quinta-feira, 2 de setembro de 2021

O ART. 142 DA CONSTITUIÇÃO NÃO AUTORIZA INTERVENÇÃO MILITAR CONTRA A DEMOCRACIA

O ART. 142 DA CONSTITUIÇÃO NÃO AUTORIZA INTERVENÇÃO MILITAR CONTRA A DEMOCRACIA


Aldemario Araujo Castro

Advogado

Mestre em Direito

Procurador da Fazenda Nacional

Brasília, 2 de setembro de 2021


Nos últimos meses ganhou visibilidade crescente a ideia esdrúxula, antidemocrática e inconsequente de intervenção militar contra a existência e o funcionamento dos Poderes da República. As manifestações públicas dos grupos bolsonaristas, com explícito apoio do “mito”, propõem, sem nenhum pudor, o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional pela via da atuação dos militares brasileiros.

Importa lembrar que na noite do dia 13 de junho de 2020, um grupo de bolsonaristas promoveu, com fogos de artifício, um inacreditável espetáculo de “bombardeio” ao prédio do STF. Vídeos circularam na internet com narração, em tempo real, do episódio. Num deles, o narrador pergunta aos ministros do STF se o “recado” foi adequadamente entendido. A fortíssima carga simbólica do ocorrido, aparentemente inédito, mostrou como um grupelho social, com apoio velado dos governantes de plantão no plano federal, trilha os caminhos das trevas.

No dia 10 de junho, imediatamente anterior, em matéria de capa, o jornal “The New York Times” registrou que existe a possibilidade de um golpe militar no Brasil para garantir a manutenção de Jair Bolsonaro no poder. Subscrito pelos jornalistas Simon Romero, Letícia Casado e Manuela Andreoni, o texto destaca que Bolsonaro sofre pressões de todos os lados, notadamente em função do aumento nas mortes diárias provocadas pelo novo coronavírus e das investigações contra seus filhos e aliados.

Certos acontecimentos da terceira semana do mês de junho de 2020 mudaram significativamente a inacreditável “discussão”, naquela época, acerca de golpes, intervenções e fechamentos (do Congresso e do STF). A prisão do sumido Fabrício Queiroz numa casa do advogado dos Bolsonaros praticamente retirou da pauta a pretendida (por alguns) movimentação dos quartéis. O festival de supostos ilícitos apurados com a participação do amigo-irmão Queiroz (rachadinhas, fantasmas, lavagem de dinheiro, envolvimento com milícias, entre outros) lançou (e lança) fortes e consistentes indícios acerca da participação da família presidencial em “rolos” de vários tamanhos. No mínimo arranhada fica a imagem (artificialmente construída) do inoxidável e indefectível “mito”.

Aparentemente, são dois os debates mais recorrentes em torno da temática da intromissão militar no funcionamento do Estado Democrático de Direito. Primeiro, as Forças Armadas, ou a maioria de seus comandantes, estão dispostos a capitanear uma aventura golpista? Segundo, esse eventual movimento de tropas, aspecto imediatamente visível das quarteladas tradicionais, tem base jurídico-constitucional e lastro consistente na ordem jurídica brasileira?

Parece, ao menos a partir do noticiário da grande imprensa, que não existe uma dominante, ou predominante, disposição golpista ou intervencionista entre as Forças Armadas, salvo alguns setores mais assanhados das Polícias Militares. Entretanto, algumas declarações públicas de certos generais, mesmo distantes da caserna, deixam no ar algo que pode ser claramente entendido como ameaça. “O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, afirmou que a interferência das Forças Armadas no sistema democrático brasileiro atual pode ocorrer. ‘O artigo 142 é bem claro, basta ler com imparcialidade. Se ele (artigo) existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado’ ” (fonte: correiobraziliense.com.br). O próprio “mito”, entre várias declarações de intimidação ao Legislativo e ao Judiciário, cunhou pérolas como estas: “Não está arrebentando, arrebentou” (sobre a tensão com o TSE e o STF) (fonte: istoe.com.br); “o momento está chegando” (fonte: istoe.com.br) e “O momento é de satisfação e alegria para todo o Brasil. Nas mãos das Forças Armadas, o poder moderador, nas mãos das Forças Armadas, a certeza da garantia da nossa liberdade, da nossa democracia, e o apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação” (fonte: economia.uol.com.br)

Subsiste um curioso entendimento no sentido de que ser bolsonarista gera uma espécie de imunidade à ação do Judiciário. Não custa lembrar que essa mesma turma aplaudia o STF que não paralisou o impeachment contra Dilma Rousseff, apesar das várias ações com esse objetivo propostas perante a Corte Máxima.

Comparem-se algumas das declarações militares tupiniquins com a manifestação do general Mark Milley, maior autoridade militar dos Estados Unidos da América. Disse Milley: "Eu não deveria ter estado lá [com Trump na famosa caminhada rumo a uma igreja]. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna. Como oficial da ativa uniformizado, foi um erro com o qual aprendi. Devemos defender o princípio de um Exército apolítico que está tão profundamente enraizado na própria essência de nossa república. Isso leva tempo, trabalho e esforço, mas pode ser a mais importante coisa que cada um de nós faz a cada dia''.

Nas últimas semanas, o assunto da intervenção militar voltou aos noticiários com considerável força. Chegaram, os bolsonaristas mais raivosos, a marcar data para uma suposta quartelada: o dia 7 de setembro de 2021 !!! A incapacidade de lidar com as instituições democráticas e suas decisões que não agradam desperta os instintos mais primitivos, especialmente aqueles ligados ao uso da força, das armas e aniquilação física da salutar e necessária pluralidade político-ideológica.

Impõe-se, então, uma indagação crucial. Os militares estão dispostos a “atravessar o Rubicão”, como destacou o Ministro Ricardo Lewandowski em texto publicado no dia 29 de agosto de 2021? Para defender quem? A família presidencial? Para arquivar apurações de supostos ilícitos dos palacianos e aliados? Para satisfazer os gostos, desejos e desvarios de certos apedeutas palacianos? Obviamente, a missão constitucional das Forças Armadas não merece tamanho apequenamento. E os militares sabem disso.

A questão jurídica em torno da inteligência do art. 142 da Constituição é, no mínimo, curiosa. Entretanto, permite compreender algumas lições básicas de hermenêutica no campo do Direito. Diz o referido artigo: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem./§1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas”.

De início, é importante comparar esse texto com a redação do enunciado pertinente na Constituição de 1967/1969. A redação anterior possuía o seguinte formato: “Art 92 - As forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei./§1º - Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem”.

Percebe-se que a diferença está no papel das Forças Armadas na defesa da lei e da ordem. A Constituição de 1988 exige (a anterior silenciava) a iniciativa de um dos poderes constituídos para atuação das Forças Armadas na proteção da lei e da ordem.

Outro ponto crucial de diferenciação é a definição da edição de uma lei complementar para fixar normas gerais relacionadas com a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Esse diploma legal foi introduzido na ordem jurídica brasileira como a Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999. Cumpre observar que a referida lei complementar, mesmo com alterações posteriores, limita-se a explicitar atribuições subsidiárias, além das constitucionais. Nada nesse diploma legal permite identificar alguma competência relacionada com o fechamento de algum Poder da República ou supressão da ordem democrática. Afinal, o Estado Democrático de Direito, proclamado no artigo primeiro da Constituição, está assentado no funcionamento regular de todos os Poderes e das instituições da sociedade civil, no exercício dos mandatos eletivos em curso e observância efetiva dos direitos fundamentais.

Façamos um exercício mental. Vamos admitir a atuação (intervenção) das Forças Armadas para o fechamento do Supremo Tribunal Federal (e outros tribunais?) e/ou do Congresso Nacional (e parlamentos estaduais e municipais?). Os Governadores e Prefeitos também seriam atingidos? Registre-se que estamos tratando do fechamento físico e da paralisia operacional do exercício das competências exercitadas por centenas e centenas de instituições e respectivos membros.

A primeira indagação. Quem decidiria e como seria o procedimento para adotar esse posicionamento? Onde está posta a regra de competência dessa autoridade ou colegiado para adotar tal decisão? Reconheço, aqui, com todas as letras, a minha ignorância. Em mais de 30 (trinta) anos de estudo e trabalho com o direito brasileiro, jamais encontrei ou tive notícia da existência de enunciados normativos sobre o assunto.

Vamos a segunda questão. Se a “medida” não atingir todos, quais os critérios previstos na ordem jurídica para estabelecer as exceções? O Presidente da República seria mantido no cargo? Qual a motivação, prevista em lei, para manter o Chefe do Executivo na condição de intocável? Em suma, onde estão escritas, na forma de textos normativos, as hipóteses jurídicas para alguns sejam alcançados pela “intervenção” e outros não?

Agora, a terceira questão. Quem substituiria as autoridades afastadas? Qual a condição ou status jurídico das autoridades “destituídas” (prisão, garantias, remunerações, etc)? Onde a ordem jurídica brasileira dispõe acerca dessas substituições como decorrências de intervenções supostamente baseadas no art. 142 da Constituição? Como as competências, particularmente as colegiadas, seriam exercidas por esses “substitutos”? Quais comandos normativos regulam essas atividades nesse contexto “interventivo”?

Ademais, o art. 5o., inciso XLIV da Constituição, qualifica como “… crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Não faz o menor sentido lógico-jurídico ou político que as Forças Armadas, instituições estatais permanentes comprometidas por expressão disposição constitucional com “a garantia dos poderes constitucionais”, possam realizar de forma legítima aquilo que o constituinte definiu como crime (inafiançável e imprescritível) quando operado por grupos armados, civis ou militares.

Ainda num exercício prospectivo, impõe-se perguntar como seria tratada a liberdade de imprensa. Todos ou só alguns órgãos de imprensa seriam “fechados”? Como seria operacionalizado esse movimento? A internet no Brasil seria “derrubada” ou “controlados” certos sites ou redes sociais? Onde estão postos os textos normativos reguladores dessas ações estatais?

Os desdobramentos políticos, econômicos e jurídicos no plano internacional seriam múltiplos, profundos e nefastos. Numa frase, dita e repetida com frequência, a nação brasileira seria considerada e tratada como um verdadeiro pária na sociedade internacional.

Dito isso, é relativamente fácil concluir que a ordem jurídica brasileira não é compatível com uma hermenêutica que admita qualquer espécie de intervenção militar para afastar o funcionamento ou exercício pleno das competências das mais importantes instituições desenhadas pela Constituição. Trata-se, é disso que se trata, expressão muito usada por certo ministro do STF, de golpe ou ruptura inconstitucional da ordem democrática obnubilado pela nomenclatura de intervenção.

A ausência de respostas para as perguntas antes postas denunciam um quadro jurídico aberrante, num plano meramente teórico ou hipotético, para a tese da movimentação institucional pretoriana contra Poderes da República. Em outras palavras, trata-se de um verdadeiro terraplanismo constitucional, na bem cunhada expressão que circula nos meios jurídicos. A chamada “interpretação absurda” subjacente não se sustenta por inapelável falta de lógica, fundamento técnico-jurídico e sentido.

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02 Setembro 2021

 

     

    Dermi Azevedo (Foto: Reprodução)

     

    Vítima de infarto fulminante, faleceu na quarta-feira, 1, no Hospital do Ipiranga, em São Paulo, o jornalista, cientista político e defensor dos direitos humanos, Dermi Azevedo, 72 anos. Há tempos ele sofria da doença de Parkinson. Sua trajetória é um marco de cidadania.

    A reportagem é de Edelberto Behs, jornalista.

    Junto com o teólogo Leonardo Boff, com quem trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis (RJ), Dermi foi fundador do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), em 1982. Também foi um dos fundadores da Agência Ecumênica de Notícias (Agen), precursora da Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC).

    Dermi nasceu em Jardim do SeridóRio Grande do Norte, em 4 de março de 1949, mas adotou como sua cidade Currais Novos, onde foi criado. Estudou nos Seminários São Cura d’Ars, de Caicó, e de São Pedro, em Natal. Ingressou no Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 1967, mas transferiu-se depois para o Curso de Jornalismo.

    Residiu em Natal até 1980, onde presidiu a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese. Foi fundador e primeiro presidente da Cooperativa dos Jornalistas de Natal Ltda (Coojornat). Trabalhou em vários jornais, entre eles A Folha de CaicóDiário de NatalSalário MínimoÚltima Hora de São PauloDomingo IlustradoMancheteFatos e FotoJornal da TardeVejaIstoÉDiário do Grande ABCFolha de S. PauloAqui São PauloRevés do Avesso.

    Realizou reportagens na EuropaAmérica Latina e África. Acompanhou viagens do papa João Paulo II no Brasil e no exterior. Foi correspondente no Brasil da revista francesa Informations Catholiques Internationales, de Paris. Foi diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo por dois mandatos.

    Exerceu funções de confiança no governo do Estado de São Paulo, desde o primeiro mandato do governador Mário Covas, em 1995. Especializou-se em Política Internacional na Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Cursou mestrado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, apresentando a dissertação “Relações Igreja/Estado no Brasil durante o regime autoritário-burocrático (1964-1985)”, e concluiu o doutorado em Ciência Política na USP, com a tese “Igreja e Democracia. Democracia na Igreja”.

    Coordenou o Curso de Comunicação Social da Universidade Metodista de Piracicaba (Umesp). Em 1968, participou, com outros líderes estudantis potiguares, do XXX Congresso da UNE, reunido em Ibiúna, em 1968, quando foi preso. Exilou-se no Chile, em 1970 e 1971, retornou ao Brasil em 1974.

    Em 14 de janeiro de 1974, relata Leonardo Wexell Severo, do Portal Vermelho, agentes de segurança encontraram na residência do jornalista em Campo BeloSão Paulo, o livro “Educação Moral e Cívica e Escalada Fascista no Brasil”, coordenado pela educadora Maria Nilde Mascellani. A informação de que o estudo havia sido enviado ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI), com sede em GenebraSuíça, para ser divulgado mundo afora irritou militares. Dermi foi torturado nas dependências do DEOPS. Sua vivência de torturado da ditadura está relatada no documentário “Atordoado, eu permaneço atento”, filme vencedor do 8º Festival Internacional de Curta-Metragem, de Brasília.

    Dermi Azevedo foi casado com a pedagoga Darcy Andozia Azevedo, mãe dos filhos Carlos AlexandreDanielEstevão e Joana Angélica. Teve mais três filhas com a sua atual esposa , a pedagoga Elis Regina Brito Almeida AzevedoPaulaBethânia e FernandaDermi era vinculado à Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.

    Além das agressões que sofreu, o que o marcou profundamente pela vida toda, recordou a jornalista Mônica Manir, foi a condução do seu filho Carlos Alexandre, o Cacá, quando tinha um ano e oito meses de vida ao DEOPS, “onde teria levado choques elétricos, segundo relato de outros presos”. Cacá desenvolveu fobia social e, aos 40 anos, em 2013, suicidou-se com overdose de medicamentos.

     Um ano depois da morte do filho, Dermi escreveu uma carta marcante, tocante, ainda atual, reproduzida pelo Portal Vermelho:

    CARTA AO MEU FILHO

    Caro Carlos Alexandre Azevedo (Cacá)

    Meu querido filho,

    Bom dia!

    “Faz hoje exatamente um ano que você partiu para outra vida. Como aconteceu com muitas outras crianças, você foi uma das vítimas da cruel e sanguinária ditadura civil-militar de 1964. Com apenas um e ano oito meses, você foi submetido a torturas pela “equipe” do delegado Josecyr Cuoco, subordinado ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais violentos esbirros da história contemporânea.

    “Já no sofá da pequena casa em que morávamos no bairro de Campo Belo, na zona sul paulistana, os investigadores da repressão quebraram os seus dentinhos; mais tarde, você foi submetido a novos vexames na sede do DEOPS. Em seguida, na madrugada de 14 de janeiro de 1974, você foi levado a São Bernardo do Campo, onde moravam seus avós Carlos e Joana. Eles foram acordados com o barulho dos agentes que jogaram você no piso da sala…

    “Toda a sua vida foi marcada por esses acontecimentos. Quando você, anos mais tarde, tomou conhecimento do que viveu, você leu muito e estudou a história da repressão fascista. Em entrevista à repórter Solange Azevedo, da ISTOÉ, você sussurrou: ‘Minha família nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a ditadura… Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil…’.

    “É isto mesmo, meu filho. Ainda há muita gente que não acredita que milhares de brasileiros e de brasileiras, de estrangeiros e de estrangeiras que viviam no Brasil, dedicados aos mais oprimidos e excluídos, tenham sido perseguidos e esmagados pela ditadura…”

    “Ainda há cidadãos, fardados ou não, no Brasil e na América Latina, que praticam e legitimam a tortura…

    “Definitivamente marcado pela dor…por sua dor e pelo sofrimento (inenarrável) de sua mãe e de seus irmãos, você decidiu partir..

    “Cabe a mim, seu pai, a tarefa quase apenas de compartilhar a narração do seu calvário, de denunciar – como jornalista – os crimes da ditadura e de lutar para que dores e agonias, como as que você viveu, nunca mais aconteçam…

    Do seu pai

    Dermi Azevedo

     

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    ‘Vamos destruir o STF’: Oficiais da PM do ES fazem postagens antidemocráticas e pró-Bolsonaro

     

    ‘Vamos destruir o STF’: Oficiais da PM do ES fazem postagens antidemocráticas e pró-Bolsonaro

    ·8 minuto de leitura
    Imagem: Reprodução
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    por Jeniffer Mendonça

    “Alguém sabe por quanto se compra um Ministro do $TF? (sic) Tô com R$ 350,00 na conta”. Essa é uma publicação de 12 de março deste ano feita no Facebook pelo capitão Evandro Guimarães Rocha, oficial da ativa do 12º Batalhão da PM de Rio Bananal, no Espírito Santo. Em outra, com letras garrafais, diz que o Supremo Tribunal Federal (STF) é uma “organização criminosa” e usa as hashtags “#BarrosoNaCadeia” “#MoraesNaCadeia”, em postagem de 17 de agosto.

    O tenente-coronel Gunther Wagner Miranda, comandante do Comando de Polícia Ostensiva Sul, é pior no tom. Compartilhou uma imagem em 12 de março com dizeres de “A mesma campanha que fizemos pra eleger Bolsonaro, vamos fazer pra destruir o STF. Chega, STF! Campanha ‘Fora, STF!”. Em outra, de 10 de março, a imagem “Eu tenho nojo do STF”. Publicações de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), contra partidos de esquerda, pedindo o impeachment de ministros do STF e fechamento do Congresso Nacional, implantação do voto impresso e algumas incentivando uso de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid-19 também aparecem em perfis de alguns oficiais da PM que a Ponte acessou nas últimas semanas.

    Em fevereiro, o capitão Olival Martinelli Tristão de Oliveira, da Cavalaria, compartilhou uma postagem em que o STF é chamado de “Suprema sem vergonha golpista da esquerdalha federal”. O capitão Rafael Sant’Anna Reis compartilhou em março um link de coleta de assinaturas para o impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes. O major Weverson Mariano compartilhou uma postagem atribuída ao ex-ministro da Educação Abraham Weintraub em que usava a hashtag “#STFVergonhaNacional” ao dizer que a corte fiscalizaria os votos das eleições de 2022, o que não é verdade porque é atribuição do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e qualquer cidadão pode solicitar boletins de urnas sobre as votações em seções eleitorais.

    O presidente da Comissão Especial de Direito Militar da OAB-ES (Ordem dos Advogados do Brasil) Tadeu Fraga de Andrade, ao analisar as postagens, disse que ficou “assustado” com o conteúdo e que os oficiais descumprem o novo Código de Ética da PMES, implantado no ano passado, o qual veda qualquer tipo de manifestação política para militares da ativa, seja de serviço ou de folga, além de constituir crime tipificado no artigo 166 do Código Penal Militar, que trata de publicação ou crítica indevida. O texto prevê detenção de dois meses a um ano, se não se configurar crime mais grave, ao “publicar o militar ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo”.

    Imagem: Reprodução
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    “O poder militar está sujeito ao poder civil e ele, na ativa, esteja em serviço ou não, não pode se envolver em questões políticas de nenhuma maneira, só os da inatividade podem opinar livremente”, enfatiza Andrade. Para ele, a situação é mais gravosa ainda por se tratar de policiais de alta patente. “Um capitão comandante de uma fração de tropa é titular do poder disciplinar, ou seja, tem o poder de aplicar sanções administrativas aos seus subalternos caso pratiquem algum ilícito administrativo. Então, pensar que um capitão pode ser titular do poder disciplinar, a gente intui que ele não vai se autodisciplinar, ele é a figura do disciplinador, ele não pode descumprir a lei e é muito difícil ter uma punição a um oficial nesse sentido até porque o sistema é feito para isso: para colocar a subordinação na parcela mais subalterna na escala hierárquica. Se isso [politização] acontece lá cima, com certeza já se espalhou embaixo”, explica.

    E se espalhou. Pesquisa divulgada nesta quinta-feira (2/9) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que houve aumento da adesão ao bolsonarismo e a pautas antidemocráticas nas polícias ao analisar 651 perfis de policiais em redes sociais e a respectiva interação com esses conteúdos. A maior parte (51%) é puxada por praças, ou seja, policiais de baixa patente (soldados, cabos e sargentos). O oficialato, que é de alta patente, (capitães, majores, tenentes-coronéis, coronéis e aspirantes a oficiais) correspondem a 44%.

    Para o presidente da Comissão de Direito Militar da OAB-ES, essa adesão se reflete principalmente sobre um “paralelismo” que as polícias militares fazem com as Forças Armadas, por serem constitucionalmente forças auxiliares do Exército. Ele destaca dois pontos: aumento de militares em cargos do governo e a atuação política, como o general Eduardo Pazuello ter ocupado o cargo de ministro da Saúde e participado de manifestação política mesmo estando na ativa, o que é vedado para militares que ainda prestam serviços à corporação.

    “Quando um general [da ativa] sobe num palanque com o Presidente da República, o governador de estado começa a ter dificuldade para controlar os seus oficiais porque o militar estadual quer ter um paralelismo com o oficial do Exército”, argumenta. “Quanto maior a posição dessa autoridade na escala hierárquica, maior é o senso de dever. O próprio Pazuello tinha que ter noção de que, se ele subisse naquele palanque, ia autorizar tantos outros de postos e graduações subalternas a fazer o mesmo, e pior ainda, não foi punido”.

    Imagem: Reprodução
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    Com a revogação da Lei de Segurança Nacional nesta terça-feira (2/9), que foi criada na ditadura e embasou investigações tanto para apurar manifestações antidemocráticas com pedido de intervenção militar e fechamento de instituições quanto a críticos de Bolsonaro, Tadeu Fraga de Andrade entende que essas postagens e condutas não podem ser analisadas com a nova lei que passa a tratar de crimes contra o Estado Democrático de Direito, além de o presidente ter vetado o aumento de pena para militares que atentem contra o Estado.

    Ele menciona o artigo 359-L da nova lei, que prevê reclusão de quatro a oito anos, correspondente à pena da violência, ao “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Andrade explica que “a tentativa será considerada um atentado contra o Estado Democrático (intenção de abolir), sempre que o exercício dos Poderes for “impedido” (neutralizado) ou “restringido” (reduzido)”, ou seja, “transforma o crime em material e exige um resultado, não meramente uma conduta”.

    No Espírito Santo, o Quartel do Comando Geral da PM emitiu um ofício em 26 de agosto determinando que todo o efetivo trabalhe de 6 a 11 de setembro. “Fica suspensa a concessão de qualquer tipo de dispensa no período de 03 a 12 de setembro de 2021, e as que forem concedidas, deverão se encerrar até o dia 03 de setembro de 2021”, determinou o subcomandante da PMES coronel Ronaldo Mutz.

    O doutor em Sociologia e conselheiro da ONG Artigo 19 Marcos Rolim aponta que o aquartelamento, ou seja, a obrigação de que todos os policiais trabalhem e não sejam dispensados no dia do ato de 7 de setembro é uma maneira de fiscalizar a atuação da corporação nas ruas, evitar que policiais à paisana participem armados e que a segurança possa ser feita, especialmente porque, na visão dele, a politização das polícias se manifesta também na atuação deles nas ruas. “Imagine a hipótese se de um lado tem uma manifestação na Avenida Paulista com 500 mil pessoas de um lado e no outro canto afastado uma outra manifestação [contrária] de 40 mil pessoas, se essa massa resolve caminhar em direção ao outro grupo, que contingente policial vai atuar em uma ameaça como essa? É um caso que se precisa de toda a polícia para discutir todos os cenários possíveis”, aponta.

    Imagem: Reprodução
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    Ele afirma que todos os oficiais, especialmente que estão em posição de comando, e que realizaram postagens e condutas antidemocráticas devem ser afastados e punidos de forma exemplar, sendo na escala mais grave a demissão sumária. “Nenhum golpista pode estar em posição de comando, seja nas polícias militares, nas polícias civis, seja nas Forças Armadas. O nosso dilema é que temos no comando do país alguém que tem essa deformação política”.

    Marcos Rolim explica que é preciso diferenciar o que é liberdade de expressão e “ameaça à ordem pública, às instituições e ao Estado Democrático de Direito”. “Não há liberdade de expressão para atacar a democracia, os gestores dos estados têm uma grande responsabilidade de impedir que isso aconteça”.

    Ajude a Ponte!

    O presidente da Comissão Especial de Direito Militar da OAB-ES concorda. “Quando o militar está falando da sua esfera privada, como do amor que ele tem pela família dele ou sobre como uma criança deve ser criada ou se os filhos devem ou não ir à escola na pandemia, acho que isso está abarcado pela liberdade de expressão. Agora, do momento que ele começa a fazer manifestações políticas e isso compromete a hierarquia e disciplina do quartel, e isso são valores institucionais, isso me parece ser uma restrição legítima para a liberdade de expressão”.

    O que diz a polícia

    Ponte encaminhou as postagens à assessoria da PMES e questionou sobre o conteúdo bem como medidas que seriam tomadas, além de posição sobre os atos do dia 7 de setembro. Até a publicação, a corporação não respondeu.