Mercosul, a nova Alca e a China
por Samuel
Pinheiro Guimarães [*]
Resistir –
Portugal
18/07/2013
1.
Todo o
noticiário sobre Mercosul, Aliança do Pacífico, Parceria Transpacífica e China
tem a ver com um embate ideológico entre duas concepções de política de
desenvolvimento econômico e social.
2. A primeira dessas concepções afirma que o principal obstáculo ao crescimento
e ao desenvolvimento é a ação do Estado na economia.
3. A ação direta do Estado na economia, através de empresas estatais, como a
Petrobrás, ou indireta, através de políticas tributárias e creditícias para
estimular empresas consideradas estratégicas, como a ação de financiamento do
BNDES, distorceria as forças de mercado e prejudicaria a alocação eficiente de
recursos.
4. Nesta visão privatista e individualista, uma política de eliminação dos
obstáculos ao comércio e à circulação de capitais; de não discriminação entre
empresas nacionais e estrangeiras; de eliminação de reservas de mercado; de
mínima regulamentação da atividade empresarial, inclusive financeira; e de
privatização de empresas estatais conduziria a uma eficiente divisão
internacional do trabalho em que todas as sociedades participariam de forma
equânime e atingiriam os mais elevados níveis de crescimento e desenvolvimento.
5. Esta visão da economia se fundamenta em premissas equivocadas. Primeiro, de
que todos os Estados partem de um mesmo nível de desenvolvimento, de que não há
Estados mais e menos desenvolvidos. Segundo, de que as empresas são todas
iguais ou pelo menos muito semelhantes em dimensão de produção, de capacidade
financeira e tecnológica e de que não são capazes de influir sobre os preços.
Terceiro, de que há plena liberdade de movimento da mão-de-obra entre os
Estados. Quarto, de que há pleno acesso à tecnologia que pode ser adquirida
livremente no mercado. Quinto, de que todos os Estados, inclusive aqueles mais
desenvolvidos, seguem hoje e teriam seguido no passado esse tipo de políticas.
6. Como é óbvio, estas premissas não correspondem nem à realidade da economia
mundial, que é muito, muito mais complexa, nem ao desenvolvimento histórico do
capitalismo.
7. Historicamente, as nações hoje altamente desenvolvidas utilizaram uma gama
de instrumentos de política econômica que permitiram o fortalecimento de suas
empresas, de suas economias e de seus Estados nacionais. Isto ocorreu mesmo na
Inglaterra, que foi a nação líder do desenvolvimento capitalista industrial,
com a Lei de Navegação, que obrigava o transporte em navios ingleses de todo o
seu comércio de importação e exportação; com a política de restrição às
exportações de lã em bruto e às importações de tecidos de lã; com as restrições
à exportação de máquinas e à imigração de "técnicos".
8. Políticas semelhantes utilizaram a França, a Alemanha, os Estados Unidos e o
Japão. Países que não o fizeram naquela época, tais como Portugal e Espanha,
não se desenvolveram industrialmente e, portanto, não se desenvolveram.
9. Se assim foi historicamente, a realidade da economia atual é a de mercados
financeiros e industriais oligopolizados em nível global por megaempresas
multinacionais, cujas sedes se encontram nos países altamente desenvolvidos. A
lista das maiores empresas do mundo, publicada pela revista Forbes,
apresenta dados sobre essas empresas cujo faturamento é superior ao PIB de
muitos países. Das 500 maiores empresas, 400 se encontram operando na China. Os
países altamente desenvolvidos protegem da competição estrangeira setores de
sua economia como a agricultura e outros de alta tecnologia. Através de seus
gigantescos orçamentos de defesa, todos, inclusive a Alemanha e o Japão, que
não poderiam legalmente ter forças armadas, subsidiam as suas empresas e
estimulam o desenvolvimento cientifico e tecnológico. Com os programas do tipo
"Buy American" e outros semelhantes, privilegiam as empresas
nacionais de seus países; através da legislação e de acordos cada vez mais
restritivos de proteção à propriedade intelectual, dificultam e até impedem a
difusão do conhecimento tecnológico. Através de agressivas políticas de
"abertura de mercados" obtém acesso aos recursos naturais (petróleo,
minérios etc) e aos mercados dos países periféricos, em troca de uma falsa reciprocidade,
e conseguem garantir para suas megaempresas um tratamento privilegiado em
relação às empresas locais, inclusive no campo jurídico, com os acordos de
proteção e promoção de investimentos, pelos quais obtém a
extraterritorialidade. Como é sabido, protegem seus mercados de trabalho
através de todo tipo de restrição à imigração, favorecendo, porém, a de pessoal
altamente qualificado, atraindo cientistas e engenheiros, colhendo as melhores
"flores" dos jardins periféricos.
10. A segunda concepção de desenvolvimento econômico e social afirma que, dada
a realidade da economia mundial e de sua dinâmica, e a realidade das economias
subdesenvolvidas, é essencial a ação do Estado para superar os três desafios
que tem de enfrentar os países periféricos, ex-colônias, algumas mais outras
menos recentes, mas todas vítimas da exploração colonial direta ou indireta.
Esses desafios são a redução das disparidades sociais, a eliminação das
vulnerabilidades externas e o pleno desenvolvimento de seu potencial de recursos
naturais, de sua mão de obra e de seu capital.
11. As extremas disparidades sociais, as graves vulnerabilidades externas, o
potencial não desenvolvido caracterizam o Brasil, mas também todas as economias
sulamericanas. A superação desses desafios não poderá ocorrer sem a ação do
Estado, pela simples aplicação ingênua dos princípios do neoliberalismo, de
liberdade absoluta para as empresas as quais, aliás, levaram o mundo à maior
crise econômica e social de sua História: a crise de 2007. E agora, Estados
europeus, pela política de austeridade (naturalmente, não para os bancos) que
ressuscita o neoliberalismo, atacam vigorosamente a legislação social, propagam
o desemprego e agravam as disparidades de renda e de riqueza. Mas isto é tema
para outro artigo.
12. Assim, neste embate entre duas visões, concepções, de política econômica, a
aplicação da primeira política, a do neoliberalismo, levou à ampliação da
diferença de renda entre os países da América do Sul e os países altamente
desenvolvidos nos últimos vinte anos até a crise de 2007. Por outro lado, é a
aplicação de políticas econômicas semelhantes, que preveem explicitamente a
ação do Estado, que permitiu à China crescer à taxa média de 10% a/a desde 1979
e que farão que a China venha a ultrapassar os EUA até 2020. Ainda assim, há
aqueles que na periferia não querem ver, por interesse ou ideologia, a
verdadeira natureza da economia internacional e a necessidade da ação do Estado
para promover o desenvolvimento. Nesta economia internacional real, e não
mitológica, é preciso considerar a ação da maior Potência.
13. A política econômica externa dos Estados Unidos, a partir do momento em que
o país se tornou a principal potência industrial do mundo no final do século XIX
e em especial a partir de 1945, com a vitória na Segunda Guerra Mundial, e
confiante na enorme superioridade de suas empresas, tem tido como principal
objetivo liberalizar o comércio internacional de bens e promover a livre
circulação de capitais, de investimento ou financeiro, através de acordos
multilaterais como o GATT, mais tarde OMC, e o FMI; de acordos regionais, como
era a proposta da ALCA e de acordos bilaterais, como são os tratados de livre
comércio com a Colômbia, o Chile, o Peru, a América Central e com outros países
como a Coréia do Sul. E agora as negociações, altamente reservadas, da chamada
Trans-Pacific Partnership - TPP, a Parceria Transpacífica, iniciativa americana
extremamente ambiciosa, que envolve a Austrália, Brunei, Chile, Malásia, Nova
Zelândia, Peru, Singapura, Vietnã, e eventualmente Canadá, México e Japão, e
que, nas palavras de Bernard Gordon, Professor Emérito de Ciência Política, da
Universidade de New Hampshire, "adicionaria milhares de milhões de dólares
à economia americana e consolidaria o compromisso político, financeiro e
militar dos Estados Unidos no Pacifico por décadas". O compromisso, a
presença, a influência dos Estados Unidos no Pacifico isto é, na Ásia, no
contexto de sua disputa com a China. A TPP merece um artigo à parte.
14. Através daqueles acordos bilaterais, procuram os EUA consagrar
juridicamente a abertura de mercados e obter o compromisso dos países de não
utilizar políticas de desenvolvimento industrial e de proteção do capital
nacional. Não desejam os Estados Unidos ver o desenvolvimento de economias
nacionais, com fortes empresas, capazes de competir com as megaempresas
americanas, por razões óbvias, entre elas a consequente redução das remessas de
lucros das regiões periféricas para a economia americana. Os lucros no exterior
são cerca de 20% do total anual dos lucros das empresas americanas!
15. Nas Américas, a política econômica dos Estados Unidos teve sempre como
objetivo a formação de uma área continental integrada à economia americana e
liderada pelos Estados Unidos que, inclusive, contribuísse para o alinhamento
político de cada Estado da região com a política externa americana em seus
eventuais embates com outros centros de poder, como a União Européia, a Rússia
e hoje a China.
16. Assim, já no século XIX, em 1889, no mesmo ano em que Deodoro da Fonseca
proclamou a República, na Conferência Internacional Americana, em Washington,
os Estados Unidos propuseram a criação de uma união aduaneira continental. Esta
proposta, que recebeu acolhida favorável do Brasil, no entusiasmo pan-americano
da recém-nascida república, foi rejeitada pela Argentina e outros países.
17. Com a I Guerra Mundial, a Grande Depressão, a ascensão do nazismo e a
Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos procuraram estreitar seus laços
econômicos com a América Latina, aproveitando, inclusive, a derrota alemã e o
retraimento francês e inglês, influências históricas tradicionais.
18. Em 1948, na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, propuseram
novamente a negociação de uma área de livre comércio nas Américas; mais tarde,
em 1988, negociaram o acordo de livre comércio com o Canadá, que seria
transformado em Nafta com a inclusão do México, em 1994; e propuseram a
negociação de uma Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA, em 1994.
19. A negociação da ALCA fracassou em parte pela oposição do Brasil e da
Argentina, a partir da eleição de Lula, em 2002 e de Kirchner, em 2003 e, em
parte, devido à recusa americana de negociar os temas de agricultura e de
defesa comercial, o que permitiu enviar os temas de propriedade intelectual,
compras governamentais e investimentos para a esfera da OMC, o que esvaziou as
negociações.
20. O objetivo estratégico americano, todavia, passou a ser executado, agora
com redobrada ênfase, através da negociação de tratados bilaterais de livre
comércio, que concluíram com o Chile, a Colômbia, o Peru, a América Central e
República Dominicana, só não conseguindo o mesmo com o Equador e a Venezuela
devido à eleição de Rafael Correa e de Hugo Chávez e à resistência do Mercosul
às investidas feitas junto ao Uruguai.
21. Assim, a estratégia americana tem tido como resultado, senão como objetivo
expresso, impedir a integração da América do Sul e desintegrar o Mercosul
através da negociação de acordos bilaterais, incorporando Estado por Estado na
área econômica americana, sem barreiras às exportações e capitais americanos e
com a consolidação legal de políticas econômicas internas, em cada país, nas
áreas de propriedade intelectual, compras governamentais, defesa comercial,
investimentos, em geral com dispositivos chamados de OMC – Plus, mais
favoráveis aos Estados Unidos do que aqueles que conseguiram incluir na OMC,
que, sob o manto de ilusória reciprocidade, beneficiam as megaempresas
americanas, em especial neste momento de crise e de início da competição
sino-americana na América Latina.
22. Na execução deste objetivo, de alinhar econômica, e por consequência
politicamente, toda a América Latina sob a sua bandeira contam com o auxílio
dos grupos internos de interesse em cada país que, tendo apoiado a ALCA no
passado, agora apoiam a negociação de acordos bilaterais ou a aproximação com
associações de países, tais como a Aliança do Pacífico, que reúne países
sul-americanos e mais o México, que celebraram acordos de livre comércio com os
EUA.
23. Hoje, o embate político, econômico e ideológico na América do Sul se trava
entre os Estados Unidos da América, a maior potência econômica, política,
militar, tecnológica, cultural e de mídia do mundo; a crescente presença
chinesa, com suas investidas para garantir acesso a recursos naturais, ao
suprimento de alimentos e de suas exportações de manufaturas e que, para isto,
procuram seduzir os países da América do Sul e em especial do Mercosul com
propostas de acordos de livre comércio; e as políticas dos países do Mercosul,
Argentina, Brasil, Venezuela, Uruguai e Paraguai que ainda entretém aspirações
de desenvolvimento soberano, pretendem atingir níveis de desenvolvimento social
elevado e que sabem que, para alcançar estes objetivos, a ação do Estado, i.e.
da coletividade organizada, é essencial, é indispensável.
Estados Unidos, Venezuela e Paraguai
— 26 notas
para compreender a batalha actual
por Samuel
Pinheiro Guimarães [*]
1.
Não há como entender as peripécias da política
sul-americana sem levar em conta a política dos Estados Unidos para a América
do Sul. Os Estados Unidos ainda são o principal ator político na América do Sul
e pela descrição de seus objetivos devemos começar.
2. Na América do Sul, o objetivo estratégico central dos Estados Unidos, que
apesar do seu enfraquecimento continuam sendo a maior potência política,
militar, econômica e cultural do mundo, é incorporar todos os países da região
à sua economia. Esta incorporação econômica leva, necessariamente, a um
alinhamento político dos países mais fracos com os Estados Unidos nas
negociações e nas crises internacionais.
3. O instrumento tático norte-americano para atingir este objetivo consiste em
promover a adoção legal pelos países da América do Sul de normas de
liberalização a mais ampla do comércio, das finanças e investimentos, dos
serviços e de "proteção" à propriedade intelectual através da
negociação de acordos em nível regional e bilateral.
4. Este é um objetivo estratégico histórico e permanente. Uma de suas primeiras
manifestações ocorreu em 1889 na I Conferência Internacional Americana, que se
realizou em Washington, quando os EUA, já então a primeira potência industrial
do mundo, propuseram a negociação de um acordo de livre comércio nas Américas e
a adoção, por todos os países da região, de uma mesma moeda, o dólar.
5. Outros
momentos desta estratégia foram o acordo de livre comércio EUA-Canadá; o NAFTA
(Área de Livre Comércio da América do Norte, incluindo além do Canadá, o
México); a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio das Américas –
ALCA e, finalmente, os acordos bilaterais com o Chile, Peru, Colômbia e com os
países da América Central.
6. Neste contexto hemisférico, o principal objetivo norte-americano é
incorporar o Brasil e a Argentina, que são as duas principais economias
industriais da América do Sul, a este grande "conjunto" de áreas de
livre comércio bilaterais, onde as regras relativas ao movimento de capitais,
aos investimentos estrangeiros, aos serviços, às compras governamentais, à
propriedade intelectual, à defesa comercial, às relações entre investidores
estrangeiros e Estados seriam não somente as mesmas como permitiriam a plena
liberdade de ação para as megaempresas multinacionais e reduziria ao mínimo a
capacidade dos Estados nacionais para promover o desenvolvimento, ainda que
capitalista, de suas sociedades e de proteger e desenvolver suas empresas (e
capitais nacionais) e sua força de trabalho.
7. A existência do Mercosul, cuja premissa é a preferência em seus mercados às
empresas (nacionais ou estrangeiras) instaladas nos territórios da Argentina,
do Brasil, do Paraguai e do Uruguai em relação às empresas que se encontram
fora desse território e que procura se expandir na tentativa de construir uma
área econômica comum, é incompatível com objetivo norte-americano de
liberalização geral do comércio de bens, de serviços, de capitais etc que
beneficia as suas megaempresas, naturalmente muitíssimo mais poderosas do que
as empresas sul-americanas.
8. De outro lado, um objetivo (político e econômico) vital para os Estados
Unidos é assegurar o suprimento de energia para sua economia, pois importam 11
milhões de barris diários de petróleo sendo que 20% provêm do Golfo Pérsico,
área de extraordinária instabilidade, turbulência e conflito.
9. As empresas americanas foram responsáveis pelo desenvolvimento do setor
petrolífero na Venezuela a partir da década de 1920. De um lado, a Venezuela
tradicionalmente fornecia petróleo aos Estados Unidos e, de outro lado,
importava os equipamentos para a indústria de petróleo e os bens de consumo
para sua população, inclusive alimentos.
10. Com a eleição de Hugo Chávez, em 1998, suas decisões de reorientar a
política externa (econômica e política) da Venezuela em direção à América do
Sul (i.e. principal, mas não exclusivamente ao Brasil), assim como de construir
a infraestrutura e diversificar a economia agrícola e industrial do país viriam
a romper a profunda dependência da Venezuela em relação aos Estados Unidos.
11. Esta decisão venezuelana, que atingiu frontalmente o objetivo estratégico
da política exterior americana de garantir o acesso a fontes de energia,
próximas e seguras, se tornou ainda mais importante no momento em que a
Venezuela passou a ser o maior país do mundo em reservas de petróleo e em que a
situação do Oriente Próximo é cada vez mais volátil.
12. Desde então desencadeou-se uma campanha mundial e regional de mídia contra
o Presidente Chávez e a Venezuela, procurando demonizá-lo e caracterizá-lo como
ditador, autoritário, inimigo da liberdade de imprensa, populista, demagogo
etc. A Venezuela, segundo a mídia, não seria uma democracia e para isto criaram
uma "teoria" segundo a qual ainda que um presidente tenha sido eleito
democraticamente, ele, ao não "governar democraticamente", seria um
ditador e, portanto, poderia ser derrubado. Aliás, o golpe já havia sido
tentado em 2002 e os primeiros lideres a reconhecer o "governo" que
emergiu desse golpe na Venezuela foram George Walker Bush e José María Aznar.
13. À medida que o Presidente Chávez começou a diversificar suas exportações de
petróleo, notadamente para a China, substituiu a Rússia no suprimento
energético de Cuba e passou a apoiar governos progressistas eleitos
democraticamente, como os da Bolívia e do Equador, empenhados em enfrentar as
oligarquias da riqueza e do poder, os ataques redobraram orquestrados em toda a
mídia da região (e do mundo).
14. Isto apesar de não haver dúvida sobre a legitimidade democrática do
Presidente Chávez que, desde 1998, disputou doze eleições, que foram todas
consideradas livres e legítimas por observadores internacionais, inclusive o
Centro Carter, a ONU e a OEA.
15. Em 2001, a Venezuela apresentou, pela primeira vez, sua candidatura ao
Mercosul. Em 2006, após o término das negociações técnicas, o Protocolo de
adesão da Venezuela foi assinado pelos Presidentes Chávez, Lula, Kirchner,
Tabaré e Nicanor Duarte, do Paraguai, membro do Partido Colorado. Começou então
o processo de aprovação do ingresso da Venezuela pelos Congressos dos quatro
países, sob cerrada campanha da imprensa conservadora, agora preocupada com o
"futuro" do Mercosul que, sob a influência de Chávez, poderia,
segundo ela, "prejudicar" as negociações internacionais do bloco etc.
Aquela mesma imprensa que rotineiramente criticava o Mercosul e que advogava a
celebração de acordos de livre comércio com os Estados Unidos, com a União
Européia etc, se possível até de forma bilateral, e que considerava a
existência do Mercosul um entrave à plena inserção dos países do bloco na
economia mundial, passou a se preocupar com a "sobrevivência" do
bloco.
16. Aprovado pelos Congressos da Argentina, do Brasil, do Uruguai e da
Venezuela, o ingresso da Venezuela passou a depender da aprovação do Senado paraguaio,
dominado pelos partidos conservadores representantes das oligarquias rurais e
do "comércio informal", que passou a exercer um poder de veto,
influenciado em parte pela sua oposição permanente ao Presidente Fernando Lugo,
contra quem tentou 23 processos de "impeachment" desde a sua posse em
2008.
17. O ingresso da Venezuela no Mercosul teria quatro consequências: dificultar
a "remoção" do Presidente Chávez através de um golpe de Estado;
impedir a eventual reincorporação da Venezuela e de seu enorme potencial
econômico e energético à economia americana; fortalecer o Mercosul e torná-lo
ainda mais atraente à adesão dos demais países da América do Sul; dificultar o
projeto americano permanente de criação de uma área de livre comércio na
América Latina, agora pela eventual "fusão" dos acordos bilaterais de
comércio, de que o acordo da Aliança do Pacifico é um exemplo.
18. Assim, a recusa do Senado paraguaio em aprovar o ingresso da Venezuela no
Mercosul tornou-se questão estratégica fundamental para a política norte
americana na América do Sul.
19. Os líderes políticos do Partido Colorado, que esteve no poder no Paraguai
durante sessenta anos, até a eleição de Lugo, e os do Partido Liberal, que
participava do governo Lugo, certamente avaliaram que as sanções contra o
Paraguai em decorrência do impedimento de Lugo, seriam principalmente
políticas, e não econômicas, limitando-se a não poder o Paraguai participar de
reuniões de Presidentes e de Ministros do bloco. Feita esta avaliação,
desfecharam o golpe. Primeiro, o Partido Liberal deixou o governo e aliou-se
aos Colorados e à União Nacional dos Cidadãos Éticos – UNACE e aprovaram, a
toque de caixa, em uma sessão, uma resolução que consagrou um rito
super-sumário de "impeachment". Assim, ignoraram o Artigo 17 da
Constituição paraguaia que determina que "no processo penal, ou em
qualquer outro do qual possa derivar pena ou sanção, toda pessoa tem direito a
dispor das cópias, meios e prazos indispensáveis para apresentação de sua
defesa, e a poder oferecer, praticar, controlar e impugnar provas", e o
artigo 16 que afirma que o direito de defesa das pessoas é inviolável.
20. Em 2003, o processo de impedimento contra o Presidente Macchi, que não foi
aprovado, levou cerca de três meses enquanto o processo contra Fernando Lugo
foi iniciado e encerrado em cerca de 36 horas. O pedido de revisão de
constitucionalidade apresentado pelo Presidente Lugo junto à Corte Suprema de
Justiça do Paraguai sequer foi examinado, tendo sido rejeitado in limine.
21. O processo de impedimento do Presidente Fernando Lugo foi considerado golpe
por todos os Estados da América do Sul e de acordo com o Compromisso
Democrático do Mercosul o Paraguai foi suspenso da Unasur e do Mercosul, sem
que os neogolpistas manifestassem qualquer consideração pelas gestões dos
Chanceleres da UNASUR, que receberam, aliás, com arrogância.
22. Em consequência da suspensão paraguaia, foi possível e legal para os
governos da Argentina, do Brasil e do Uruguai aprovarem o ingresso da Venezuela
no Mercosul a partir de 31 de julho próximo. Acontecimento que nem os
neogolpistas nem seus admiradores mais fervorosos – EUA, Espanha, Vaticano,
Alemanha, os primeiros a reconhecer o governo ilegal de Franco – parecem ter
previsto.
23. Diante desta evolução inesperada, toda a imprensa conservadora dos três
países, e a do Paraguai, e os líderes e partidos conservadores da região,
partiram em socorro dos neogolpistas com toda sorte de argumentos, proclamando
a ilegalidade da suspensão do Paraguai (e, portanto, afirmando a legalidade do
golpe) e a inclusão da Venezuela, já que a suspensão do Paraguai teria sido
ilegal.
24. Agora, o Paraguai procura obter uma decisão do Tribunal Permanente de
Revisão do Mercosul sobre a legalidade de sua suspensão do Mercosul enquanto,
no Brasil, o líder do PSDB anuncia que recorrerá à justiça brasileira sobre a
legalidade da suspensão do Paraguai e do ingresso da Venezuela.
25. A política externa norte-americana na América do Sul sofreu as consequências
totalmente inesperadas da pressa dos neogolpistas paraguaios em assumir o
poder, com tamanha voracidade que não podiam aguardar até abril de 2013, quando
serão realizadas as eleições, e agora articula todos os seus aliados para fazer
reverter a decisão de ingresso da Venezuela.
26. Na realidade, a questão do Paraguai é a questão da Venezuela, da disputa
por influência econômica e política na América do Sul e de seu futuro como
região soberana e desenvolvida.
*Samuel
Pinheiro Guimarães Neto (Rio de Janeiro, 1939) é um diplomata brasileiro.Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (atual UFRJ) em 1963, ingressou no Itamaraty nesse mesmo ano.1 É mestre em economia pela Boston University (1969).Foi secretário-geral das Relações Exteriores do Ministério das Relações Exteriores de 9 de janeiro de 2003 até 20 de outubro de 2009, tendo sucedido Osmar Vladimir Chohfi. Foi então
empossado como ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE).3 Deixou o cargo
em 31 de dezembro de 2010, no final do Governo Lula. Em 19 de janeiro de 2011, o embaixador foi designado Alto-Representante Geral
do Mercosul tendo como
funções a articulação política, formulação de propostas e representação das
posições comuns do bloco 4 . Na função,
Samuel Pinheiro coordenava a implementação das metas previstas no Plano de Ação
para um Estatuto da Cidadania do Mercosul, aprovado em Foz do Iguaçu em 16 de dezembro de 2010. Renunciou ao cargo, contudo, em 28 de junho de
2012.Foi professor da Universidade de Brasília (UnB), entre 1977 e 1979. Atualmente, é
professor do Instituto Rio Branco (IRBr/MRE), onde leciona a disciplina "Política Internacional e
Política Externa Brasileira" aos diplomatas recém-ingressados na carreira.