A crise e o projeto da direita
Roberto Amaral
Temer é uma contingência que,
brevemente, não passará de pedra secundária numa partida de xadrez.
A crise política em curso, tocada por semeadores de ventos
que não acreditam em tempestades, caminha a passos largos para se transformar em grave impasse institucional.
Diante de uma estarrecida opinião pública, desfilam os
chamados Poderes da República (poderes formais, pois não se incluem, entre
eles, a FEBRABAN e o Sistema Globo de Comunicação), carentes de legitimidade,
alvos do justo descrédito popular. Sobrenadam, abraçados como náufragos. Nenhum
parece consciente da gravidade da crise que ajudaram a semear.
Em que vai dar tudo isso?
O ataque ao mandato da presidenta Dilma Rousseff – consumado
ou não o golpe parlamentar em curso – não encerra a história toda da crise: é
apenas a face aparente de um movimento tectônico que os sismógrafos sociais não
conseguem antecipar.
O golpe em andamento no Senado é, para o projeto da direita,
uma necessidade, a abertura de um caminho, a desobstrução de uma trilha,
enquanto a posse de Michel Temer, dele consequente, é uma contingência.
Necessidade e contingência de um projeto maior, do qual eles, o golpe e a posse
do presidente perjuro, são apenas instrumentos tornados operacionalmente
indispensáveis.
Necessidade e contingência que serão superadas, cada uma a
seu tempo. O presidente interino, qualquer que seja o destino de seu governo,
brevemente não passará de pedra secundária numa partida de xadrez, e como pedra
secundária poderá ser trocado lá na frente ou logo mais, como são removíveis as
peças sem valia, como já foi expelido Eduardo Cunha, concluída sua faina suja.
Como foi descartado Romero Jucá, o articulador, e como serão os tantos já a
caminho do patíbulo, entre delatores e delatados.
Para além da deposição de Dilma Rousseff, a nova direita
brasileira, operada por uma articulação que compreende setores do Ministério
Público Federal, da Polícia Federal e do Poder Judiciário, sob o comando
ideológico da empresa dos Marinhos, projeta a arquitetura de um novo Estado, o
qual, descompromissado com a democracia representativa, poderá realizar as
reformas (na verdade, contrarreformas) requeridas pelo projeto
neoliberal-arcaico. Por isso e para isso é útil o governo títere de Michel
Temer.
Eis o objetivo real do golpe e eis o golpe verdadeiro.
A base ideológica desse “novo” governo, gestado na fraude e
no golpe, foi anunciada não pela “Ponte
para o Futuro”, do PMDB, já de si reacionaríssima, mas pela média dos
pronunciamentos que no dia 17 de abril, na votação preliminar da Câmara dos
Deputados, ofenderam o decoro da sociedade brasileira.
O que ela representa de regresso foi ensaiado pelo governo
provisório e consabidamente nenhuma de suas propostas seria aprovada se
submetida ao eleitorado numa campanha presidencial. Trata-se, pois, de fraude
construída por um ato de força. Disso têm consciência seus estrategistas, e por
isso utilizam-se, nessa primeira fase, de um governante sem origem na soberania
popular, o único capaz de governar de costas para o povo e para o País.
Para isso serve Temer e por isso deverá ser mantido até pelo
menos o início de 2017, quando poderá ser substituído sem abalos.
O velho projeto do PSDB (alguém ainda se lembra das falas do
Sérgio Motta?) de domínio político do Brasil por 20 anos, voltou à ordem do
dia, agora sem os tucanos de carteirinha, e se objetiva no controle prioritário
e essencial da economia e da política externa, como forma de fazer valer um
regime neoliberal ultrarradical, necessariamente amparado pela retomada de
incondicional subordinação de nossa diplomacia aos interesses geoestratégicos
dos EUA.
Em outras palavras, renúncia ao desenvolvimento, às
conquistas sociais, ao combate às desigualdades e à pobreza, ao desenvolvimento
científico e tecnológico, à industrialização, ao domínio das reservas do
pré-sal… renúncia, enfim, ao projeto de nação independente.
Mas isso não tem sustentação social, dirá o leitor, que já
acompanha, com entusiasmo, a reorganização popular que explode em todos os
quadrantes do País e galvaniza setores ponderáveis da classe média e dos
trabalhadores. Daí a necessidade de desviar todo e qualquer risco de eleições,
retornando o povo para sua condição de figurante do processo histórico, o
máximo que lhe concede a classe dominante na sociedade de classes.
O terremoto desencadeado pelo procurador-geral da República,
Rodrigo Janot, deverá ser contido, para que não ameace a Presidência de Temer,
porque sua substituição, ainda no corrente ano, exigiria novas eleições (art.
84 da Constituição Federal), e eleições é tudo o que a direita governante não
deseja.
Eleições agora? Jamais! Eleições amanhã, só na hipótese de
seus adversários conhecidos serem dizimados. Caso contrário, a alternativa, já
na prancheta, será:
1.
Hipótese
ótima, a implantação de um modelo qualquer de parlamentarismo (lembrai-vos de
1961!). Ou
2.
Alternativa
de composição, a adoção de um parlamentarismo disfarçado, que será chamado de
“presidencialismo mitigado”.
Essa opção poderá ser implantada mediante reforma
constitucional – factível em face da maioria parlamentar de que dispõe hoje a
direita – que simplesmente alterará, mediante Emenda Constitucional, reduzindo-a
a competência do Poder Executivo, e, pari passu, aumentando-a a competência do
Poder Legislativo, que, mero exemplo, poderá assumir papel ativo nas políticas
econômicas e exterior, cujos ministros, outro exemplo, teriam suas nomeações
submetidas ao Congresso.
Qualquer dessas hipóteses atende ao projeto conservador,
porque, se não evita as eleições presidenciais sempre imponderáveis, transforma
o eventual presidente em uma rainha Elizabeth: reina, mas não governa. Nessa
hipótese pode haver eleições presidenciais, pois qualquer um – até mesmo Lula!
– pode ser eleito, uma vez que o governo e a direção da política econômica
ficarão com quem controla o Congresso.
Eis o golpe. Este o projeto da direita, claro como as águas
dos regatos.
E o projeto das forças populares? Deve ser investir no
processo eleitoral. Mas é tolice propor eleições gerais (que deputado aceitaria
perder dois anos de mandato? Que senador aceitaria perder seis anos de
mandato?) ou Constituinte para 2018, pois, eleita segundo as regras de hoje,
seria a reprodução piorada do Congresso de hoje. E aí teríamos saudades da
“constituição cidadã”.
Retomado o poder, a presidenta Dilma, livre do
“presidencialismo de coalizão”, deverá articular um novo pacto, desta feita
político-popular, o qual, a partir também de nova proposta de governo, lhe
assegurará governabilidade e condições de convocar uma Constituinte exclusiva,
com a função específica de proceder, em um ano (findo o qual se
autodissolverá), à reforma política que ditará as eleições de 2018, reforma sem
a qual não haverá saída política para a crise de legitimidade da democracia
representativa e dos Poderes que a integram, e reforma que não pode ser levada
a cabo pelos atuais parlamentares, beneficiários das mazelas graças às quais se
elegeram e promovem a renovação de seus mandatos.
Por que exclusiva e específica? Porque preservará o atual
Congresso e não interferirá em suas atribuições, cuidando especificamente da
reforma do sistema político-eleitoral. Esta saída, porém, não é uma panaceia, e
grandes ainda são os riscos que cercam essa eventual Constituinte eleita nas
circunstâncias atuais, com a legislação atual, com a direita forte e confiante,
com o poderio da mídia intocado.
Uma única coisa é certa: nenhum avanço é pensável a partir do
atual Congresso. Para isso e para o que quer que seja, é fundamental frustrar o
golpe.
Fonte: Blog do Roberto Amaral 12/06/2016