novidades que tragam segurança”, prevê.
Pesquisadora de tendências, ela e sua equipe preparam um projeto que une entrega de hambúrgueres em casa ao mundo dos games, como uma forma de juntar o isolamento a momentos de diversão. “O cliente terá um QR Code e, com ele, aprenderá a fazer a receita. A ideia é transformar em entretenimento, reunir comida e balada em uma coisa só”, antecipa.
Na área em que atua, outro comportamento que ganhou força é a procura por pequenos produtores. Assistindo ao colapso também do comércio e de pessoas que dependem da venda do dia a dia para sobreviver, o consumidor parece estar mais sensível, tentando ajudar empresas menores.
A ideia corrobora com a visão da psicóloga Erci Ribeiro. O mundo, acredita, será um lugar mais empático. “Se não aprendermos agora, haverá outra catástrofe para nos ensinar”, finaliza Renata.