segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Para entender o caso Globo/FHC e as “offshores” no Panamá

Para entender o caso Globo/FHC e as “offshores” no Panamá

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A trama é relativamente complexa. A ramificação tem como centro a Rede Globo. Mas o emaranhado começou a ser descoberto com a Mossak Fonseca.
No mundo existem dezenas, senão centenas, de empresas criadas pela Mossack Fonseca para lavagem de dinheiro e ocultação patrimonial. É o que dizem reportagens do Jornal “O Globo” e do site português “Vice”. De acordo com as investigações jornalísticas, empresas de papel criadas pela Mossack Fonseca auxiliaram na ocultação de fortuna de pessoas como Rami Makhlouf (Síria), Muammar al-Gaddafi (Líbia) e Robert Mugabe (Zimbábue). A Mossack Fonseca, por exemplo, segundo o “Portal Sudestada”, tem o mesmo endereço da Brikford Overseas SA, cujo diretor é Eugênio Pedro Figueiredo, preso em decorrência do escândalo da FIFA.
A panamenha ganhou – e logo perdeu – os holofotes da grande mídia brasileira por conta das operações policiais Lava Jato e Ararath. A Murray Holding LCC, ligada à Mossack Fonseca, é dona de alguns apartamentos no famigerado condomínio Solaris, no Guarujá. Segundo a Revista Época, Nelci Warken– que os investigadores suspeitam ser uma laranja – afirmou, em depoimento à PF, que “a offshore era de sua propriedade” e que “usou a Murray para esconder seu patrimônio e sonegar tributos”.
Carolina Auada e Ademir Auada, representantes da Mossack Fonseca no Brasil, foram interceptados pelos investigadores da PF destruindo provas. Por isso eles foram presos mas, pouco depois, o juiz Sérgio Moro mandou soltá-los, com uma justificativa surrealista e violadora dos princípios da lógica elementar, publicada na Folha de São Paulo: “Apesar do contexto de falsificação, ocultação e destruição de provas, (…) na qual um dos investigados foi surpreendido, em cognição sumária, destruindo quantidade significativa de provas, a aparente mudança de comportamento dos investigados não autoriza juízo de que a investigação e a instrução remanescem em risco”.
O que aconteceu para Moro, que sem justificativas para preventiva deixa muita gente presa, soltar essas duas pessoas?
O que aconteceu é a Rede Globo.
E aqui entra o trabalho dos blogs. Nossa contribuição foi basicamente reunir o trabalho investigativo feito pela mídia independente e pedir formalmente apuração jurídica das denúncias. Os créditos são de Joaquim de Carvalho e Renan Antunes de Oliveira do “Diário do Centro do Mundo”, Fernando Brito do “Tijolaço”, “Viomundo”, Helena Sthephanowitz da “Rede Brasil Atual”, Miguel do Rosário do “O Cafezinho”, Renato Rovai da “Revista Fórum”, Paulo Henrique Amorim do “Conversa Afiada” e Luiz Nassif do “GGN”. As referências e os documentos anexados podem ser encontrados na representação que apresentamos formalmente.

MOSSACK FONSECA – GLOBO

São basicamente dois pontos de possível conexão entre a Globo e a Mossack Fonseca, que são uma mansão em Paraty e o respectivo heliponto. A mansão, segundo a Bloomberg, e depoimento de pessoa que trabalhou na construção do imóvel, pertence de fato à família Marinho.
No papel, a Paraty House e o Heliponto estão registrados no nome da Agropecuária Veine, que tem em seu quadro de sócios a Vaincre LCC. Pesquisa da Rede Brasil Atual e do Viomundo indica que a Vaincre LCC é uma empresa de papel ligada à Mossack. Quem explica como isso funciona é a própria gerente no Brasil, Renata Pereira Britto, presa na Operação Lava Jato. Segundo o Globo, em depoimento à PF, ela “disse que a empresa disponibilizava aos clientes um ‘estoque de empresas de prateleira’ no exterior. As offshores, segundo Renata, já vinham inclusive com diretoria constituída e o cliente precisava apenas escolher um dos nomes da lista fornecida pela Mossack”.
O objetivo disso não necessariamente é ilegal. O problema é quando elas servem para ocultar patrimônio obtido de forma ilícita – vindo de sonegação de impostos, por exemplo, do que a Globo já foi acusada.
A Vaincre LCC tem o mesmo representante legal, o mesmo endereço e a mesma controladora da Murray Holding LCC, justamente a empresa dona de apartamentos no Edifício Solaris, a mesma empresa cuja proprietária diz que usou a offsshore para sonegar tributos. Se a Murray Holding LCC servia para sonegar tributos, porque uma empresa gêmea sua, ambas ligadas à Mossak Fonseca, não serviria para o mesmo fim?
Conforme investigação do Tijolaço, a Agropecuária Veine declara se dedicar “a serviços de preservação de animais silvestres, especialmente vieiras e mexilhões para preservação ambiental”. Como questiona o jornalista Fernando Brito, por que um anônimo que “quer preservar nossos animais silvestres” constrói para isso “uma mansão e opera um helicóptero de luxo”?
A possível relação dos Marinho com as offshores é reforçada pelos seguintes elementos, encontrados pelo Viomundo e pelo Tijolaço. O endereço da Agropecuária Veine registrado no Ministério da Fazenda é o mesmo endereço de uma sociedade entre Paula Marinho e João Roberto Marinho. Já o endereço de correspondência da Agropecuária Veine é o endereço da LAGOON, empreendimento de entretenimento que funciona na Lagoa Rodrigo de Freias, no espaço cedido ao genro de João Roberto Marinho, Alexandre Chiappetta de Azevedo, marido de Paula até 2015.
O envolvimento da Globo no emaranhado de offshores não acaba aí. Como apuraram os blogs, a controladora da Agropecuária Veine (“dona” da mansão e do heliponto que seriam dos Marinho) é, como indicam as investigações do Tijolaço e do Viomundo, a empresa Blainville International Inc. A Blainville tem várias ligações com a Sunset Global Services Ltd. Corp. Ambas foram abertas pelo escritório Icaza, Gonzalez – Ruiz & Aleman e ambas teriam o mesmo endereço no Panamá. A Sunset seria de propriedade de Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobrás. Já o escritório Icaza, Gonzalez – Ruiz & Aleman também aparece na constituição da Chibcha Investment Corporation, outra empresa sediada no Panamá e que teria os irmãos Marinho como sócios.
Além da questão patrimonial há o meio ambiente. O heliponto em Paraty foi autorizado em 2009 e em 2015 pela ANAC sem a licença ambiental necessária. A Patary House já foi objeto de processos administrativos e judiciais por desrespeitar as normas ambientais, mas até agora a mansão encontra-se na área de forma irregular.
O que é interessante é que, embora os Marinho neguem a propriedade de fato desses bens, ninguém até agora apareceu para reivindicar a posse da joia arquitetônica. No papel a dona é a Agropecuária Veine, mas a pessoa de carne e osso está por trás dessa empresa não levantou a mão até agora.
GLOBO – BRASIF
A Agropecuária Veine é ao mesmo tempo “filha” da Mossack Fonseca e ligada por empresas de papel à Brasif. A Brasif, por sua vez, está ligada à Globo pelo pagamento de Miriam Dutra, ex-namorada de FHC. Temos algo como: Globo – Veine – Brasif – FHC – Globo.
Vamos aos detalhes.
O helicóptero que serviria à família Marinho é de propriedade de um consórcio entre a Agopecuária Veine e a empresa Santa Amália. É o que apurou o Tijolaço. O Consórcio Veine-Santa Amália, teria tido como testemunha de sua constituição Alexandre Chiappetta de Azevedo, o genro de João Roberto Marinho.
O consórcio Veine-Santa Amália, a empresa Santa Amália e a Brasif SA Importação e Exportação teriam todos mesmo endereço. É o mesmo endereço que consta na planta básica da Fundação Libertas – antiga Previminas, que administra os planos de saúde das empresas do governo de MG e também seus fundos de pensão. Quem administrou essa fundação foi o ex deputado Fábio Avelar (PSDB/MG). Segundo apurou o “Viomundo”, funcionários afirmam que no endereço nunca funcionou o consórcio nem pousou algum helicóptero.
O Tijolaço apurou que o Helicóptero Augusta 109 posteriormente foi transferido à Vattne Administração. A Vattne funciona na mesma sala da Cia Brasif Consórcio Empreendimento Luziania, do grupo Brasif.
A Brasif era proprietária da Eurotrade Ltd, com sede nas Ilhas Cayman. A Eurotrade Ltd. firmou, em 2002, contrato com a jornalista Miriam Dutra, segundo a qual FHC – com quem ela teria um filho – usou essa empresa para bancá-la no exterior. A Brasif era concessionária das lojas ‘dudy free’ nos aeroportos.
O colunista Élio Gaspari considerou que as relações têm aspectos de interesse coletivos relevantes: “A concessão de lojas de ´duty free´ no desembarque de passageiros de voos internacionais é assunto de natureza pública”. É que a Brasif, segundo a Folha, conseguiu “derrubar medida criada no governo FHC para limitar a US$ 300 por pessoa (eram US$ 500) o gasto nos free shops, além de ter dominado praticamente sozinha a concessão desse tipo de loja em aeroportos.
Em 03/10/2014 ocorreu incêndio no depósito 55 da Brasif. O fato passou-se poucos dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais. Os documentos viraram pó.
A intermediação do contrato entre a Eurotrade Ltda. e Miriam Dutra foi feita por Fernando Lemos. Ele era dono da Polimídia, que teve contratos com o governo entre 1993 e 2010. Haveria algum favorecimento pessoal ou troca de favores na manutenção desses contratos? Segundo “O Cafezinho”, a irmã de Miriam Dutra, Margrit Dutra Schmidt, era esposa de Fernando Lemos, também proprietária da Polimídia. Ela, como apurou a imprensa, seria funcionária “fantasma” do gabinete do Senador José Serra. Haveria aí um favorecimento indevido de Magrit, irmã de Miriam Dutra? Uma troca de favores com uso do patrimônio público?
Miriam Dutra trabalhou para a Globo por 25 anos, inclusive em Portugal e Espanha. Segundo ela, em entrevista ao Diário do Centro do Mundo, o diretor de jornalismo da Globo Alberico de Souza Cruz a ajudou a sair do Brasil. Alberico obteve 11 concessões de TV do governo federal nos anos de FHC, através das empresas Divinópolis e São Luiz. Há indícios de troca de favores com recursos públicos. Além disso, as empresas Divinópolis e São Luiz foram, como apurou o DCM, constituídas em sociedade com Jonas Barcellos, dono da Brasif.
Parece clara uma triangulação FHC – Globo (Alberico) – Brasif, em que as duas empresas cuidaram de manter Miriam Dutra no exterior, retribuídas com favores do governo federal.
Miriam também disse que uma forma de retribuição do governo FHC à Globo – que não aproveitou praticamente nenhum de seus trabalhos fora ao longo dos anos – por seu “exílio” na Europa foram os muitos financiamentos a juros baixos concedidos à emissora via BNDES.
Conforme apurou o blog “Rede Brasil Atual”, o relatório do Tribunal de Contas da União em tomada de contas que investigou “favorecimento à Net Serviços (operadora de TV a cabo criada pelo Grupo Globo e vendida depois para o grupo mexicano de Carlos Slim)”, concluiu que entre 1997 e 2002 “o BNDES repassou 2,5 vezes mais dinheiro para o Grupo Globo do que o repassado para outras empresas do mesmo ramo que pleitearam empréstimos junto ao banco público. Ou seja, a cada R$ 3,50 liberados pelo BNDES, R$ 2,50 foram para a Globo, restando portanto apenas R$ 1 para todas as concorrentes do mesmo ramo”.
Segundo o blog “Desenvolvimentistas” e o blog “O Cafezinho”, a portaria do Ministério da Fazenda de n° 04/1994 é aquela pela qual “FHC efetivamente pode ter pago parte de sua dívida política com a Globo, que liderou a operação, junto com Antonio Carlos Magalhães, para ‘exilar’ Miriam Dutra na Europa”. Segundo “O Cafezinho”, “essa portaria beneficia diretamente a Globo, dando isenção de IPI (Imposto de Produtos Industriais) para a importação de alguns maquinários específicos. Os primeiros itens listados, no Anexo em que se informam quais são os produtos para os que se dá isenção fiscal sobre sua importação, são unidades de processamento de vídeo, modelos: MTV 200-BÁSICO, MTV 200-CGA e MTV 200-VGA, dentre outros”.
GLOBO – FIFA
Um dos diretores de empresa ligada à Mossack Fonseca é Eugenio Figueiredo, ex-presidente da Conmebol e ex-vice presidente da FIFA. Segundo ele, que está preso por conta do esquema de propina na entidade, quem liderava tais articulações ilícitas era Ricardo Teixeira.
De acordo com as investigações de Jamil Chade, Ricardo Teixeira, ao lado de João Havelange, ambos secretários da FIFA, teriam usado sua influência para dar à Globo os direitos de transmissão das Copas de 2002 e 2006. A Globo retribuiria os favores pagando propinas pela offshore ISL. Na Suíça, concluiu-se que Teixeira e Havelange estavam envolvidos em suborno para beneficiar a Globo; eles pagaram as respectivas multas e os documentos foram posteriormente enviados aos EUA para investigação. De acordo com o UOL, os contratos da FIFA articulados por Ricardo Teixeira firmados com a Globo estão sob investigação da Polícia Federal.
Não se tem notícia de que algum agente do grupo Globo tenha sido responsabilizado por tais fatos no Brasil.
Segundo relatório da Receita Federal, divulgado pelo “Cafezinho” em 2014, houve uma “intrincada engenharia desenvolvida pelas empresas do sistema Globo” para “esconder o real intuito” da operação de “aquisição, pela TV Globo, do direito de transmitir a Copa do Mundo de 2002, o que seria tributado pelo imposto de renda”. O documento afirma que a empresa “participou, como já se demonstrou, de toda a engenharia praticada com o fito de simular e sonegar”.
Como divulgado pelo “Cafezinho”, “engenharia da Globo envolveu 11 empresas, constituídas em diferentes paraísos fiscais. Com exceção da suíça ISMM, empresa responsável por vender licenças de transmissão da Copa para fora da Europa, todas, pertencem, secretamente ou não, ao sistema Globo.
Conforme divulgado pela imprensa, Eugênio Figueiredo foi preso em decorrência da delação de J. Hawilla no escândalo da FIFA. Como aponta reportagem da RBA, J. Hawilla é fundador da TV TEM sigla de Traffic Entertainment and Marketing. Ele foi condenado nos EUA “por extorsão, conspiração por fraude eletrônica, lavagem de dinheiro e obstrução da Justiça” em decorrência de “subornos para cartolas da FIFA, da CBF e outras confederações de futebol por contratos de direitos televisivos e de marketing”, com emissoras “como a TV Globo”.
Existem fortes indícios da prática de crimes como organização criminosa, “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, sonegação fiscal, além de outras ações criminosas contra a administração pública, contra o sistema financeiro nacional e contra a ordem tributária. Esperamos que a Polícia, e que o Ministério Público com seu poder de investigação recentemente constitucionalizado, apurem esses possíveis crimes.

A VERDADEIRA FACE DE FILGUEIRAS, O AMIGO DE TEORI ZAVASCKI

A verdadeira face de Filgueiras, o amigo de Teori ZAVAsCKI

Joaquim de Carvalho
A partir da semana que vem, o DCM abrirá uma campanha de crowdfunding (contribuições voluntárias) para contar a história de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras, o dono do hotel Emiliano e do avião que transportava Teori Zavascki que caiu em Paraty.

Filgueiras, como você verá nesta primeira reportagem, era um mestre na arte de fazer amizades e influenciar pessoas.

Milionário, sempre cultivou certa discrição na medida em que ganhava mais dinheiro — e por razões que vão ficando aparentes à medida que sabemos mais dele.

Você poderá financiar a feitura do perfil completo dele e entender um pouco mais as relações de poder no Brasil. Fique ligado.

A história do avião que caiu nas águas de Paraty com um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) a bordo tem força para fazer emergir um lado do Brasil em que não cabe a Teori Zavascki o papel de herói.

Pelo contrário. E, para entender o que está por trás da última viagem do ministro, é preciso conhecer quem o colocou naquele voo, e com que propósito.
Carlos Alberto Fernandes Filgueiras era um milionário com múltiplos negócios e uma habilidade em particular: fazer amizade com gente poderosa e às vezes famosa, como Roberto Carlos no passado e Eike Batista mais recentemente, mas sem deixar de viver na sombra, sempre longe de holofotes.

Logo depois do acidente, no dia 19 de janeiro, a coluna de Lauro Jardim no jornal O Globo publicou uma nota em que relaciona a amizade entre Teori e Filgueiras a um episódio trágico: os dois teriam se conhecido em 2012, quando o ministro se hospedava no hotel para acompanhar o tratamento da mulher contra um câncer, no Hospital Sírio Libanês.

Estive no Hotel Emiliano segunda-feira, dia 23, e conversei com alguns funcionários, sem me apresentar como jornalista. Nenhum deles se lembra de ter visto Teori por ali, embora o ministro fosse uma personalidade conhecida nacionalmente.

Teori pode ter estado lá, mesmo que recepcionistas e garçons não o tenham visto e ele pudesse fazer frente a uma das diárias de hotel mais caras do Brasil.

A tarifa de balcão fixada para o apartamento luxo, a mais barata, sai por R$ 2.130,00, mas, fazendo a reserva pelo telefone, o hóspede paga R$ 1.750,00.

Um dia no Emiliano consome quase 5% do salário de um ministro do Supremo – e é razoável supor que vir de Brasília a São Paulo para o tratamento de uma doença grave como o câncer não seja jornada para um único dia.

Unidos em vida pela tragédia de uma doença, a da esposa de Teori, mortos em outra tragédia, a da queda do avião. Este é um enredo que combina com a versão de herói. Diz a nota do jornal O Globo: “Carlos Alberto era um frequente companheiro de papo de Teori, com quem conversava, sobretudo depois das visitas do hospital.”

Na mesma linha, a revista Época, da mesma editora do jornal, na capa da edição que noticiou a morte do ministro, destacou: “Obrigado, Vossa Excelência — a trajetória e o legado do discreto juiz que se revelou um herói silencioso da Lava-Jato”.

Não era necessário muito esforço jornalístico para ver que a versão “amigo de fé, irmão camarada” não bate com os fatos.

Em maio de 2006, seis anos antes da doença de dona Maria Helena, esposa do ministro, Teori Zavascki estava no Superior Tribunal de Justiça e foi relator de um recurso que interessava diretamente a Filgueiras: a Prefeitura de São Paulo queria receber de Filgueiras IPTU que considerava sonegado e tentou executar a dívida, dada como certa pela Justiça em primeira instância.

Mas Filgueiras apelou e o caso foi parar no STJ, através de um recurso especial da Prefeitura de São Paulo, que exigia de Filgueiras bens em garantia para a execução da dívida. A decisão de Zavascki dispensou Filgueiras de oferecer bens (o que significa penhora) enquanto recorria.

O voto de Zavascki foi acompanhado por mais dois ministros – um deles Luiz Fux, hoje no STF, que divulgou nota a respeito da morte do colega – “jamais o esqueceremos pelo bem que realizou em prol do País e da Justiça”.

Portanto, quando Teori se hospedou no Hotel Emiliano (se é que se hospedou alguma vez, funcionários não o viram e um deles, perguntado por mim, que não me apresentei como jornalista, disse que estava proibido de falar desse assunto), o dono do hotel já tinha cruzado com sua rotina profissional – agora tratada como legado.

Teori poderia se registrar no Hotel Emiliano sem se preocupar com quem é o dono – em geral, ninguém busca essa informação ao fazer uma reserva –, mas, uma vez apresentado ao proprietário, talvez devesse ter tido alguma cautela.

Só no Tribunal de Justiça de São Paulo o nome de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras aparece em 39 processos na área civil – a maioria deles como autor, sem contar o processo em Angra dos Reis, onde é acusado de crime ambiental.

Em alguns processos no Tribunal de Justiça de São Paulo, ele aparece como executado por não pagar IPTU e, em um caso, o nome dele está por trás de uma empresa condenada por débitos entre particulares e apontada por um juiz como autora de fraude contra credores.

A empresa se chama Tuama Construtora e Incorporadora Ltda, da qual Terezinha Peixoto Coutinho tenta cobrar uma dívida, sem sucesso, desde 2003. Em 2009, o juiz escreveu:

“Ora, no caso sub judice se vislumbra, como salientado supra, laivos de que os sócios da Executada estão se homiziando atrás da personalidade jurídica de sua empresa para inadimplir suas obrigações para com terceiros seus credores, configurando e patenteando esse comportamento fraude e abuso de direito no decorrer da sua gestão, bem assim como o mau uso que da sociedade comercial estão a fazer.”

A sentença da 6ª. Vara Cívil de São Paulo relaciona Carlos Alberto Fernandes Filgueiras como um dos sócios da Tuama e determina a desconstituição da personalidade jurídica, para que ele e dois sócios respondam com seus bens pessoais. Seis anos depois, a ação ainda corre e Terezinha não recebeu o que reclamou na Justiça, com ganho de causa.

Nos anos 90, o cantor Roberto Carlos teve uma parceria com essa empresa, a Tuama Construtora e Incorporadora Ltda., que já era de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras. Os dois se associaram para construir um edifício de flats na Rua Oscar Freire.

Em 2011, o jornalista Guilherme Barros noticiou em sua coluna no IG que o cantor estreava no mercado imobiliário com a incorporadora Emoções, mas um leitor, Nélson Borges, corretor veterano, o corrigiu:

“Não é a primeira incursão do Rei Roberto Carlos nesse mundo. Trabalho com imóveis há 32 anos e me lembro dele com a Incorporadora e Construtora Tuama no primeiro empreendimento imobiliário. Ele e a família Filgueiras não tiveram sucesso num empreendimento na Rua Oscar Freire, um Flat com apenas quatro apartamentos por andar. Houve problemas com a fundação e esse erro de produto, pois um flat com quatro apartamentos por andar não funciona. Sou muito fã desse grande cantor. Sucesso nessa segunda etapa.”

Roberto Carlos admite, através de sua assessoria, que teve esse negócio com Filgueiras, mas se recusa a falar sobre o assunto e sobre o empresário.

Ele teria tido prejuízo e deixou a sociedade antes que Filgueiras transformasse o flat no Hotel Emiliano, com um produto – que chamou de hotel butique – e uma ação de marketing que levou o empreendimento até as páginas do New York Times, que fez uma resenha positiva do Hotel Emiliano.

Pelo silêncio do cantor, que não quer falar de um homem que já morreu, não é difícil concluir que Roberto Carlos teve motivos para se afastar de Filgueiras que vão além de um suposto erro de projeto arquitetônico, como aponta o veterano corretor.

Talvez Roberto Carlos tenha tido a cautela que faltou a Teori Zavascki – mas quem viaja imaginando que o avião vai cair e deixar uma grande quantidade de perguntas sem resposta?

Os fatos, como se disse, insistem em embaçar a imagem do herói da Lava-Jato. Desde 2010, Teori já era cotado para uma indicação ao STF. Quando vagou a cadeira de Eros Grau, Mônica Bergamo informou, em sua coluna na Folha de S. Paulo, que ele tinha um padrinho forte: Nélson Jobim.

Em 2015, depois que o ministro foi nomeado para o STF, a Revista Época, numa reportagem crítica a uma decisão de Teori Zavascki entendida como favorável ao PT, cravou: “Em sua ascensão, Teori contou com a amizade do ex-deputado e ex-ministro Nelson Jobim, que foi integrante dos governos de Fernando Henrique e Lula.”

Na mesma reportagem, escrita quando Teori não era visto pelos editores como um herói da Lava-Jato, a Revista Época recuou a um passado ainda mais remoto, 1989, quando ele era advogado do Banco Central e foi nomeado desembargador do Tribunal Federal da Quarta Região pelo então presidente José Sarney.

A revista publicou cópia de um telegrama do então presidente José Sarney ao ministro do Supremo Tribunal Federal Paulo Brossard, transmitido para comunicar que o presidente da República aceitara a indicação de Brossard e nomeara o então jovem Teori Zavascki (40 anos) para o Tribunal Regional Federal.

Época não fez essa relação, mas, como Nélson Jobim reconheceu em um discurso de 2004, Brossard foi um de seus padrinhos políticos, ao incentivá-lo a disputar uma eleição para deputado.

As ligações entre Teori e o universo político de Jobim nunca foram segredo, assim como é público que o ex-governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro, do PT, também fez lobby para Teori se tornar ministro do STF.

A diferença é que a rede de relacionamentos de Jobim e Teori passou a ter em comum a pessoa de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras, através de uma empresa criada para comprar e administrar uma unidade do Hotel Emiliano no Rio de Janeiro, a Forte Mar Empreendimentos.
A empresa tem capital social de quase R$ 150 milhões, divididos entre Carlos Alberto Fernandes Filgueiras e um fundo de investimento gerido pelo BTG Pactual, de André Esteves.  Dois ex-diretores do BTG, homens de confiança de Esteves, também são diretores da Forte Mar.

Em novembro de 2015, Esteves foi acusado de concordar com a compra de um ex-diretor da Petrobras para não ser envolvido na Lava-Jato, e Teori mandou prendê-lo, juntamente com o senador Delcídio do Amaral, mas Esteves deixou a cadeia bem antes dele, um mês depois da prisão.

O banqueiro teve primeiramente o benefício da prisão domiciliar. Em abril do ano passado, Teori revogou a prisão domiciliar e devolveu a liberdade praticamente plena a André Esteves.

Em agosto, quatro meses depois de Esteves recuperar a liberdade, o BTG anunciou mudança na sua direção e Nélson Jobim foi apresentado como novo presidente, com uma remuneração de R$ 60 milhões por um contrato de cinco anos – ou seja, R$ 1 milhão por mês.

No anúncio ao mercado, Nelson Jobim, ex-ministro da Justiça e ex-ministro e presidente do Supremo, foi apresentado como a pessoa com perfil adequado para dar maior rigidez aos critérios de governança corporativa, ou seja, evitar a corrupção. Tudo muito bonito até o acidente aéreo revelar a proximidade de Teori com Filgueiras, sócio do BTG de Esteves.

Num situação hipotética, poderia ocorrer de Filgueiras agradecer Teori por livrar o sócio da prisão e Teori manifestar gratidão por ter o padrinho acolhido na vice-presidência do BTG. É uma hipótese, registre-se mais uma vez, mas não é uma hipótese absurda. Constrangimento que poderia ser evitado.

Mas quem conheceu de perto o empresário Filgueiras já viveu muitas situações que poderiam causar constrangimento, mas de outra natureza. Filgueiras era separado e teve quatro filhos, todos adultos. Foi visto muitas vezes na companhia de mulheres tão bonitas quanto caladas.

A jornalista Luiza Pastor postou em seu Facebook uma nota para contar que conheceu o empresário, jantou com ele algumas vezes num restaurante japonês, na companhia do artista plástico Siron Franco, e que, instada a dar conselho sobre como ter “uma mulher interessante, inteligente e que não pensasse só no seu dinheiro”, respondeu a Filgueiras que ele deveria deixar de contratar garotas de programa:

“Que tal começar procurando em algum lugar que não seja o Café Photo ou o Bahamas? Se você, por acaso, conseguir encontrar uma mulher com esse perfil e, de cara, convidá-la a passar o fim de semana em sua casa de Paraty, presenteando-a com um jogo de malas Louis Vuitton, com certeza ela vai sair correndo de susto. Leia um pouco mais de Vinícius, escute o que o poeta diz em Para viver um grande amor, tenha em vista “um crédito de rosas na florista, muito, muito mais que na modista”. Talvez funcione…”

A paulistana Marilu Alves de Oliveira também conheceu Filgueiras de perto, só que numa relação diferente da de Luiza Pastor. Ela era empregada do Hotel Emiliano. Trabalhou doze anos no hotel, praticamente desde o seu início até 2013, quando foi demitida.

Começou como ajudante, depois passou à arrumadeira e terminou servindo cafezinho ao patrão. Numa ação trabalhista, ela acusou Filgueiras de ataque sexual e atribuiu sua saída da empresa ao fato de ter resistido ao assédio.

Na Justiça do Trabalho, numa ação a que não deu nenhuma divulgação, Marilu disse que, bêbado, Filgueiras a agarrou numa festa de fim de ano, tocou em suas partes íntimas na frente de outros funcionários e, quando ela tentou se desvencilhar, ouviu um grito:

“Dança comigo, porra!”

Segundo ela, depois dessa cena, Filgueiras saiu para férias de fim de ano e, um mês depois, quando ele retornou, Marilu teria ficado sem função e acabou demitida, sem receber todos os seus direitos.

Na Justiça do Trabalho, ela relatou um cotidiano de trabalho altamente desgastante e ambiente ruim. Ao tomar conhecimento da ação, Filgueiras constituiu um dos mais famosos criminalistas do Brasil, Nélio Machado, para questioná-la judicialmente.

A ex-funcionária confirmou a acusação e foi processada, por injúria e calúnia. Em abril do ano passado, a juíza da 16ª Vara do Fórum Criminal da Barra Funda absolveu Marilu por entender que não houve crime contra a honra, já que a ex-funcionária não espalhou a denúncia de ataque sexual. O que fez foi denunciar o assédio, nos limites da Justiça do Trabalho.

“Muitos dos fatos discutidos nesta queixa-crime dizem respeito ao objeto da reclamação trabalhista e teriam sido enfrentados não tivessem as partes encerrado a questão com acordo”, escreveu a juíza, na sentença de cinco páginas. Pelo acordo, Filgueiras pagou R$ 15 mil de indenização, além de liberar o fundo de garantia.

Na sentença, a juíza registra também que, ao depor, Filgueiras citou um escândalo ocorrido alguns meses antes de processar a ex-funcionária, o do então diretor-geral do FMI, Dominque Strauss-Khan, acusado de estuprar uma camareira de um hotel em Nova Iorque.

O sentido da citação parece ser que Filgueiras, ao processar Marilu, queria evitar alvo de um escândalo no Brasil, ainda que as acusações fossem diferentes e que ele tenha refutado com veemência a denúncia da funcionária.

A defesa de Filgueiras recorreu dessa decisão da Justiça Criminal.

Marilu não apresentou testemunha que comprovasse sua acusação e as testemunhas de Filgueiras, funcionários do hotel, disseram que não viram nada.

As alegações da arrumadeira do hotel expõem situações, verdadeiras ou não, que acabam aproximando Filgueiras muito mais de sua origem empresarial conhecida, como investidor do garimpo de Serra Pelada e madeireiro do Sul do Pará, do que da realidade empresarial de seus anos mais recentes.

O ex-prefeito de Tucuruí, no Pará, Parsifal Pontes, conheceu Filgueiras dessa época e contou em seu blog que ambos compravam barrancos e não eram garimpeiros.

Outro contemporâneo de Serra Pelada escreveu, num comentário: “Também me lembro dele, às vezes jogava umas partidas de dominó com Nestozão e Rodolfo, no barraco deles na Rua do Sereno. Que a terra lhe seja leve.”

A partir de Serra Pelada, Filgueiras prosperou. No que é de conhecimento público, um de seus filhos, também chamado Carlos, foi investidor do Grupo X de Eike Batista, do qual se afastou após perder dinheiro.

Associou-se então ao grupo americano DeVry, que atua na área educacional, e comprou faculdades no Brasil, começando pelo Norte e Nordeste. Um de seus últimos negócios foi a aquisição da Damásio Educacional, de São Paulo, famosa por seus cursos jurídicos.

Filgueiras, o pai, tinha vários negócios no próprio nome, no ramo de hotelaria e incorporação imobiliária, mas era visto sempre no hotel, onde o empreiteiro Ricardo Pessoa diz ter jantado em 2014, pouco tempo antes da eleição, com o senador Renan Calheiros e acertado com ele a entrega de R$ 1,5 milhão para a campanha do filho, hoje governador de Alagoas. O relato está na delação premiada de Ricardo Pessoa, dono da UTC.

Um lobista com quem conversei esta semana disse ter estado no hotel para negociar comissões envolvendo créditos na Dersa, a estatal de transportes do governo do Estado de São Paulo.

É um lobista que já apareceu em páginas policiais, envolvido com negócios obscuros que envolvem PSDB, DEM, PSD e até o PSB. Ele pediu para não ter o nome divulgado. Mas deu pistas e autorizou divulgar seu relato.

Checando o que ele disse, confirmei que o Ministério Público já tomou seu depoimento, mas, questionado por uma situação específica, não teve a oportunidade de denunciar esquemas mais abrangentes, que envolveriam autoridades do Estado de São Paulo. Segundo ele, promotores de São Paulo não tiveram interesse de ouvir as informações que o aproximavam do Palácio dos Bandeirantes.

Na reunião que ele teve no Hotel Emiliano, em 2008, esse lobista conheceu Filgueiras e se surpreendeu quando ouviu dele próprio que havia um esquema para comprar créditos duvidosos da Dersa por 10% do valor. Na versão do lobista, quem antecipava o dinheiro era Filgueiras e depois, graças a influências nas instâncias superiores da Justiça, o crédito era recebido na sua integralidade.

Denúncia grave, mas não tão grave quanto a que o jornalista paraguaio Chiqui Ávalos fez no Twitter, relacionando Filgueiras a negócios muito obscuros na fronteira e conhecido por suas “más amizades” no Paraguai. Um leitor quis detalhes e ele disse que o contrabando de bebidas é um desses negócios obscuros.

Chiqui Ávalos já foi colunista e correspondente em Paris do ABC Color, o principal jornal do país, e é autor de um best seller local, o La Outra Cara de HC, com acusações pesadas, inclusive de envolvimento com o narcotráfico, do atual presidente de lá, Horácio Cartes.

No livro, ele agradece a quem o ajudou a levantar as informações. Está lá o nome do senador Romeu Tuma, que já foi chefe da Polícia Federal do Brasil e da Receita Federal.

“Que fazia o relator da Operação Lava-Jato no avião (com uma jovenzinha a bordo), em fim de semana na mansão da praia com um tipo assim?”, questionou Ávalos.

No Brasil, deveria haver a mesma perplexidade. São muitas as perguntas, mas já começam a surgir algumas respostas.


MUROS DA INTOLERÂNCIA, PONTES DE SOLIDARIEDADE

Muros da intolerância, pontes de solidariedade
Flávio Dino*


Todos estamos destinados a viver em sociedade, compartilhando os mesmos bens que a Natureza nos oferece. E também comungando os mesmos desafios humanos: doenças, desemprego, desigualdade, injustiças. Portanto, temos o dever de encontrar soluções coletivas que melhorem o nível de vida de todos, garantindo um futuro de mais oportunidades a nós mesmos e às gerações futuras.

No entanto, vivemos um momento da história em que alguns falsos profetas vendem a possibilidade de saídas individualistas. Soluções que contemplem apenas parte da sociedade apta a 'se virar sozinha', deixando à míngua a imensa maioria da sociedade, que não tem o mesmo ponto de partida em oportunidades. São profetas que semeiam em meio a um momento de desilusão da sociedade. Desânimo justificado pela imensidão de desafios coletivos que ainda temos a enfrentar. No entanto, essa pregação não busca nenhuma verdadeira salvação para todos. Apenas quer solidificar seus castelos de prosperidade, jardins cercados que isolam a maioria da sociedade para fora de muros.

Esses aventureiros sempre existiram na história, mas nunca com resultados exitosos. E ao longo dos tempos já vestiram várias roupas: o ditador carismático, o gestor técnico, o antipolítico, o soldado da lei, entre outros disfarces que os defensores de privilégios costumam usar.
O Papa Francisco, esta semana, nos lembrou que, "em momentos de crise, o discernimento não funciona". E buscamos "um salvador que nos devolva a identidade e defenda-nos com arames farpados". Penso nessas palavras do Santo Padre quando vejo a notícia do absurdo projeto de construção de um muro na fronteira dos Estados Unidos com o México. Como se isolando uns cidadãos de outros, a vida destes pudesse prosperar mais. Ideia em consonância com a recente saída do Reino Unido da União Europeia, que mostra certo espírito de época, com o crescimento aqui e ali de posições de cunho fascista.

No Brasil, não é diferente e também vivemos um momento semelhante. As instituições estão com sua credibilidade destroçada, enquanto empresas e empregos desaparecem, a fim de atender altos interesses econômicos. Vemos uma minoria que pensa ser possível evoluirmos sem um debate democrático sobre nosso futuro. E convivemos com ´especialistas´ que acham que o Brasil pode resolver a grave crise econômica que vive com um 'salve-se quem puder', deixando à própria sorte milhões de brasileiros.

Tudo isso tem alimentado ódio, muito ódio, que grita nas caixas de comentários de sites ou nas redes sociais.

Felizmente, essas pulsões autoritárias e egoístas têm sido efêmeras. Perseveraram na história da Humanidade os grandes avanços sociais de períodos em que se apostou na solidariedade. É o caso da Era de Ouro do pós-guerra, em que foram criados e multiplicados muitos instrumentos sociais de solidariedade existentes hoje, como a Previdência Social e os sistemas públicos de saúde.

Não tenho dúvida de que o Brasil vai reencontrar seu caminho de desenvolvimento e paz. E no Maranhão seguimos a nossa luta com muita fé e otimismo, pois os resultados aí estão. Adultos sendo alfabetizados; crianças e jovens estudando em escolas melhores e recebendo material escolar via Bolsa Escola; restaurantes populares sendo abertos; mais portas se abrindo na saúde; agricultores familiares recebendo inédito apoio, entre tantas conquistas derivadas de uma firme e autêntica opção pela Justiça Social.

Por isso, tenho convicção de que vamos atravessar esses tempos sombrios no planeta. Servirão para tornar mais profundo na memória coletiva o valor milenar do humanismo.

Lembro novamente do Papa Francisco alertando sobre os falsos profetas que, "diante da necessidade da multidão", pregam "o cada um por si". O papa lembra que o princípio cristão, como o de outras religiões, é o da solidariedade. Tanto que um dos últimos ensinamentos de Jesus, na Santa Ceia, foi "Fazei isto em memória de mim" (Coríntios 11:24). Indicando que a melhor forma de vivenciá-Lo é comungar, partilhar, solidarizar-se.

Que assim seja.

* Governador do Maranhão


'Marisa e Lula'

'Marisa e Lula'

Aos 25 anos, a senhora que hoje luta pela vida, abriu a porta de sua casa a uma visitante ilustre, para nunca mais fechá-la: a luta por um Brasil mais justo.

Saul Leblon

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Chegará o dia em que o enredo pronto que existe dentro da legenda ‘Marisa e Lula’ merecerá o olhar de um cineasta brasileiro.

Um diretor atento a um Brasil contra o qual a mídia sempre manteve, e intensificou, uma relação depreciativa, mais belicosa e obsessiva que a dispensada agora aos veículos de comunicação  por Trump, enxergará neles a personificação de um dos períodos mais generosos e vitais da vida nacional.

O improvável revestirá os passos iniciais na trajetória deste casal de trabalhadores no maior polo industrial do Brasil.

Um homem e uma mulher de origem simples, jovens, mas viúvos, apetrechados no máximo de um cristianismo ingênuo a revestir a luta pela sobrevivência, um dia abriram a porta de sua casa a uma visitante ilustre, para nunca mais fechá-la.

Era a história.

E ela os arrebatou.

Surpreendentemente, porém, e nisso reside o magnetismo da trama há léguas de ser uma fábula de seres perfeitos, também foi arrebatada por eles, com todos os riscos inerentes a uma coisa e outra num dos períodos mais turbulento da vida nacional.

Estamos no Brasil de 1974, em plena ditadura militar.

Nesse enredo de carne e osso as cenas se desenrolam quase prontas aos olhos de quem quiser enxergá-las.

É uma história de resistência e luta, de coragem e medo, curtida em derrotas e superação, temperada de doses de grandezas e fraquezas, cuja soma conflituosa afronta a prateleira do previsível e do edulcorado para arrombar a fronteira que dividia o passo seguinte do país.

Contra todas as probabilidades eles não foram derrotados pela avalanche que recobriria seu destino pelo resto da vida.

Marisa e Lula afrontaram a hierarquia inoxidável do mundo burguês, patronal e conservador e também do universo pequeno burguês no qual poderiam ter se acomodado na ampla sala de estar reservada aos mansos.

Para a surpresa de uns – deles mesmos, talvez - e horror de outros, lograram tomar as rédeas do cavalo xucro da histórica que passou na sua frente, mudando a direção dele e o enredo de suas vidas.

Estão juntos há 43 anos assim. Sem parar o trote agalopado.

Um ano depois de se casarem, em 1975, Lula seria eleito presidente do mais estratégico sindicato de trabalhadores do país, inserido no maior polo automobilístico da América Latina.
Lula assumiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo quando o general Geisel era o ditador do Brasil.

O país ingressava num ciclo vertiginoso de luta por democracia e de levantes operários contra o arrocho econômico e sindical.

O ABC era o coração da impaciência operária. Mas a opressão patronal assegurada pelos militares empurrava velozmente a reivindicação salarial para a confrontação política.

Não era o que eles preconcebiam. Longe disso. Mas era o que se impunha como um efeito dominó a cada passo do embate.

Pois bem, Marisa e Lula não se deixaram encurralar pelos repetidos chamados do toque de recolher que dispara na vida de um casal nas situações de perigo que ameaçam o teto e a prole.

Logo, muito logo, nas mãos de Lula, o sindicato dos metalúrgicos ficaria nacionalmente conhecido como uma das principais fortalezas da frente ampla de luta por liberdades democráticas que se esparramava pelo país irradiando a audiência da voz rouca do mar ao sertão.

As ruas eram uma extensão dessa consciência que se adensava contra o que não era mais tolerável, a censura, a tortura, a repressão, o arrocho, enfim, a interdição do futuro na vida de uma nação.

O lar de Marisa, 25 anos, e Lula, 30 anos, foi arrebatado por esse turbilhão da história que entrou pela sala, logo estava na cozinha tomando sopa de madrugada, esparramou colchonetes e fez dali um acampamento de prontidão permanente por democracia e justiça social.

Era assim a casa de Marisa recém-casada.

Ou melhor, a casa da senhora hoje com 66 anos e uma hemorragia cerebral - que respira por aparelhos na UTI de um hospital, em cuja entrada o ódio escarnece de seu drama e ergue cartazes em que pede a prisão de seu marido.

Sua casa tornou-se uma arriscada trincheira da luta por democracia e justiça social, num tempo em que erguer cartazes por democracia e justiça social dava cadeia, não raro, pancada e tortura.

O lar dessa senhora em coma induzido era um gigantesco cartaz de audácia operária na noite do Brasil.

O filme à espera de um diretor abriria com a leitura vagarosa dos estandartes de ódio, solitários, mas exclamativos de um sentimento incontido das elites e do seu entorno contra tudo o que se refira àquela casa, à mulher e ao homem que a partir dela os desafiou e venceu.

No ambiente frio da UTI desta São Paulo cinzenta de janeiro de 2017, o silêncio só é entrecortado pelos equipamentos que monitoram o metabolismo fragilizado pelo aneurisma rompido.

O boletim médico informa que o quadro da paciente Marisa Letícia é estável.
O que se luta para preservar ali, porém, é justamente algo que se mexe como a história e que por se mexer opõe-se ao cerco que pretende afogá-lo numa grande hemorragia de demonização e esquecimento.

O alvo é certeiro.

A memória é um pedaço do futuro.

A daquele período, sobretudo preciosa para o presente.

Não apenas para entender o Brasil atual, a partir dos protagonistas ora capturados pela máquina avassaladora de picar e reconstruir reputações e legados deformando-os.

Não só para repor o que está sendo lixiviado, sangrado diariamente na mídia.

Mas ela, a memória, também é crucial para repor o orgulho, a credibilidade, a confiança e, sobretudo, a faísca capaz de religar a esperança que respirava naquela casa onde brotariam as sementes do país que trinta anos depois vicejaria.

Esse que está sendo ceifado agora com rancor inaudito, um Brasil que ainda não somos, mas que poderemos ser no século XXI.

A metamorfose do improvável nas ruas do país naqueles primórdios contradiz o impossível hoje elevado à condição de permanente.

Não é hagiografia filmada.

É uma história real, de gente de carne e osso.

Que se entregou sem se perguntar onde era a porta de saída de volta à rotina, e o fez de peito aberto, pondo na mesa empregos, filhos, o presente e o futuro, numa aposta contra o estabelecido, com os riscos e a violência sabidos.

Gente comum se agiganta em circunstâncias incomuns, ao não recuar diante delas.

Esse resgate feito de carne e osso é indispensável para repor a grandeza e as fraquezas da carne e do osso humano na fricção da história brasileira hoje sufocada pela mentira e o ódio.

Carta Maior recuperou uma das raras entrevistas em que a personagem que hoje luta pela vida em uma UTI, assim como lutou pela sua e a de milhões nesses 43 anos, rememora o seu olhar sobre os acontecimentos desse início, cujo epílogo persiste em disputa.

A resistência ao esquecimento é um pedaço dessa disputa.

A entrevista é de 2002, feita durante a campanha que levaria o PT pela primeira vez ao governo.

É atual porque devolve a Marisa o direito de se proteger daquilo que os indígenas mais temem diante de uma câmera: o roubo de alma.

Da alma da mulher que ia visitar o marido preso pela polícia política da ditadura sem fraquejar nem lhe pedir que fraquejasse; da esposa e mãe, sozinha, que, ao contrário de todos os prognósticos, quando o sensato era recuar e sumir, abriu a casa para ser o sindicato quando os três sindicatos de metalúrgicos do ABC sofreram intervenção na grande greve de 1979, coroada pelas lendárias assembleias de 60 mil pessoas no estádio da Vila Euclides; a alma da mulher que organizou com outras mães e esposas uma audaciosa passeata  de mulheres e filhos em uma São Bernardo tomada por tropas da repressão, em defesa dos maridos, dos operários e sindicalistas presos; a alma da Marisa que costurou a primeira bandeira do PT; e que se politizou assim, como protagonista de uma história feita com as próprias mãos, sobre a qual nem ela, nem ele, Lula, jamais seriam convidados a opinar se ficassem esperando o convite dos que agora tomaram de assalto a engrenagem e a reescrevem com fel, ferro e fogo.

Repita-se, não é uma elegia à pureza dos oprimidos.

É um enredo de luta entre opressores e oprimidos.

Nessa fricção, virtudes e defeitos se misturaram na implacável máquina de mastigação que é a experiência da política e do poder no capitalismo que eles encararam sem se despir da única armadura que sempre os acompanhou: a consciência de que viver é lutar. 

A memória da senhora de 66 anos que hoje trava a batalha pela vida não vale pelo saldo de pureza que ela até possa externar.

Vale pelo legado desse percurso inconcluso.

Feito de instituições e direitos que ajudou a demarcar.

E de possibilidades que contribuiu para esboçar na vida brasileira.

É nesse legado que repousa a possibilidade deste país de presos degolados se tornar um dia uma sociedade virtuosa.

Pautada em pedra e cal por direitos entre iguais e por democracia entre diferentes, que só pode ser democracia se for levada às últimas consequências na repartição do bem comum.

Inclusive para garantir a expressão de quem hoje se posta diante do hospital onde Marisa e Lula travam a batalha de vida e morte para persistirem nessa busca.

E ali destilar a represália dos que rugem contra o enredo de filme à procura de um diretor que se desata aos nossos olhos à simples menção da legenda indivisa: ‘Marisa e Lula’.

Abaixo, a entrevista de Marisa Letícia ao site da campanha do PT de 2002:
(...)
Para Marisa Letícia Lula da Silva, 52 anos, esposa de Luiz Inácio Lula da Silva, 57, o candidato a presidente pela Coligação PT-PL-PCdoB-PC-PMN, a casa nunca foi apenas o refúgio familiar, mas também um ponto de intersecção de alguns dos fatos políticos mais importantes que mudariam a face do Brasil nas últimas três décadas.

As greves do ABC, a repressão do regime militar, a luta pelas Diretas, a fundação do PT e as campanhas presidenciais do marido ganharam as ruas e viraram História, mas antes atravessaram a soleira da porta e transitaram pela sala e a cozinha de Marisa. Em 1975, com um ano de casamento, Lula chegou à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP). Três anos depois, começaria o ciclo histórico de greves no ABC paulista.

A política incorporou-se assim a sua vida como algo natural, quase uma extensão da rotina doméstica frequentemente adaptada para abrir novos espaços à mesa do almoço, ou receber visitantes que desde os anos 70 passaram a ter na casa do líder metalúrgico um ponto de referência nacional.

Lá estiveram senadores, deputados, vereadores, personalidades de todos os matizes. Alguns se incorporaram à família definitivamente. Frei Betto, por exemplo, cansou de dormir no chão da sala durante as greves metalúrgicas dos anos 78/80, designado especialmente pelo então Bispo de Santo André, Dom Cláudio Hummes, hoje arcebispo de São Paulo, para ajudar na segurança de Lula.

Tornar-se a primeira-dama, a partir de 1º de janeiro, portanto, é uma hipótese que não chega a sobressaltar essa neta de italianos, mãe de quatro filhos, avó de dois netos, que começou a ganhar a vida muito cedo.

Aos nove anos Marisa já trabalhava como pajem; aos 13, ainda sem carteira regular de trabalho, empregou-se na fábrica de chocolates Dulcora, em São Bernardo, onde ficou até os 21 anos.

Casada, tornou-se funcionária da rede municipal de ensino, que deixou para cuidar dos filhos.

Nem sempre, porém, o trânsito do país para dentro da casa foi tranquilo. Na greve de abril de 1980, Marisa e Lula acordaram sobressaltados pelos gritos dos agentes do Dops - Departamento de Ordem Política e Social.

Eram cinco e meia da manhã, ainda estava escuro. A residência cercada por homens de metralhadoras em punho foi despertada por berros no portão: Cadê o Lula? Viemos buscar o Lula, viemos buscar o Lula.

“Foi terrível, mas mantivemos a tranquilidade. Lembro-me que ele ainda disse - calma, vou tomar um café antes de sair, enquanto eu arrumava a mala”. Lula ficou preso 31 dias, saiu duas vezes nesse intervalo. Uma para visitar a mãe agonizante; outra, para o funeral de dona Lindu.

Diante da crescente exposição pública do marido, Marisa preferiu a discrição aos holofotes. Mas por trás deles ajudou a organizar passeatas de mães e filhos de metalúrgicos, em 1980, quando os líderes estavam presos e o sindicato sob intervenção. Foi ela também que de forma pioneira inaugurou o hábito da participação feminina na vida sindical do ABC. Foi Marisa, ainda, quem cortou e costurou a primeira bandeira do PT - feita em sua casa, claro -, quando da fundação do partido, em fevereiro de 1980.

Hoje, ela tenta preservar um pouco mais a fronteira familiar, pelo menos nos raros fins de semana em que o marido está no apartamento onde residem, em São Bernardo. “Proíbo conversa política e filtro as ligações telefônicas. Notícia ruim, à noite, fica para o dia seguinte”, sentencia com a voz firme, mas serena. Mais que simplicidade, seu jeito reflete a maturidade de quem aprendeu na prática que tudo tem um tempo e nada vinga sem esforço. “As coisas foram acontecendo aos poucos na nossa vida, ao longo de anos de luta. A projeção do Lula foi a evolução natural de uma pessoa de muita persistência. Quando quer algo, ele consegue”, diz com conhecimento de causa.

Em 1973, viúva, mãe de um filho do primeiro casamento, ela conheceu de perto a tenacidade do galante diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

Foi um namoro rápido. Um cerco telefônico e uma manobra ousada de ocupação do terreno do rival definiram as núpcias, sete meses depois do primeiro encontro.

“Lula chegou em casa um dia e avisou meu namorado que precisava tratar um assunto muito sério comigo. Mandou o sujeito embora - pode?”, balança a cabeça ainda perplexa com a lembrança. Perseverança equivalente ela identifica na sua trajetória política. “Em 1980, quando fui a Brasília pela primeira vez, disse a Lula: eles não vão abandonar o poder nunca. Hoje tenho certeza de que ele vai chegar lá. E espero que faça algo pela juventude - tenho certeza que o fará. A violência me assusta. Quando leio os jornais já nem presto atenção nos nomes, fixo apenas a idade das vítimas. É terrível o que está acontecendo com os jovens no Brasil”, desabafa.

Aqui os principais trechos da sua entrevista:

·         Qual a origem da sua família?

Meus pais são descendentes de italianos. O sobrenome do meu pai é Casa; o da minha mãe, Rocco. Meus avós, tanto do lado paterno, como os do lado materno, conheceram-se no navio vindo da Itália. Conheceram-se no mar, casaram-se em São Bernardo e tiveram vários filhos. Foram posseiros e para não dividir as terras faziam casamentos entre eles, algo que naquele tempo era normal. Tenho várias primas-irmãs: os irmãos de meu pai casavam-se com as irmãs de minha mãe e vice-versa.

·         Em que bairro eles moravam?

Atualmente chama-se bairro dos Casa, em São Bernardo do Campo, antigo sítio dos Casa, onde meu avô fez a capela de Santo Antônio, que está lá até hoje. A maioria dos irmãos do meu pai chama-se Antônio; os de minha mãe também; o meu avô, idem.

·         Eles plantavam o quê?

De tudo um pouco. Batata doce, batatinha, milho. Tinha gado, tinha galinha, pato. Saí do sítio com cinco anos de idade.

·         Vocês são em quantos irmãos?

Minha mãe teve quinze filhos. Três morreram ao nascer. Vivos, hoje, somos nove. Mamãe trabalhava na lavoura, os maiores ajudavam e os menores ficavam num chiqueirinho cavado na terra. Minha mãe deixava a gente ali dentro, para não fugir. Eu tinha uns dois ou três anos. Sou a penúltima dos irmãos. Tenho irmã que poderia ser minha mãe, pela diferença de idade.

·         Qual é o nome dos seus pais?

Regina Rocco Casa e Antonio João Casa.

·         Foi uma infância difícil?

Não, em casa tinha fartura. Como minha mãe plantava e colhia e também tinha criação, nunca ninguém passou fome. Ela fazia aquela galinhada, galinha com polenta para o jantar ou a minnestra, um caldo de feijão com muito legume, arroz, carne...

·         Vocês frequentavam a cidade?

A gente só saía para ir à capela. A cidade era longe. Só por volta de 1955, quando minhas irmãs mais velhas começaram a trabalhar nas tecelagens a gente saiu do sítio, aí em definitivo. Meus irmãos também estavam buscando emprego nas fábricas de móveis. Mudamos para o bairro Assunção. Meu pai comprou uma casa muito grande, com quintal onde ele continuou criando seu porquinho, galinha, horta. Ficou sempre nessa vida. Mas ainda não tínhamos luz, a água era de poço. Minha mãe cozinhava no fogão à lenha. Foi nessa época que comecei a estudar, numa escolinha de madeira. Só na terceira série é que fui para um colégio no centro, o Grupo Escolar Maria Iracema Munhoz.

·         Qual era teu sonho de vida?

Eu queria dar aula, gostava muito de criança. Meu pai achava que mulher tinha que aprender a lavar, cozinhar e costurar. Educação rígida, à antiga. Aos nove anos as meninas começavam a ajudar dentro de casa. Eu não gostava muito dessas coisas, mas fiz cursinhos de corte e costura, culinária...

·         Você começou a trabalhar com que idade?

Aos nove anos. Fui ser pajem dos filhos do sobrinho do Cândido Portinari, um dentista muito famoso em São Bernardo, o Jaime Portinari. Ele tinha três filhas. Eu tomava conta dessas meninas porque a mãe dava aula. Ela trabalhava à tarde e eu estudava de manhã, as duas no mesmo colégio. Depois nasceu mais uma menina e eu com nove anos tomava conta de uma recém-nascida. Morava nesse emprego, dormia lá.

·         Ficou muito tempo?

Saí mocinha para trabalhar em fábrica, na Fábrica de Chocolates Dulcora. Tinha 13 anos. Foi necessário tirar uma carteira especial de menor, com autorização do pai. Tenho essa carteira até hoje. Depois, com 14 anos, você já tirava a carteira normalmente. Eu comecei como embaladora de bombom alpino.

·         Como era para você trabalhar assim tão criança?

Sempre gostei de ser útil, adorava isso. Era um sonho trabalhar fora, ter o próprio dinheirinho. Fazia com prazer, mas hoje tenho consciência de que lugar de criança é mesmo na escola, com tempo para brincar e aprender. Trabalhei na Dulcora oito anos. Saí para casar.

·         Seus pais eram bravos?

Meu pai era muito enérgico, minha mãe contornava as coisas. Mas namorar não podia, imagine! Minha mãe inventava historinhas para a gente poder sair, mas era difícil. Das irmãs eu era a mais rebelde. Gostava de participar de tudo, reuniões, centro cívico, festinhas de igreja, meu pai não deixava...

·         E para namorar?

Namorar naquela época era bate-papo, dava a mão, ele levava você até a esquina de casa e ponto.

·         Você tem alguma lembrança política dessa época?

Não, nenhuma. A gente não tinha televisão e meu pai proibia falar de política dentro de casa. Ele não gostava. Nunca comentou o porquê. A gente sabia é que os avós tinham passado momentos difíceis na Itália, vieram fugidos por causa de política e proibiam de falar no assunto. Meu pai seguiu a regra. Televisão em casa só entrou quando eu já era bem mocinha. Mas nós ainda rezávamos toda tarde, às seis horas. Paquera então, só longe de casa, na Marechal Deodoro (rua central de São Bernardo), logo após o cinema, à tarde. Comprava-se pipoca e depois era sobe e desce a Deodoro...

·         Com que idade você teve o seu primeiro casamento?

Casei com o primeiro namorado, o Marcos, aos 19 anos. Casei e continuei trabalhando. Só saí da Dulcora quando engravidei. Marcos era motorista de caminhão, transportava areia. Como a gente queria comprar casa própria, ele pegava o táxi do pai, que só trabalhava à noite, para fazer bicos à tarde e nos fim de semana. Ficamos casados apenas seis meses. Marcos foi assassinado quando eu estava grávida de quatro meses. Trabalhava com o táxi num domingo à tarde quando foi assaltado e morto. Meus sogros queriam demais essa criança, aí praticamente me adotaram. Fiquei morando com eles até o Marcos completar um aninho. Então fui trabalhar num colégio de Estado, como inspetora e substituta, mas contratada pela prefeitura. Aí voltei para a casa de minha mãe, porque ela tinha mais tempo para tomar conta do nenê, enquanto eu estivesse no serviço.

·         Como você conheceu o Lula?

Eu recebia uma pensão de viúva. Naquela época você tinha que passar em qualquer sindicato para recolher um carimbo e depois receber no INPS. Costumava ir ao sindicato dos marceneiros. Mas houve umas mudanças de local e a sede dos metalúrgicos passou a ficar mais perto para mim. Foi assim que conheci o Lula, que trabalhava no Serviço de Assistência Social do sindicato.

·         O Lula já conhecia seu sogro?

É o que ele conta. Diz que eles se conheciam porque tomava o táxi do seu Cândido às vezes. Os dois conversavam sobre a nora viúva etc., mas ele não me conhecia, nem houve nenhum arranjo para esse encontro entre nós. Foi pura coincidência a ida ao sindicato.

·         Ele atendeu você?

Não, foi um menino, um mocinho chamado Luisinho. Expliquei que precisava do carimbo para receber a pensão. Diz o Lula que já havia avisado a esse rapaz: assim que chegasse uma viuvinha nova, era para chamá-lo porque ele também era viúvo (a primeira esposa de Lula, Maria de Lurdes, operária tecelã, faleceu grávida e o filho também morreu).

·         O tal Luisinho chamou mesmo o Lula?

Exato. Inventou que o carimbo estava com um probleminha, foi lá dentro e quem voltou foi o Lula. Chegou e já senti que havia algo diferente. Percebi logo, porque nunca precisou tanta cerimônia para receber uma pensão que eu já tinha há três anos. O Lula disse que havia mudado a lei, eu teria que deixar o carnê para renovar etc... E pediu meu telefone. Caí que nem uma bobinha. Trabalhava na secretaria de uma escola na época. Desse dia em diante o telefone não parou mais de tocar.

·         E você não atendia?

Um dia atendi. Ele disse que já podia passar para assinar a papelada. Cheguei, começou tudo de novo. Senta um pouquinho; vou te explicar; aquele papo... Vamos tomar um cafezinho? Foi nessa hora que deixou cair a carteirinha do sindicato e falou: tá vendo, eu também sou viúvo. Respondi: ah é?

·         Nenhuma simpatia nesse primeiro contato?

Não, naquele tempo, o que uma mulher mais queria na vida era casar e ter um filho. Eu já tinha passado por essa experiência. Mas ele não desistiu. Telefonava, insistia, por fim, marcamos um almoço no São Judas, no bairro Demarchi (tradicional restaurante do ABC).

·         O Lula sabia que você era nora do tal chofer de táxi?

Ele diz que ficou desconfiado, porque as histórias batiam. Mas foi tudo coincidência. Jamais foi montado um encontro.

·         E o namoro como começou?

Eu já tinha um namorado, vizinho da família que eu conhecia desde criança. Uma coisa assim descompromissada. Mas o Lula não queria saber. Um dia descobriu a minha rua. Chegou com um TL azul turquesa. Viu uma senhora, pediu informações. Era justamente minha mãe. Eu estava tomando banho para encontrar o namorado. Quando saio, quem está lá com a minha mãe? O Lula. Pedi que fosse embora porque tinha um compromisso, mas ele só deu uma voltinha com o TL e retornou. Chegou e foi logo dizendo para o meu namorado dar licença, que tinha assunto muito sério a tratar comigo. Mandou o cara embora. Pode? Aí já havia conquistado a simpatia de minha mãe porque era um sujeito mais alegre, mais dado que o outro. Ela ofereceu um aperitivo, o Lula entrou e, bom, tive que acabar o namoro porque ele já não saía mais de casa...

·         Casaram-se rápido?

Depois de sete meses. Mas não casei grávida não (risos). O Fábio, meu primeiro filho com o Lula, nasceu com nove meses e nove dias depois do casamento. Depois, com um ano de casado, em 1975, ele ganhou a eleição para a presidência do sindicato dos metalúrgicos.

·         Como foi essa coisa de ele virar uma figura pública?

Eu não estranhei muito porque, como disse, comecei a acompanhá-lo. Levava as esposas dos trabalhadores, organizava festas, projetos sociais. Passamos a reivindicar a presença de mulheres nas chapas. Então foi uma evolução junto.

·         E quando começam as greves, veio o medo?

Medo a gente sempre tem um pouquinho. Mas o dia a dia vai mostrando tanta força que muitas vezes você se pergunta: será que eu fiz isso mesmo? Por exemplo, nós fizemos aquela passeata das mulheres em 1980, quando os dirigentes sindicais estavam todos presos. Hoje, você pensa, parece uma loucura. Encheu de polícia. Os homens queriam dar apoio, mas nós dissemos, não, e saímos. Fizemos só com as mulheres. Botei as crianças na rua, meus filhos no meio daquela multidão, polícia para tudo quanto é lado.

·         Como era para eles ver o pai na televisão?

Tive que fazer um trabalho com isso, mas acho que ficaram com uma cabeça boa. As coisas foram acontecendo aos poucos, fomos nos adaptando. Quando ele aparecia na tevê eu brincava com os meninos: querem ver seu pai, olha ele aí, porque eles já quase não viam mais o pai.

·         Você virou mãe e pai?

É, mas foi tranquilo. Tinha reunião de pais na escola, lá ia eu. Tinha joguinho dos pais, lá ia a mãe. Não tinha problema, eu sabia que era importante.

·         A sua casa também virou uma sucursal do sindicato?

Virou mesmo. Em 1980, tomaram o sindicato da gente com a intervenção. Não tínhamos para onde ir. Desocupei a sala da frente e disse: pronto, aqui é o sindicato. E a secretária era eu. Vinham políticos, almoçavam, alguns dormiam lá em casa. Depois, montamos um fundo de greve na Igreja, para arrecadação de alimentos. Aí desconcentrou um pouco. Quem ajudou muito nessa época foi Dom Cláudio Hummes, que era bispo de Santo André e hoje é arcebispo de São Paulo.
 Vocês acabaram conhecendo muita gente nesse processo. O Fernando Henrique Cardoso também?

Sim, sim, em 1978 quando ele foi candidato ao Senado, o Lula apoiou, demos o maior apoio a ele. Foi nessa época também que conhecemos os deputados do PMDB, Suplicy, Geraldinho Siqueira, Sérgio dos Santos... Mas a gente ficava com um pezinho atrás, porque nós éramos sindicalistas e eles, políticos.

·         E a prisão do Lula, em 1980?

Nossa casa estava cercada há muito tempo. Policiais na esquina, gente rondando à noite. Eu tinha um pouco de medo pelas crianças. Mas tinha consciência de que estávamos mudando alguma coisa importante. Depois, o irmão do Lula, o Frei Chico, já havia sido preso. Preso político. Fomos visitá-lo, conversamos muito. Aquilo tudo foi deixando um sentimento de revolta em mim. Eu sabia que era preciso mudar. E para mudar alguém tinha que enfrentar aquela situação porque se ficasse pensando como meu pai, que não queria nada com política, as coisas não sairiam do lugar nunca.

·         Quando o Lula decolou como liderança, o que você sentiu?

Achei que era isso mesmo, um momento importante, algo que alguém precisava assumir. Tinha orgulho. Mas também sentia falta dele, claro, sentia falta de ter alguém com quem conversar, discutir...

·         E a prisão?

Então, a casa estava cercada há várias semanas. Frei Betto, Geraldinho Siqueira, o Jacó Bittar, o Olívio Dutra e vários outros dormiam lá para nos dar alguma cobertura.

·         Como é que vocês conheceram o Frei Betto?

Olha, foi até gozado. Um dia o Lula avisou: vem um frei almoçar aqui. Para mim, tudo bem, almoçava tanta gente lá que não fazia diferença. Come o que tem. O Lula precisou sair e lá pelas tantas me aparece na porta um jovem. Eu estava esperando um frei, com aquela bata, chinelo, um velhinho, enfim, com roupa toda marrom. Então me aparece um rapazinho e diz: - Sou o Frei Betto, trouxe uma pasta para o almoço. Respondi brincando: você pensa que nesta casa não tem comida? Somos grandes amigos até hoje.

·         E quando a polícia chegou?

Bom, primeiro, ligaram dizendo que o motorista do deputado Geraldinho Siqueira havia sumido. Saiu para buscar jornais e sumiu. Fomos dormir. Cedinho bateram no portão. Era umas cinco e meia. Tudo escuro. Frei Betto atendeu - Cadê o Lula, nós vamos levar o Lula, nós vamos levar o Lula... Um bando de homens armados de metralhadora com uma Veraneio que fechou a saída da garagem, onde ficava o nosso Fiat. Meu quarto dava para a rua. Acordei assustada, chamei - Lula, Lula, estão aí atrás de você.

·         E ele, apavorou?

Nada. Falou exatamente assim - Calma, calma, vou tomar meu café, trocar de roupa, manda esperar. Eu queria que o Frei Betto e o Geraldinho acompanhassem a viatura, mas eles já tinham prendido o motorista do deputado justamente por isso. E barraram a saída do nosso Fiat. Foi uma cena horrorosa, metralhadoras para tudo quanto é lado, mas as crianças não acordaram, graças a Deus. Pegaram o Lula, enfiaram dentro do carro e sumiram. Não falaram nada, nada. A gente não sabia para onde o levariam. Até o Fiatizinho esquentar, já tinham desaparecido. Então começamos a ligar para Deus e o mundo, e descobrimos que estava no DOPS. Ele e vários outros. Foram pegando todo mundo da diretoria do sindicato.

·         Lula tomou o tal café?

Tomou, trocou de roupa...

·         E as crianças?

Não falei sobre a prisão num primeiro momento. Dei um tempo em banho-maria, depois expliquei devagarzinho, direitinho para não assustar. Mas eu tive problemas com o mais velho na escola. O Marcos se recusava a ir à aula. Quando fui saber, eram colegas que acusavam: seu pai é bandido. Está preso, é bandido. O Marcos sentava lá na frente, eles jogavam aviãozinho dizendo essas coisas. Acabei permitindo que ele se afastasse por um tempo, o que o levou perder o ano letivo. No semestre seguinte fui à escola e falei com a diretora. Expliquei o que havia acontecido e disse que elas deveriam esclarecer as crianças. Esse tipo de preconceito não podia continuar. Só então o Marcos voltou aos estudos.

·         O Marcos era filho do seu primeiro casamento?

É. Eu o ensinei a chamar o Lula de tio, mas ele preferia pai mesmo. Aos nove anos, disse ao Lula que queria ter o mesmo sobrenome dele. E o Lula assumiu isso legalmente com alegria, com a maior satisfação. Hoje ele é Marcos Cláudio Lula da Silva.

·         Nesse período da prisão morreu a mãe do Lula?

Ela já estava muito mal, com câncer, queria ver o filho. Nós conseguimos que o Lula saísse uma vez da prisão, antes da morte, coisa que pouca gente sabe. Convencemos o Romeu Tuma (diretor do Dops na época) a permitir essa visita. Depois, ele voltou para o velório. Saí do Dops com o Lula. Mas quando chegamos ao enterro os trabalhadores cercaram o carro da polícia. Estavam revoltados. Lula pedia calma. Mas os operários haviam parado as fábricas, eram ônibus e ônibus que chegavam, uma situação tensa, de nervos à flor-da-pele, que exigiu muita habilidade e liderança do Lula.

·         As crianças foram visitar o pai no Dops?

Foram. Preparei os meninos. Expliquei como era para eles não terem medo. Disse que tinha polícia, mas que o papai estava bem, contei sobre o lugar, enfim, tentei evitar surpresas que assustassem uma criança. Quando chegamos, o Tuma disse: -Olha, dona Marisa, é melhor a senhora ir para a minha sala com as crianças que eu vou buscar o Lula. Quando ele apareceu na porta, o Fábio pensou que a cela era ali e falou - Papai você não tá preso, você tá num hotel! Tinha quatro aninhos.

·         Quando você ouviu falar em PT pela primeira vez?

Nesse tempo a discussão já havia começado, em pequenos grupos, lá em casa. No início, muitos políticos diziam: Lula, para que criar outro partido, basta entrar num dos que já existem. Mas ele respondia: quero criar um partido diferente de todos, um partido dos trabalhadores. A primeira bandeira do PT eu é que fiz.

·         Como é essa história?

Eu tinha um tecido vermelho, italiano, um recorte guardado há muito tempo. Costurei a estrela branca no fundo vermelho. Ficou lindo. A gente não tinha núcleo, não tinha nada. Minha casa era o centro. Começamos então a estampar camisetas para arrecadar fundos. Vendíamos uma para comprar duas. Estampava a estrelinha, vendia, comprava mais. Foi assim que começou o PT.

·         Você se lembra da primeira vez em que se falou de Lula na Presidência?

Em 1980, Lula foi julgado no Superior Tribunal Militar, em Brasília. Foi a primeira vez que visitei a capital. Fizemos um passeio e o guia foi mostrando as mansões, aquela ostentação toda. Quando acabou eu disse - Lula, vamos parar com tudo isso: esses caras não vão deixar você chegar ao poder nunca. Eles não vão largar isso aqui jamais. Fazem qualquer coisa, mas não abandonam essa vida...

·         Você mantém essa opinião?

Não, hoje não mais. O PT cresceu muito e na verdade já começou a mudar o país. Tem prefeituras, tem governos de estado. A mudança começou. Mas ainda vão resistir muito. Vão lutar muito para deixar a gente chegar ao poder. Mas hoje temos chance. O povo está descontente demais. Além do que, existe uma característica do Lula que pesa muito. É algo que vem de berço: o Lula quando quer uma coisa consegue. E ele vai conseguir melhorar esse país. Ele mudou na época da ditadura militar, não mudou?

·         O que te dá mais medo no Brasil hoje?

A violência. Os nossos jovens são a principal vítima. Quando leio os jornais já não olho nem nome, nada. Fixo-me na idade: uns moleques, viu? Só moleques. É o que me dá mais medo, me dá dó, dá pena. Mas eu sei que se essa juventude tiver a chance de uma escola, uma boa educação e trabalho, o país muda.

Muda. Tenho certeza que muda.