quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A PEC DA DESTRUIÇÃO DA ECONOMIA BRASILEIRA

A PEC da destruição da economia brasileira


A PEC-55, caso viesse a ser aprovada, provocaria a mais profunda e prolongada depressão na economia brasileira, maior do que a observada nesses dois últimos anos, tendo em vista a projetada contração de investimentos e gastos orçamentários ao longo de 20 anos. Antes de completar seu tempo, ou o tempo intermediário de 10 anos, o país mergulharia ou na indigência mais absoluta dos pobres ou na guerra civil.
Roberto Requião*

   O Senado da República pode impedir isso. E a forma de impedi-lo é apresentar e aprovar uma alternativa.

É falso que a situação fiscal em que nos encontramos caracteriza uma crise aguda, o que justificaria medidas extremas como a PEC-55. Nossa situação fiscal é melhor, em termos estruturais, inclusive quanto à relação dívida/PIB, do que a maioria dos países. Temos, sim, uma crise conjuntural que resultou em queda aguda de receita devida à contração da economia, o que se deveu, por sua vez, às consequências da Lava-Jato no sistema Petrobras – o maior investidor brasileiro, que reduziu drasticamente seus investimentos – e o chamado “ajuste Levy”, praticamente imposto pelos neoliberais ao Governo anterior, e agora replicado sobre o atual Governo com maior rigor.

Podemos reverter rapidamente esse quadro conjuntural. Não é preciso ir longe. Façamos o que foi feito em 2009 e 2010, em termos macroeconômicos. Na ocasião, caso não se lembrem, depois de drástica contração da economia devida à crise global de 2008, o Governo brasileiro determinou, entre outras medidas – inclusive o aumento do salário mínimo -, que o Tesouro Nacional emprestasse R$ 100 bilhões ao BNDES para que irrigasse a economia. Em 2010 repetiu a dose, agora com R$ 80 bilhões. O resultado foi um espetacular crescimento do PIB de 7,5% em 2010. Um crescimento chinês, não obstante a aguda crise mundial.

Acontece que os neoliberais não se contentam com alegria fácil. Por pressão deles, e de gente muito próxima do Governo da época, o ministro Mantega decidiu contrair a economia com medo de um suposto superaquecimento. Foi nosso azar. Caímos na mediocridade do crescimento do PIB nos anos subsequentes e jamais saímos disso, até o descalabro atual em termos de política econômica. Hoje, constatamos o absurdo de um governo que quer que o BNDES, em vez de promover política anticíclica, pague ao Tesouro os recursos que lhe emprestou no meio de uma crise que, quantitativamente, era menor que a atual.

Qual é a alternativa? A alternativa, senhoras e senhores senadores, já foi inventada há muito tempo, é a velha política anticíclica: na alta do ciclo econômico, o governo promove o equilíbrio orçamentário; na época de baixa do ciclo, o governo investe deficitariamente. É exatamente isso, investimento deficitário. É pelo financiamento do déficit, inclusive monetário, que o governo introduz dinheiro novo na economia de forma a reanimá-la. Esse déficit não gera inflação, já que a economia encontra-se numa situação de demanda baixa, portanto com baixa pressão de consumo.

Diz-se também que é uma política keynesiana, só lembrada em termos de depressão. Em 2008, por exemplo, o conservador Sarcozy proclamou no G-20 que todos haviam se tornado keynesianos. O problema é que, também entre os alemães, políticas keynesianas não são populares. A Alemanha confia em superávits comerciais, o que não deixa de ser uma contribuição efetiva ao crescimento. Acontece apenas que, por uma fatalidade aritmética, não há como todos os países fazerem superávit comercial simultaneamente. Mas foi por essa crença histórica que a Alemanha obrigou a Europa do euro a voltar, depois do breve ciclo inicial de expansão fiscal, ao receituário neoliberal. Isso levou à virtual falência países como Grécia, Espanha, Portugal, Irlanda, e até Itália.

Apoiada no FMI, no Banco Mundial, na OCDE e no Banco Central Europeu, controlados todos pela Alemanha, deu-se o nome de “exit strategy” às estratégias de saída das políticas de expansão na Europa, com influência no mundo inteiro, exceto os Estados Unidos. Neste caso, o neoliberalismo é seletivo: serve para os outros, mas não para os de casa. De fato, os déficits públicos anuais norte-americanos foram, sucessivamente, a partir de 2009, de 1,4 trilhão de dólares, 1,3 trilhão, 1,2 trilhão, 1,1 trilhão, 1,0 trilhão e só baixaram da casa do trilhão de dólares recentemente, caindo para cerca de 600 bilhões e 400 bilhões.

A política preconizada pela PEC-55 é algo parecida, porém de consequências muito mais drásticas, do que a matriz imposta pela Alemanha na Europa. Seus efeitos no setor público seriam devastadores, mas igualmente devastadores, talvez com consequência ainda mais drásticas, seriam os efeitos devidos à relação entre setor público e setor privado. Basta um exemplo: tome-se o investimento público em construção. Se ficar congelado por 20 anos, como quer o Governo, seriam congelados os investimentos privados conectados em cimento, ferro, tijolos, móveis, telhas. Ao mesmo tempo, ou seriam perdidos, ou seriam deixados de criar centenas de milhares de empregos. Na verdade, parte substancial da economia brasileira seria destruída.
A alternativa a esse processo de destruição é particularmente simples, e indolor para a cidadania. Diz-se que não há almoço grátis. É falso. O almoço dos banqueiros, ou seja, a contrapartida da criação de moeda por eles, é inteiramente grátis. Quando se fala em investir deficitariamente o que se quer é fazer com que o Estado se aproprie de pelo menos parte desse dinheiro de graça – receita de senhoriagem – para colocar a economia na trilha do crescimento rápido, vencendo uma depressão que já dura dois anos e provavelmente, se nada for feito em termos de investimento, se estenderá para os próximos.

Concordamos que para enfrentar a crise fiscal conjuntural é fundamental tomar as medidas seguintes, que substituiriam as propostas inconsequentes da PEC-55:

1.      Política macroeconômica anticíclica, centrada em gastos em serviços públicos e na retomada de investimentos em energia e logística;

2.      Retomada imediata dos investimentos da Petrobras ao nível de 2014, tendo em vista seu efeito imediato na própria cadeia produtiva e no resto da economia;

3.      Renegociação em níveis razoáveis das dívidas dos Estados junto ao Governo federal, de forma a liberar recursos de investimento em nível local.

*Roberto Requião e senador pelo PMDB do Paraná


CANDIDATA DO 1%

candidata do 1%

JOHN PILGER entrevista Julian Assange

E-mails vazados pelo Wikileaks revelam: todo o establishment está com Hillary Clinton – em especial a oligarquia financeira e o complexo industrial-militar. Veja por quê.

Julian Assange concedeu uma de suas entrevistas mais incendiárias, num encontro com John Pilger, na qual resume o que lhe parece mais crucialmente importante das dezenas de milhares de e-mails distribuídos por WikiLeaks este ano.

John Pilger, australiano como Assange, realizou a entrevista, de 25 minutos, na Embaixada do Equador, em Londres, onde Assange está confinado desde 2012, por medida de segurança, para evitar ser extraditado para os EUA. Mês passado, a conexão de internet de Julian Assange foi cortada, alegadamente por “interferência” na eleição presidencial dos EUA, pelo trabalho de seu website.

·         John Pilger: O que significa a intervenção do FBI nesses últimos dias da campanha eleitoral dos EUA, desta vez contra Hilary Clinton?

Julian Assange: O FBI tornou-se efetivamente a polícia política dos EUA. Demonstrou isso ao provocar a demissão do ex-diretor da CIA, general David Petraeus, porque passara informação secreta para a amante. Quase ninguém é intocável. O FBI está sempre tentando demonstrar que ninguém consegue resistir a ele. Mas Hillary Clinton resistiu muito acintosamente contra a investigação do FBI, o que gerou muita ira, porque fez com que a instituição aparecesse em posição de fraqueza aos olhos da opinião pública. Nós publicamos cerca de 33 mil e-mails de Hillary Clinton, de quando era secretária de Estado. São parte de mais de 60 mil e-mails, dos quais Hillary Clinton conservou cerca da metade, 30 mil. E nós publicamos a outra metade.

Depois, estamos publicando os “Podesta e-mails“. John Podesta é principal coordenador de campanha de Hillary Clinton, portanto há um fio que percorre todos esses e-mails; há muita “negociação” do tipo “pague para jogar”, pay-for-play, como eles dizem, muito acesso liberado a estados, indivíduos e empresas, em troca de dinheiro. Esses e-mails combinam com o encobrimento dos de Hillary Clinton, de quando foi secretária de Estado, que gerou um ambiente no qual aumenta a pressão sobre o FBI.


·         A campanha de Hillary Clintoin disse que a Rússia está por trás dos vazamentos, que Moscou manipulou a campanha e que é fonte de onde WikiLeaks recebe seus e-mails.

O campo de Hillary Clinton conseguiu projetar esse tipo de histeria neo-macartista: a Rússia sempre é culpada por tudo. Hilary Clinton disse inúmeras vezes, mentindo, que 17 agências de inteligência dos EUA teriam concluído que a Rússia seria a fonte de nossas publicações. É mentira. Posso dizer, porque é absoluta verdade, que nossa fonte não é o governo russo.

WikiLeaks publica já há dez anos. Publicamos 10 milhões de documentos, vários milhares de publicações individuais, vários milhares de diferentes fontes, e ninguém jamais encontrou informes falsos no que publicamos.

·         Os e-mails que provam que se vendiam acessos a autoridades, que se trocava acesso por dinheiro, e o modo como a própria Hillary Clinton beneficiou-se desse “mecanismo” e como ainda se beneficia politicamente. São documentos realmente extraordinários. Penso no representante do Qatar, que comprou e pagou com um cheque de 1 milhão de dólares, o “direito” de falar diretamente com Bill Clinton, por cinco minutos.

Do Marrocos, cobraram 12 milhões.

·         Exatamente, 12 milhões do Marrocos, é mesmo

...para que Hillary Clinton comparecesse a uma festa.

·         Em termos da política externa dos EUA, e nesse setor os e-mails são especialmente reveladores, porque mostram a conexão direta entre Hillary Clinton e o surgimento do jihadismo, do Estado Islâmico (ISIS), no Oriente Médio. Você poderia comentar o modo como os e-mails demonstram essa conexão? Afinal, os que deveriam estar combatendo contra os jihadistas do ISIS, são, na verdade, os que ajudaram a criá-lo.

Há um e-mail do início de 2014, de Hillary Clinton, pouco tempo depois de ela ter deixado o Departamento de Estado, dirigido ao coordenador geral de sua campanha, John Podesta. Hillary diz que o ISIS fora criado pelos governos de Arábia Saudita e Qatar. Esse é o e-mail mais significativo de toda a coleção, e talvez seja o motivo pelo qual há dinheiro saudita e qatari em todos os cantos da Fundação Clinton. O governo dos EUA até admite que algumas figuras sauditas tenham apoiado o ISIS. Mas a fantasia que se criou sempre foi a de que seria dinheiro de alguns príncipes “do mal”, usando o dinheiro que lhes cabe do petróleo para fazer o que quisessem, mas que a ação seria desaprovada pelo governo saudita.

O que aquele e-mail diz é que não. Quem pagava naquele momento para manter o ISIS eram os próprios governos saudita e qatari.

·         Os sauditas, qataris, marroquinos, bahrainis, particularmente os sauditas e os qataris, estão enchendo de dinheiro a Fundação Clinton, no exato momento em que Hilary Clinton é secretária de Estado, e o Departamento de Estado aprova negócios maciços de venda de armas, particularmente para a Arábia Saudita.

Aconteceu durante o mandato de Hillary Clinton o maior negócio de armas de toda a História, com a Arábia Saudita, num total de mais de 80 bilhões de dólares. De fato, durante o mandato dela como secretária de Estado, o valor total em dólares, das exportações de armas dos EUA, dobrou.

·         Claro, o outro lado dessa moeda é que o grupo terrorista conhecido como ISIS foi criado, em grande medida, com o dinheiro do mesmo pessoal que sustenta também a Fundação Clinton.

É.

·         É espantoso.

É verdade que, no plano pessoal, Hillary Clinton me inspira muita pena, porque vejo uma pessoa que está sendo devorada ao longo da vida pelas próprias ambições, literalmente tão atormentada a ponto de adoecer. Ela desmaia, como resultado doentio das próprias ambições. Ela representa toda uma rede de pessoas e uma rele de relacionamentos com Estados determinados. A questão é determinar o modo como Hilary Clinton está encaixada nessa rede mais ampla. Ela é como um eixo de articulação que centraliza e distribui as “energias”. Há várias alavancas distintas em operação, desde os grandes bancos como Goldman Sachs e elementos importantes de Wall Street, e da inteligência, e pessoal no Departamento de Estado e os sauditas.

Ela é o eixo de articulação-distribuição que interconecta todos esses diferentes braços. É como a representação central de tudo isso; e “tudo isso” é mais ou menos o que se vê hoje na posição de mais poder nos EUA. É o que chamamos de establishment ou de “o consenso da capital” Outro importante e-mail de Podesta, que já distribuímos, foi sobre como se formou o gabinete de Obama; como mais da metade dos nomes que constituíram o gabinete Obama foram basicamente nomeados pelo CityBank. É impressionante.

·         CityBank é aquele que mandou uma lista…

Esse mesmo.

·         … com praticamente todo o gabinete Obama.

É.

·         Quer dizer que Wall Street decide quem fica e quem sai do gabinete do presidente dos EUA?

Quem acompanhava de perto a campanha de Obama naquela época, percebeu o quanto a campanha rapidamente se aproximou dos interesses dos bancos. Da mesma forma, ninguém pode compreender adequadamente a política externa de Hillary sem compreender a Arábia Saudita. As conexões com a Arábia Saudita são tão íntimas!



·         Por que Hillary manifestou-se tão entusiasticamente deliciada com a destruição da Líbia? Pode falar um pouco sobre o que os e-mails informam – sobre o que dizem a vocês –, do que realmente aconteceu na Líbia? Porque a Líbia é quase diretamente a fonte de muito do que hoje acontece na Síria: o ISIS, o jihadismo e tudo mais. E foi praticamente a invasão construída por Hillary Clinton. O que os e-mails nos contam sobre isso?

A Líbia é a guerra de Hillary Clinton, sim, mais do que de qualquer outra pessoa. Barak Obama inicialmente se opôs. Quem promoveu, sempre incansavelmente, aquela guerra? Hillary Clinton. Está claramente documentado nos e-mails dela. Ela pôs seu agente preferido, Sidney Blumenthal, nessa tarefa. São mais de 1.700 e-mails dos 33 mil e-mails de Hillary Clinton que publicamos até agora, só sobre a Líbia. Não porque a Líbia significasse petróleo barato. Mas porque ela viu a importância de derrubar Gaddafi e destruir o Estado líbio –, importante para ela mesma, porque viria a servir-se desse “feito” para concorrer à eleição geral para presidente.

No final de 2011 apareceu um documento interno chamado “Tick Tock On Libya” que foi produzido para Hillary Clinton, e é a descrição cronológica do que ela fez como figura central na destruição do Estado líbio, que resultou em cerca de 40 mil mortos na Líbia; então os jihadistas mudaram-se para lá, o ISIS instalou-se lá, as populações residentes foram expulsas, o que gerou o fluxo de refugiados e a crise dos migrantes para a Europa.

Não apenas gerou-se ali um fluxo de pessoas obrigadas a deixar a Líbia, a deixar a Síria, e a desestabilização de outros países africanos, por efeito direto do fluxo de armas para a região, mas o próprio Estado líbio foi desmontado e perdeu a capacidade de controlar os fluxos de migrantes que passaram a cruzar o país. A Líbia está diante do Mediterrâneo e sempre funcionou como a rolha que continha a pressão do resto da África. Por isso, pode-se dizer que a destruição do Estado líbio é a origem de todos os problemas, problemas econômicos e a guerra civil na África. Porque antes, os problemas não eram canalizados diretamente para a Europa: a Líbia operava como guardiã do Mediterrâneo.

Exatamente o que, naquela época, início de 2011, dizia o coronel Gaddafi: “O que esses europeus pensam que estão fazendo, tentando bombardear e destruir o Estado líbio? Haverá inundação de migrantes e jihadistas saídos da África, que entrarão diretamente na Europa.” Foi precisamente o que aconteceu, efeito direto da guerra de Hillary Clinton.

·         Você ouve reclamações de pessoas que dizem “O que é isso que WikiLeaks está fazendo? Estarão tentando colocar Trump na Casa Branca?”

Minha resposta é que Trump não será “autorizado” a vencer. Tudo farão para que ele não vença. Por que digo isso? Porque Trump tem contra ele todo establishment, todos os vários campos do establishment. Não há uma única área ou setor do establishment a favor de Trump. Talvez só, no máximo, os evangélicos, se se pode dizer que sejam um establishment. Bancos, inteligência, empresas fabricantes de armas, dinheiro de fora etc. todos esses apoiam Hillary Clinton. E a mídia-empresa comercial, claro. Os proprietários das empresas comerciais de mídia e, também, os próprios jornalistas seus empregados.


·         Há também a acusação de que WikiLeaks estaria associado com os russos. Há quem diga “Ora, por que WikiLeaks não investiga nem publica e-mails sobre a Rússia?”

Publicamos cerca de 800 mil documentos de vários tipos, relacionados à Rússia. Muitos deles são criticamente importantes; e a partir do que publicamos surgiram vários livros sobre a Rússia, muitos deles de crítica à Rússia. Nossos documentos sobre a Rússia já foram usados em inúmeros processos judiciais, dentre outros de refugiados, de pessoas que fogem de algum tipo de declarada perseguição política de que seriam vítimas na Rússia. Em vários desses casos, nossos documentos foram citados em tribunais, como prova.

·         Como você, pessoalmente, vê as eleições nos EUA? Tem alguma preferência? Clinton ou Trump?

Falemos para começar, de Donald Trump. O que ele representa na mente dos norte-americanos e europeus? Representa o “lixo norte-americano branco” que Hillary Clinton chamou de ‘deplorável e imperdoável’. De um ponto de vista de um establishment letrado cosmopolita urbano, são pessoas que eles classificam como “lixo norte-americano branco”; são intratáveis, é impossível confiar neles. Porque Trump representa muito claramente – por suas ações e palavras, e pelo tipo de gente que participa dos comícios dele – gente que não está “no meio”, que claramente não é a classe média alta educada. Por isso, há esse medo de se aproximarem daquelas pessoas, um medo social que degrada o status de classe de quem quer que seja “acusado”, seja como for, de ajudar Trump — inclusive criticando Hillary Clinton. Se você analisa o modo como a classe média obtém o poder econômico e social que tem, aquele medo que afasta de Trump faz absoluto sentido.

·         Queria falar sobre o Equador, o pequeno país que lhe deu abrigo e asilo político na embaixada em Londres. Agora, o Equador cortou a internet aqui, no prédio da embaixada, onde estamos fazendo essa entrevista, pela clara, óbvia razão de todos terem medo de que você intervenha na campanha eleitoral dos EUA. Você pode falar um pouco sobre por que tomaram essa medida e o que pensa do apoio que o Equador lhe dá?

Voltemos há quatro anos. Pedi asilo ao Equador, nesta embaixada, por causa do processo de extradição dos EUA. Um mês depois recebi resposta favorável ao meu pedido. Desde então, a embaixada tem estado cercada pela polícia: é uma operação policial muito cara, na qual o governo britânico admite que está gastando mais de 12,6 milhões de libras. Admitiram, faz mais de um ano. Agora, há policiais disfarçados e vigilância por câmeras robôs de vários tipos. Significa que tem havido confusão grave bem aqui, no coração de Londres, entre o Equador, país com 16 milhões de habitantes, contra o Reino Unido e os EUA, que colaboram com os britânicos. A ação do Equador é ação de coragem, na defesa de princípios morais.

Agora, está aí a campanha eleitoral nos EUA. No Equador, haverá eleições em fevereiro do próximo ano. E a Casa Branca sente a pressão política resultante da informação verdadeira que estamos publicando.

O WikiLeaks nada publica de dentro de território ou jurisdição do Equador, nada publica de dentro desta Embaixada; publicamos da França, da Alemanha, da Holanda e de vários outros países. Assim sendo, a tentativa de chantagear o Equador se faz em torno do meu status de refugiado; e isso, sim, é absolutamente intolerável. Significa que os EUA estão tentando atacar uma organização de mídia, uma organização que publica documentos. Estão tentando impedir a publicação de informação verdadeira, de alto interesse para o povo dos EUA e outros povos, relacionada ao processo eleitoral.

·         Diga-nos o que aconteceria se você saísse a pé desse prédio onde estamos.

Seria imediatamente preso pela polícia britânica e, imediatamente extraditado para os EUA ou para a Suécia. Na Suécia nada há contra mim, já fui liberado pela Procuradora Geral de Estocolmo, Eva Finne. Não temos muita clareza sobre o que poderia acontecer na Suécia, mas sabemos que o governo sueco recusou-se a garantir que não me extraditaria para os EUA. Sabe-se que os suecos extraditaram 100% das pessoas cuja extradição foi requerida algum dia pelos EUA, desde no mínimo 2000.  Nos últimos 15 anos, todos que os EUA quiseram extraditar da Suécia foram extraditados. Os suecos recusam-se a garantir que não me extraditarão.

·         Muitas pessoas me perguntam como você consegue superar o isolamento, dentro desse prédio.

Ora… uma das melhores qualidades dos seres humanos é que são adaptáveis; uma das piores qualidades dos seres humanos é que são adaptáveis. Pessoas adaptam-se e passam a tolerar todos os tipos de violência e abuso, adaptam-se e começam a se envolver, elas mesmas, nos abusos, adaptam-se à diversidade e seguem adiante. Quanto à minha situação, sinceramente, já praticamente me institucionalizei – aqui a embaixada é o mundo. Visualmente, é o mundo para mim.

·         Mundo sem luz do sol, para ficarmos só nisso, não é?

É o mundo sem sol, mas faz tanto tempo que não vejo o sol, que já nem me lembro.

·         É.

É. Você se adapta. Para mim o que realmente me irrita é que meus filhos pequenos também se adaptam. Adaptam-se à vida sem o pai deles. É adaptação muito terrível, que eles nada fizeram para ter de suportar.

·         Você está preocupado com eles?

Sim. Preocupo-me com eles, preocupo-me com a mãe deles.

·         Alguns diriam “Ok, nesse caso por que não põe fim a isso tudo, sai pela porta desse prédio e se deixa extraditar para a Suécia?”

A ONU, o Grupo de Trabalho da ONU contra Detenção Arbitrária,  examinou detidamente toda essa situação. Passaram 18 meses em discussão, fizeram minha defesa formal, nos tribunais formais. Hoje, somos a ONU e eu, contra a Suécia e o Reino Unido. Quem está certo? A ONU concluiu que estou sob detenção arbitrária ilegal, privado de liberdade e que o que ocorreu não foi feito segundo as leis que Reino Unido e Suécia são obrigados a respeitar. Sou vítima de abuso e de prática ilegal. Quem pergunta formalmente é a ONU: “O que está acontecendo aqui?” “Qual a explicação legal pra o que está acontecendo aqui?” “Assange já requereu que todos reconheçam sua situação de asilado.” E o que se vê é...

A Suécia já respondeu formalmente aos EUA para dizer que “Não reconheceremos o que a ONU determina”. Essa reação deixa sempre ativa a capacidade da Suécia para promover minha extradição.

Estranho muito que a narrativa real de toda essa situação não seja exposta na mídia. Mas sei que esses fatos não combinam com a narrativa do establishment ocidental. A verdade é que, sim, há presos políticos no Ocidente. Existem. Essa é a realidade, e não sou só eu, há muitos outros.

Prisioneiros políticos no Ocidente. Pois é. Há. Mas nenhum Estado ocidental aceita chamar de prisioneiros políticos as pessoas que esses Estados prendem ou detêm por motivos políticos. O Estado chinês não fala de prisioneiros políticos na China, o Estado do Azerbaijão não fala de prisioneiros políticos no Azerbaijão, e o Estado norte-americano, o Estado no Reino Unido, o Estado sueco tampouco admitem que também mantêm prisioneiros políticos. São absolutamente incapazes de se verem como realmente são.

Temos aí o caso da Suécia, país no qual jamais fui condenado por qualquer crime, onde fui processado pela Procuradora Geral em Estocolmo e absolvido, onde a suposta “vítima” declarou que tudo não passou de encenação criada pela polícia; onde a ONU declarou formalmente que todo o processo é nulo, porque é ilegal. O Estado do Equador também examinou exaustivamente o caso e concluiu que devia me conceder asilo. OK, os fatos são esses. Mas… e a retórica, qual é?

·         Sim, é diferente.

A retórica só faz mentir e repetir a mentira segundo a qual eu teria sido acusado de praticar um crime… sem jamais esclarecer que já fui absolvido naquele processo. Sem jamais dizer que a suposta vítima, naquele caso, já confessou que toda aquela ação foi urdida na e pela polícia sueca.

A retórica tenta encobrir a verdade evidente de que a própria ONU já reconheceu formalmente que toda essa história é ilegal. Sem jamais esclarecer, sem sequer mencionar, que o Equador avaliou formalmente todo o processo e concluiu que, sim, sou vítima de perseguição política pelo Estado norte-americano.


www.outraspalavras.com.br Publicado em 07/11/2016

Barrados pela Polícia Legislativa, secundaristas protestam no Senado

Congresso

Barrados pela Polícia Legislativa, secundaristas protestam no Senado

por Renan Truffi — publicado 09/11/2016 18h42, última modificação 09/11/2016 19h11
Os estudantes manifestaram-se contra a reforma do Ensino Médio e a PEC dos Gastos Públicos na tarde desta quarta-feira 9
Agentes da Polícia Legislativa barraram, na tarde desta quarta-feira 9, a entrada de estudantes secundaristas que queriam participar da sessão da comissão mista que analisa a medida provisória do Ensino Médio (MP 746/2016) no Senado. 
A audiência pública foi suspensa após a intervenção de senadores do PT, que pediram a inclusão dos estudantes no debate, e só foi retomada quando eles puderam entrar.
A presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Carina Vitral, uma das convidadas da presidência da comissão para discutir o assunto, leu uma carta dos jovens em jogral para os parlamentares.
Encerrada a sessão da comissão mista, os secundaristas se dirigiam à saída quando passaram por outro plenário onde se votava a PEC 55/2016, que prevê o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, incluídos os investimentos em saúde e educação.
Em meio às palavras de ordem entoadas nos corredores do Senado, os estudantes diziam que "o Brasil vai parar" se o governo não retirar essas pautas do Legislativo. A senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) conversou com o presidente do Senado Renan Calheiros, que aceitou receber os estudantes no final desta tarde.
Ao sair, os jovens relataram que o peemedebista avaliou ser possível uma "costura" para que a MP do Ensino Médio seja retirada de tramitação e, eventualmente, substituída por uma proposta parlamentar. À imprensa, Calheiros afirmou, no entanto, que, na condição de presidente do Senado, ele poderia apenas "qualificar a tramitação" da MP 746.
Fonte: Carta Capital

"O que mais custa aceitar é a participação do Judiciário no golpe"

Entrevista - Boaventura Santos

"O que mais custa aceitar é a participação do Judiciário no golpe"

por Miguel Martins — publicado 02/11/2016 00h02, última modificação 02/11/2016 11h54
O sociólogo português Boaventura Santos faz uma radiografia da crise política brasileira e pede à esquerda nativa para abrir mão das diferenças
Gustavo Lopes Pereira
Boaventura
"O sistema judicial deve uma resposta à sociedade brasileira", diz Boaventura
Desatados os laços coloniais, a proximidade entre Brasil e Portugal se estende para além das velhas rotas do Atlântico. Nas antigas colônia e metrópole, as trajetórias republicanas são navegadas sob tempestades que carregam ensinamentos para as duas costas do oceano.
onda neoliberal que atinge hoje o Brasil por meio do governo de Michel Temer chegou como um tsunami em 2011 às terras lusitanas. Passos Coelho, então primeiro-ministro, tentou aprofundar as políticas de ajuste estrutural exigidas pelo Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia, mas o ímpeto dos retrocessos perdeu força diante da resistência unificada do campo progressista em Portugal.
Baseado nessa análise, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos espera comportamento semelhante das esquerdas brasileiras para reagir ao que chama de “golpe constitucional-judicial” e a retrocessos defendidos pelo atual governo. Em passagem pelo Brasil para o lançamento do livro “A difícil democracia”, publicado pela editora Boitempo, o sociólogo mostra estar atento aos movimentos do governo Temer. Em entrevista a CartaCapital, faz uma radiografia da crise política brasileira, chama o congelamento de investimentos públicos por 20 anos de “escândalo constitucional e político” e releva sua indignação com a seletividade da Justiça. "O que mais custa aceitar é a participação agressiva do sistema judiciário na concretização do golpe."  
CartaCapital: O senhor analisa no início de "A difícil democracia" o período entre 2011 e 2013, marcados pelos movimentos Occupy nos Estados Unidos, Indignados no sul da Europa, Primavera Árabe na Tunísia e no Egito e os protestos de junho de 2013 no Brasil. Três anos depois, o senhor aponta um desencanto nas esquerdas. A que o senhor atribui esse desencanto? 
Boaventura de Sousa Santos: As situações foram muito diversas, nem todas permitiram uma clara distinção entre esquerda e direita, e em cada uma atuaram fatores específicos que condicionaram os resultados. Temos de distinguir entre os países que tinham uma democracia minimamente credível e os que a não tinham. Nestes últimos, a luta era pela democracia. Só a Tunísia teve algum êxito. Nos outros, a luta era por uma democracia real, ou seja, pela maior distribuição da riqueza e pelo fim da corrupção no sistema político.
Apesar da radicalidade dos discursos, os objetivos, quando existiam, não iam além da renovação do sistema político e do reforço da social democracia. Na Espanha houve alguma renovação política através da emergência de um partido de tipo novo, o Podemos, e de muitas associações políticas autônomas que hoje condicionam a vida política regionalmente. No Brasil, a ambiguidade política dos protestos era inicialmente detectável apenas no twitter. O governo não foi capaz de ler esta ambiguidade e de apoiar as demandas e forças de esquerda.
CC: A ascensão conservadora explica esse desencanto?
Muitas das irrupções democráticas dos últimos trinta anos ocorreram em períodos de reforço do neoliberalismo, ou seja, da versão mais antissocial do capitalismo. Foi assim nas transições da ditadura para a democracia dos anos 80 e nos protestos de 2011, depois de a crise financeira de 2008 ter aumentado o poder global do capital financeiro que a tinha provocado e “resolvido” a seu favor. Enquanto a luta pela democracia fortalecia as forças de esquerda, a aceitação da ortodoxia neoliberal favorecia as forças de direita. Com o tempo, a direita, muito imaginativamente, soube controlar a pulsão democrática a seu favor, usando para isso vários estratagemas. No Brasil, por exemplo, seduziu a esquerda durante treze anos para extorquir as maiores vantagens num período de crescimento e de governos progressistas no continente. Quando achou adequado, desferiu-lhe o golpe constitucional-judicial que, se não a deixou morta, a deixou desmaiada. 
CC: Na introdução de “A difícil democracia”, o senhor afirma que os países da América Latina e do sul da Europa tendem a ser caracterizados por grande instabilidade política. O Brasil tem confirmado essa tese, com o traumático impeachment de Dilma Rousseff. Qual a sua análise do processo?
BS: Houve interrupção democrática semelhante à que tinha sido ensaiada em Honduras e no Paraguai e, como nas anteriores, levada a cabo com a aprovação ativa dos Estados Unidos. Tratou-se de uma passagem brusca e sem respaldo constitucional de uma democracia de baixa intensidade, já que eram bem conhecidos os limites do sistema político e do sistema eleitoral em refletir a vontade das maiorias, para uma democracia de baixíssima intensidade, com maior distância entre o sistema político e os cidadãos, maior agressividade dos poderes fáticos, menor proteção social das classes mais vulneráveis, menos confiança na intervenção moderadora dos tribunais. 
No caso do Brasil, o que mais custa a aceitar é a participação agressiva do sistema judiciário na concretização do golpe, tendo em vista dois fatores que constituíam a grande oportunidade histórica de o sistema judicial se afirmar como um dos pilares mais seguros da democracia brasileira. Por um lado, foi durante os governos PT que o sistema judicial e de investigação criminal recebeu o maior reforço não só financeiro como institucional. Por outro lado, era evidente desde o início que Dilma Rousseff não tinha cometido qualquer crime de responsabilidade que justificasse o impedimento. Estavam criadas as condições para encetar uma luta veemente contra a corrupção sem perturbar a normalidade democrática e, pelo contrário, fortalecendo a democracia.  Por que é que esta oportunidade foi tão grosseiramente desperdiçada?  O sistema judicial deve uma resposta à sociedade brasileira.
CC: O que acha das primeiras medidas de Temer no poder?
BS: Elas não oferecem qualquer surpresa. São o receituário neoliberal global num contexto de declínio dos preços internacionais das commodities e dos recursos naturais: criar novas oportunidades de acumulação de capital através de uma nova onda de privataria, como a que aconteceu no tempo de Fernando Henrique Cardoso, reduzir a despesa pública, sobretudo em políticas sociais, impedir qualquer mudança no sistema fiscal ou nas taxas de juros, aumentar a repressão quando a  população acordar da orgia antipetista e começar a ver, aturdida e chocada, o que efetivamente se passou na sua casa, na sua saúde, na educação dos seus filhos.
Devemos notar que a lógica da austeridade já se tinha instalado no segundo mandato de Dilma. Mas há uma diferença qualitativa. Com o governo do PT essa lógica traduzia-se em algumas medidas de emergência e com a crença equivocada de permitirem a curto prazo o regresso à normalidade de uma governação minimamente inclusiva no plano social. Com o governo Temer, tais medidas, um menu imenso, são a nova normalidade.
CC: Na terça-feira 25, a Câmara aprovou uma emenda à Constituição para congelar os gastos públicos pelos próximos 20 anos, com profundo impacto em áreas como saúde, educação e assistência social. Como o senhor classifica a medida?
BS: A PEC 241 é um escândalo constitucional e político, produto de um descontrolado fundamentalismo ideológico, desprovido de qualquer eficácia e apenas adotado com dois objetivos de alto poder simbólico. Primeiro, mostrar ao povão pobre e empobrecido a impossibilidade de esperar algo do Estado, como se ninguém pudesse lhe prometer nada para além do que a direita está disposta a dar-lhe. Segundo, sublinhar com uma risada legislativa o desprezo, o revanchismo e a arrogância com que, do alto da sua vitória, contempla a ruína da esquerda. O excesso desta medida, nunca adotada em qualquer país por um período de 20 anos, deve ser visto pela esquerda como um sinal de debilidade.
CC: Como resistir a esse retrocesso?
BS: O caso português tem algum interesse neste contexto. Os portugueses foram vítimas entre 2011 e 2015 de um fundamentalismo ideológico do mesmo tipo. O Primeiro Ministro de então, Passos Coelho, chegou a dizer que era preciso ir mais longe nas políticas de ajuste estrutural do que a própria troika austeritária exigia, formada pelo FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. O maximalismo conservador fez soar nos partidos de esquerda um alerta que não se ouvia há setenta anos:  a arrogância da direita ameaçava destruir tudo o que em termos de inclusão social tinha sido democraticamente construído pelo país depois da Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974.
O país enfrentava uma situação de fascismo social que mais tarde ou mais cedo poderia levar ao fascismo político. Perante isto era preciso esquecer provisoriamente todas as diferenças ideológicas que pudessem impedir uma aliança das forças de esquerda para pôr termo ao pesadelo reacionário. Assim se construiu uma aliança de governo entre o Partido Socialista, a coligação CDU (comunistas e verdes) e o Bloco de Esquerda. Este exemplo pode ajudar as forças de esquerda no Brasil, que, ao contrário de Portugal, se inclui um forte movimento popular frentista, a esquecer as diferenças e articular-se procurando seguir a sabedoria popular: em momentos como este, que se vão os anéis e fiquem os dedos.
Protesto contra PEC 241
Boaventura: O congelamento de gastos públicos é um escândalo (Foto: Roberto Parizotti / CUT)
CC: As áreas que estão mais em risco no Brasil são saúde, educação e assistência e previdência social, que compõem o nosso Estado de bem-estar social previsto na Constituição de 1988. Por que preservar o Estado de bem-estar social tornou-se uma tarefa árdua?
BS: O Estado de bem-estar consistiu no conjunto de políticas sociais através das quais foi possível compatibilizar a pulsão de concentração da riqueza própria do capitalismo com a pulsão de inclusão social mínima, o contrato social, própria da democracia representativa liberal. Tal compatibilização tornou possível uma série de interações não-mercantis entre cidadãos, entre elas o SUS, a educação pública, as pensões segundo o sistema de repartição inter-geracional. Ela foi possível através de níveis de tributação muito altos. Depois de 1945, alguns países chegaram a ter taxas altíssimas para os rendimentos mais elevados.
A partir dos anos de 1980, e perante uma crise de acumulação que tinha começado com a primeira crise do petróleo, o neoliberalismo começou a guerra contra o Estado de bem-estar em duas frentes. Por um lado, a guerra contra as políticas sociais e serviços públicospor dizerem respeito a áreas como a saúde e a educação e as pensões onde a privatização criaria novas áreas de investimento altamente rentáveis. Por outro lado, a guerra contra a tributação alta e sobretudo progressiva. Perante a perda de recursos, os Estados tiveram que recorrer à dívida pública eufemisticamente considerada soberana. Os Estados eram soberanos quando cobravam impostos mas não quando recorriam ao crédito internacional. Neste último caso, estavam dependentes do capital financeiro que progressivamente se foi tornando a força dominante do capital global.  E assim surgiu o ajuste estrutural e a certidão de óbito do Estado de bem-estar. Ainda há pouco tempo, o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, um clone da Goldman Sachs, declarou que a social democracia tinha acabado.
CC: Há como preservar a social democracia?
Só há futuro para o Estado de bem-estar: quando o futuro do neoliberalismo acabar. Até lá são possíveis atuações parciais, defensivas, nas margens do modelo dominante, mas que significam muito precisamente para os estratos sociais que estão nas margens, as quais não cessam de inchar. Para isso são precisas alianças políticas inovadoras e esclarecidas com vontade de correr os riscos, novas formas de participação popular autônoma, novos militantes e lideres partidários de esquerda presentes em permanência nas  ruas e bairros pobres das cidades e nos campos dos camponeses e indígenas devastados pela agroindústria e a mineração socialmente criminosa. Enquanto vigorar o neoliberalismo, é exigida uma vontade revolucionária para conquistar a mais modesta política reformista.
CC: O senhor defende uma espécie de "divisão do trabalho do inconformismo", na qual haja uma articulação entre as três estratégias da esquerda: tentar melhorar o que havia, tentar romper com o que havia e tentar não depender do que havia. Mas as esquerdas mostram dificuldade em encontrar pontos em comum para construir uma unidade mais sólida, não? 
BS: Historicamente, as esquerdas dividiram-se em resultado da emergência do mundo soviético. Organizaram-se segundo essa divisão durante mais de setenta anos e ainda não se recompuseram do fim desse mundo. As divisões existentes são em grande medida produto de inércia histórica. Vão ser necessárias ou inevitáveis outras divisões, mas vai ser sobretudo necessária outra forma de afirmar, construir e consolidar divisões, uma forma que permita uma leitura dinâmica do mundo e da sociedade concreta, que saiba ler os sinais de perigo antes de ele ser destrutivo, que não se preocupe com vanguardas e que cuide das retaguardas, que seja tão interpolítica e tão intercultural como é o mundo e a sociedade, que considere que, enquanto durar o capitalismo, nem o colonialismo nem a violência contra as mulheres acabam, apenas se metamorfoseiam.
CC: No Brasil, é comum a análise de que os governos do PT deixaram de lado a formação política e cultural das classes mais baixas e focaram excessivamente na questão material. Neste momento de crise econômica, os que ascenderam nos últimos anos deram as costas ao partido. Por que a população mais pobre parece rejeitar o discurso de esquerda no Brasil?
BS: Essa análise merece uma profunda reflexão, pois tais políticas vão continuar a ser necessárias no futuro, mas vão ter que ser desenhadas de uma maneira totalmente diferente. O PT fez uma extraordinária distribuição de riqueza, paradoxalmente sem a sociedade brasileira ter deixado de ser uma das mais desiguais do mundo. Para evitar o clientelismo estatal, entregou na mão da banca milhões de cidadãos de quem se extorquiu seguros de vida, planos de poupança, consumo a crédito, incluindo as famosas viagens de avião dos antes pés descalços. O enorme esforço de socialização dos brasileiros foi feito promovendo subjetividades individualistas e antissociais. Para isto ajudou muito a teologia da prosperidade e a substituição paulatina da ideia de justiça social pela de sucesso individual. A população brasileira não rejeita o discurso de esquerda. Pelo contrário, aprendeu demasiado bem o discurso que a prática de esquerda lhe foi ditando.
CC: Nas eleições municipais brasileiras realizadas em 2 de outubro, vimos uma ascensão de nomes conservadores. São Paulo elegeu João Doria, do PSDB, um empresário de discurso privatista, que buscou demonizar a classe política tradicional e vangloriou-se de ser um self-made man, a exemplo do que ocorre com Donald Trump nos Estados Unidos. A votação de Doria em regiões periféricas de São Paulo foi muito acima do esperado. Por que os mais pobres estão seduzidos pelo discurso da meritocracia?
BS: Na lógica da ideologia neoliberal dominante, a política, enquanto escolha entre opções ideológicas diferentes, tende a desaparecer. Como não há alternativa, os governantes não necessitam do consenso dos cidadãos, basta-lhes a resignação. A democracia de baixíssima intensidade consiste na conversão  de diferenças ideológicas em diferenças de qualquer outro tipo que garantam o espetáculo da alternância.Surgem assim novas polarizações que se afirmam  como as duas faces do sistema neoliberal: a face do sistema e a face do anti-sistema.
Isto tem duas consequências. A primeira é que, como são duas faces do mesmo sistema, os que se afirmam como anti-sistema são aqueles que mais beneficiam dele. Por isso, os  milionários que terão sido eleitos em grandes cidades brasileiras não terão tido dificuldade em apresentar-se como anti-sistema.  Isto é, os que não são profissionais da política porque têm tido dinheiro suficiente para mandar nos profissionais da política. A segunda consequência é que, como a política partidária se vai degradando e, com ela, a formação política que ela devia envolver, não são necessárias qualificações específicas para ser dirigente político.
CC: O culto à celebridade chegou à política?
A notoriedade pública em qualquer domínio, seja espetáculo, futebol ou cinema, pode ser qualificação suficiente. Não surpreende assim que o presidente da Guatemala, Jimmy Morales, seja um antigo comediante da televisão, que Beppe Grillo, o palhaço italiano, esteja à frente de um partido  muito dinâmico (Cinco Stelle), ou que um homem de negócios e de showbussiness como Trump tenha chegado onde chegou.
A difícil democracia
Livro: A difícil democracia, de Boaventura de Sousa Santos. 220 págs, R$ 52
 CC: Conversamos recentemente com Slavoy Zizek, e ele afirmou que a esquerda precisa redescobrir "a força do Estado". David Harvey, por sua vez, defende um humanismo revolucionário, em que as diversas tendências de esquerda reorganizem o trabalho de forma associativa para construir uma economia alternativa ao capitalismo. Qual é a sua proposta para o futuro da esquerda?
BS:  A esquerda do futuro deve orientar-se pelo lema democracia sem fim. Se a isso não quisermos chamar socialismo, não tenho problemas. Democracia não apenas no sistema político, mas também nas empresas, no espaço público, nas igrejas, nas escolas e universidades, nas famílias, no transporte e nas relações com a natureza. Cada espaço requer uma forma específica de democracia, já que as formas mais conhecidas, a representativa e a participativa, são apenas um pequeno excerto do menu democrático.
Não haverá democracia de alta intensidade enquanto estiverem em vigor as três formas modernas de dominação: capitalismo, colonialismo e patriarcado. As três formas atuam sempre articuladamente. Um dos problemas da esquerda do passado foi, no seu melhor momento, centrar-se na luta contra o capitalismo e considerar secundárias ou negligenciáveis as lutas contra o colonialismo e o patriarcado. Aliás, aceitou acriticamente que o colonialismo tinha acabado com o colonialismo de ocupação territorial estrangeira e não viu que ele continuou até hoje sob outras formas, como racismo, xenofobia, colonialismo territorial interno, expulsão e massacre de indígenas.Congratulou-se  com pequenas vitórias no dominio patriarcal sem ter em conta que o capitalismo e o colonialismo não dispensam o patriarcado.
CC: Capitalismo, colonialismo e patriarcado tem de ser desconstruídos em conjunto?
A esquerda do passado aceitou que os movimentos sociais se dividissem entre os que lutam contra o capitalismo, os que lutam contra o colonialismo e os que lutam contra o patriarcado. Por isso, as forças da dominação estão mais unidas do que nunca, enquanto as forças que lutam contra elas estão mais divididas do que nunca. Alguém pode se surpreender que, quando Michel Temer chega ao poder ilegitimamente e forma um governo para reforçar a dominação capitalista, desapareçam do seu ministério mulheres e afrodescendentes?
Um dos fatores mais promissores da unidade das esquerdas vai ser a natureza, uma vez que é nela onde mais se condensa a articulação entre capitalismo, colonialismo e patriarcado. O campo da democracia no trato com a natureza é onde se verão melhor os pontos de contacto entre a luta anti-capitalista, anti-colonialista e anti-patriarcal.  
O neoliberalismo não vê o grande objetivo de transformar o trabalho com direitos em trabalho sem direitos separado do objetivo de expulsar os camponeses e indígenas das suas terras ancestrais, de contaminar as águas e pulverizar livremente com insecticida os pulmões dos trabalhadores rurais, de sobre-explorar as mulheres com trabalho não pago e aceitar a violência contra as mulheres como parte da subjetividade empreendedora que promove, uma subjetividade ora exuberante com o êxito macho, ora estressada em busca de inimigos ou de descargas emocionais fáceis. 
CC: E qual deve ser o papel do Estado para a nova esquerda?
BS: O Estado é hoje um monstro necessário. É um monstro porque reduz toda a diversidade econômica, social e cultural da sociedade a um modelo monocultural, homogêneo de administração. É falsa a alternativa entre querer ou não querer tomar o poder do Estado, ainda que este seja uma fração cada vez menor do poder social. É preciso tomar o poder para o transformar e não esperar que ele se transforme antes que a esquerda o queira ocupar.
Mas, para a esquerda, governar enquanto as sociedades forem capitalistas, colonialistas e patriarcais, será sempre um exercício de contracorrente. Não se pode governar como a direita governa só que para outros objetivos. Isto significa, entre muitas outras coisas, tolerância zero face à corrupção e reforma constitucional no sentido de criar um quarto órgão de soberania, o controle cidadão por via da participação organizada e autônoma. Significa também que entre dois males se deve recusar sempre o mal menor se ele for apresentado como o único meio de evitar o mal maior. O mal menor tende a ser a versão em miniatura do mal maior.
CC: Alguns consideram que um projeto de Estado não é prioritário. 
Tomar ou não o poder do Estado é uma falsa alternativa, o mesmo sucede com a alternativa entre lutas institucionais, legais, no quadro do sistema político-jurídico existente, e extra-institucionais, ou seja, ações diretas eventualmente ilegais mas pacíficas, isto é, eventualmente apenas contra a propriedade, nunca contra a vida ou a integridade física. O esvaziamento progressivo da democracia realmente existente e o consequente aumento do caráter repressivo do Estado e da criminalização do protesto social vão obrigar a que muitas das lutas democráticas sejam ilegalizadas e tenham de ocorrer fora do marco institucional.
Já hoje, em vários países da América Latina, bloquear uma estrada para não deixar entrar as máquinas do abate de árvores e da mineração nos territórios indígenas ou afrodescendentes é considerado um ato terrorista. Amanhã, qualquer manifestação de ecologistas urbanos pode ter o mesmo destino. Os camponeses, os indígenas e as populações quilombolas que hoje defendem o campo contra a exploração agressiva e sem controle dos recursos naturais estão a defender os habitantes das cidades de amanhã.    
*Uma versão desta entrevista foi publicada originalmente na edição 925 de CartaCapital, com o título "O exemplo português".