quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Quem tem medo do Lula, tem é medo do povo

Quem tem medo do Lula, tem é medo do povo

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Tudo o que dizem de Lula: que ele é corrupto, que é ladrão, que está em seus governos a raiz da crise que o Brasil vive, que existe uma imensa – quase unânime – rejeição a ele e tudo o mais que se trombeteia sobre o ex-presidente é uma arenga vazia, conversa-mole que não resiste a uma pergunta, simples, direta, irrespondível:
-Então, porque é que não deixam Lula se candidatar e, por tudo isso, perder a eleição?
Nas respostas, vocês verão como se abrem as comportas do elitismo, da estupidez e do ódio,  numa onda de lama tóxica de fazer inveja àquela dos rejeitos da Samarco.
“Ah, ele se elege” – sim, porque a maioria sabe disso – “porque o povo é indolente e malandro” (apud General Mourão) “e só quer Bolsa Família”, falarão muitos. Outros, mais sinceros, dirão logo “porque  o povo é burro”, “porque brasileiro não presta”, “porque pobre não sabe votar” e outras pérolas da imbecilidade explícita.
Não sei se este será, mas bem que poderia ser, um dos motes da campanha de Lula – sim, de Lula, porque é ele o candidato, mesmo que não o deixem ser e porque não é democrata e menos ainda de esquerda quem mente ao povão:
“Quem tem medo de Lula, tem medo do povo”.
Porque não é do Lula, o Luís Inácio, homem cordato e negociador, nem do Presidente conciliador que ele foi  que eles essa gente tem medo.
Afinal, Lula jamais mandou prender um inimigo do povo, não tomou terra dos fazendeiros, não estatizou os bancos, não nacionalizou as multi,  não confiscou patrimônio de ninguém…
Lula não fez mal a nenhum deles, mesmo sabendo que seria extremamente popular mandar em cana alguns desta turma.
Mas este pessoal tem horror e nojo do povo brasileiro.
Não admite que ele vá a um aeroporto, não aceita que seus filhos frequentem a universidade, que não queiram trabalhar, como a mãe, de empregada doméstica e, se tiver de fazê-lo, será como um trabalhador, com direitos e respeito, não como um agregado que come restos de favor.
Gente muito bem posta na vida, que acha que, sim, o filho do pobre tem de frequentar a escola, mas só o suficiente para ler e escrever bilhetes e ler placas de “proibido”.  Como quis o Dr. Roberto Marinho quando disse a Brizola que, em lugar de escolas de Primeiro Mundo, como o Ciep, bastariam umas “escolinhas”.
Gente que não entende que o nosso programa revolucionário se expressa nos versos do Dominguinhos: “usufruir do bem, do bom e do melhor/Seja comum/Pra qualquer um/Seja quem for”.
Pois é por isso que Lula está aí, depois de mais de dois anos de perseguição, depois de julgamentos fajutos, depois de quatro meses de prisão sem que possa falar em sua própria defesa, liderando as pesquisas e impondo a esta gente o dilema do “se prender o bicho vence, se soltar o bicho ganha”.
E ainda vão dizer que o povo brasileiro é burro, que não sabe votar, que se deixa levar pela propaganda?
O protagonista desta campanha não é o Lula, é o povo. Porque o povo é a quem eles odeiam e odeiam Lula porque odeiam o povo.

Guerrilha do Araguaia: borboletas, lobisomens e inverdades


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Guerrilha do Araguaia: borboletas, lobisomens e inverdades

OSVALDO BERTOLINOPUBLICADO EM 27.07.2018
Um dos episódios marcantes na história do Brasil, a luta armada no Sul do estado do Pará, durante a ditadura militar, tem sido objeto de pesquisas e debates. Mas há os que tentam deformar o seu sentido e vulgarizar seus propósitos.
Com grande alarido na mídia, acaba de ser laçado o livro “Borboletas e lobisomens”, de Hugo Studart, historiador, jornalista e professor. Em 658 páginas, ele aborda a Guerrilha do Araguaia, organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na virada das décadas de 1960-1970 no Sul do estado do Pará, de um ponto de vista que mescla “imaginários” com informações atribuídas à institucionalidade do espectro do regime militar de 1964. “Trabalho com a hipótese de que os guerrilheiros do Araguaia estavam essencialmente tomados por sonhos, movidos pela esperança de construção de um país justo e igualitário, seguindo o imaginário revolucionário daquele tempo, as décadas de 1960 e 1970”, escreve ele (página 31).
A ideia-força da obra é a tentativa de julgar o conflito como algo fora da realidade daqueles tempos, uma tragédia cujos principais responsáveis são os dirigentes do movimento guerrilheiro. Esse julgamento aparece nitidamente nas “Considerações finais” (página 493), quando os “dirigentes do PCdoB” são apontados, sem meias palavras, como responsáveis pelas mortes ocorridas na região. Devem ser “responsabilizados perante a história pela imolação daquele punhado de homens e mulheres que sonhavam um sonho quando as esperanças eram grandes” (pagina 501). Os dirigentes sabiam, segundo o “imaginário” do autor, “que aqueles jovens estavam sendo enviados à morte”, mas eram movidos por “uma mentalidade doentia” de “acreditar que a imolação de seres humanos poderia construir uma nova vida política para o Brasil” (página 500 e 501).
Para piorar a situação, segundo Studart, “foi uma covardia ímpar cortar as comunicações e as linhas de abastecimentos”, uma falsificação inacreditável diante de tantas evidências que desmentem essa calúnia (pagina 501). “Ora, por qual razão a direção do partido cortou por completo as linhas de abastecimento da guerrilha no exato momento em que os militares chegaram ao Araguaia?”, indaga o autor (página 496). Segundo ele, “o partido cortou repentinamente as linhas de abastecimento”. “Sem aviso prévio, não havia mais qualquer fluxo de armas, munição, remédios, alimentos, dinheiro. O partido cortou até mesmo a comunicação. As cartas iam do Araguaia para São Paulo. Mas a via inversa foi interrompida”, escreve ele (página 499).
Studart certamente sabia da queda da Comissão de Organização do PCdoB, liderada por Carlos Nicolau Danielli, entre o final de 1972 e o começo de 1973. O episódio foi reconstituído na biografia de Danielli, escrita pelo jornalista Osvaldo Bertolino em 2002, citada na obra de Studart na bibliografia e no episódio em que ele comenta o retorno de Criméia Alice Almeida ao Araguaia, em missão partidária, depois dela ter sido retirada da região, grávida, pelo guerrilheiro Zezinho (página 460). Como demostra a biografia de Danielli, a ligação com o Araguaia era feita pela Comissão de Organização, àquela altura assassinada pela repressão (além de Danielli, foram mortos Lincoln Cordeiro Oest e Luiz Guilhardini).          
No livro de Studart, no entanto, esse episódio não aparece. Talvez porque seria a negação da sua tese de que João Amazonas, Elza Monnerat e Ângelo Arroyo “desertaram” da Guerrilha. Ele optou por insistir na falácia, chegando ao ponto de afirmar que Amazonas e Pomar “não designaram ninguém”, para o lugar de Danielli. Com isso, a ligação com o Araguaia foi cortada (página 290), uma afirmação que combina desinformação com dedução para concluir que os dirigentes da Guerrilha João Amazonas e Ângelo Arroyo deveriam ser submetidos ao “Tribunal Revolucionário das Forças Guerrilheiras do Araguaia” por deserção e pegar pena de morte. A argumentação é um devaneio inexplicável para quem tem um mínimo de informação sobre aqueles acontecimentos.
Condenação de Amazonas, Grabois e Pomar
No caso de Amazonas, Studart alega que ele abandonou a região de caso pensado, conforme o relato do encontro dele com Elza Monnerat na rodoviária de Anápolis, Goiás. O autor finaliza o episódio dizendo que o encontro “pode intrigar observadores laicos, dado o tamanho das coincidências”. “Contudo, boa parte dos militantes do PCdoB sempre enalteceu a profunda sintonia entre os dirigentes Elza e Amazonas — ilustrado pelo não dito em Anápolis — como algo extraordinário, mágico.”
O “não dito” seria o gesto de Elza “apontando o dedo para baixo” quando “se esbarraram na rodoviária de Anápolis por acaso, segundo a narrativa do partido”. O episódio é descrito por Studart sem nenhuma contextualização e sem apresentar nada que pudesse justificar uma segunda versão (página 475). É um caso típico de dedução, de “imaginário”. Amazonas, de acordo o autor, havia deixado a região da Guerrilha por meio de um ardil, ludibriando Maurício Grabois, seu mais fiel camarada, aliado político e amigo, alegando uma “dor de dente” que precisava ser tratada em São Paulo (páginas 474 e 475).
A inverdade fica mais flagrante quando ele escreve que “na Guerrilha do Araguaia, sob os codinomes Cid e Mário, havia uma aparente harmonia entre os dois”, que “revezavam-se em todas as funções e missões”, como “ir a São Paulo, de tempos em tempos, a fim de participar de reuniões da Executiva do partido” (páginas 474 e 475). Studart não deixa pistas sobre se essa dedução de que Amazonas sabia do iminente ataque da repressão à região decorreu de poderes premonitórios ou se ele era ligado à repressão. O mais provável, de acordo com a sua formulação, é a segunda hipótese, uma vez que a harmonia entre Amazonas e Grabois era apenas “aparente”.
Esse nó “imaginário” fica ainda mais embaraçado quando ele escreve que dentro do PCdoB Amazonas e Grabois eram hierarquicamente iguais, “contudo, um degrau abaixo de Pedro Pomar” (pagina 474). A afirmação aparece seca, abrupta, sem nenhuma consideração ou justificativa, o que denota desleixo ou sabe-se lá o quê. A coisa piora quando se constata, ao longo do livro, que Pomar, Amazonas e Grabois sempre estiveram no mesmo patamar. De acordo com sua própria versão, os três lideraram a “fundação” do PCdoB em 1962, que decidiu “deflagrar uma insurreição armada que tinha por objetivo promover uma revolução socialista no Brasil” (página 22).
Eram tão cúmplices que, assim como o Exército, não permitiram que o partido contasse como a Guerrilha foi derrotada, mantendo “segredo sobre o episódio” (página 23). Só em 1996, de acordo com o “imaginário” de Studart, quando começaram a aparecer acervos pessoais dos militares, entregues para jornalistas e historiadores, o PCdoB “começou a abrir sua própria história”, com o comparecimento de João Amazonas “à Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados para prestar depoimento sobre o Araguaia”. “Ou seja, exatos 22 anos após o fim do episódio, o PCdoB daria início à sua própria ‘abertura’. Uma abertura lenta, gradual e segura”, escreve ele (página 23).
É uma flagrante inverdade. Basta uma pesquisa mínima para se constatar publicações e atos políticos do PCdoB sobre o assunto. Mas, de acordo com o “imaginário” do autor, “desde então, o partido passou a incentivar publicações sobre o episódio, seja em reportagens na imprensa, seja em livros de seus militantes ou, ainda, em pesquisas acadêmicas” escreve ele, sem comprovar o que diz (página 23). E arremata a falsa afirmação dizendo que “até a presente data, o PCdoB não abriu seus próprios arquivos para pesquisadores não filiados” (página 24). É mais uma flagrante inverdade; o Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois já foi visitado por vários pesquisadores sem filiação ao PCdoB.
Outra falsificação grosseira é a afirmação de que o PCdoB “reagiu” ao “destaque editorial” sobre a Guerrilha iniciado pelos militares “ao longo da década de 2000” (página 24). Como prova, ele apresenta as biografias de João Amazonas, Elza Monnerat, Maurício Grabois e Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, pela “editora oficial do partido”, a Anita Garibaldi. Trata-se de um argumento reles, como se houvera uma gincana editorial entre as duas forças que se enfrentaram no Araguaia, que se estende para as versões sobre o que teria acontecido com os guerrilheiros (página 25).
A “fundação” do PCdoB
Outro argumento grosseiro aparece quando Studart descreve a trajetória do Partido Comunista do Brasil — segundo ele, “fundado em 1922 por integrantes do movimento tenentista” e embalado, “a partir da década de 1930, sob a liderança do capitão do Exército Luiz Carlos Prestes” —, que “nasceu de uma costela das Forças Armadas” (página 49). É mais uma informação abrupta, sem nenhuma explicação, que contraria frontalmente os registros históricos.
Ele se apoia num documento “secreto” produzido pelo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) para descrever as organizações de esquerda que se engajaram na luta armada (página 49). Contra todas evidências, Studart dá crédito a um documento que define o Partido Comunista Brasileiro (PCB), uma das vertentes da divisão comunista do final da década de 1950 e início da década de 1960, como seguidor da “estratégia apontada por Antonio Gramsci, um dos mais originais e importantes pensadores marxistas do Ocidente, autor da ideia de revolução pacífica dentro do aparelho do Estado” (páginas 49 e 50).
A Ação Popular (AP), segundo o autor, “também professava a linha gramsciana” (página 50). Já o PCdoB, “desde a sua fundação, em 1962, preconizava em seus documentos uma linha política de tomada do poder por meio da luta armada” (página 51). A afirmação se apoia no envio de militantes “para o treinamento em estratégias e táticas de guerrilhas na Academia Militar de Pequim” (página 52). A AP seguia a mesma linha, o que teria dado origem a um grupo que começou “a introduzir Brasil afora o pensamento do novo profeta do comunismo, Mao, ‘O Grande Timoneiro’”, que mais tarde “formaria mais uma dissidência, a Ação Popular Marxista-Leninista (APML)”, tirando “do PCdoB o monopólio da representação do maoísmo no Brasil, o que deixava os dirigentes stalinistas furiosos” (página 52).
É uma empulhação, está claro. O PCdoB estudou o caminho da luta armada por longo tempo (veja aqui O PCdoB e o caminho da luta armada). Quanto à APML, seu aparecimento se deu como evolução do debate entre 1968 e 1971, quando a AP aprovou o “programa básico” e mudou o nome para Ação Popular Marxista-Leninista. No processo, cristalizou-se a polarização entre a "maioria" — capitaneada por Duarte Pacheco Pereira, Haroldo Lima, Aldo Arantes e Renato Rabelo — e a "minoria", cujos líderes mais expressivos eram Jair Ferreira de Sá e Paulo Wright.
Manifesto-Programa do PCdoB
A versão sobre a “fundação” do PCdoB em 1962 é outra falsificação da história. No mínimo o autor deveria ter apresentado as versões das duas vertentes comunistas (PCB e PCdoB), ambas reivindicando a continuidade do partido fundado em 1922, recorrendo, por exemplo, à farta documentação que serviu de base para as biografias de João Amazonas e Maurício Grabois (publicadas em 2012), citadas por ele, e, com mais riqueza de detalhes, a de Pedro Pomar (publicada em 2013). Mas Studart optou pela tergiversação, com conotação provocativa.
Segundo ele, os dirigentes do PCdoB no tempo presente “acreditam (ou fingem acreditar)” na fundação do partido em 1922, citando como exemplo a celebração dos “supostos 90 anos da organização com uma campanha publicitária na televisão no qual informavam que o partido jamais mudou, continua o mesmo desde sempre”. “Ainda apresentaram a imagem de alguns de ‘seus’ comunistas históricos renomados, como Olga Benário, Jorge Amado e Oscar Niemeyer”, vituperou. “Ora, mais do que uma imprecisão, trata-se daquilo que Hannah Arendt, em seu ensaio “A mentira na política”, classificaria de ‘deslavada mentira’, ou ainda, na melhor das hipóteses, ‘embustes e autoembustes, segundo as palavras da pensadora”, afirmou (páginas 63 e 64).
Studart falsifica até o Manifesto-Programa do PCdoB (veja aqui Reorganização do PCdoB: a história da Conferência extraordinária e aqui A Conferência de Fevereiro de 1962 e a reorganização do PCdoB) para dizer que o documento “pregava a luta armada, inclusive contra o governo de João Goulart, que mal começava” (página 64). Ele mesmo se desmente ao reproduzir o trecho em que o PCdoB avaliou que “as classes dominantes tornam inviável o caminho pacífico da revolução” e que “as massas operárias e camponesas teriam que recorrer a todas as formas de luta”.
Ou seja: o caminho da luta armada dependeria do comportamento das classes dominantes, como teorizou Maurício Grabois na “Tribuna de Debates” do 5º Congresso do PCB. “Embora, na presente situação do mundo, se deva ter em conta a viabilidade do caminho pacífico, não se pode, nas condições brasileiras, torná-lo absoluto. Os comunistas preferem este caminho. Mas cometeriam grave erro se nele apoiassem toda a sua atuação, porque nada ainda tem comprovado que o caminho da revolução brasileira é o caminho pacífico. A experiência passada e recente dos países da América Latina mostra que não foi pacífico o caminho para derrubar as ditaduras. Mesmo no Brasil, a prática mostra que as mudanças na estrutura econômica do país ou nas instituições políticas, não se fizeram sem o apelo à força armada, embora nem sempre se verificassem choques sangrentos”, escreveu.
Rigor com as fontes
Studart insiste nessa versão falaciosa (ele volta ao assunto nas páginas seguintes), como se o PCdoB fora “fundado” para cometer estultices. É a reedição daquilo que Pedro Pomar definiu como atribuir sandices aos outros para rebatê-las com ar triunfal. O autor faz isso também ao descrever a visita de Diógenes Arruda Câmara ao 19º Congresso do “PC soviético”, em 1952, como se fosse um deslumbrado diante do líder soviético Josef Stálin, baseado no infame livro “O Retrato”, de Osvaldo Peralva. Faz o mesmo ao relatar os efeitos do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), de 1956, no PCB, com base no também infame livro “A revolução impossível — a esquerda e a luta armada no Brasil”, de Luís Mir (página 67).
Ele repete a infâmia ao deformar os conceitos de “ditadura do proletariado” e do “centralismo democrático” para imputar a uma fantasiosa “ala” do partido, liderada por Arruda, “em cujas fileiras perfilavam-se João Amazonas, Pedro Pomar e Maurício Grabois”, a rejeição à “abertura democrática” do PCB, em fins de 1956” (página 70). Esse grupo lideraria a “fundação” do PCdoB, com o pendor militar do antigo PCB, que servia à tática do Exército Vermelho soviético de treinar membros das forças armadas e militantes comunistas do terceiro mundo, “a começar pelo ex-oficial do Exército, Maurício Grabois” (página 71).
É de amplo conhecimento que Arruda não aderiu ao grupo que reorganizou o Partido Comunista do Brasil, com a sigla PCdoB, em 1962, e que só ingressaria nele algum tempo depois. Também é mais do que sabido que Maurício Grabois foi expulso da Escola Militar do Realengo por atividades políticas; jamais fora “oficial”.
Como se vê, se tem uma coisa da qual Studart não pode ser elogiado é o rigor com as fontes. Tanto que ele recorre ao livro de Peralva, segundo o próprio autor “redigido a fel de fígado no lugar de tinta”, para agredir a memória de alguns dos principais dirigentes do PCB pré-reorganização de 1962. Da mesma forma, dá como verdade a conversão do judeu Grabois em “ferrenho antissemita” por “orientação de Stálin” (páginas 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81 e 82).
Biografia de Pedro Pomar
Outro exemplo de vergonhosa falta de rigor com a fonte se dá quando Studart avalia a biografia “Maurício Grabois: uma vida de combates”, do jornalista e pesquisador Osvaldo Bertolino (veja aqui Maurício Grabois e os combates na Guerrilha Araguaia). Ele simplesmente reproduz mentiras deslavadas do jornalista Lucas Figueiredo na revista CartaCapital (veja aqui Diário de Maurício Grabois: resposta de Lucas Figueiredo tem pernas curtas), sem sequer citar a fonte (página 80). Erra, por omissão ou desídia, duas vezes com uma só cajadada. De acordo com a infâmia de Studart, o “funcionário da Fundação Maurício Grabois” Osvaldo Bertolino (a tentativa de desqualificar a polêmica é de Lucas Figueiredo, não citada pelo autor) “pode ter deixado seu coração ser levado ao extremo oposto do fígado de seu xará Osvaldo Peralva” (páginas 80 e 81).
Há ainda o exemplo de Pedro Pomar, tido por Studart como líder de “uma ala do PCdoB que buscava analisar as causas da derrota militar por meio de profundas autocríticas, em oposição à ala liderada por João Amazonas, que tentava manter uma visão triunfalista do episódio” (páginas 86 e 87). A biografia “Pedro Pomar — ideias e batalhas”, também de Osvaldo Bertolino, reconstitui o episódio minuciosamente, revelando que os fatos são bem distintos da versão fantasiosa de Studart.
Sobra infâmias também para Carlos Nicolau Danielli, descrito como um irresponsável que iludia os jovens encaminhados ao Araguaia prometendo que as armas seriam tomadas do Exército e as “provisões” providas pela selva (páginas 99 e 100). Danielli, Amazonas e Grabois entrevistavam os jovens em São Paulo e, de acordo com a acusação de Studart, “não prestavam qualquer informação sobre o ambiente em que iriam viver” (página 106). Ele alega que teve acesso a depoimentos dos jovens à repressão e, com base neles, afirma que “os dirigentes do PCdoB não informaram explicitamente que eles estavam indo para o Araguaia participar de uma luta revolucionária” (página 197).
Para emprestar credibilidade à acusação, Studart recorre a uma entrevista do dirigente do PCdoB Newton Miranda (falecido em 2010, no Pará) à revista “Amazônia”, na qual ele teria dito que os militantes eram convocados para ir ao Araguaia sem saber o que estava acontecendo na região, “para evitar que o movimento guerrilheiro fosse descoberto pelos militares”. A informação é inverossímil; o caminho da luta armada foi amplamente debatido no PCdoB, conforme apontam os documentos aqui relatados.
Ataques a Elza Monnerat
Elza Monnerat (Tia Maria) não poderia escapar das infâmias. De acordo com a narração de Studart, ela teria indicado o local em que a militante do PCdoB Rioco Kayano fora presa numa pensão em Marabá, Pará. Quando retornou a São Paulo, no episódio da rodoviária de Anápolis, informou à direção do partido que não teria conseguido avisar Rioco porque “a prioridade era alertar João Amazonas”.
Studart relata, sem citar a fonte, que num ônibus revistado por militares “um recruta foi abordado por uma senhora, entre cinquenta e sessenta anos”. “Essa senhora teria dito que vira uma moça ‘suspeita’ numa determinada pensão. Era uma japonesa a quem nunca vira antes e estava agindo de forma estranha”, escreveu ele (páginas 208 e 209). Trata-se de uma torpeza, está claro.
A tentativa de atingir a imagem das principais lideranças da Guerrilha é explícita. Osvaldão também é descrito de forma negativa, uma figura insensível a ponto de, no final da Guerrilha, escolher apenas os “mais corajosos e preparados” para ficar com ele, “apontando o dedo apenas para oito deles, os escolhidos, os ‘eleitos’, os únicos que poderiam segui-lo”. Os demais que “descobrissem um jeito de escapar vivos” (página 42). Quando o estudante de medicina Tobias Pereira Júnior chegou à região com a promessa de que daria assistência médica à população carente, de acordo com a versão de Studart, Osvaldão teria lhe dado uma arma e dito: “Este é o seu hospital: é ficar ou morrer” (página 107).
Ele também teria obrigado mulheres a formar um grupo de execução, um “justiçamento”, para “testar a coragem e a determinação revolucionária feminina” (página 323). Studart tenta mostrar uma decepção de Osvaldão com Arroyo, que teria ludibriado um camponês com dinheiro falso para comprar a sua fuga. Ao comprovar a “fuga”, diz o autor citando o camponês, “Osvaldo se afasta, vai para perto de umas bananeiras e começa a chorar”. Chorou compulsivamente, “urrava de dor” (páginas 472 e 473).
Ataques a Ângelo Arroyo
Arroyo também é duramente atingido em outras citações. Sua “fuga” teria sido considerada pelos guerrilheiros como “deserção, uma traição” (página 394). Studart sentencia Arroyo: “Abro um interstício para registrar que, caso o novo comandante em chefe das Forças Guerrilheiras do Araguaia fosse membro das Forças Armadas, de soldado a general, sua fuga do Araguaia poderia ser considerada deserção, com o agravante pelo ato de covardia. Nesse caso, seria aberto um Inquérito Policial Militar e ele seria julgado pela Justiça Militar. Em caso de guerra, mesmo no Brasil, poderia pegar pena de morte. Exatamente a mesma pena que o Tribunal Revolucionário das Forças Guerrilheiras do Araguaia prometia aplicar a seus desertores: execução sumária, sob o eufemismo do ‘justiçamento’. Contudo, no governo Lula, Arroyo foi festejado e heroicamente anistiado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça” (página 473).
De novo, o problema de Studart são as fontes. Ele poderia ter analisado o caso, bem elucidado na biografia de Maurício Grabois, para não escrever tamanho devaneio; quando Arroyo deixou o Araguaia, as forças da repressão já haviam tomado a região. O ataque à Comissão Militar, no Natal de 1973, quando Maurício Grabois foi morto, na prática selou o fim da Guerrilha.
Studart aplica a mesma sentença para João Amazonas. Após ludibriar seu amigo e camarada Maurício Grabois para “fugir dos combates assim que o Exército chegou ao Araguaia”, ele “optou por cuidar do partido, em segurança, a partir dos aparelhos de São Paulo” (páginas 469 e 78). Jamais enviou “qualquer notícia aos camaradas que permaneceram no Araguaia” (página 165). Também era um insensível, de acordo com a narração de Studart. Certa feita teria passado uma reprimenda no médio João Carlos Haas Sobrinho, o doutor Juca, porque “entre a segurança dele e a nossa, ou ajudar alguém, ele não pensava duas vezes” (página 197).
“Delação” de Carlos Danielli
A versão de que Amazonas é um “desertor”, segundo o próprio Studart, é da repressão. “Pode até ser uma óbvia tentativa de desqualificá-lo. Mas não há outro qualificativo para explicar a atitude de Amazonas de fugir da luta armada, abandonando seus camaradas na mata, sem linhas de abastecimentos, sem armas, sem remédios, sem qualquer notícia. Sequer enviou uma mensagem do tipo ‘virem-se sozinhos’, ‘salvem-se quem puder', ou algo assim. Simplesmente desapareceu. Se fosse militar — como era o caso de Grabois, ex-oficial da Aeronáutica — é certo que seria aberto um IPM e Amazonas seria levado à Justiça Militar sob a acusação de ter cometido crimes de deserção e covardia. Como era comandante guerrilheiro, pelo menos em tese, Amazonas teria sido levado ao Tribunal Revolucionário. A pena para o crime de deserção é a morte, o justiçamento”, sentenciou (página 476).
É inacreditável que Studart ignora as evidências de que essa versão não se sustenta. São óbvias demais. Há fatos, como os aqui já relatados, que comprovam isso. Não há uma vírgula que comprove o que ele afirma. Mas o autor segue em frente, desta vez acusando Amazonas de ludibriar também Pedro Pomar, seu camarada e amigo desde a década de 1930. Mais uma vez, as versões desfilam na narração atropelando os fatos.
A começar pela imposição de Amazonas e Elza Monnerat de que uma “discussão profunda sobre o assunto”, a “deserção”, estava proibida. Depois vem a incrível afirmação de que Pedro Pomar (o secretário de Organização) questionava “sobre o fato de terem cortado comunicação e as linhas de abastecimento” e os “desertores” alegavam que, com a morte de Danielli, “o partido não tivera condições de se organizar” (páginas 476 e 477).
Contra as mais elementares evidências, Studart afirma que Danielli foi “delatado pelo dirigente Jover Telles” e morto “em ataque dos militares ao aparelho onde se escondia” (páginas 477 e 500). “Chamo a atenção para o uso do verbo ‘delatar’. Era assim que o partido se referia ao fato de algum militante ter revelado o que sabia, sem considerar a tortura a qual fora submetido. No caso de Jover, falecido em 2010, ele enfrentou por quatro décadas o estigma de ser apontado como um grande traidor do partido”, escreve o autor (página 477).
Na verdade, Jover Telles seria o “delator” da reunião da Lapa, quando houve a chacina em 1976, conforme ele mesmo confessou em relatório analisado em detalhes na biografia de Pomar. Sobre as brutais torturas sofridas por Danielli no DOI-Codi do II Exército em São Paulo, comandadas pessoalmente pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que o levou à morte, Studart não emite uma palavra no livro.
Difamação de Amazonas
Amazonas, por sua vez, continuava passando a perna em seus camaradas e amigos, conforme os delírios de Studart. Mais uma vez sem explicar se o caso era de premonição ou cooptação, ele afirma que deliberadamente o “fugitivo” do Araguaia enviou Pedro Pomar, “o principal opositor (e questionador) de Amazonas”, para a morte.
De acordo com a narração folhetinesca, os dois dirigentes do PCdoB “revezavam-se nas missões partidárias internacionais”. “Contudo, Amazonas pediu para ir em seu lugar. Assim foi feito. E, dessa forma, Amazonas escapou da Chacina da Lapa” e “emergiu como o único todo-poroso dirigente do partido — tendo Elza Monnerat como a número dois da Executiva” (página 477).
Com isso, narra Studart, Amazonas evitou também ter de responder aos questionamentos de Pomar sobre a “fuga” do Araguaia e às “críticas violentas por escrito, no chamado ‘Relatório Pomar’”, jogando a “responsabilidade para outro dirigente, Carlos Danielli que, por questão de segurança, era o único responsável pelo abastecimento no Araguaia”. “Ora, Danielli havia morrido em dezembro de 1972, em ataque dos militares ao aparelho onde se escondia. E, desde então, segundo Amazonas, não teria havido condições efetivas da Executiva do partido se reunir para ungir outro responsável. E como ninguém tomou para si a responsabilidade, aqueles jovens foram deixados à própria sorte, opção no mínimo irresponsável”, escreve ele (página 500).  
Esse é outro caso reconstituído na biografia de Pedro Pomar, com farta comprovação de que as coisas acontecerem de modo totalmente diferente. A começar pelo fato de que foi Pomar quem pediu a substituição, motivado por uma grave ocorrência com sua esposa, Catarina, hospitalizada para fazer uma cirurgia de emergência para a remoção de um aneurisma cerebral. Mas, na fantasia de Studart, o importante não são os fatos e sim a difamação de Amazonas, que prosseguiu impondo o silêncio no PCdoB sobre “as verdadeiras causas” da derrota no Araguaia (página 477).
Ataques a Maurício Grabois
Grabois, por óbvio, é o dirigente do PCdoB mais citado na obra, tendo como referência seu suposto “diário” que Studar diz ter sido copiado a mando de um capitão da área de informações (páginas 202 e 293). O original fora incinerado, segundo o autor (veja aqui Maurício Grabois e os devaneios de um jornalista da CartaCapital). Em algumas passagens ele relata, sem explicar por que, a citação de fatos importantes no “diário” oito e sete meses depois (rodapé da página 221, por exemplo). “Baiano de Salvador, Grabois era um dos comunistas históricos mais conhecidos do Brasil. Era cadete do Exército quando, em 1934, aos 22 anos, entrou para o Partido Comunista”, de acordo com a descrição de Studart (página 123).
Não há justificativas para erros tão primários: Grabois é paulista (por acaso foi registrado pela segunda vez em Salvador) e não passou de estudante da Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Na mesma obra, ele apresenta o comandante militar do Araguaia como “ex-oficial da Aeronáutica” (página 476). Na sua obra anterior, “A lei da Selva”, Studart diz que Grabois fora “oficial de artilharia da Força Expedicionária Brasileira na Itália” (veja aqui A Guerrilha do Araguaia vista pela “imaginação” de Studart).
Grabois, assim como Amazonas, também tinha rompantes grosseiros e insensíveis, como no episódio em que o doutor Juca fora repreendido por “ajudar alguém” antes da sua segurança e dos demais guerrilheiros. “Velho Mário (codinome de Grabois) se opunha abertamente às ideias e aos métodos do doutor Juca. Tratava-o pejorativamente por ‘pacifista’. Certa vez, em uma das reuniões do Destacamento A, quando se discutia novas normas de segurança diante do cerco do Exército, o comandante em chefe chegou a explodir diante das posições humanista do médico-guerrilheiro”, afirma (página 197). “Que se fodam os pacifistas. Eu quero é que esses pacifistas vão para a puta que pariu”, teria ralhado Grabois.   
Era também, na avaliação do autor, despótico, como no caso em que protegeu o filho, Zé Carlos (André Grabois), num conflito entre guerrilheiros (página 467). Ao mesmo tempo, Studart o descreve como ingênuo a ponto de acreditar nas boas intenções de Amazonas. Segundo ele, Grabois registrou no “diário”, até o fim, a esperança de retorno do amigo e camarada. “No dia em que completou sessenta anos, a 2 de outubro de 1972, voltou a registrar o carinho e admiração por Cid. Pela ordem, no relato, primeiro citou Cid, depois a companheira, os filhos e, por fim, neto”, escreve ele (página 476).   
Operação mortos-vivos
A obra é permeada de relatos do cotidiano dos guerrilheiros de difícil comprovação. Na narração aparecem intrigas, disputas, romances e tragédias. Tudo de acordo com depoimentos de moradores da região e de informações da repressão. Há casos escabrosos e absolutamente inverossímeis, como o da guerrilheira Criméia, apresentada como a única das mulheres presas que “alega tortura” (página 452).
Studart faz um longo relato sobre uma relação afetiva dela com um agente da repressão, totalmente baseado em “imaginário” (páginas 459, 460, 461, 462, 463 e 465). Ela teria omitido ao pesquisador Osvaldo Bertolino, em depoimento para o livro “Testamento de Luta: a vida de Carlos Danielli”, que voltou ao Araguaia não em missão partidária, mas a serviço do Centro de Informações do Exército (página 460).
Ele também faz um longo relato sobre um inimaginável caso de afeto entre a guerrilheira Áurea e o sargento encarregado de executá-la (páginas 406, 407, 408). Na versão do autor, contrariando fatos e evidências, os agentes da repressão respeitavam as mulheres, como é o caso do tratamento dado à guerrilheira Lúcia (Luzia Reis Ribeiro), que recebera “injeções de vitaminas e comida” antes de ser embarcada “em um avião Buffalo rumo a Brasília” (página 209).
Na obra, os militares receberam leves reprimendas, como no caso do tratamento dado aos jovens “deixados à própria sorte pela direção partidária” (página 501). Há outros casos que merecem registros por também serem acintosos e igualmente baseados em “imaginários”. Ao descrever infiltrações na Guerrilha pela repressão, por exemplo, Studart relata o caso em que um cabo recebeu a missão de “entrar para o PCdoB na cidade” (não cita qual). “Mesmo na reserva, permaneceu agente infiltrado. Ao falecer, no início da década de 1990, foi enterrado com a bandeira vermelha de (sic) partido em cima do caixão, ao som da Internacional Socialista (sic), enquanto viúva e filhos recebiam os cumprimentos dos velhos colegas militares” (página 302).
Há ainda o caso da “Operação mortos-vivos”, uma longa descrição do que seria o processo de transformar guerrilheiros que se entregaram em outras pessoas, rigorosamente clandestinas até os dias atuais (páginas 434, 435, 436, 437, 438, 439, 440, 441 e 442). Segundo o próprio autor, a versão é enfaticamente contestada por familiares dos desaparecidos. Studart cita o caso em que o ministro da Educação da ditadura, o coronel Jarbas Passarinho, teria colocado em seu Ministério dois “mortos-vivos” (página 439).
Divergências comunistas
Os ataques ao PCdoB seguem no posfácio de Paulo Roberto de Almeida, “diplomata de carreira, doutor em ciências sociais e mestre em planejamento econômico”. Segundo ele, a tragédia no Araguaia seria evitável e cabe “responsabilizar direta e totalmente a direção irresponsável do PCdoB pelo imenso crime contra um punhado de militantes idealistas, imaginando participar de um grande empreendimento de resgate social, e justiceiro, do pobre povo do interior, numa reprodução quixotesca do que teria sido a ‘guerra camponesa’ de Mao Tse-tung” (páginas 505 e 506).
As palavras duras e caluniosas prosseguem: “O PCdoB ainda não foi levado aos tribunais da história pelo crime cometido não apenas contra os pobres camponeses da região, mas sobretudo contra os seus próprios militantes enganados por uma direção dogmática, míope, absolutamente delirante em seus projetos de reproduzir a marcha de uma já mistificada ‘revolução camponesa’ ao estilo chinês” (página 506).
Studart também abusa da vulgaridade ao relatar sua versão sobre as divergências no movimento comunista internacional (União Soviética, China e Albânia) citando papéis do PCdoB que teriam sido apreendidos pela repressão na Chacina da Lapa em 1976, quando foram assassinados Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drumond, além da prisão de membros do Comitê Central (páginas 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150 e 151). Mas pouco fala sobre os documentos do PCdoB e não menciona a natureza filosófica daquele debate (veja aqui A história da Chacina da Lapa).
Para se ter uma ideia da vulgarização, ele diz que “em meados de 1975 o Comitê Central aprovou um documento batizado de ‘Sobre as relações’ que deixava explícito que o reatamento chinês com o governo militar brasileiro era considerado ainda mais injustificável do que a aliança da União Soviética de Stálin com a Alemanha de Hitler” (página 149). Esse estilo de ataques, grosseiros e rarefeitos, empresta à obra apenas um caráter vulgar, maldoso e inconsequente. De resto, uma prática antiga e recorrente das forças políticas e ideológicas obscurantistas. 
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Osvaldo Bertolino é jornalista, escritor e editor do Portal Grabois

Guerrilha do Araguaia: não engula versões dos esgotos dos porões da ditadura

https://www.youtube.com/watch?v=20dVi8Ku45I&feature=push-u-sub&attr_tag=e66uVSqm9pC6a8XT%3A6

Por que a Interpol aceitou a acusação de parcialidade de Moro

Por que a Interpol aceitou a acusação de parcialidade de Moro. Por Joaquim de Carvalho

 
Durán, a decisão da Interpol, e os Smith, ops, Moro
Três fatos foram decisivos para a Interpol cancelar o alerta vermelho em relação a Rodrigo Tacla Durán.
Um deles é a completa inércia do Ministério Público Federal em relação à representação apresentada por três deputados (Paulo Pimenta, Paulo Teixeira e Wadih Damous) para que investigue a denúncia do ex-advogado da Odebrecht de corrupção na Lava Jato.
Essa denúncia, acompanhada de perícias feitas na Espanha, foi feita por Rodrigo Tacla Durán na CPI da JBS, em novembro do ano passado, a representação foi encaminhada uma semana depois.
Outro fato é a reiterada recusa de Sergio Moro para ouvir Tacla Durán como testemunha nos processos sob sua jurisdição, principalmente contra Lula, em que justifica sua negativa com o argumento em que coloca em dúvida qualquer informação que ele possa apresentar.
E o terceiro fato que chamou a atenção dos dirigentes da Interpol é a entrevista que Moro deu ao Roda Viva, em que antecipou julgamento sobre um investigado, chamando-o de “mentiroso”.
Para a instituição, estas são evidências de que o Brasil violou o artigo 2 da Constituição da Interpol — “Assegurar e promover a mais ampla assistência mútua possível entre todas as autoridades policiais criminais dentro dos limites das leis existentes nos diferentes países e no espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos.”
Um dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, descrito no artigo 10, é que toda pessoa tem direito a um julgamento justo — “Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.”
A Interpol já havia negado um pedido de Tacla Durán, formulado em dezembro de 2016, logo depois que foi preso na Espanha, em razão do Alerta Vermelho.
Na época, a Interpol considerou o pedido do Brasil procedente e informou Tacla Durán de sua decisão em janeiro de 2017.
Um ano e três meses depois, em abril de 2018, o advogado, já em liberdade na Espanha, depois que foi negada a extradição, pediu a revisão desta decisão e apresentou os três fatos novos relacionados na abertura do artigo.
A Interpol ouviu seu escritório no Brasil e entendeu que as autoridades brasileiras não conseguiram afastar as dúvidas quanto à parcialidade de Moro (leia o relatório da Interpol, traduzido para o português, ao final da reportagem).
Ao que parece, o que mais impressionou a Interpol é a entrevista de Moro ao Roda Viva, que foi ao ar em março, alguns antes de Tacla Durán pedir a revisão da decisão que havia mantido o Alerta Vermelho.
A entrevista foi tratada pela esposa de Moro como final de Copa do Mundo. Como ela contou em seu Instagram, reuniu amigas em seu apartamento para assistir ao Roda Viva e todos posaram para foto, fazendo o V da vitória. Rosângela escreveu: “Boas energias”.
Rosângela reuniu as amigas para ver, em clima de Copa do Mundo, a entrevistado do marido no Roda Viva
Na oportunidade, em que o então apresentador do programa, Augusto Nunes, comentou que a Operação Lava Jato era modelo para o mundo, o editor executivo da Folha de S. Paulo, Sergio Dávila, tocou no assunto Tacla Durán, talvez o único tema espinhoso daquela entrevista. Ainda assim, teve muito tato.
Dávila perguntou:
Eu queria que o senhor aproveitasse essa oportunidade para esclarecer o caso Jorge Tacla Durán (errou o nome), que está sendo investigado no âmbito da Lava Jato. Ele diz ou acusa. Ou insinua que o Carlos Zucolotto, advogado das suas relações, teria o tráfico de influência junto ao senhor via advocacia da sua mulher. O senhor não quer aproveitar essa ocasião para comentar esse caso, falar o que o senhor acha dele?
Moro responde:
“Na verdade, existe uma acusação de que ele é um profissional de lavagem de dinheiro, que trabalhava para o setor de operações estruturadas do Grupo Odebrecht e, no curso das investigações, ele fugiu do país e se refugiou na Espanha. Foi decretada a prisão dele, e ocorre que ele tem dupla nacionalidade, a Espanha tem uma base para recusar a extradição, porque nós também não extraditamos nossos nacionais. Esse indivíduo fez essas afirmações, e concomitantemente ele mesmo falou que o juiz e os procuradores deveriam se afastar do caso, por conta desse episódio. Mas, assim, é uma fantasia que não existe nenhuma base concreta, nenhuma prova, nenhuma base empírica em relação ao que ele fala. O que se tem é que é uma pessoa acusada de crimes graves. Essa pessoa tem lá, afirma que é advogado, e tem lá 17 milhões de dólares bloqueados em Cingapura, em contas offshores (sic). Várias pessoas afirmam, segundo a acusação, que ele teria envolvimento com lavagem de dinheiro. E simplesmente, a meu ver, ele inventou essa história para tentar afastar o juiz do caso. E se for ver lá, qual que é a base disso? Nunca, ninguém, nessa investigação, levantou qualquer margem de suspeita contra a conduta dos procuradores ou sobre a conduta do juiz. Tem até críticas, por exemplo, de excessos, de rigor, mas jamais de desonestidade. Então, tem esse único indivíduo, que é uma pessoa foragida, suspeito de crimes gravíssimos, levanta essas históricas sem qualquer base empírica. Então, quanto a isso, a meu ver, o sujeito é simplesmente um mentiroso.”
Na frase, de uma agressividade incomum para um magistrado, existem alguns pontos que precisam ser esclarecidos.
Não há registro de que Tacla Durán tenha dito que era necessário o afastamento de Moro e de procuradores. De onde o juiz tirou essa informação?
O primeiro veículo que noticiou a denúncia de Tacla Durán foi a Folha de S. Paulo, com uma reportagem de Mônica Bergamo sobre o livro que o advogado escrevia (“Testemunho”), em que contava que o advogado Carlos Zucolotto Júnior lhe havia proposto facilidades em um acordo de delação premiada em troca de 5 milhões de dólares pagos “por fora”.
Para tanto, prometia conversar com DD (não disse quem era, mas existe um DD na Lava Jato, é o coordenador Deltan Dallagnol).
Moro, procurado, divulgou uma nota dura em que defendia Zucolotto, o que é estranho: o correto para um magistrado seria investigar a denúncia.
Como ele pode ter certeza de que seu nome não foi usado em negociação nebulosa?
Tacla Durán pode, efetivamente, não estar falando a verdade, embora a seu favor ele tenha apresentado o print da tela de seu celular periciada por peritos da Espanha, com a transcrição da conversa em que Zucolotto teria feito a proposta.
A favor de Tacla Durán, há também o fato de que Zucolotto foi seu advogado, em causas de sua família, que tem um ramo em Curitiba, ao tempo que o escritório tinha como sócia Rosângela Moro.
Também a favor dele, há o e-mail do Ministério Público Federal em Curitiba, enviado a Tacla Durán um dia depois da conversa com Zucolotto. É a minuta do acordo — favorável a ele, como havia prometido o advogado amigo de Moro.
Nada disso foi investigado, apesar da denúncia na CPI da JBS e da representação ao Ministério Público Federal.
Do lado de Moro, além das manifestações agressivas do juiz, houve também reação de Rosângela.
A esposa do juiz postou em seu Instagram uma foto de páginas da Folha de S. Paulo como embrulho de banana e escreveu:
“Imprensa…. para o bem e para o mal. Separam o joio do trigo e publicam o joio.”
Rosângela bateu na Folha
Publicou também uma foto de Zucolotto de gorro, e deu um testemunho sobre ele:
“Sim! É meu amigo. Foi meu sócio, é meu compadre, é parceiro e é do bem. O tempo esclarece tudo ! Enquanto isso seguimos na nossa amizade e de nossas famílias, enlouquecendo mentes criativas e destrutivas. @zucolotto faz o melhor churrasco da vida toda.”
Eu procurei Zucolotto, em dezembro do ano passado, em seu escritório, em Curitiba.
Propus a uma advogada que me atendeu na recepção que ele me desse entrevista gravada. Meu compromisso é que a entrevista seria publicada sem edição. Não tive retorno.
Na CPI da JBS, houve pedido para que ele fosse convocado a depor, mas Zucolotto nunca foi chamado.
Zucolotto no Instagram de Rosângela: “ele é do bem”
A lei é para todos?
No caso de envolver a Lava Jato, não.
Mas ainda há tolos ou desinformados que acreditam na lorota de que o Brasil vive uma nova etapa de sua história, em que ninguém é blindado.
No Brasil, ainda cola.
Mas, na Interpol, a máscara de Moro como herói caiu.
Ao cancelar o alerta vermelho de Tacla Durán, o Interpol emitiu o sinal de que a decisão dele não tem valor.
.x.x.x.x.
PS 1: Enviei três perguntas a chefe da Interpol no Brasil, delegado da Polícia Federal Rodrigo Bartolamei:
1) Como o senhor recebeu esta decisão?
2) Considera que o Brasil foi desautorizado/desmoralizado?
3) O que fazer para que situações desse tipo, que prejudicam a imagem do Brasil no exterior, não se repitam?
A assessoria de imprensa da Polícia Federal confirmou o recebimento das perguntas e as encaminhou para Bartolamei, que decidiria se daria resposta ou não. Até agora, 14 horas do dia 8 de agosto de 2018, não respondeu. Assim que responder — e se responder —, serão publicada.
.x.x.x.
PS 2: A íntegra da decisão da Interpol:
A Secretaria Geral da Organização Internacional de Polícia Criminal – INTERPOL vem, por meio deste, certificar que, a partir de hoje, o Sr. Rodrigo TACLA DURAN, nascido em 13 de setembro de 1975, não está mais sujeito a emissão ou difusão de Alerta Vermelho da INTERPOL.
Lyon, 20 de julho de 2018.
Escritório de assuntos jurídicos Secretaria Geral ICPO – INTERPOL
DECISÃO DA COMISSÃO (105ª Sessão, 3 – 5 de julho de 2018)
A Comissão de Controle de Arquivos da INTERPOL (a Comissão), por meio da Câmara de Solicitações, composta por:
Vitalia PIRLOG, Presidente
Petr GORODOV,
Sanna PALOV,
Isaias TRINDADE,
Membros,
Após deliberar a portas fechadas durante sua 105ª sessão, em 5 de julho, a Comissão apresentou a seguinte Decisão:
I. PROCEDIMENTO
1. Em dezembro de 2016, o Sr. Rodrigo TACLA DURAN (o Requerente) protocolou uma petição perante a Comissão.
Após a entrega de todos os documentos exigidos, conforme o Artigo 10 das Regras de Funcionamento da Comissão, o pedido foi julgado procedente e a Comissão informou o Requerente de tal decisão em 4 de janeiro de 2017.
2. Conforme Artigo 5(e, 4) das Regras sobre Controle de Informação e Acesso aos arquivos da INTERPOL (RCI), o Escritório Central Nacional da INTERPOL (NCB) do Brasil e o Requerente foram informados da decisão.
3. Durante sua 99ª sessão (março de 2017), a Comissão concluiu que os dados contestados estavam de acordo com as regras da INTERPOL, aplicadas ao processamento de dados pessoais. O Escritório Central Nacional do Brasil e o Requerente foram informados do resultado.
4. Em 24 de abril de 2018, o Requerente protocolou um pedido de revisão perante a Comissão. Outros comunicados foram enviados à Comissão em relação ao seu pedido em 2 e 10 de maio de 2018.
5. Em 31 de maio, tanto o Requerente quanto o Escritório Central Nacional fonte dos dados contestados foram informados de que a Comissão iria estudar o caso durante a 105ª sessão.
II. FATOS
6. O Requerente é cidadão do Brasil e da Espanha.
7. Ele está sujeito a um alerta vermelho emitido em 14 de setembro de 2016 a pedido do Escritório Central Nacional do Brasil, por acusações de fraude, corrupção e violação de normas de controle cambial.
8. Segue o resumo dos fatos, conforme registrado no Alerta Vermelho: “Brasil: De 1º de janeiro de 2009 a 1º de janeiro de 2015: RODRIGO TACLA DURAN é um especialista em lavagem de dinheiro. Ele está envolvido em diversos crimes. Ele recebia por meio das contas bancárias das suas empresas ou de contas secretas no exterior grandes quantias de dinheiro de três empreiteiras (Mendes Júnior, UTC e Odebrecht) envolvidas na investigação chamada “Operação Lava-Jato”. Alguns dos indivíduos investigados confessaram que essas transferências de dinheiro eram ilegais e que o propósito era criar dinheiro “vivo” para subornar agentes do governo. O diretor de uma empresa reconheceu ter usado os serviços ilícitos de RODRIGO para criar dinheiro em “caixa 2” e disse: “os serviços oferecidos por RODRIGO DURAN eram obter ganhos financeiros por meio de contratos fictícios”. Jan/2009 a Jan/2015, RODRIGO, por meio de contratos falsos com muitas empresas, obteve cerca de R$ 35 milhões. Para viabilizar a lavagem de dinheiro, muitos contratos falsos foram assinados e recibos emitidos, totalizando mais de R$56 milhões. Foram descobertos depósitos milionários feitos em contas de empresas controladas por ele”.
9. Em 18 de novembro de 2016, o Requerente foi preso na Espanha em consequência do Alerta Vermelho. Em 24 de janeiro de 2017, autoridades brasileiras enviaram à Espanha o pedido de extradição por meio de canal diplomático. Em 3 de fevereiro de 2017, ele foi solto mediante entrega do passaporte e apresentação periódica no tribunal.
III. O PEDIDO DO REQUERENTE
10. O Requerente pediu que os dados relativos a ele fossem excluídos. Ele essencialmente alega que: a) Os procedimentos criminais que serviram de base para o alerta vermelho foram transferidos do Brasil para a Espanha; b) Não se espera que seu direito ao devido processo legal e suas garantias de um julgamento justo sejam respeitados no Brasil; c) A Espanha negou o pedido de extradição feito pelas autoridades brasileiras.
IV. MARCO LEGAL APLICÁVEL
11. Disposições gerais:  Segundo o Artigo 2(1) da Constituição da INTERPOL, a Organização deve “garantir e promover a maior assistência mútua possível entre todas as autoridades policiais dentro dos limites das leis existentes em diferentes países e respeitando a Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
12. Campo de competência da Comissão:  Segundo o Artigo 36 da Constituição da INTERPOL, a Comissão garantirá que o processamento de dados pessoais pela Organização seja feito em conformidade com o estabelecido pelo regimento da Organização a respeito da questão.  Segundo o Artigo 3(1)(a) e o Artigo 33(3) do Estatuto da Comissão, os poderes da Comissão estão limitados a controlar se o processamento de dados nos arquivos da INTERPOL atende as exigências legais da INTERPOL aplicáveis.
13. Pedido por revisão:  Segundo o Artigo 42 do Estatuto da Comissão: “(1) Pedidos por revisão da decisão da Câmara de Solicitações podem ser feitos apenas quando têm base na exibição de fatos que possam levar a Câmara de Solicitações a uma conclusão diferente se o fato já era conhecido na época em que o pedido estava sendo processado. (2) Os pedidos de revisão devem ser feitos dentro de seis meses após a descoberta do fato”.
14. Questões de extradição:  Segundo a Resolução da Assembleia Geral da INTERPOL AGN/53/RES/7 de 1984, “se alguns países se recusam a extraditar, o fato é relatado aos demais Escritórios Centrais Nacionais em um adendo ao alerta original”.
V. CONCLUSÕES
15. Ao revisar as questões levantadas, a Comissão usou como base para as suas conclusões informações fornecidas pelo Requerente, os Escritórios Centrais Nacionais interessados e a Secretaria Geral da INTERPOL.
A. Pedido de revisão
a) O Requerente
16. O Requerente alega que, em 11 de abril de 2018, uma decisão proferida pelo juiz que preside a ação penal contra ele no Brasil transferiu parte da ação para a jurisdição espanhola, que havia expressado anteriormente sua disposição de tramitar a ação em seus tribunais. O Requerente também afirma que a parte do processo que não foi transferida para a Espanha já havia sido arquivada no Brasil, em 24 de abril de 2018.
17. O Requerente argumenta que seu direito ao devido processo legal e a um julgamento justo seria violado se ele fosse enviado de volta ao Brasil para responder às acusações. Ele afirma que o juiz que preside a ação demonstrou repetidamente parcialidade contra ele ao não permitir que ele testemunhasse em outras ações, tendo declarado em decisões judiciais que não se pode confiar na palavra do Requerente, pois ele é uma pessoa acusada de crimes e um fugitivo internacional, e tendo falado com a imprensa sobre as acusações feitas pelo Requerente em relação à corrupção de pessoas próximas ao juiz.
18. O Requerente afirma que a extradição ao Brasil foi negada pelas autoridades espanholas em 25 de julho de 2017 e que, em tal decisão, as autoridades espanholas expressaram disposição de tramitar em seus tribunais a ação penal contra ele, caso solicitado pelas autoridades brasileiras.
b) Conclusões da Comissão
19. A Comissão relembrou que de acordo com o Artigo 42 do Estatuto da CCF “(1) “(1) Pedidos por revisão da decisão da Câmara de Solicitações podem ser feitos apenas quando têm base na exibição de fatos que possam levar a Câmara de Solicitações a uma conclusão diferente se o fato já era conhecido na época em que o pedido estava sendo processado. (2) Os pedidos de revisão devem ser feitos dentro de seis meses após a descoberta do fato”.
20. A Comissão avaliou as alegações do Requerente à luz do Artigo 42 de seu Estatuto, segundo o qual a parte que busca a revisão de uma decisão da Comissão deve apresentar um fato que: seja novo, poderia ter levado a Comissão a tomar uma decisão diferente se fosse de conhecimento na época em que o pedido começou a ser processado e seja apresentado à comissão dentro de até seis meses após a descoberta do fato.
21. Neste caso, informações fornecidas pelo Requerente e confirmadas pelo NCB demonstram que, no dia 11 de abril de 2018, ou seja, após a Decisão tomada pela Comissão em 2 de março de 2017, parte do processo contra o Requerente foi transferido da jurisdição brasileira para a espanhola.
22. A Comissão também levou em consideração matérias jornalísticas enviadas pelo Requerente a respeito da conduta do juiz responsável pela ação penal no Brasil, informações fornecidas pela NCB, além de uma pesquisa de fontes abertas a respeito da questão.
23. A Comissão decidiu que tais elementos eram fatos novos que poderiam ter levado a Comissão a tomar uma decisão diferente se fossem de conhecimento na época em que o pedido começou a ser processado e confirmou que foram apresentados pelo Requerente dentro do período de seis meses.
24. Com base no acima exposto, a Comissão conclui que os critérios para a revisão do caso foram atendidos e decide examinar as alegações do Requerente em vista dos fatos novos.
25. A Comissão também analisou um terceiro argumento do Requerente a respeito da recusa das autoridades espanholas de extraditá-lo em 25 de julho de 2017. Observa-se que tal informação não foi apresentada pelo Requerente dentro dos seis meses e, portanto, a Comissão não considerou esse argumento ao tomar sua decisão.
B. A Transferência dos processos: Ne bis in idem
a) O Requerente
26. O Requerente alega que na decisão da Sala del Penal de la Audiência Nacional que negou sua extradição, no dia 25 de julho de 2017, o tribunal declarou que, caso as autoridades brasileiras o solicitassem, ele poderia ser processado perante a justiça da Espanha.
27. No dia 4 de setembro de 2017, antes da Sección de la Sala de lo Penal de la Audiência Nacional, um novo processo criminal (querella) foi iniciado contra o Requerente, em aplicação da legislação penal espanhola. Alegando que a existência de dois processos distintos perante jurisdições diferentes, mas baseados nos mesmos fatos seria uma violação do princípio de ne bis in idem, o Requerente solicitou ao Superior Tribunal de Justiça que julgasse a decisão sobre a querella, para que somente o processo espanhol continuasse.
28. O Requerente alega que, em 11 de abril de 2018, o juiz que presidiu o processo no Brasil emitiu uma decisão determinando a transferência de parte do processo judicial para a jurisdição da Espanha. O requerente também afirma que a parte do processo que não foi transferida para a Espanha já havia sido arquivada no Brasil, no dia 24 de abril de 2018.
29. Como as autoridades espanholas, que agora são responsáveis pelo processo penal contra ele não solicitaram que o Alerta Vermelho fosse mantido, e como o status dos demais processos no Brasil não é claro, o Requerente solicita que o Alerta Vermelho seja cancelado.
b) O NCB do Brasil
30. O NCB do Brasil afirma que o Alerta Vermelho foi emitido no início das investigações sobre as atividades criminosas do Requerente, especialmente relacionadas à lavagem de dinheiro. Desde então, o Requerente foi processado no Brasil em três processos criminais diferentes, com múltiplas acusações de lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa.
31. O primeiro desses processos refere-se a cinquenta acusações de lavagem de dinheiro e permanece totalmente sob a jurisdição brasileira. As autoridades brasileiras solicitaram a colaboração das autoridades espanholas para notificar o Requerente e estão atualmente aguardando resposta.
32. No segundo processo, as acusações ao Requerente são relativas à lavagem de dinheiro e à participação em organização criminosa. As autoridades brasileiras ainda precisam apresentar uma solicitação de cooperação internacional para que o Requerente seja notificado sobre as acusações.
33. Apenas uma pequena parte do terceiro processo relativo à lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa foi transferida para a jurisdição espanhola. No entanto, o restante do caso, relativo a 95 acusações de lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa, permanece total e ativamente sob jurisdição brasileira.
34. Além disso, de acordo com o NCB, a ordem de prisão preventiva referente ao Requerente, que é a base para a emissão do Alerta Vermelho, permanece em vigor.
c) O NCB da Espanha
35. O NCB de Espanha foi consultado no dia 12 de junho de 2018 sobre quaisquer novas medidas que o NCB do Brasil pudesse ter tomado para assegurar uma maior cooperação em relação ao caso do Requerente.
36. O NCB confirmou que nenhuma outra medida foi solicitada pelo NCB do Brasil depois de as autoridades judiciais espanholas terem recusado a extradição do Requerente, em 25 de julho de 2017.
d) Conclusões da Comissão
37. Como mencionado anteriormente, de acordo com o artigo 3(1)(a) e 33(3) do Estatuto da Comissão, a função da Comissão é rever se o processo de dados nos autos da INTERPOL cumpre as exigências da INTERPOL de acordo com o Artigo 36 de sua Constituição. A Comissão não tem o poder de conduzir uma investigação, pesar provas ou de decidir sobre o mérito de um caso. Essa é a função das autoridades nacionais competentes. A mera apresentação de provas que fundamentariam um relato contrário exigiria que a Comissão avaliasse a confiabilidade da prova de uma maneira que deveria ser realizada na audiência de julgamento ou de extradição.
38. O Requerente apresentou uma decisão emitida pelo 13º Vara Federal de Curitiba/PR, Brasil, em 11 de abril de 2018, para transferir parte dos processos instituídos pelas autoridades brasileiras com relação à lavagem de dinheiro contra o Requerente. O Requerente também afirma que a parte restante do processo, que não foi transferida para a Espanha, já havia sido arquivada no Brasil.
39. A Comissão notou que a decisão das autoridades judiciárias brasileiras é limitada a um dos três processos penais que estão atualmente pendentes no Brasil contra o Requerente por várias acusações de lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa. Além disso, a Comissão tomou nota de que esta última não é mencionada no Alerta Vermelho.
40. A Comissão considera que, tendo em vista a natureza limitada da transferência do processo para Espanha, não pode considerar que teria havido uma transferência do processo que constitui a base do Alerta Vermelho e, portanto, uma violação do princípio de ne bis in idem neste caso.
C. Artigo 2º da Constituição da INTERPOL
a) O Requerente
41. O Requerente alega que seu direito ao devido processo legal teria sido violado e que não há garantias de que ele seria submetido a um julgamento justo se fosse mandado ao Brasil para enfrentar acusações criminais. Segundo ele, os casos decorrentes da operação Lava Jato são de grande importância e causam polêmica no Brasil, pois envolvem várias figuras políticas de alto nível e empresas importantes.
42. Afirma que após seu depoimento perante a Comissão Parlamentar de Inquérito, durante o qual expôs irregularidades processuais realizadas pelo Judiciário brasileiro, especialmente em relação à operação Lava Jato, três congressistas apresentaram um pedido para que três promotores responsáveis pelo caso e um advogado fossem investigados em relação a crimes de fraude processual, adulteração de provas e violação das prerrogativas do advogado, entre outros. De acordo com o Requerente, por ter exposto tal “teia de tráfico de influências e corrupção” no sistema judiciário brasileiro, inclusive na operação Lava Jato e em torno do juiz responsável pela mesma, ele não teria um tratamento justo por parte do sistema judiciário brasileiro e estados e que ele até temeria por sua vida se ele retornasse ao país.
43. Além disso, a Requerente alega que o juiz que presidiu o caso contra ele desrespeitou o princípio da imparcialidade, consagrado na legislação brasileira sobre funções judiciais (Lei Orgânica da Magistratura). Embora o Requerente não peça que a Comissão declare que o juiz está violando a legislação acima mencionada, ele solicita que se estabeleça que foram levantadas dúvidas suficientes sobre se ele teria julgamento justo e imparcial no Brasil.
44. Fundamentando tal alegação, a Requerente afirma que os advogados de defesa do ex-Presidente Lula da Silva tentaram, em várias ocasiões, convocá-lo como testemunha em um dos casos contra o Sr. da Silva. O juiz que presidia o caso negou repetidamente tais pedidos, afirmando que a palavra do requerente não poderia ser invocada, como ele é uma pessoa acusada de crimes e é um fugitivo internacional. Além disso, o juiz falou com a mídia sobre ele, afirmando que ele é um mentiroso, antecipando assim o seu julgamento sobre o Requerente.
45. Além disso, o Requerente afirma que, ao tentar notificá-lo das acusações contra ele pendentes, a jurisdição brasileira deliberadamente enviou documentos para um endereço diferente daquele indicado nos mandados emitidos pela Espanha e pelo Brasil. Segundo o Requerente, isso apontaria para uma motivação oculta do juiz que preside o caso.
a) A NCB do Brasil
46. Na sua resposta, o NCB do Brasil afirmou que os argumentos do Requerente são falsos e infundados e, simplesmente, uma tentativa de escapar das consequências legais no Brasil por suas ações criminosas.
47. Além disso, afirmou que o direito a um julgamento justo é garantido pela legislação brasileira e pela Constituição Federal. Os direitos de acesso à justiça, à isonomia perante a lei, a um julgamento perante juízo imparcial, com base em provas obtidas legitimamente e ao direito de defesa e ao contraditório, entre outros, estão consagrados no ordenamento jurídico brasileiro e são observados em todos os quatro níveis jurisdicionais onde o processo criminal contra o Requerente será submetido. O Judiciário no Brasil é imparcial, assegurando a todos aqueles que são levados a julgamento a plena observância de seus direitos e apreciação judicial de acordo com os fatos e evidências relatados no processo.
48. Além disso, os argumentos atualmente apresentados pelo Requerente foram discutidos perante os diferentes níveis jurisdicionais no Brasil e foram todos rejeitados.
49. O NCB declarou que os processos contra o Requerente continuam válidos e em curso. O mandado de prisão permanece válido e fundamenta o Alerta Vermelho da INTERPOL, e não há motivo para ser revogado.
b) Conclusões da Comissão
50. De acordo com o artigo 34 (1) da RPD, os dados devem ser tratados nos autos da INTERPOL em conformidade com o Artigo 2 da Constituição da Organização, ou seja, especialmente com o espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A fim de respeitar o espírito da DUDH e, ao mesmo tempo, respeitar o papel limitado da Comissão, a Comissão considera todas as informações relevantes para determinar se o Requerente demonstrou convincentemente a probabilidade de ter havido um flagrante cerceamento de defesa.
51. Em primeiro lugar, a Comissão observou que as garantias de acesso à justiça, bem como os princípios da isonomia perante a lei, imparcialmente do Judiciário e dos direitos fundamentais, como ampla defesa e contraditório, estão de fato consagrados na Constituição Federal Brasileira e sistema jurídico do país.
52. A Comissão lembrou que não é seu papel avaliar o sistema jurídico ou judicial de um país in abstracto e que deve determinar com base em informações específicas que esclarecem se o quadro legal da INTERPOL foi ou não cumprido num determinado caso.
53. A Comissão considera que as alegações apresentadas pelo Requerente de que, devido à conduta do juiz responsável por presidir o caso no Brasil, existem dúvidas suficientes em relação ao fato de uma violação ao Artigo 2 da Constituição da Interpol ter existido.
54. Nesse contexto, o requerente apresentou evidências, facilmente verificáveis através de pesquisas públicas, para apoiar sua afirmação de que o juiz se pronunciou publicamente contra ele durante entrevista e, ao negar petições para que ele prestasse depoimento como testemunha em outros casos, emitiu opinião a respeito da veracidade de qualquer informação que ele pudesse apresentar.
55. A Comissão afirma que os elementos apresentados pelo NCB da Interpol não são suficientes para rebater tal disputa.
56. A Comissão considera, também, que nenhuma investigação formal está em curso a respeito das acusações apresentadas pelo requerente durante seu testemunho perante o Congresso brasileiro, mesmo meses após uma representação formal baseada em suas alegações ter sido apresentada por deputados ao Ministério Público.
57. A Comissão afirma, também, que a informação apresentada pelo NCB não foi suficiente para esclarecer a situação.
PELOS MOTIVOS EXPOSTOS, A COMISSÃO
58. Decide que as condições para revisão estabelecidas nos termos do Artigo 42 do Estatuto do CCF foram observadas.
59. Decide que os dados referentes ao Requerente não estão em conformidade com as regras da INTERPOL aplicáveis ao processamento de dados pessoais e que devem ser excluídos dos arquivos da INTERPOL.