terça-feira, 26 de abril de 2016

Os antecedentes da tormenta indicam por onde recomeçar



Os antecedentes da tormenta indicam por onde recomeçar

Está claro que um sistema político que fica refém de Cunha precisa ser reinventado com maior participação social. O ciclo iniciado em 2002 negligenciou isso.

Saul Leblon

Um golpe não começa na véspera; tampouco tem desdobramentos plenamente identificáveis na manhã seguinte.

Uma derrota progressista pode ser devastadora para o destino de uma nação, a sorte do seu povo e a qualidade do seu desenvolvimento.

Mas a resistência que engendra pode inaugurar um novo marco de consciência política.

Pode redefinir a correlação de forças, as formas de luta e de organização e colocá-las num patamar mais avançado, mas não menos abrangente.

 Apesar dos votos dedicados à família, a Deus e até a um torturador –Bolsonaro ofereceu sua escolha a Brilhante Ustra e ao golpe de 64 - a transparência da história pulsou forte no Brasil na noite de 17 de abril de 2016.

Guardadas sóbrias exceções, os que condenaram Dilma filiam-se a agendas e valores imiscíveis com o mapa histórico que desponta da Revolução Francesa e fez dos direitos sociais universais o guia generoso e libertário da humanidade.

A violência conservadora, como ocorre em todos os golpes contra governos progressistas, apunhalou a democracia para atingir o interesse popular.

Mais adiante tentará aleijar a soberania nacional descartando-a como anacronismo populista.

A ética, a responsabilidade fiscal, serviram de guarnição das aparências.

O golpe nasceu de um ménage à trois entre a escória liderada por Cunha, o ódio inoculado pela mídia na classe média e o plano de arrocho e entreguismo do PSDB.

O cinismo foi o grande vencedor da jornada triste que banhou o país de lufadas adicionais de incerteza e turbulência.

Votos decisivos ao impeachment ‘por irresponsabilidade fiscal da Presidenta da República’ vieram das bancadas –inclua-se a do PSDB - que patrocinaram as pautas bombas, estas sim suficientes para quebrar a nação.

E não é necessário desfiar o prontuário completo do operador Eduardo Cunha, para adicionar ao cinismo a hipocrisia.

Hipócritas de punhos de renda –jornalistas, políticos, intelectuais, ministros do STF - assistiram a todo esse processo emprestando pertinência formal ao estupro coletivo da democracia na arena das bestas-feras.

Por mérito, a cusparada histórica do deputado Jean Wyllys num fascista que o insultara - e que homenagearia um torturador e o golpe de 64 no seu voto pela derrubada da Presidenta Dilma-, deveria ser estendida aos demais protagonistas do espetáculo degradante.

Entre eles, certamente a mídia.

Coube a ela amalgamar o movimento regressivo de longas raízes históricas que se prepara agora –afastado o obstáculo inicial-  para assaltar a Constituição Cidadã naquilo que ela fez  de melhor: legitimar os direitos sociais reprimidos pela ditadura 24 anos antes da sua promulgação, em novembro de 1988.

Faz parte do jogo de espelhos que Temer jure fidelidade ao Bolsa Família, a exemplo do que já prometera ao mandato de Dilma, pouco meses atrás.

O fato é que os acontecimentos em marcha vieram reafirmar a rigidez da fronteira onde acaba a tolerância do dinheiro e do mercado com o projeto de construção de uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta e principal referência da luta pelo desenvolvimento no mundo ocidental.

‘A democracia prometeu mais do que o capitalismo está disposto a conceder’, martelou diuturnamente o jogral midiático, em todo o ciclo iniciado em 2002.

O alvo da reação alérgica do mercado são os direitos sociais abrigados na Carta de 1988, a qual o PT criticou na origem, pelas limitações (a questão agrária, uma das mais graves), mas da qual se fez o mais fiel guardião quando chegou ao poder.

O mercado entendeu que a crise econômica global –diante da qual o governo esgotou o fôlego dos contrapesos fiscais em cinco anos de resistência- abriu a oportunidade para um acerto de contas com o ‘populismo constituinte de 1988’.

O senso de oportunidade uniu a escória política, a mídia, o dinheiro grosso local e internacional e os sem voto num pacto feito de sistemas de compensações complementares.

Esse que agora se desenha abusadamente aos olhos da sociedade, abençoado pelo jornalismo da indignação seletiva.

Cunha terá sua anistia, em troca de devolver o poder pleno ao mercado -via corrupção política da qual se acusa o PT.

O PSDB volta ao poder sem precisar se submeter à urna.

O STF, depois de se acoelhar de forma indecente na preservação do livre movimento de Cunha, poderá falar grosso com Moro, e assim encerrar a Lava Jato.

A Chevron e a Shell terão o pré-sal prometido por Serra e pelo PSDB; a Globo renovará sua concessão facilmente a partir de 2018...

Vai por aí a engrenagem posta em funcionamento, a partir do domingo 17.

O ciclo em que o golpismo tratará a democracia social como um estorvo do mercado está longe de se encerrar com a conclusão do processo do impeachment.
A lambança, por mais que gere uma euforia imediata nos mercados especulativos, não resolverá as grandes pendências nacionais, emolduradas por um pano de fundo desafiador.

O mundo vive a mais longa, incerta e frágil convalescença de uma crise capitalista desde 1929.

Tudo o que foi subtraído do Estado e do trabalho no período anterior à explosão as subprimes, em 2008 –regulações, direitos, soberania etc., mostra agora a sua falta.

Desprovida de alavancas contracíclicas, a economia global não decola e, nesse momento, arrasta nações em desenvolvimento para o ralo corrosivo da estagnação.

Sobram paradoxos.

O da superprodução de capital fictício, em metástase especulativa, o mais evidente deles.

Mas também a sua consequência estrutural: a anemia do investimento e do emprego urbi et orbi.

Ficções de livre comércio rondam esse cemitério de nações.

Vendidas como panaceia pelos carrascos dos direitos sociais, os chamados ATCs prometem uma prosperidade que o sistema não pode entregar em condições de contração global, quando o comércio forma um jogo de soma zero, apenas transferindo desempenho de um lado para outro.

Igual circularidade se observa na esfera do emprego e naquela do ajuste fiscal, com o deslocamento de passivos do setor privado para o Estado.

Golpistas falam pelos cotovelos da 'irresponsabilidade fiscal petista'. Ignoram que a pressão adicional de gastos em uma conjuntura de queda vertical da receita, elevou de 78% para 105% a relação dívida pública/PIB nas economias mais ricas desde 2008.

Em contrapartida, a participação dos salários no PIB global recuou: hoje é 10% inferior à média dos anos 80.

É essa a lição de casa das ditas pedaladas, que os excelentíssimos senhores deputados fingem não enxergar.

Da mesma forma que os sábios dos mercados omitem a relação causal que estreitou sobremaneira a margem de manobra de políticas associadas a projetos de desenvolvimento com repartição de renda na América Latina.

O Brasil avulta como o caso mais exposto justamente porque foi o que mais longe chegou nesse processo.

Como atesta o Banco Mundial, a pobreza extrema no Brasil caiu 64% entre 2001 e 2013, passando de 13,6% para 4,9% da população.

A queda nos preços das commodities - decorrente da estagnação gerada pela desordem neoliberal-interrompeu  esse processo, antes que o país tivesse tempo de corrigir as distorções aí engendradas (sobrevalorização cambial e desindustrialização, as mais graves delas).

Aberto o flanco, a coalizão conservadora lançou-se ao golpe de Estado, com determinação virulenta que estamos assistindo. Não sem antester imposto, através da mídia,  o seu diagnóstico e a sua pauta -respectivamente, gastança e arrocho- como referência dominante do debate sobre a crise capitalista do nosso tempo.

Não é surpresa que as ideias dominantes de uma época sejam as ideias das classes dominantes.

Desde 1846, quando Marx e Engels assentaram seu vigamento filosófico nas páginas de ‘A ideologia alemã’, o peso material das ideias ganhou o devido destaque na luta de classes.

No Brasil,graças ao monopólio midiático, esse poder de agendamento tornou-se asfixiante.

Um conservadorismo derrotado em 'quatro vezes consecutivas pelo voto popular desde 2002,transformou-o na ferramenta decisiva de desconstrução de um adversário que não se guarneceu de forma equivalente para esse enfrentamento.

O episódio das ditas pedaladas evidencioudificuldade de se defender do algoz, sem romper  o círculo de giz que ele traçara no chão.

Por que o governo hesitou tanto, por exemplo,em convocar imediatamente uma rede nacional e  explicar o que as ditas 'pedaladas' representavam de fato?

Ou seja, que a Caixa quitou programas sociais em dia, sendo ressarcida em seguida - sem alterar o orçamento, portanto.

Por que o governo não escancarou imediatamente o golpismo intrínseco à ‘escandalização’ da operação contábil corriqueira, com fins sociais irrepreensíveis? E por que temeu confrontá-la com a derrama dos juros (8% do PIB) sobre o cofre do Estado – escândalo que nenhum advogado do ajuste fiscal argui?

Em 757 dias úteis, até o final de 2014, o saldo do Bolsa Família na CEF só ficou negativo em 72 dias. O pagamento de juros aos rentistas da dívida pública, no entanto, drenou o equivalente a mais de 15% do PIB nesses quase dois anos, deslocando recurso fiscal escasso para os cofres abarrotadosda pátria financeira.

 Os que golpearam Dilma ‘em nome do povo’ no domingo 17, avocariam esse mandato se o povo verdadeiro tivesse sido alertado sobre as disputas fiscais efetivas  no caixa da República?

‘Governo é metade realizações, metade ideia. Por muito que fizer, um governo que não trava a luta das ideias, sempre figurará aos olhos da sociedade com quem fez muito pouco’, lembrou em recente viagem ao Brasil, o vice presidente da Bolívia,  Álvaro García Linera.

 A negligência com a luta das ideias foi a tônica nos últimos 12 anos de avanços notáveis no plano social, embarcados, todavia, em um economicismo que delegou às gondolas dos supermercados a tarefa de traduzir tais conquistas em mudança na correlação de forças.

A democracia, portanto, não se tonificou de novos protagonistas, nem de novos canais de participação. Manteve-se refém de um Congresso capaz de produzir e legitimar um déspota como Eduardo Cunha - a quem coube, afinal, fazer o ajuste de contas entre as duas realidades.

O economista Márcio Pochmann enxergou pioneiramente os riscos implícitos na assimetria entre avanços econômicos e sociais desprovidos do respectivo cimento organizativo e ideológico.

‘Cerca de 22 milhões de trabalhadores ascenderam socialmente, desde 2003,’ lembrava ele já em 2013,  ‘mas não houve mudança na taxa de sindicalização no país: de cada dez destes trabalhadores, só dois se filiaram a algum sindicato. O mesmo aconteceu com os estudantes beneficiados pelos programas do governo federal e com os beneficiários do Minha Casa, Minha Vida’, espetou na sua lista dos antecedentes da tormenta, que por fim eclodiria já na campanha de 2014, ainda assim subestimada.

Marilena Chauí - já se observou neste espaço - que sempre atuou na contracorrente da rendição ideológica dos últimos anos, ensina que ‘a ideologia é o processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam ideias de todas as classes sociais’.

‘Esse fenômeno’, diz a filósofa, ‘de manutenção (adoção) das ideias dominantes, mesmo quando se está lutando contra a classe dominante,é o aspecto fundamental daquilo que Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante’.

Por isso ele dizia que, se num determinado momento os trabalhadores de um país precisam lutar usando a bandeira do nacionalismo, por exemplo, a primeira coisa a fazer é redefinir toda a ideia de nação (...) e elaborar uma ideia do nacional que seja idêntica à de popular.

‘Precisam, portanto, contrapor, à ideia dominante de nação, outra ideia, popular, que negue a primeira’, sintetiza Chauí.

O ciclo golpeado no domingo 17 esteve longe de proceder a essa mutação.

Está claro que um sistema político que fica refém de Cunha e de sua matilha precisa ser revitalizado com maior participação social.

Se quiser implodir a resiliência golpista, as forças progressistas terão que se atirar de forma unida nessa tarefa, dotando a luta pelo desenvolvimento de um projeto social e democrático que a conduza.

Se o fizer, a derrota do domingo poderá ser revertida muito mais cedo do que supõe a histeria de um golpismo eufórico, mas incapaz de oferecer aos desafios brasileiros mais do que a aposta dobrada em um neoliberalismomundialmente fracassado.

Dilma está sendo atacada pelos seus acertos



Dilma está sendo atacada pelos seus acertos

Paulo Pimentel*

O dia 17 de abril confirmou o que já estávamos denunciando: Dilma não está sofrendo um impeachment, e sim um golpe. Com 367 votos favoráveis à admissibilidade do processo de impedimento da Presidenta, a Câmara dos Deputados escreveu na sua história uma página da qual sentirá no futuro – e, na verdade, parece já sentir – vergonha.

Dilma está sendo atacada, justamente, pelos seus acertos. Uma das principais virtudes da Presidenta reside na mudança que promoveu na relação entre governo, partidos e Congresso, não praticando o velho toma lá dá cá. A Presidenta não se curva aos ataques especulativos de parlamentares fisiologistas, não negocia cargos com pessoas de trajetória suja e não entra no vale tudo para salvar seu mandato. E foi golpeada na Câmara justamente por essa postura.

A atual legislatura da Câmara tem 198 deputados em seu primeiro mandato. Boa parte deles desconhece os acordos firmados anteriormente entre seus partidos e o governo. Eles agem individualmente e refletem o fisiologismo dos partidos que compõe: não se guiam por uma visão ideológica, por um projeto de país nem por um sonho de sociedade. Buscam tão somente sua própria sobrevivência na política institucional, os holofotes e, assim, acabam agindo cada um como um micropartido. O fim do financiamento empresarial de campanhas aprovado ano passado agravou ainda mais essa situação. Sem poder recorrer aos recursos corporativos, o que resta a esses parlamentares é a briga por cargos.

Se, de um lado, não podiam contar com Dilma para isso, de outro, encontraram um prato cheio: Eduardo Cunha, Michel Temer e Eliseu Padilha dispostos, cada um com seus motivos, a dar espaço a essa relação utilitária dos deputados com a política. Cunha precisava ser absolvido na Comissão de Ética – onde é acusado de envolvimento com desvios milionários da Petrobras e ocultação derecursos em contas na Suíça. Em troca da absolvição, aceitou abrir o processo de impeachment contra a presidenta. Michel Temer, por sua vez, guiado pelo desejo de ser presidente, mas certo de que não conseguiria isso através dos votos, era o instrumento que mais facilmente constituiria a ponte da oposição para chegar à destruição do PT e para promover sua saída do governo. Eliseu Padilha, finalmente, alçado por Temer à posição de articulador político do governo, tinha o mapa de todos os cargos do governo nas mãos: era o “El Dorado” para os partidos fisiológicos. Se não conseguiam negociar um cargo com Dilma, com Padilha levavam até mais do que pediam.

Cunha, Temer e Padilha são a expressão do fisiologismo na política e estão em consonância com os parlamentares que compõe a atual legislatura. Nesse momento prosperam justamente graças a isso.

Os votos obtidos na tribuna, que deveriam votar “sim” ou “não” ao relatório que orientava a admissibilidade do processo contra Dilma por crime de responsabilidade, não deixaram dúvidas sobre esse caráter fisiológico dos parlamentares. Ao votar, justificavam: “sim pela minha família”, “sim pelo meu grupão de amigos de Uberlândia”, “sim pela minha mulher, pelos meus filhos”, “sim pelo aniversário de minha mãe”, “sim pela minha cidade”. Votaram para atelevisão, para os holofotes, não para julgar se um crime de responsabilidade foi cometido pela presidenta. Temos a clareza de que não trataram do assunto porque não houve crime. Esse processo trata-se de uma farsa, de um golpe.
A derrota da democracia para os interesses pessoais, nessa primeira batalha, revela uma crise desse sistema político fisiológico. Revela que o presidencialismo de coalizão não é a saída.

O caminho, como muitos defendem, é pela esquerda. É governar para a base social e dialogar com ela.

O saldo desse processo para os movimentos de esquerda também aponta nesse sentido. Apesar das inúmeras divergências ideológicas, de projeto político e de método, a esquerda mostrou uma capacidade de se unificar que pode ser decisiva para conter o golpe. A criação de comitês e frentes democráticas ao redor do país – que unem não só a já existente militância da esquerda como novos setores da sociedade –registrou a resistência popular ao processo, e pode ser a pedra final no sapato dos golpistas.

Ainda há muita luta a ser feita. Resistiremos até o fim. Não vai ter golpe!

* Deputado Federal (PT/RS)