LOBISTAS POR TRÁS
DAS EMENDAS DA REFORMA TRABALHISTA
Alline Magalhães, Breno Costa, Lúcio Lambranho,
Reinaldo Chaves
LOBISTAS DE ASSOCIAÇÕES empresariais são
os verdadeiros autores de uma em cada três propostas de mudanças apresentadas
por parlamentares na discussão da Reforma Trabalhista. Os textos defendem
interesses patronais, sem consenso com trabalhadores, e foram protocolados por
20 deputados como se tivessem sido elaborados por seus gabinetes. Mais da
metade dessas propostas foi incorporada ao texto apoiado pelo Palácio do
Planalto e que será votado a partir de hoje (26) pelo plenário da Câmara.
The Intercept Brasil examinou as 850 emendas apresentadas por 82 deputados
durante a discussão do projeto na comissão especial da Reforma Trabalhista.
Dessas propostas de “aperfeiçoamento”, 292 (34,3%) foram integralmente
redigidas em computadores de representantes da Confederação Nacional do
Transporte (CNT), da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF),
da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Associação Nacional do
Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística).
O deputado Rogério Marinho (PSDB-RN),
relator da reforma na comissão especial formada em fevereiro para discutir a
proposta do governo, decidiu incorporar 52,4% dessas emendas, total ou
parcialmente, ao projeto substitutivo. Elas foram apresentadas por deputados do
PMDB, PSDB, PP, PTB, SD, PSD, PR e PPS – todos da base do governo de Michel
Temer. Reforçando o artificialismo das emendas, metade desses parlamentares que
assinaram embaixo dos textos escritos por assessores das entidades sequer
integrava a comissão especial, nem mesmo como suplente.
As propostas encampadas pelos deputados
modificam a CLT e prejudicam os direitos dos trabalhadores. O texto original
enviado pelo governo alterava sete artigos das leis. O substitutivo de Rogério
Marinho, contando com as emendas, mexe em 104 artigos, entre modificações,
exclusões e adições.
Não falta polêmica para meses de
discussão qualificada. Mas o governo decidiu encerrar o debate e colocar logo o
projeto para voto, em regime de urgência. Numa primeira tentativa, não
conseguiu votos suficientes para acelerar a tramitação. Mas, no dia seguinte
(19 de abril), num movimento incomum, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia
(DEM-RJ), manobrou e conseguiu aprovar a urgência. Por ser um projeto de lei,
se aprovado pela Câmara, vai direto para avaliação do Senado.
O tom geral da reforma é que o que for
negociado entre patrões e empregados passa a prevalecer sobre a lei. O texto
original enviado pelo governo, no entanto, não deixava isso explícito. Falava
que o acordado teria “força de lei”, mas as empresas conseguiram emplacar
emenda para deixar essa força do negociado mais evidente. Com isso, a redação
nesse ponto passou a ser que os acordos “têm prevalência sobre a lei”.
As emendas aceitas também preveem
restrições a ações trabalhistas. Deputados encamparam pedidos das associações
empresariais para que o empregado, quando entrar na Justiça, passe a determinar
o valor exato de sua reclamação e que o benefício da Justiça gratuita somente
seja concedido àqueles que apresentarem atestado de pobreza. Ainda no campo da
negociação entre empregadores e empregados, apesar de o que for acordado ganhar
peso sobre a lei, ele não pode ser incorporado ao contrato de trabalho. O
objetivo é forçar novas negociações a cada dois anos.
Outro exemplo de vitória das empresas em
suas negociações no Congresso foi a incorporação da redução em 2/3 do valor do
adicional que é pago a trabalhadores que têm seus horários de almoço ou
descanso reduzidos – embora o Tribunal Superior do Trabalho tenha definido, por
meio de súmula, que o valor a ser pago pelas empresas deve corresponder ao
triplo do tempo “comido” pela empresa.
As emendas aprovadas também eliminam a
necessidade de comunicação ao Ministério do Trabalho sobre casos em que houver
excesso de jornada. O argumento, escrito por representante da CNT e aceito por
parlamentares, é que “o empregado poderá recorrer à Justiça do Trabalho
independentemente de comunicação à autoridade competente”.
Relações
de gratidão
As propostas agora defendidas pelos
deputados provavelmente não estarão em seus palanques ou santinhos nas eleições
do ano que vem, mas certamente poderão ser lembradas nas conversas de gabinete
para acertar apoio a suas campanhas. Embora o financiamento empresarial tenha
sido eliminado, pessoas físicas ligadas ao setor podem doar e, embora seja
crime, ainda é difícil imaginar um cenário próximo sem o caixa 2.
O vínculo de gratidão de parlamentares
que aceitaram assumir como suas as emendas preparadas por lobistas das
entidades empresariais é verificável pela prestação de contas da última
campanha. Julio Lopes (PP-RJ), Paes Landim (PTB-PI) e Ricardo Izar (PP-SP), que
apresentaram sugestões da CNF na comissão, receberam doações de Itaú Unibanco,
Bradesco, Santander, Safra, entre outras instituições financeiras. Desses,
somente Landim participava da comissão especial, e ainda assim como suplente.
O potencial conflito de interesse também
aparece de forma clara no caso de parte dos parlamentares que assinaram emendas
da CNT. A começar por Diego Andrade (PSD-MG), que, além de ter recebido doações
de empresas que dependem de logística adequada para o escoamento de suas
produções, é sobrinho do presidente da entidade, o ex-senador Clésio Andrade. O
deputado apresentou 22 emendas à Reforma Trabalhista. Todas elas, sem exceção,
foram redigidas por um assessor legislativo da CNT. O deputado Renzo Braz
(PP-MG) também chama a atenção. Todas as suas 19 emendas foram preparadas pelo
mesmo assessor. Além de ser de família ligada ao transporte de cargas, sua
campanha de 2014 foi bancada majoritariamente por empresas do setor de
transportes.
Uma das emendas idênticas apresentadas
pelos dois deputados mineiros, mas não acatadas pelo relator, previa que, por
exemplo, se um motorista perdesse sua habilitação, ele pudesse ser demitido por
justa causa pela empresa que o tivesse contratado. Da mesma forma que os
colegas “amigos” da CNF, Diego Andrade e Renzo Braz também não estavam entre os
74 integrantes da comissão especial da Reforma Trabalhista.
Lobby
informal
Numa visão condescendente, o que as
entidades empresariais estão fazendo no caso da Reforma Trabalhista e em outras
situações menos visadas tem nome: lobby. A atividade não é crime, mas também
não tem regras definidas no Brasil. Em países como os Estados Unidos, ela é
regulamentada. No Brasil, há mais de uma década o tema é alvo de discussão, com
divisão de opiniões sobre a conveniência da criação de regras. Uma vantagem é
clara: isso traria mais transparência para a atuação de grupos de pressão
privados.
No dia a dia do Congresso, lobistas
circulam livremente entre gabinetes de deputados e senadores, quase sempre com
o rótulo de “assessor legislativo”, gerente de “relações governamentais” ou
“relações institucionais” de associações que reúnem grandes empresas – ou, por
vezes, representando diretamente uma empresa específica.
A legislação atual impede que eles
apresentem emendas diretamente, embora isso seja feito de maneira clandestina,
como revela o levantamento do The Intercept Brasil.
No regimento da Câmara, a determinação é
que as emendas sejam apresentadas somente por parlamentares. No mesmo
documento, o artigo 125 dá poderes ao presidente da Câmara para recusar emendas
“formuladas de modo inconveniente” ou que “contrarie prescrição regimental”.
Não há notícia de que o mecanismo tenha sido usado em algum momento para barrar
emendas preparadas por agentes privados.
Advogados consultados pelo The
Intercept Brasil divergem sobre a existência de crime a priori na
produção de emendas por agentes privados.
“No caso do parlamentar, existe uma
injeção ainda maior de dolo e é evidente o crime de corrupção passiva,
justamente ao usar informações produzidas por uma entidade privada na esfera
pública”, afirma Rafael Faria, professor de Processo Penal na Universidade
Cândido Mendes, no Rio de Janeiro.
Segundo Faria, os parlamentares deveriam
produzir emendas e suas justificativas por meio dos seus assessores contratados
para trabalhar nos seus gabinetes, pagos com dinheiro público para exercer esse
papel de assessoramento técnico e jurídico.
“Existe uma vantagem indevida, não
sabemos qual é ainda, mas isso somente uma investigação poderá revelar. Mas que
há, não tem dúvida. Não importa se o deputado não recebeu dinheiro de doações
declaradas, é necessário que ele respeite as regras de compliance. Não trazer
pareceres privados para a área pública”, argumenta.
“Mais uma vez verificamos que processo
legislativo pode enganar ou esconder interesses escusos da sociedade”.
Por outro lado, Carolina Fonti,
especialista em Direito Penal Empresarial e sócia do escritório Urquiza,
Pimentel e Fonti Advogados, acredita que é necessário verificar se houve
vantagem indevida em troca das emendas antes de enquadrar no crime de
corrupção.
“Mais uma vez verificamos que processo
legislativo pode enganar ou esconder interesses escusos da sociedade.
Identificada uma vantagem eventual, futura ou apenas prometida aos deputados,
podemos então ter o crime de corrupção”, afirma.
O senador Romero Jucá (PMDB-RR)
apresentou, no ano passado, uma PEC (47/2016) com apoio do governo para
regulamentar o lobby no país. No campo legislativo, sua proposta prevê que
lobistas possam apresentar emendas a projetos em tramitação no Congresso. A
tramitação está parada no Senado, aguardando designação de relator na Comissão
de Constituição e Justiça.
Criação
e clonagem
Para chegar às 292 emendas redigidas
pelas associações empresariais, The Intercept Brasil examinou todas
aquelas protocoladas até o fim de março – antes, portanto, da apresentação do
relatório de Rogério Marinho. Dentro dos arquivos PDF com o conteúdo da emenda
e sua justificativa técnica, há metada dos que indicam o “autor” original do
arquivo, com a identificação do dono do computador onde ele foi redigido.
Há os casos que seriam naturais na
atividade parlamentar, em que assessores do gabinete do deputado ou mesmo
consultores legislativos da Câmara são os “donos” do arquivo. Mas em 113 deles
o autor era um funcionário de uma das quatro entidades empresariais citadas na
reportagem. Esses mesmos textos e justificativas foram clonados, inclusive
mantendo eventuais erros de português, por outros parlamentares (veja aqui um
exemplo, envolvendo os deputados Rômulo Gouveia (PSD-PB) e Major Olímpio
(SD-SP).
Em alguns casos, o dispositivo a ser
modificado na CLT era alterado, mas a justificativa permanecia exatamente a
mesma. Na maioria das reproduções, o autor constava como “P_4189”, indicando o
terminal de algum servidor do Congresso. Ou seja, um terminal específico serviu
como “copiadora” de emendas originalmente redigidas pelas associações e que
acabaram sendo apresentadas por diferentes deputados.
O parlamentar que mais assinou emendas
apresentadas por associações foi Major Olímpio, candidato a prefeito de São
Paulo nas últimas eleições e deputado do Solidariedade – partido fundado e
presidido pelo sindicalista Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força, que é
justamente um dos principais opositores da reforma. Com discurso geralmente
pró-trabalhadores, Olímpio, no último dia 24, postou em seu Facebook um chamado
para sua base eleitoral:
Na Reforma Trabalhista, Major Olímpio
apresentou 31 emendas – 28 delas escritas pelas entidades empresariais.
Mas nem tudo envolvia apenas associações
empresariais. Há casos de deputados que defenderam emendas de interesse dos
trabalhadores, mas preparadas também por entidades externas que atuam na defesa
desses interesses. Ao menos 22 emendas foram redigidas pelo presidente da
Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, Angelo Fabiano Farias da
Costa. Elas foram encampadas por parlamentares do PT, PCdoB, Rede e PDT, que
têm posições majoritariamente contrárias ao governo Temer.
Também há emendas cujo autor original,
nos metadados dos arquivos, consta como TST – presumidamente o Tribunal
Superior do Trabalho, inclusive considerando o conteúdo das emendas. Nesse
caso, foram 11 emendas com essa autoria, todas apresentadas pela deputada
Gorete Pereira (PR-CE) e com conteúdo restritivo aos atuais direitos previstos
na CLT. O presidente do TST, ministro Ives Gandra Martins Filho, é um dos entusiastas
da tese do “negociado acima do legislado” e já foi apontado como artífice da
Reforma Trabalhista apresentada pelo governo Temer.
As
lições da Lava-Jato
Os dados cruzados pelo The
Intercept Brasil vêm de um modus operandi coincidente com o do esquema
de corrupção revelado na Lava-Jato e comandado pela Odebrecht – que, aliás,
também era representada por uma associação empresarial, a Aneor (Associação
Nacional das Empresas de Obras Rodoviárias), nos assuntos de interesse do
Legislativo. Um dos delatores e ex-diretor da empresa, José de Carvalho Filho
era dirigente da associação.
Os delatores revelaram em seus
depoimentos aos procuradores que a relação corrupta construída com
parlamentares envolvia, entre outros aspectos, a apresentação de emendas como
contrapartida ao apoio financeiro já dado previamente ou como condição para
colaborações financeiras futuras. É a promessa que, na avaliação da
Procuradoria-Geral da República, caracteriza o crime de corrupção nos casos da
Lava-Jato. Um dos casos mais explícitos nesse sentido foi o de Romero Jucá, que
apresentou quatro emendas preparadas pela Odebrecht à Medida Provisória 255
para que a petroquímica do grupo fosse beneficiada com redução de impostos.
Uma planilha organizada por Benedicto
Júnior, outro delator, e apresentada ao Ministério Público detalhava montantes
repassados a dezenas de políticos. Em um dos campos dessa planilha estava
discriminado o motivo dos pagamentos. Uma das categorias apontadas no documento
era “disposição para apresentar emendas/defender projetos no interesse da
Companhia”. Um desses políticos, um deputado de codinome “Cintinho”, era Mauro
Lopes (PMDB-MG), que agora aparece entre os parlamentares que se mostraram
dispostos a assinar emendas de entidades privadas. No caso de Lopes, foram 24
assinaturas em documentos preparados previamente pela CNT e também pela
associação das empresas de transporte de cargas.
O sigilo sobre as delações foi derrubado
em 12 de abril. Na sequência, a imprensa, incluindo o The Intercept Brasil,
publicou diversas reportagens sobre esse troca-troca promíscuo entre
parlamentares e empresas privadas para a defesa de interesses comerciais no
Congresso. A exposição dessa relação no mínimo controversa não impediu,
contudo, que a CNF, a confederação dos banqueiros, usasse uma funcionária para
entregar, no dia 19 de abril, no gabinete do deputado Antônio Bulhões (PRB-SP),
ao menos seis emendas para serem assinadas e apresentadas por ele contra pontos
do relatório da reforma.
“Sugestões
pertinentes”
O deputado Julio Lopes (PP-RJ) afirma
que “a emenda sugerida” pela CNF “veio de encontro com tese já defendida
anteriormente pelo parlamentar”. Disse
ainda, em nota, que “recebe diariamente sugestões de propostas legislativas
tanto de instituições como de cidadãos que pretendem contribuir para avanços no
país”.
Major Olímpio, recordista de emendas
apresentadas a partir das associações, afirma que sua função, como parlamentar,
é “manifestar o anseio de todos os setores da sociedade”. “Apresentei emendas à
reforma trabalhista, conforme meu entendimento sobre o projeto e outras
conforme eu fui procurado e convencido da necessidade que o teor fosse colocado
em debate”, escreveu o parlamentar, em nota.
Diego Andrade (PSD-MG), que apresentou
somente emendas escritas pela Confederação Nacional do Transporte, disse que
“as sugestões que acho pertinente, seja de projetos ou emendas, faço sempre uma
análise jurídica e técnica, e apresento com convicção”. Acrescentou que “nosso
gabinete continuará aberto a sugestões diversas, mas antes de apresentá-las
sempre farei uma análise do mérito e nossa equipe uma análise técnica e
jurídica”.
Rômulo Gouveia (PSD-PB) negou
“veementemente” que “emendas, por mim apresentadas, foram elaboradas fora do
meu gabinete”. Segundo ele, todas as suas emendas foram “discutidas e
analisadas por minha assessoria técnica” e “confeccionadas no meu gabinete no
dia 22 de março”. Contudo, no exemplo citado na reportagem, emenda idêntica
apresentada por Major Olímpio foi protocolada cinco dias antes.
Gorete Pereira (PR-CE) nega que tenha
apresentado emendas de autoria das entidades. Diz que, se elas estão
coincidindo na redação, “eu não sei responder [a razão]”. “Respondo por todas
que representei por achar que são importantes para a modernidade do Brasil”,
disse.
Renzo Braz (PP-MG) e Paes Landim
(PTB-PI), também citados diretamente nesta reportagem, não retornaram o contato
até a publicação. Procuradas, nenhuma das entidades empresariais citadas
comentou o teor da reportagem até o momento da publicação. Caso se manifestem,
seus posicionamentos serão devidamente registrados.