quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Medo de Lula


Medo de Lula

por Mino Carta — publicado 28/08/2017 00h03, última modificação 25/08/2017 11h02
A avassaladora campanha do ex-presidente pelo Nordeste explica o último objetivo do golpe
Fotos: Ricardo Stuckert
Lula
De cima para baixo, em Feira de Santana, Maceió, Cruz das Almas e Itabaiana. As fotos provam a liderança de Lula e ferocidade insana da casa-grande, incompativel com qualquer anseio de democracia
As imagens deste editorial provam a ferocidade, a prepotência, a irresponsabilidade da casa-grande e também o extraordinário poder de Lula, a ponto de ter certeza de que partisse ele para o périplo dos dias de hoje logo após a posse de Dilma Rousseff, quando já era possível perceber os intuitos da quadrilha golpista, sequer haveria o impeachment.
A eloquência das fotos é tão indiscutível quanto a liderança de Lula. Entre as frases dos discursos do ex-presidente, pinço: “Não sei quanto tempo tenho de vida, não sei se vou poder concorrer à Presidência, mas, se concorrer, vai ser para ganhar”. Verdade factual, a expor o objetivo final do golpe de 2016: evitar que o único líder popular brasileiro volte a governar com a força do voto.
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Lula no Nordeste02.jpg
A caravana lulista já passou por Bahia, Sergipe e Alagoas entre 17 e 23 de agosto. O roteiro estende-se até 4 de setembro e segue por Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão. Esperem por multidões idênticas. Já se falou do Nordestecomo de um fundão do Brasil. É, no entanto, a região mais politizada do País, onde uma larga porção do seu povo sabe de como, e profundamente, foi espezinhada pelos governantes e pelos oligarcas.
Os quatrocentões paulistas tinham pelos nordestinos inarredável desprezo. Enxergavam nas levas de migrantes chegados na boleia de um caminhão uma ameaça ao seu progresso e sossego. São Paulo e muitas cidades do interior paulista decaem, mas a ameaça, cada vez mais espantosa, é a miséria, que a casa-grande cuida de manter. Não é por acaso que a terra bandeirante é a mais
reacionária de toda a federação.
Lula no Nordeste03.jpg
Alguns fatos são altamente representativos da situação de atraso político, e mesmo ideológico, a começar pela oligarquia tucana. Até hoje o dia 9 de julho é feriado no estado, em memória de uma
malograda tentativa separatista, e na capital não há um único logradouro público que leve o nome de Getúlio, enquanto há avenidas, ruas, viadutos para a imorredoura lembrança de imponentes figuras da ditadura, sem exclusão de torturadores e alcaguetes.
Resistência à avassaladora campanha do ex-presidente houve na Bahia, onde um juiz, digno representante da Têmis nativa, Evandro Reimão dos Reis, a pedido do vereador Alexandre Aleluia,
filho de pai deputado demista, proibiu Lula de receber o título de doutor honoris causa da Universidade Federal do Recôncavo, que ele criou quando presidente. Conseguiram excitar o povo, que acorreu em massa à porta da universidade em Cruz das Almas.
Lula
CartaCapital sabe perfeitamente das razões do medo a Lula. Entre elas, por exemplo, em referência a assuntos da semana: o governo de Lula jamais privatizaria a Eletrobras, a reacender fatais atitudes da Presidência de FHC, a bem de amigões endinheirados atentos aos movimentos das bolsas e de compradores estrangeiros para desgraça da própria segurança nacional. Tampouco permitiria a presença de soldados americanos nas manobras militares marcadas para novembro próximo na fronteira amazônica.

"O objeto da arquitetura é a realização da cidade"

Arquitetura

"O objeto da arquitetura é a realização da cidade"

por Jotabê Medeiros — publicado 27/08/2017 00h49, última modificação 25/08/2017 10h17
Paulo Mendes da Rocha, brasileiro de projeção mundial, inaugura um novo projeto no Centro paulistano
Diego Padgurschi/Folhapress
Paulo Mendes Rocha
O criador ocupa há 30 anos o mesmo escritório na região da República
Este ano, ele recebeu a medalha de ouro do Royal Institute of British Architects. Em 2016, levou o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, pelo conjunto da obra. Em 2006, já havia recebido o Pritzker, o mais importante prêmio da arquitetura mundial, algo que só outro brasileiro alcançara: Oscar Niemeyer.
Concreto dançante, vidro e vertiginosos espaços abertos são as sentenças da arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, que completará 90 anos em 2018. Sua notável lucidez e firmeza de propósitos faz dele um homem leve, que desliza como um sensei de artes marciais por entre as grandes pranchetas de seu escritório de 30 anos na região da Praça da República, entre boates de travestis e clubes de strip-tease.
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No mundo hipermercantilizado da arquitetura, ele representa uma espécie de antídoto contra a imperiosidade do consumismo e do corporativismo. Projetou alguns dos edifícios mais consistentes da cidade, como o Museu Brasileiro de Escultura, a Pinacoteca do Estado, o Centro Cultural Fiesp e o ginásio do Club Athletico Paulistano.
No dia 19, inaugura-se o Sesc 24 de Maio, projeto que o arquiteto definiu como um “navio-tarefa”, reapropriando-se do antigo prédio da loja de departamentos Mesbla. Ele falou a CartaCapital.
CartaCapital: Quando o senhor ganhou o Leão de Ouro de Veneza, no ano passado, o arquiteto que o premiou, Alejandro Aravena, disse que sua obra sobreviveu ao teste do tempo, tanto estilística quanto fisicamente. E que isso se devia à sua integridade ideológica.
Paulo Mendes da Rocha: Você sabe, eu não sei falar muito da minha obra, porque eu tenho a impressão de que a questão é de interpretação do desejo das pessoas, não do arquiteto, compreende? Você se volta para tentar satisfazer o desejo das pessoas.
O que já mostra que a questão não é de caráter estilístico. Porque ninguém deseja um estilo. Você deseja o desfrute da coisa. Então, se alguém perguntasse – o que é absurdo, porque são infinitas as razões – como fazer um programa de televisão para provocar uma das respostas intrigantes da questão “qual é a razão da arquitetura?”, eu gosto de dizer que é amparar justamente a imprevisibilidade da vida. É um pretexto, não é um programa definitivo que obrigue as pessoas a se comportarem.
Você não pode ir a um restaurante para praticar patinação. Vai para comer. Mas comer o quê? Qual o modo que você se serve? Tem uma lista de coisas, o menu etc. Essa variação toda, esse gozo da vida, uma visão erótica da vida, é que é o objeto da arquitetura. Mas não que eu queira dizer verdades, é pôr para discutir. É que, com o andamento, como é fatal que haja um andamento da consciência, da nossa formação humana...
CC: Há uma dialética.
PMR: Nós não nascemos humanos, nos tornamos humanos. É a macacada que vem vindo aí, afinal de contas. Portanto, as coisas mudam, não são sempre as mesmas. E o interessante é esse desfrute. A arquitetura é feita... O programa é um pretexto para que as coisas se desencadeiem e, eventualmente, se transformem, através do próprio uso. Que é o que acontece na vida da gente. Outro dia eu estava me divertindo com a visão que está meio na moda, que tem muito barbado atualmente. Não sei se você concorda.
CC: É, voltou a ter.
PMR: Jovens até. E, antigamente, a barba era imagem de sabedoria, de maturidade. Os grandes barbados da história a gente sabe quem são. Você ver na rua um barbado de bermuda e sandália é meio inesperado, é muito engraçado. É o que se vê hoje. O cara deixa crescer uma barba de sábio, de maduro, e se veste de moleque, digamos. As coisas mudam.
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As relações masculino e feminino hoje estão completamente mudadas. Uma questão de consciência sobre a superpopulação, o planeta não aguenta. Então, as relações masculino e feminino passam a ter outro sentido, a reprodução da espécie já é posta em discussão etc. Isso muda completamente o mundo. Muda a política, mudam as relações dos homens entre si, muda a vida da cidade etc.
A arquitetura saiu do interesse do edifício como um fato isolado e deteve-se na questão da cidade. O objeto da arquitetura, hoje, é a cidade, a realização da cidade. E aí entram conflitos incríveis, entre razões de caráter utópico, do que seja a cidade, e as razões do mercado, que destroem tudo, passam por cima de tudo, necessidades e desejos de modo concomitante.
CC: Então, o arquiteto seria um intérprete de desejos, em última instância?
PMR: É o construtor dos desejos, no sentido de abrigar aquilo. Mas esse desejo, por sua vez, pode ficar em aberto. É essa a graça da arquitetura. O desejo, inclusive, faz com que o homem seja capaz de realizar seus desejos de novo, naquele ambiente construído, antigo. Aí aparece, talvez, o objeto da nossa conversa, que é a inauguração do Sesc 24 de Maio, como exemplo.
A transformação do uso, a transformação da mesma coisa, com outro uso. Você não vai demolir tudo. A construção exige – cada vez mais, mas sempre exigiu – complexidades tão delicadas do conhecimento, como fundações, distribuição de carga, sistemas estruturais. Aquilo que a técnica mostra que evoluiu. Hoje você pode fazer uma estrutura metálica, pode construir com concreto, o próprio concreto armado, depois armado e protendido. São coisas que evoluíram no tempo. Uma vez realizado aquele edifício, suponha, ele pode ser transformado por dentro. É o que se vê.
CC: É o caso da Pinacoteca.
PMR: O caso da Pinacoteca e tantos outros bastante notáveis da cidade de São Paulo. Veja você onde está instalada a Prefeitura hoje – que não é pouca coisa, a administração municipal de 12 milhões de habitantes – é o antigo prédio Matarazzo. É uma ocupação.
O próprio povo, de certo modo revolucionário, sabendo de um prédio abandonado, vai lá e ocupa para habitação, principalmente, que é o que falta à classe menos favorecida. E são as melhores habitações, porque, geralmente, esses prédios abandonados estão na porta do metrô. E a grande virtude da casa é o endereço. Não adianta nada o povo querer oferecer uma casinha quase casa de cachorro no arrabalde, é um desastre para a população que trabalha.
CC: Hoje uma palavra muito em moda nessa tendência é “requalificação”. “Requalificação dos centros”.
PMR: Bem, aí se usam as palavras às vezes de maneira até grotesca, “requalificação”. Não tem requalificação, a qualidade já é suprema, é a capital. É o lugar onde etc. etc. Eu não gosto da palavra “requalificação”.
A qualidade de São Paulo, do Centro da cidade, está lá definitivamente. A cidade é de tal maneira virtuosa – você pode dormir na rua – que quem é mal preparado, que não se preocupa com essa questão histórica, dessa fantástica realização, transformação da natureza em realmente habitável, a cidade, abandona a cidade. Isso causa certo prejuízo aparente.
Mas talvez seja a grande virtude, porque justamente aqueles que não tinham direito à cidade vão começar a ocupá-la e, quem sabe, vai surgir a verdadeira cidade, livre para todos – que não era tanto assim. Se você deitar na rua e dormir, ninguém te incomoda. Se você deitar e dormir em um bairro desses chamados “estritamente residenciais”, aparecem quatro jagunços armados para te expulsar, não é verdade?
CC: Li o senhor dizendo que a palavra sustentabilidade é um modismo.
PMR: É, porque não se trata de sustentar, mas de transformar de modo adequado. Você pode não saber exatamente como fazer, mas tem a obrigação de saber exatamente aquilo que, entretanto, não deve fazer. Como é o caso do transporte individual com motor a explosão.
Só pelo nome do motor já era para pôr um pé atrás. Uma das caricaturas para agora reduzir a questão... Uma conversa pública, um instrumento de convicção que é muito bom, que é a ironia e o humor, é realçar a estupidez do automóvel. Um carro pesa 700, 800 quilos e transporta um de nós, que pesa 60 quilos.
Então, você transporta... uma lataria, todo esse panegírico de extração de petróleo, transformar matéria sólida pesante de todo o sistema da mecânica celeste, de conservação da energia pela matéria, tudo isso, você transforma em matéria volátil para transportar lataria de lá para cá, de cá para lá.
A visão de transporte público, a concentração da população para a eficiência do transporte público, verticalização, tudo isso são engenhosidades que não podem ser vistas como balela para pôr mercadoria para vender. Temos de fazer a crítica da exacerbação da ideia de mercado, que exige inclusive e desfruta da propaganda.
CC: As transformações tecnológicas operam grandes mudanças nas profissões humanas e também na ocupação física das coisas. Isso é algo que o senhor já viu antes, ou não?
PMR: Eu tenho a impressão de que sempre foi assim. O que você tem de ver, porque é impossível deixar de ver, é que houve uma aceleração muito forte, por razão da eficiência da comunicação etc. Afinal de contas, nós somos americanos. Isso aqui foi descoberto há 400 anos, não é nada. Portanto, não se sabia se de fato existiam terras. Se o planeta é que girava em torno do Sol ou se o Sol... Discutia-se isso há 400 anos, 400 anos não é nada, não é verdade? Só de Niemeyer tem cem anos.
CC: E Paulo Mendes da Rocha, no ano que vem, 90.
PMR: Já não vai ser nada.  Então, você vê, a velocidade com que o conhecimento avança. A revelação daquilo que eram grandes mistérios do universo... Deixam de ser. A constituição da matéria, descontinuidade, molécula, átomo, neutrinos etc., coisas que você não sabia. E, sabendo, um avisando o outro, o conhecimento avança muito. O que é importante na arquitetura é a política da cidade.
CC: Quando Aravena fala da sua integridade ideológica, ele pode estar errado? O senhor pode ter tido dúvidas em relação às suas convicções?
PMR: Toda integridade ideológica é feita, inclusive, de uma justa dúvida. Essa é uma visão dialética. A ideologia dogmática não nos interessa, é o homem-bomba. Isso aí não faz sentido nenhum. Portanto, eu acho que você discutir aquilo que pensa envolve não fazer afirmações categóricas nunca, mas ir experimentando com cuidado. 
CC: Por outro lado, parece unanimidade mundial que nós estamos vivendo um retrocesso político.
PMR: No momento, parece que sim. É muito desanimador você ver que a Europa não conseguiu resolver o infame problema da última guerra horrorosa que houve lá. Até hoje a Europa não conseguir esse ideal da União Europeia é muito desanimador. Mas você também poderia dizer, particularmente, enquanto americano, brasileiro, que eles estão pagando o preço, não como punição, como experiência, da política colonial. Voltou-se contra eles mesmos.
CC: E o Brasil, a inserção dele, que é sempre uma promessa? Entra no mundo, e aí damos dois passos para trás?
PMR: Já foi tanto dito, e é verdade: essa bateção no peito de “nós somos brasileiros”, esse elogio dessa brasilidadezinha frágil do samba é uma besteira que não tem tamanho. Esse lado lírico e poético o homem tem em todas as suas atitudes, não precisa ficar fazendo alarde. É difícil um país como o Brasil. Só o que temos aqui de convivência de gente do mundo inteiro... Uma cidade como São Paulo, a influência italiana, além da portuguesa, lituanos, árabes, japoneses. Isso pressupõe uma riqueza potencial, mas muito atrasada ainda. 

Professor Uber: a precarização do trabalho invade as salas de aula

Educação

Professor Uber: a precarização do trabalho invade as salas de aula

por Ana Luiza Basilio — publicado 28/08/2017 00h30, última modificação 30/08/2017 18h44
A degradação das relações trabalhistas ameaça a carreira docente. Na rede pública de três estados, os temporários já são maioria
Arte: Pilar Veloso
Arte - Professor Uber
Para burlar a legislação trabalhista, sobra inventividade
Sob o comando do tucano Duarte Nogueira, a prefeitura de Ribeirão Preto, no interior paulista, apresentou em julho um projeto para contratar aulas avulsas de professores por meio de um aplicativo de celular, com o objetivo de suprir as ausências de docentes da rede municipal.
No “Uber da Educação”, como a proposta foi apelidada, o profissional não teria vínculo empregatício. Após receber a chamada, ele teria 30 minutos para responder se aceita a tarefa e uma hora para chegar à escola.
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Com cerca de 5 mil habitantes, a cidade catarinense de Angelina, na Grande Florianópolis, também inovou, com a criação de uma espécie de leilão reverso para a contratação de professores. Em abril, a prefeitura publicou o Pregão nº 018/2017, baseado em uma licitação de “menor preço global”.
O edital partia de um pagamento máximo de 1.200 reais para uma jornada de 20 horas semanais, mas atrelava sua definição a um leilão que deveria ser feito com o envio de propostas salariais a menores custos. O processo só não foi adiante porque foi interpelado pelo Ministério Público de Contas do Estado.
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Há tempos os professores da educação básica convivem com a precarização das relações de trabalho, um problema que deve aprofundar-se com a nova Lei de Terceirização e a reforma trabalhista sancionada por Temer. Diante do cenário, não chega a surpreender a iniciativa do Grupo Anhanguera, de buscar atrair novos estudantes para cursos de formação pedagógica com a promessa de uma fonte complementar de rendimentos.
“Torne-se professor e aumente a sua renda”, dizia a peça publicitária, com Luciano Huck de garoto-propaganda. Após a repercussão negativa da campanha nas redes sociais, a instituição de ensino superior pediu desculpas pela “mensagem equivocada sobre a função e importância do professor”.
A precariedade cobra um elevado preço dos profissionais. Em 34 anos de carreira, esta é a primeira vez que Maria Fátima Maia da Silva, 50 anos, se vê longe das salas de aula. Por recomendação médica, ela está afastada há dois meses em consequência de estresse acumulado ao lecionar em sete escolas do Paraná.
A peregrinação pelas unidades da rede estadual começou em fevereiro, quando o governo de Beto Richa (PSDB) reduziu as horas-atividade dos docentes, passando de 7 para 5, em uma carga horária de 20 horas/aulas semanais.
Até a decisão, Maia da Silva trabalhava em uma única escola de Curitiba, com uma jornada de 40 horas semanais, 20 horas dedicadas a aulas de Biologia e o tempo restante para ministrar a disciplina de Ciências. Após a medida, a professora teve as horas de trabalho reduzidas para 13 e viu-se forçada a procurar por outras instituições para compor o tempo de cada matéria.
“Na parte da manhã, passei a trabalhar em duas escolas. Para cumprir as 20 horas restantes, peguei mais cinco escolas para lecionar à noite, cumprindo por dia da semana uma carga de quatro horas em cada uma delas”, conta a professora.
Além da jornada exaustiva em diferentes salas de aula, pesava o tempo de deslocamento até cada um dos endereços. Entre idas e vindas, a professora chegava a passar quatro horas no transporte público. A rotina foi interrompida em junho, quando a estafa a afastou do trabalho.
Documento
No pregão da prefeitura de Angelina (SC), quem está disposto a ganhar menos é contratado
Na avaliação da vice-presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Marlei Fernandes de Carvalho, o caso desrespeita a Lei Federal nº 11.738/2008, que instituiu o piso salarial dos profissionais do magistério público da educação básica. Os professores deveriam ter assegurados dois terços da carga horária para a interação com os estudantes.
“O terço restante é reservado para o planejamento”, explica Carvalho. “Com a redução das horas, descarta-se esse tempo de trabalho fora da sala de aula, o que deve fazer com que muitos professores sacrifiquem o seu tempo livre, de descanso, para cumprir todas as demandas da escola.”
Presidente da CNTE, Heleno Araújo também se preocupa com os impactos da Emenda Constitucional 95, que congela os gastos públicos por 20 anos. “Com menos recursos para a educação, temos prejudicadas as metas 15 a 18 do Plano Nacional de Educação, que preveem a valorização docente.”
Hoje, muitos professores atuam como temporários na rede pública, ou seja, não fazem parte do quadro efetivo. Em Mato Grosso, por exemplo, 60% dos docentes estão contratados nesse regime, mas são igualmente expressivos os porcentuais em Santa Catarina (57%), Mato Grosso do Sul (50%), Minas Gerais (48%), Pernambuco (44%) e São Paulo (34%).
“Pela Constituição, o ingresso no serviço público deve ser feito exclusivamente por meio de concurso”, observa Araújo. Como os temporários não podem criar vínculo com as redes de ensino, esses profissionais precisam alternar tempo de aula com tempo de afastamento.
De acordo com a presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Azevedo Noronha, os professores temporários eram obrigados a cumprir uma quarentena para voltar a lecionar na rede paulista.
“Na greve de 2015, conseguimos assegurar a contratação de quatro anos sem quebra de contrato”, lembra. Benefícios como o quinquênio ou a sexta parte, gratificações por tempo de trabalho, só foram adquiridos para a categoria há três anos.
No contexto de liberação das terceirizações, teme-se que os concursos públicos deixem de ser realizados. Os professores efetivos dariam lugar a prestadores de serviços. Outra ameaça é a entrega da administração das escolas para organizações sociais.
A ação não seria novidade. No ano passado, o estado de Goiás publicou um edital chamando entidades a assumirem a gestão escolar. Contrários à proposta, estudantes ocuparam 28 escolas estaduais. O edital foi suspenso pela Justiça goiana.
Resposta da prefeitura de Ribeirão Preto
Em nota enviada à CartaCapital, a prefeitura de Ribeirão Preto afirma que "não existe projeto 'Uber da Educação' em andamento no município".
"A proposta que se encontra em fase de elaboração denomina-se “Professor Substituto” e visa a solucionar a grave situação de ausências de professores em sala de aula, motivadas por faltas ou licença saúde, em período inferior a 30 dias. As faltas acima de 30 dias são resolvidas com nova atribuição de aulas a outro professor.
A proposta é que o professor substituto seja aprovado por processo seletivo e receba atribuição de aulas por conjunto de escolas, formado por duas ou três unidades. O contato com o profissional para chamá-lo até a unidade escolar poderá ocorrer com a utilização de tecnologias hoje disponíveis, o que agregará agilidade ao processo.

Quanto à relação empregatícia, o projeto é objeto de análise por parte da Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos. Portanto, não há nenhuma solução definitiva a respeito do assunto."

As universidades federais tentam sobreviver à asfixia financeira. O CRIME DE TEMER CONTRA A EDUCAÇÃO

Crise

As universidades federais tentam sobreviver à asfixia financeira

por Rodrigo Martins — publicado 28/08/2017 00h30, última modificação 24/08/2017 21h17
O contingenciamento de recursos imposto pelo governo de Michel Temer ameaça as instituições de ensino e a pesquisa no País
Marcelo Camargo/Agência Brasil
UnB
O governo bloqueou 25% dos recursos de custeio e 55% do reservado para investimentos
Referência no tratamento de doenças de alta complexidade, o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro, chegou a realizar mais de cem transplantes anuais de rim e 50 de fígado no início dos anos 2000. Em dezembro de 2010, o prédio na Ilha do Fundão sofreu uma interdição, para a implosão de uma ala jamais ocupada que ameaçava ruir.
As atividades foram retomadas no ano seguinte, porém o número de leitos ativos despencou de 400 para 250. Sem recursos para investimentos em infraestrutura e sem a reposição de profissionais da saúde, o hospital foi progressivamente perdendo a capacidade de atender à demanda de cirurgias complexas.
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“Hoje, realizamos apenas 12 transplantes de rim por ano, e os de fígado estão parados. As equipes médicas estão completas, mas faltam leitos de UTI e profissionais de enfermagem. Há tempos o Ministério da Educação não autoriza a realização de concursos para repor o pessoal”, lamenta o nefrologista Renato Torres Gonçalves, coordenador do Programa de Transplantes de Órgãos e Tecidos do hospital.
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Com o contingenciamento de recursos do governo para os institutos federais, o cenário torna-se cada vez mais sombrio. “É desalentador. A grande maioria dos profissionais dedicados a transplantes no Rio fez residência médica ou teve alguma passagem por aqui”, emenda Gonçalves.
O Clementino Fraga Filho pertence à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que, nos últimos 30 meses, deixou de receber do governo federal 157 milhões de reais, segundo cálculos do reitor Roberto Leher. Resultado: a instituição acumulou um déficit de 115 milhões.
“Em termos absolutos, o orçamento deste ano é 6,7% inferior ao de 2016. Se levar em conta a inflação acumulada no período, a perda real é 13,5%”, afirma. O montante, explica, refere-se aos recursos reservados para o custeio da instituição de ensino, para assistência estudantil e para investimentos, uma vez que os repasses da folha de pagamento são feitos diretamente pelo Tesouro Nacional. “Até mesmo a receita própria da UFRJ, obtida com a locação de espaços e a prestação de serviços à comunidade, é alvo da navalha, 15% dos recursos estão bloqueados”.
Hospital Universitário
Com estrutura precária e déficit de profissionais, o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, deixa de fazer dezenas de transplantes, lamenta o nefrologista Renato Torres Gonçalves
A asfixia financeira estende-se às 63 universidades federais do País, mergulhadas em vultosas dívidas com fornecedores e forçadas a renegociar contratos com prestadores de serviços. Da mesma forma, tornou-se comum o cancelamento de congressos e eventos acadêmicos, a suspensão de estudos de campo e a redução do cardápio dos restaurantes universitários.
Além de não repor as perdas inflacionárias no orçamento de 2017, o Ministério da Educação determinou que as instituições de ensino só podem gastar 45% do valor previsto para investimentos e 75% do reservado para custeio, utilizado em atividades de manutenção, como serviços de limpeza e vigilância.
Até o início de agosto, o aperto estava ainda mais severo: os limites de empenho eram 5 pontos porcentuais menores. Dando sequência à estratégia de liberação de recursos a conta-gotas, o governo liberou mais 201 milhões de reais na sexta-feira 18.
“Mesmo que as instituições tivessem autorização para gastar 100% do valor, a grande maioria delas fecharia o ano no vermelho, pois os contratos com prestadores de serviços são reajustados anualmente, e o orçamento de 2017 não repôs a inflação”, explica Emmanuel Tourinho, reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). “Com os recursos disponíveis hoje, só conseguiremos honrar os compromissos até setembro. Depois disso, será uma incógnita.”
O contingenciamento ameaça a conclusão de centenas de obras em andamento nas instituições de ensino. “De 2014 para 2017, o orçamento para investimentos caiu pela metade, e o que sobrou está contingenciado. O MEC liberou menos da metade do previsto”, lamenta Tourinho. “Com a expansão do ensino superior iniciada nos anos Lula, dobrou o número de alunos de graduação, mas não foram concluídas as obras para dar suporte a essa expansão.”
De fato, com a criação de 18 universidades federais e a inauguração de 173 novos campi, o número de estudantes passou de 113.263, em 2002, para 245.983, em 2014.
Emmanuel Tourinho
Mesmo se tivessem autorização para gastar 100% do orçamento, a maioria das universidades fecharia o ano no vermelho, diz Emmanuel Tourinho, presidente da Andifes (Alexandre Moraes/UFPA)
Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Eblin Joseph Farage recorda-se do tempo em que ministrava aulas em uma sala improvisada num container em 2008. “Era uma instalação provisória, até a conclusão das obras do campus Rio das Ostras. Hoje, leciono na unidade de Gragoatá, em Niterói, mas meus antigos colegas continuam lecionando nos mesmos contêineres”, lamenta Farage, que também preside o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes).
“Com o aprofundamento da crise em 2015, o governo federal passou a priorizar o pagamento de juros da dívida pública e os programas de isenção fiscal para grandes empresas", diz Farage. "Desde então, houve sucessivos cortes nos orçamentos das universidades federais. Hoje, as obras estão paralisadas, há cortes em bolsas de assistência estudantil e na área de pesquisa e extensão. Para agravar o cenário, muitos professores estão correndo para se aposentar diante da perspectiva de perda de direitos com a reforma da Previdência.”
As restrições orçamentárias comprometem as mais corriqueiras atividades acadêmicas. As universidades estão sem condições até de pagar transporte e hospedagem de docentes convidados para participar de bancas de mestrado e doutorado.
“Recentemente, tive de recusar um convite para participar de uma banca, porque a aluna me confidenciou que pagaria a passagem aérea do bolso dela, o que me colocaria numa situação de conflito de interesses”, afirma a professora. “Para realizar atividades de campo, em comunidades pobres de Niterói e São Gonçalo, tenho de dar carona no meu carro para diversos alunos”, emenda a professora, que coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares da UFF.
Containers
Na UFF, as salas improvisadas em containers tornaram-se instalações permanentes (Luiz Fernando Nabuco)
Os gestores desdobram-se para manter o funcionamento das universidades, mas as opções começam a minguar. “Limitamos os gastos com diárias e passagens aéreas, restringimos as ações com trabalho de campo, reduzimos em 20% o número de funcionários terceirizados. Não sabemos mais onde economizar, o racionamento chegou ao limite”, desabafa Orlando Amaral, reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG).
“Na verdade, iniciamos o ano com uma dívida de 20 milhões de reais com a concessionária de energia elétrica e prestadores de serviços. Esse cenário tende a se repetir em 2018, sobretudo se for mantido o contingenciamento do governo federal.”
A UFRJ, por sua vez, dispensou 1,8 mil funcionários terceirizados e pretende reduzir em até 25% as despesas com energia elétrica. Por causa do aumento de tarifa nos últimos anos, a conta da universidade passou de 25,6 milhões, em 2014, para 53 milhões de reais, em 2016, mesmo sem aumento significativo no consumo.
“Apesar de sermos um grande usuário, pagamos a mesma taxa aplicada aos consumidores domésticos, não somos beneficiados por uma tarifa diferenciada, como as grandes indústrias”, diz o reitor Leher. “Somente a dívida com a concessionária de energia é superior a 22 milhões de reais.”
Para agravar o cenário, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) divulgou, recentemente, que atingiu o teto orçamentário e só conseguirá manter o financiamento de pesquisas até setembro. A principal agência de fomento à ciência do País tinha um orçamento previsto de 1,3 bilhão para 2017, mas teve 44% dos recursos bloqueados pelo governo federal, o que impediu a injeção de 572 milhões de reais na área.
Orlando Amaral
Orlando Amaral, reitor da Universidade Federal de Goiás, não sabe onde cortar mais despesas (Ascom/UFG)
“São 100 mil bolsas em risco”, resumiu o presidente do CNPq, Mário Neto Borges, em recente entrevista ao site de CartaCapital. “Não temos nenhuma intenção de cortar bolsa. Aqui corta a cabeça do presidente, mas não corta bolsa. Eu fui bolsista, fiz doutorado no exterior e sei qual é a importância da bolsa para o pesquisador e o País.”
Apenas na UFRJ, há 24 modalidades de bolsas associadas ao CNPq, que beneficiam 3.596 pesquisadores. Segundo Leila Rodrigues da Silva, pró-reitora de p ós-graduação e Pesquisa, até mesmo a permanência dos estudantes na universidade está ameaçada. “O laboratório deixará de ser frequentado e o conhecimento ali produzido será parcial ou totalmente perdido. Os alunos bolsistas que não estiverem vinculados diretamente a um laboratório, mas que estiverem desenvolvendo suas dissertações e teses, certamente precisarão buscar alternativas financeiras. A dedicação exclusiva aos estudos será, na melhor das hipóteses, reduzida. Na maioria dos casos, o abandono da pesquisa é o que, lamentavelmente, ocorrerá.”
Tourinho preocupa-se, ainda, com o congelamento de recursos para a assistência de alunos de baixa renda, como moradia estudantil e bolsas de estudo. Atualmente, 65% dos estudantes de graduação das instituições federais são oriundos de famílias com rendimento per capita inferior a um salário mínimo e meio, revela uma pesquisa da Andifes. No Norte e no Nordeste, o porcentual chega a 76%.
“Isso se deve às exitosas políticas de inclusão da última década. Por isso, tenho até arrepios quando vejo alguém propor cobrança de mensalidades nas universidades públicas. Se isso ocorrer, vai trancar o acesso aos mais pobres”, diz o reitor da UFPA. “Concordo que os ricos devam pagar, mas acho que a melhor forma seria taxar as grandes fortunas e destinar os recursos para a educação.”