sexta-feira, 10 de junho de 2016

Operação Condor condenada: História na Argentina, vergonha no Brasil

Operação Condor condenada: História na Argentina, vergonha no Brasil

Enquanto a Argentina faz história na inédita condenação dos criminosos da Condor, o Brasil marca passo e retrocede no governo Temer.


Luiz Cláudio Cunha *






Em silêncio, semblante cerrado, mãos cruzadas, com cabelos grisalhos disfarçando seus 75 anos e um grosso sobretudo marrom para proteger do frio portenho de 13 graus, cercado de cadeiras vazias, Miguel Ángel Furci parecia ainda mais só e desamparado na pequena sala do Tribunal Oral Federal 1, no final da tarde de quinta-feira 26, em Buenos Aires.


Furci continuou impassível, mesmo quando ouviu o juiz que lia a sentença, Oscar Ricardo Amirante, pronunciar seu nome e sua pena: 25 anos de prisão como autor de 67 prisões ilegais e 62 denúncias de tortura, na condição de agente civil da SIDE, a Secretaria de Inteligência do Estado, o órgão da ditadura argentina (1976-1983) que controlava a repressão. Foi a maior condenação do dia, que os outros 17 réus, todos presos, ausentes do tribunal, preferiram não ouvir.

Mas, milhares viram e ouviram pela TV e pela Internet a sentença histórica da Argentina, o único país das Américas que reconheceu e julgou a Operação Condor, condenando pela primeira vez os militares e agentes de uma organização de terror de Estado sem precedentes no mundo. Um juízo que, por tabela, escancara as culpas e o cinismo do Brasil. Na década de 1970, as ditaduras de seis países do Cone Sul — Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Brasil — se juntaram clandestinamente para perseguir, torturar, matar e desaparecer os que se opunham aos regimes militares.

Ninguém investigou esse crime transnacional com a obstinação e a agudeza da Justiça argentina. A Causa Condor, que chegou ao seu final naquela quinta-feira, apurou durante três anos os crimes praticados na região contra 109 pessoas — apenas 14 delas argentinas. As outras 91 eram do Uruguai, Chile, Paraguai e Bolívia. Nenhum brasileiro entre eles. Foram ouvidas 222 testemunhas, 133 delas do exterior — apenas uma era brasileira. Só na Argentina, existem 457 casos de vítimas da Condor na Justiça. No Brasil, nenhum.

Mais de 600 militares argentinos já foram processados, condenados e agora cumprem pena pelos crimes da ditadura. No Brasil, apesar dos 21 anos de arbítrio, nenhum militar foi para a cadeia. Os cinco presidentes militares acantonados no Palácio do Planalto a partir de 1964 — Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo — morreram impunes, embora todos tenham sido responsabilizados pelos crimes da ditadura no contundente relatório final de 2014 da Comissão Nacional da Verdade, indiciados como comandantes supremos dos 377 agentes do Estado apontados como autores de crimes de lesa-humanidade na ditadura brasileira.

Generais na cadeia

Ao contrário, na Argentina, os presidentes militares sentaram nos bancos dos réus. Jorge Rafael Videla, o general mais emblemático da ditadura, que liderou o golpe de 1976, morreu na cadeia em maio de 2013, aos 87 anos, onde cumpria duas penas de prisão perpétua, além de outra de 50 anos de detenção pelo desaparecimento de bebês de presas políticas. Morreu do coração numa sexta-feira, três dias após recusar-se a depor na Causa Condor. Em 2011, na cadeia, falou durante 20 horas ao jornalista Ceferino Reato, que publicou no ano seguinte seu relato estarrecedor no livro Disposión Final, uma sutil referência à genocida 'solução final' do III Reich hitlerista. Ali, o velho general admitiu o tamanho do seu assassinato em massa: "Digamos que eram umas sete ou oito mil as pessoas que deveriam morrer para ganhar a guerra contra a subversão". Videla foi modesto. A Comissão Sábato que investigou a ditadura contabilizou cerca de 10 mil mortos, os familiares dos presos e desaparecidos insistem em contar 30 mil vítimas fatais.

Assim como o primeiro, o último presidente argentino da ditadura também está preso — mas ainda vivo. O general de exército Reynaldo Bignone, 88 anos, que caiu com o regime em 1983, não teve a coragem do agente Furci e não quis ouvir pessoalmente na quinta-feira sua condenação a 20 anos de prisão. Não fará muita diferença no pouco que lhe resta de vida: Bignone já tinha sido condenado a outros 25 anos de prisão, em 2010, por 56 casos de prisão ilegal, sequestro, roubo e torturas no complexo militar de Campo de Mayo, o maior quartel do país. Em 12 de março de 2013, o general ganhou sua segunda pena de prisão perpétua. No dia seguinte, a mulher, Nilda, companheira de 60 anos, morreu fulminada por um ataque cardíaco.

O coração inconfiável dos torturadores e o tempo implacável do processo reduziram a bancada dos réus. Quando o juízo iniciou, três anos atrás, os acusados eram 31. Restaram ainda vivos os 18 réus condenados na semana passada. O mais idoso é o general de divisão Santiago Omar Riveros, com 92 anos, que recebeu a pena mais alta, como Furci: 25 anos de prisão. Já tinha duas penas perpétuas: uma na Argentina e outra na Itália, pelo desaparecimento de três cidadãos italianos em Buenos Aires. Riveros foi o primeiro general a reconhecer suas vítimas da ditadura: "Não houve desaparecidos, apenas terroristas aniquilados no marco de uma guerra revolucionária e, por tanto, irregular".





Seu pior crime foi o comando de El Campito, o maior CCD (centro clandestino de detenção) entre os 380 campos montados no país pela repressão, instalado dentro do principal quartel argentino, o de Campo de Mayo, em Buenos Aires.
Ali passaram 5 mil presos, apenas 43 sobreviveram ao inferno de Riveros.

O leite que vaza

Ao hospital militar de El Campito eram levadas as presas grávidas, onde eram alojadas no prédio do Serviço de Epidemiologia, sempre vigiadas por homens armados. Apesar da gravidez, as mulheres eram mantidas com algemas e capuz na cabeça. Os partos, realizados por profissionais civis e militares no serviço de Ginecologia e Obstetrícia, eram na sua maioria induzidos por cesarianas. Os nascidos eram logo separados e muitas mães sequer sabiam o sexo de seus filhos. Os bebês permaneciam na área de Neonatologia até serem 'presenteados' às famílias dos repressores e as mães, de volta à Epidemiologia, recebiam uma medicação para evitar a produção de leite, já que não podiam amamentar seus filhos. As mulheres entravam no hospital como NN (no nombradas), onde eram atendidas por enfermeiras e monjas, e não deixavam registros, até retornar à prisão original, onde desapareciam para sempre. Um livro de nascimentos encontrado nos arquivos do hospital indica que, entre 1976 e 1978, no auge da 'guerra suja' na Argentina, só em El Campito foram registrados 1.274 partos — 352 deles sem qualquer histórico clínico.

Com a contribuição da fábrica infernal de bebês roubados do general Riveros, a Argentina registra ainda hoje cerca de 500 bebês apropriados pela repressão. Deles, até agora, apenas 199 foram identificados, recuperados e encaminhados aos avós sobreviventes.

Um dos casos mais simbólicos desse drama humano é o do jovem uruguaio Simón António Riquelo, desaparecido com a mãe, Sara Méndez, na noite de 13 de julho de 1976, em Buenos Aires, onde a professora vivia exilada. Pelo padrão paranoico da repressão, o jovem era um perigoso comunista, apesar de seus tenros 22 dias de vida: Simón era um bebê, e foi arrebatado do peito da mãe pelo major de artilharia uruguaio José Nino Gavazzo, chefe de operações do SID, o temido Serviço de Informações de Defesa da ditadura de Montevidéu.

— La guerra no es contra niños ! — avisou o major a Sara, quando arrancou o bebê de seus braços. Gavazzo levou Sara para uma antiga oficina mecânica no bairro portenho de Floresta, onde o SIDE do agente Furci, agora condenado, montou um centro binacional e clandestino de tortura que virou sinônimo da Condor: a Automotores Orletti.

Ali passaram mais de 300 presos, metade deles uruguaios. Poucos, como Sara, sobreviveram. Apartada do filho, Sara, encapuzada e algemada pelas costas, foi suspensa por um gancho como um pedaço de carne no açougue. Levou choques elétricos, que ganhavam intensidade quando ela conseguia tocar o chão molhado com a ponta dos pés. Em dado momento, um dos torturadores perguntou a Gavazzo porque o chão estava esbranquiçado.

 Es leche! — foi a resposta. Leite que vazava do seio de Sara, leite negado a Simón, expropriado por Gavazzo, usurpado pela Orletti, sequestrado pela Condor.

Dez dias depois, Sara foi transferida clandestinamente a Montevidéu, junto com outros 23 uruguaios presos na capital argentina. O bebê desapareceu, embora aquela guerra não fosse contra ele. A forçada mãe adotiva de Simón era prima-irmã da mulher de um coronel uruguaio, António Buratti, envolvido em sequestros e ex-chefe de Gavazzo. Sara perdeu o leite, mas não a esperança. Sobreviveu a cinco anos de prisão e, em liberdade, procurou o filho roubado durante quase três décadas, até que o reencontrou em Buenos Aires em 2002.

Sara já não vertia leite. Apenas lágrimas. De alegria.












No rastro da Condor

O Simón de 26 anos foi localizado graças à investigação de um jornalista e de um senador, ambos uruguaios.

O jornalista Roger Rodríguez, 56 anos, é o mais temido e destemido repórter do Uruguai, reconhecido e premiado internacionalmente pelo jornalismo contundente que faz sobre as ditaduras e crimes contra os direitos humanos no seu país e no Cone Sul. Detentor,  entre outros, do prêmio Vladimir Herzog de 1984, concedido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, e do prêmio Liberdade de Expressão Iberoamericana da Casa América Catalunha, de Barcelona, em 2011, Rodríguez é uma figura singular do país: foi o último preso da longa ditadura (1973-1985) e o primeiro anistiado da democracia. No crepúsculo do regime dos generais, foi processado pela Justiça Militar por denunciar maus tratos às presas políticas da penitenciária de Punta de Ríeles e, condenado, passou 20 dias encarcerado pela ditadura moribunda, até ser anistiado pela democracia nascente.

As mais notáveis reportagens sobre o regime militar no Uruguai levam a assinatura de Rodríguez, que em 2001 descobriu o Segundo Vuelo, o translado clandestino em aviões da Força Aérea de uruguaios presos e torturados pela Condor em Buenos Aires e desaparecidos em Montevidéu. Seu faro de sabujo e a obstinação de repórter puro-sangue permitiram que ele localizasse em 2002, na capital argentina, o jovem Simón Riquelo, devolvido 26 anos depois ao peito da mãe, Sara. Com a sabedoria que deve ser útil a todo repórter e essencial para os inertes juízes brasileiros, Rodrígues ensina: "Cuando se sabe la verdad, se exige la justicia. La verdad es, la historia puede ser".

O senador que localizou Simón, Rafael Michelini, era igualmente uma vitima da Condor. Dois meses antes do sequestro de Sara e seu bebê, o também senador Zelmar Michelini, pai de Rafael e fundador da coalizão de esquerda Frente Ampla, foi sequestrado em maio de 1976 em Buenos Aires junto com Héctor Gutiérrez Ruiz, ex-presidente da Câmara dos Deputados, ambos refugiados na capital argentina e odiados opositores da ditadura uruguaia. Foram os presos que inauguraram a crônica de horrores da Orletti. Os corpos dos dois foram encontrados três dias mais tarde, com marcas de tortura e tiros na cabeça, no porta-malas de uma camionete, sob um viaduto a dez quilômetros da Casa Rosada, o palácio presidencial ocupado então pela junta do general Videla, que dois meses antes derrubara Isabelita Perón.










            

                                                                                                                    
     
O poeta e a neta

Havia um único estrangeiro entre os 18 condenados da Condor na semana passada. Era o coronel uruguaio Manuel Cordero Piacentini, 78 anos. Integrava a equipe de Gavazzo na central de torturas da Orletti e participou das operações de sequestro e translado ilegais de uruguaios presos em Buenos Aires e levados para Montevidéu. Recebeu a maior pena, 25 anos de prisão, como o agente Furci e o general Riveros.         

Cordero foi extraditado do Brasil para a Argentina em 2010, após uma longa batalha judicial no Supremo Tribunal Federal, em Brasília, enredado nas manhas da Lei da Anistia de 1979 que estende a impunidade aos torturadores. O relator do caso, ministro Marco Aurélio, bradava que ninguém podia ficar desaparecido por tanto tempo e, assim, os crimes imputados ao coronel estariam prescritos. O reaparecimento de Simón Riquelo desmontou a tese do ministro. O ministro César Peluzo pediu vistas, reconheceu a tese do desaparecimento forçado, o que justificava o crime continuado, e a extradição acabou concedida por 6 votos a 2 em agosto de 2009. Assim, liberando Cordero para julgamento por crimes de lesa-humanidade na Condor, o STF adotou um juízo curioso, que vale para a Argentina, mas não vale para o Brasil.

Cordero não estava no tribunal para ouvir sua sentença, por isso não cruzou com uma de suas vítimas, Macarena Gelman, 39 anos, que estava lá como testemunha do caso. A mãe, Maria Cláudia, e o pai, Marcelo, filho do renomado poeta argentino Juan Gelman (1930-2014), foram presos pela Condor e torturados na Orletti de Cordero. O casal foi transferido para Montevidéu e Maria Cláudia, grávida, deu à luz uma menina ainda na prisão clandestina, em 1977. Os pais, mortos pela tortura, desapareceram na cova anônima de um quartel uruguaio e o bebê foi criado por repressores. Com o sonho indomável de poeta, Juan Gelman buscou sem cessar sua neta e acabou encontrando Macarena só em 2000, quando ela tinha já 23 anos, antecipando assim em dois anos o feliz reencontro de Sara e Simón.







Um herói brasileiro

Cordero, o torturador uruguaio que levou à morte os pais de Macarena, só estava sentado no banco dos réus graças à determinação de um brasileiro. Procurado pela justiça uruguaia por crimes na ditadura, o coronel fugiu do país em julho de 2004. Passou por São Paulo, onde se submeteu a uma cirurgia, e desapareceu. Parecia esquecido por todos, menos por seu implacável perseguidor: o ativista brasileiro Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). Ainda forte e rijo aos 77 anos, dono de uma ondulada cabeleira branca imponente como sua voz grave, esse gaúcho de Porto Alegre tornou-se o mais respeitado especialista em Condor do país, graças à sua incansável militância de mais de 40 anos.

Krischke é um improvável herói brasileiro, mais conhecido e reconhecido fora do que dentro do Brasil por abraçar uma causa que o País ainda trata com desleixo e desdém: os direitos humanos e os crimes de lesa-humanidade das ditaduras no Cone Sul, temas que o tornam presença indispensável em seminários e encontros de especialistas em Buenos Aires, Santiago, Montevidéu, e outras capitais angustiadas pelo drama da Operação Condor. Sua ONG, instalada numa sala apertada do nono andar de um edifício na avenida Borges de Medeiros, no coração da capital gaúcha, sobrevive com a contribuição mensal de seus poucos militantes. Pelo estatuto, o MJDH não pode receber verbas públicas. "Somos pobres, mas limpinhos", brinca Krischke. Apesar disso, tem o mais relevante arquivo sobre a Condor no Brasil, aberto permanentemente a jornalistas e pesquisadores, em sua maioria do exterior.

A autoridade moral de Krischke não depende dos documentos secretos que armazena, mas da história de coragem e luta que o caracteriza. Nos anos mais duros da repressão nos anos 1970, refugiados de países vizinhos só tinham nele a mão amiga para sobreviver. Fugiam de seus algozes no Uruguai, Argentina, Chile ou Paraguai para buscar a liberdade na Europa. A escala obrigatória era Porto Alegre. Krischke fazia os contatos, arranjos burocráticos e translados para o Rio de Janeiro, muitos escoltados pessoalmente por ele para o escritório carioca do ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) que providenciava o salvo-conduto para quem recebia asilo de nações europeias. Cerca de 2.000 pessoas escaparam da morte e ganharam a liberdade graças às mãos solidárias de Krischke.

Em certo sentido, ele é uma inusitada mescla brasileira de Schindler, o salvador, e Wiesenthal, o caçador.









O industrial alemão Oskar Schindler (1908-1974) foi espião da Abwehr, o serviço secreto do Exército de Hitler, e membro do Partido Nazista. Essas conexões permitiram que ele livrasse 1.200 judeus das câmaras de gás ao empregá-los em suas fábricas de esmalte e munição na Polônia e República Checa. A artimanha salvadora transformou-se em uma história de dignidade em meio ao horror da II Guerra Mundial popularizada no filme A lista de Schindler, de Steven Spielberg. Ganhou de Israel o título de 'Justo entre as Nações', concedido a gentios que arriscaram suas vidas para salvar judeus do Holocausto. É o único membro do Partido Nazista honrado com uma sepultura em Jerusalém, capital israelense.

O arquiteto austríaco Simon Wiesenthal (1908-2005), embora nascido no mesmo ano de Schindler, estava do outro lado. Passou por cinco campos de concentração, onde morreram 89 pessoas de sua família, e tentou o suicídio cortando os pulsos para escapar do trabalho escravo. Era um dos 85 mil sobreviventes judeus do campo de Mauthausen, na Áustria, onde os nazistas mataram 300 mil pessoas por exaustão. Dali, o último campo liberado pelos Aliados, em maio de 1945, Wiesenthal saiu aos 37 anos pesando apenas 41 kg para emergir no pós-guerra como o mais importante caçador de nazistas do mundo. Recolheu seu caderno de anotações, com os nomes de oficiais e soldados que conheceu no cativeiro, e auxiliou o Exército dos Estados Unidos a montar os processos do juízo nazista em Nuremberg. Mais de 1.100 criminosos foram identificados, localizados e presos com a ajuda de suas informações — incluindo Adolf Eichmann, o executor-chefe do III Reich, e Franz Stangl, comandante do campo de concentração de Treblinka, preso no Brasil em 1967.



A burocracia denuncia 

O lado caçador de Krischke, ao melhor estilo Wiesenthal, aflorou na perseguição implacável e solitária que fez ao coronel uruguaio da Condor. Fugitivo da justiça de Montevidéu, Cordero havia se escondido em Santana do Livramento, cidade gaúcha na fronteira, separada da uruguaia Rivera por uma única avenida. Com faro de repórter e rigor espartano, Krischke procurou descobrir a fonte de renda que sustentava o coronel na clandestinidade brasileira. Soube que, para receber regularmente sua aposentadoria como militar retirado, Cordero precisava firmar mensalmente um documento chamado 'certificado de vida'. Com este fio de meada, o Wiesenthal gaúcho chegou no início de 2005 ao endereço de uma casa discreta no número 1.007 da rua Uruguai, na cidade de Livramento, o esconderijo de Cordero no Brasil. Horas depois, em Porto Alegre, Krischke repassou oficialmente a informação ao cônsul da Argentina, onde o juiz Guillermo Montenegro comandava uma caçada internacional ao coronel denunciado na Causa Condor.

Escorregadio, Cordero desapareceu outra vez e sumiu por dois anos. Até que reapareceu, distraído, no consulado uruguaio de Livramento, às 12h40 de uma quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007. Estava lá para firmar o 'certificado de vida' que daria à filha, em Montevidéu, o direito de receber sua aposentadoria. Duas horas depois, Krischke recebeu essa informação crucial da própria vice-chanceler do Uruguai, Belela Herrera, que telefonava da capital uruguaia pedindo sua ajuda. Na manhã seguinte, sexta, Krischke acionou a Interpol em Brasília. À tarde, instruído por ele, o cônsul em Livramento despistou o advogado de Cordero, que cobrava o certificado, adiando mais algumas horas a entrega do documento. Na tarde de segunda-feira, 26, desavisado, o coronel foi à delegacia fronteiriça da Polícia Federal para supostamente assinar o seu pedido formal de refúgio no Brasil, quando recebeu voz de prisão, informado ali que o STF tinha aprovado, três dias antes, sua extradição para a Argentina. O dia terminava, às 20h30, quando a vice-chanceler Belela ligou emocionada, de Montevidéu, para agradecer ao Wiesenthal brasileiro. Após muitos recursos junto ao STF, Cordero foi afinal extraditado para a Argentina, em janeiro de 2010, até acabar na inédita bancada de réus de Buenos Aires.

O vexame verde-amarelo

A gang de carrascos nazistas da Condor só caiu nas garras da justiça graças a um portentoso esforço de investigação, multinacional como a organização terrorista que estava julgando. Do Paraguai, vieram 4 milhões de fotogramas do 'Arquivo do Terror' descoberto após a queda da ditadura de Stroessner. Dos Estados Unidos, vieram milhares de registros desclassificados do Departamento de Estado, mostrando o papel da CIA e do FBI na sustentação das ditaduras de Pinochet e Videla. Do Chile, chegaram os informes da Vicaria de Solidariedade de Santiago. Do Brasil, vieram papéis da Comissão da Verdade. Da própria Argentina, brotaram 90 dossiês das Forças Armadas e 72 relatórios de órgãos de segurança interna da ditadura dos generais.

O papel dos Estados Unidos na sustentação e apoio às ditaduras da região ficou comprovado pela remessa de Washington à Causa Condor de 48 mil documentos sobre a repressão no Chile (1973-1990) e sobre a 'guerra suja' na Argentina (1976-1983). É uma humilhante comparação com os parcos arquivos cedidos pelo Governo americano ao brasileiro. O Itamaraty repassou à Comissão da Verdade míseros 68 documentos do Departamento de Estado, produzidos no período entre 1967 e 1977, que abrange apenas três dos cinco generais da ditadura (Costa e Silva, Médici e Geisel). Considerando que a ditadura brasileira durou três vezes mais (21 anos contra sete), o Brasil recebeu um arquivo quase 60 vezes menor do que a Argentina. A comparação é ainda mais deprimente com o Chile, uma ditadura de 17 anos, mais breve que a brasileira, que recebeu 44 mil documentos de Washington, uma quantidade 650 vezes maior do que remetida a Brasília. Essa relação desproporcional ficará ainda mais vergonhosa, para o Brasil, após a solene declaração de Barack Obama, três meses atrás, de que vai liberar a Buenos Aires mais documentos desclassificados dos arquivos militares e de inteligência, como parte da "responsabilidade moral" que os Estados Unidos têm para com a Argentina.

Obama fez a promessa em Buenos Aires, diante do presidente, Maurício Macri, com quem se encontrou em 23 de março passado, véspera dos 40 anos do golpe de 1976 do general Videla. A coincidência da data enfureceu as entidades ligadas às famílias das vítimas, mas a visita de Obama ao Parque de La Memória teve um forte significado de reparação histórica. Ali, o presidente americano reconheceu as "verdades incômodas" e a "dívida com o passado" pelo apoio dos Estados Unidos à ditadura na década de 1970.



A pressa assassina

Diante das quatro paredes de concreto com os nomes, por ordem alfabética, de 10.700 homens, mulheres e bebês mortos ou desaparecidos pelo terror de Estado, Obama declarou-se emocionado por estar no parque: "Este é um tributo à memória, mas também uma homenagem à valentia e à perseverança dos que recordam e se recusam a abandonar seus esforços na busca da verdade e da justiça. Que se cumpra a promessa de Nunca Más", disse ele, fazendo uma menção às Avós da Plaza de Mayo, que se fizeram ostensivamente ausentes do ato, como forma de protesto. Obama teve o cuidado de não mencionar a Operação Condor.





Nenhuma mesura de Obama às vítimas poderá apagar, na verdade, as digitais americanas na mortandade desatada pelos generais da Argentina com a indulgência e o apoio dos Estados Unidos, sob os governos Nixon (1969-74) e Ford (1974-77), quando a política externa de Washington tinha a inspiração satânica de um radical anticomunista, Henry Kissinger. Em 10 de junho de 1976, apenas dois meses e meio após o golpe de Videla, o chanceler e almirante César Guzzetti teve um encontro em Santiago do Chile com Kissinger, já secretário de Estado de Nixon.

O almirante entrou de coturno na conversa: "Nosso principal problema na Argentina é o terrorismo", reclamou. O chanceler estadunidense sacou rápido, dando sem muxoxo o sinal verde para o terror de Estado, disfarçado numa frase de perfídia diplomática que, com a mesma eficácia do biquíni, ocultava o essencial sem deixar de mostrar tudo: "Se existem coisas a fazer, devem fazê-las rápido", ensinou Kissinger, finalizando com um conselho digno de seu estilo cínico: "Mas, deveriam voltar logo que possível aos procedimentos normais". Como se sabe, nem Videla e seus generais voltaram logo à normalidade democrática, nem Kissinger reclamou da violência prolongada — nem mesmo quando a Condor criou asas e decolou sob a indulgência plenária e os bons ventos soprados por Washington.

O garoto das águas
       
Como é praxe nas visitas presidenciais, Macri e Obama foram até a murada do parque para jogar flores nas águas geladas e barrentas do rio da Prata, transformado pela ditadura em depósito clandestino de presos que ali eram jogados, muitos deles ainda vivos. Um dos mais jovens era uma criança de 14 anos, um jovem magro de cabelos morenos cobrindo as orelhas, chamado Pablo Miguez. Foi preso com a mãe, membro do grupo guerrilheiro ERP, por um grupo armado do Exército que invadiu sua casa no bairro de Avellaneda em 12 de maio de 1977. Foi torturado com choques elétricos diante da mãe no centro clandestino El Vesubio e depois levado para a Escola de Mecânica da Armada, a notória ESMA, centro de torturas onde sobreviveram apenas 100 dos 4 mil presos que passaram por lá — entre eles não estava Pablo. A jornalista Lila Pastoriza, que saiu viva da ESMA, ficou um mês e meio ao lado de Pablo, que não era interrogado por ninguém. "Veja a que nos dedicamos agora", comentou um carcereiro da ESMA, zombando da pouca idade do preso. "Um dia, um dos guardas o pegou pela mão e nunca mais soube dele", contou a jornalista no tribunal.





A imagem de Pablo ficou flutuando para sempre na consciência nacional e nas águas do Prata, onde ele parece caminhar na impactante estátua em aço polido da artista plástica Cláudia Fontes, que esculpiu no Parque de La Memória a figura de um garoto, com as mãos para trás, olhando o horizonte sem fim do grande rio onde se afogaram tantas vidas e esperanças. A obra está colocada de costa para a praia, a uns 50 metros da murada que recebeu Obama e Macri, e produz um forte efeito emocional em quem a vê. A dois quilômetros de distância está a ESMA, onde um dia Pablo viveu os últimos momentos de sua curta vida. Uma coisa rápida, como pedia Kissinger aos generais.

Pablo começou a morrer quando recebeu uma injeção anestésica que o deixou grogue, sonolento. Homens da Marinha, sem uniforme, descaracterizados com tênis, jeans e camiseta, o levaram para o Aeroparque, aeroporto doméstico a apenas 4 km da ESMA, e o embarcaram num Skyvan, um bimotor turboélice irlandês conhecido como 'caixa de sapatos voadora'. Transportava 19 passageiros, era curto, bojudo e muito apreciado pela rampa traseira que facilitava a descarga de mercadoria. A ditadura argentina achou uma boa finalidade nesse avião para descartar suas 'mercadorias' humanas: decolava com sua carga de presos do Aeroparque até a altitude de 6 mil metros, a 300 km por hora, e de lá jogava sua carga no Prata. Antes de virar estátua, Pablo desapareceu assim, da mesma forma que outras 4.400 pessoas despejadas por ordem direta do almirante Emílio Massera, o nome mais sanguinário da junta militar.

A entrevista errada 

Vários corpos teimaram em reaparecer, a partir de maio de 1976, nas praias argentinas e uruguaias do Prata. Os restos com marcas de torturas localizados 300 km ao sul de Buenos Aires foram rapidamente sepultados como NN (no nombrados) no cemitério de General Lavalle, uma localidade rural às margens do rio, com pouco mais de 3 mil habitantes. Autópsias posteriores identificaram entre eles três fundadoras do grupo das Mães da Plaza de Mayo — Esther Ballestrino, Maria Eugenia Ponce de Blanco e Azuzena Villaflor.

Os corpos que ressurgiam nas praias distante do cabo Polônio — já na costa uruguaia do Atlântico, 260 km acima de Montevidéu — de certa forma voltavam para casa. Eram uruguaios exilados na Argentina, sequestrados pela Condor, torturados na Automotores Orletti do agente Furci e do coronel Cordero e arrojados das alturas no Prata. Deveriam desaparecer, mas ressurgiam teimosamente nas manchetes dos jornais, todos censurados, que se limitavam a informar sobre os achados macabros, sem avançar nos motivos e identidade dos assassinos. Apesar disso, todos sabiam ou imaginavam do que se tratava. Os detalhes só foram conhecidos uma década depois, em 1995, quando o capitão de corveta Adolfo Scilingo, hoje com 69 anos, contou ao jornalista Horácio Verbitsky a verdade sobre os vuelos de la muerte, que ele coordenou como integrante da ESMA. O depoimento virou um livro, El Vuelo, e o sucesso garantiu ao capitão um convite da TV estatal da Espanha para uma entrevista bombástica.





Quando desembarcou em Madrid, em outubro de 1997, em vez do festejado apresentador da TVE Carlos Herrera, o capitão da ESMA foi desviado do estúdio para ser entrevistado num tribunal por outro espanhol: o juiz Baltazar Garzón, que ganharia renome mundial um ano mais tarde ao determinar a prisão do general Pinochet pelos crimes da Condor. Scilingo confirmou ao juiz os pormenores dos voos assassinos e nunca mais retornou à Argentina. Pelos crimes de lesa humanidade, a morte de 30 pessoas e a detenção ilegal e torturas em outras 256, o capitão foi condenado pela Suprema Corte espanhola a 1.084 anos de prisão.

A tragédia da Operação Condor, enfim julgada e condenada em Buenos Aires, mostra que Argentina e Brasil, agora, mostram uma inesperada convergência — para pior, no plano sensível dos direitos humanos.

O Brasil tem fracassado miseravelmente no seu acerto de contas com o passado. Enquanto os países mais importantes da região instalavam suas Comissões da Verdade no mesmo ano em que caíam suas ditaduras (Argentina em 1983, Uruguai em 1985 e Chile em 1990), o Brasil da eterna conciliação viu o último general deixar o Palácio do Planalto em 1985 e ainda esperou longos, insuportáveis 27 anos para implantar sua comissão.

Cinco presidentes civis — José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva — passaram omissos diante do tema, que só foi atacado em 2012 no governo de Dilma Rousseff, o único governante entre eles que carregava a condição de ex-guerrilheira, presa política e torturada na ditadura. Dilma teve o mérito de instalar a Comissão Nacional da Verdade (CNV), mas o demérito de não defendê-la contra a persistente sabotagem dos comandos militares, que ao longo de seu governo mostraram desdém, desatenção e clara hostilidade aos trabalhos de investigação.
                                                         



Os generais ignoraram ostensivamente os fatos, nomes e datas de centros de torturas e mortes comprovadas em um minucioso requerimento que a CNV apresentou aos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Na resposta evasiva, desleixada, que deram ao requerimento, os generais chegaram ao requinte de ignorar até as torturas de 22 dias a que submeteram a guerrilheira Dilma Rousseff, em 1970, no mais afamado centro de violências do Exército, o DOI-CODI da rua Tutoia, administrada pelo II Exército (atual Comando Militar do Sudeste), em São Paulo. Apesar do deboche explícito, nem o passivo ministro da Defesa, Celso Amorim, nem a torturada Dilma Rousseff — a comandante suprema das Forças Armadas — fizeram valer a sua autoridade. Engoliram a afronta em seco. A cínica ditadura brasileira fingiu, sempre, que não participou da fundação da Operação Condor em Santiago do Chile, em novembro de 1975.

O coronel chileno Manuel Contreras, chefe da temida DINA de Pinochet, queria um encontro da cúpula da repressão regional em seu país. Mandou o vice-chefe da DINA, o coronel da Força Aérea Mário Jahn, percorrer as capitais do Cone Sul para entregar o convite em mãos. Quase 30 anos depois, quando depôs ao juiz Juan Guzmán, o primeiro do Chile que ousou processar o intocável Pinochet, o coronel Jahn não lembrava onde e a quem entregou os convites. Só lembrou de um destinatário: "João Batista Figueiredo, persona que conocía de un viaje anterior que hice a Brasil". Figueiredo, então chefe do SNI, só não decolou de Brasília porque foi contido pelo presidente Ernesto Geisel, que não queria dar tanto prestígio a Pinochet. Ele ordenou que outros fossem no lugar de Figueiredo.

Os 44 mil documentos do Departamento de Estado que poderiam esclarecer o assunto nunca informaram quais eram os brasileiros. Intrigado com essa lacuna, investiguei durante dois anos, nas entranhas da ditadura, para concluir meu livro sobre a Operação Condor (*), lançado em 2008. Então, revelei os nomes dos dois brasileiros autorizados por Geisel e indicados por Figueiredo para representar o Brasil no encontro: o coronel Flávio de Marco e o major Thaumaturgo Sotero Vaz, ambos do Centro de Informações do Exército (CIE) e veteranos do combate à guerrilha do Araguaia. A dupla viajou com uma ordem estrita de Geisel: participar apenas como observadores, sem autorização para assinar a ata de fundação da Condor. Eles foram, viram, ouviram, falaram e participaram, fingindo que não estavam ali. O Brasil saiu à francesa do evento histórico da Condor.

O coronel De Marco morreu de infarto aos 52 anos, em 1984, quando exercia o cargo de diretor-administrativo do Palácio do Planalto no Governo Figueiredo. O major Thaumaturgo, hoje general da reserva, sobreviveu a tudo e trabalhava em 2012 como assessor parlamentar do Comando Militar da Amazônia (CMA). Conforme a página 223 do Capítulo 6 do relatório final da CNV, dedicado às 'Conexões Internacionais: a aliança repressiva no Cone Sul e a Operação Condor', o general Thaumatugo alegou razões de saúde e recusou duas convocações da CNV para cumprir seu dever para com a Pátria e revelar o que sabe na condição de testemunha ocular da história da Condor.

Nem o comandante do Exército, nem o ministro da Defesa, nem a presidente Dilma mostraram qualquer contrariedade com a falta de colaboração do general que viu a serpente sair do ovo. E engoliram em seco o desaforo. A CNV fez a sua parte e a presidente guerrilheira, não.

A primeira das 29 medidas propostas pela CNV em seu relatório final pede o reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade nas torturas e violências cometidas durante o regime de arbítrio — uma impossibilidade prática enquanto prevalecer a inércia dos comandantes militares e a apatia dos presidentes civis. A segunda recomendação da CNV, que se impõe como dever histórico e exigência de cortes internacionais, é a revogação da Lei de Anistia que a ditadura desenhou com esmero, em agosto de 1979, para beneficiar os seus torturadores com o privilégio da impunidade.

Ao Executivo inerte se somou a omissão crônica do Legislativo. Num Parlamento brasileiro com 513 deputados e 81 senadores, existem apenas duas propostas para revisar esta obscena 'lei de autoanistia' que os militares fizeram aprovar por apenas cinco votos (206 a 201) num Congresso emasculado pelos atos institucionais — tudo para garantir à força a hegemonia na Câmara dos Deputados do partido da ditadura, a ARENA (221 cadeiras), sobre a frente de oposições abrigada no MDB (186). Um projeto da deputada Luiza Erundina (então PSB-SP) e outro do senador Randolfe Rodrigues (hoje REDE-AP), ambos pedindo a revisão da Anistia de 1979 para permitir a punição aos torturadores, são as únicas manifestações parlamentares que confirmam a omissão e o desinteresse de um Congresso conservador, desatento à História e aos seus compromissos éticos para com a verdade.

Nenhum avanço pela punição aconteceu no governo da ex-guerrilheira Dilma, nada certamente acontecerá no retrógrado governo interino de seu sucessor. O regressista Michel Temer mostrou em apenas três semanas de poder trepidante um dos mais desastrados inícios de administração da história da República, graças a uma notável equipe de nítido conteúdo conservador, claras convicções de retrocesso, forte índole reacionária e controversa integridade na sensível área da moralidade pública. Temer não lembrou de nenhuma 'representante do mundo feminino" para integrar seu ministério num país onde 103 milhões (51,4%) da população são mulheres. Descobriu para a rebaixada Secretaria das Mulheres uma crente evangélica que é contra o aborto até mesmo em casos de estupro, contrariando o que diz a lei. Retirou o status de ministério da Secretaria de Direitos Humanos e, pior, ressuscitou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), disfarçado como Secretaria.

O general quatro estrelas, Sérgio Etchegoyen, 64 anos, é um militar de fortes ligações familiares com a linha dura de duas ditaduras. Foi assessor especial do ministro Nelson Jobim no Governo Lula e chefe do Estado Maior do Exército (EME) no Governo Dilma O avô de Etchegoyen, Alcides, foi chefe de polícia do Estado Novo (1937-45) do ditador Vargas, substituindo o notório Filinto Muller. O pai, Léo, era major e chefe da polícia gaúcha em Porto Alegre, logo após o golpe de 1964, quando recebeu com estilo o agente americano Dan Mitrione. Em junho, ele posou para fotos na escadaria do Palácio da Polícia com o ilustre visitante, especialista em torturas que dava seu know-how à repressão no Rio, como responsável no Brasil do Office Public Safety (OPS), braço da CIA que atuava na América Latina sob a fachada da USAID. Mitrione foi transferido em 1969 para o Uruguai, para disseminar suas habilidades. Lá foi sequestrado pelos Tupamaros e executado na prisão da guerrilha em 1970.






Em 1979, já general em São Paulo, Leo Etchegoyen era chefe do Estado-Maior do II Exército e, como tal, responsável direto pelo DOI-CODI, o centro de suplícios onde atuou o coronel Brilhante Ustra, o torturador festejado pelo deputado Jair Bolsonaro no seu polêmico voto na sessão da Câmara que admitiu o processo de impeachment que afastou Dilma Rousseff provisoriamente do Planalto. Um tio, Cyro Etchegoyen, foi apontado pelo coronel Paulo Malhães em depoimento à CNV como a autoridade responsável pela 'Casa da Morte', centro clandestino de tortura e morte montado pelo DOI-CODI do I Exército na cidade serrana de Petrópolis.

O general Sérgio não falou do tio, mas se incomodou pelo pai, citado no relatório final da CNV de dezembro de 2014 como um dos 377 agentes do Estado brasileiro responsáveis por crimes na ditadura. Na condição de único general da ativa a confrontar publicamente a CNV, ele a acusou de 'leviana' em nota oficial. "No seu patético esforço para reescrever a história, a CNV apontou um culpado para um crime que não identifica", protestou o general, em nome da mãe e quatro irmãos. Levou de volta no mesmo dia uma dura resposta da CNV, que lembrou fatos que o general Etchegoyen esquecia sobre o pai. Além da acolhida ao torturador Mitrione, que o general não lembrou, a CNV cita que Léo, em 28 de dezembro de 1979, "na qualidade de chefe do Estado-Maior e supervisor das atividades do DOI-CODI, fez calorosos elogios aos serviços prestados pelo tenente-coronel Dalmo Lúcio Muniz Cyrilo, chefe do DOI-CODI/II Exército". Para refrescar a memória do Etchegoyen filho, a CNV lembrou que Cyrillo atuou "como chefe de equipes de interrogatório do DOI-CODI, tendo desempenhado a função de subcomandante nos períodos de Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel" — os dois coronéis, por sinal, citados na lista dos 377 agentes da ditadura, ao lado do tio e do pai do general Etchegoyen.

A CNV pisou mais fundo, relembrando na sua resposta: "Em 1980, quando Léo Etchegoyen era chefe do EM do II Exército, seu comando esteve vinculado ao planejamento da prisão coletiva de sindicalistas e lideranças dos metalúrgicos da região metropolitana de São Paulo conhecida como ABCD, bem como do sequestro de integrantes de organizações de direitos humanos que prestavam solidariedade a esses trabalhadores, como os advogados José Carlos Dias — então presidente da Comissão Justiça e Paz (CJP) da Arquidiocese de São Paulo — e Dalmo Dallari — ex-presidente da CJP—, prisões efetuadas com violência, sem mandado de prisão e sem a devida comunicação às suas famílias". O general não rebateu a nota da CNV.

Apesar desses antecedentes, ou por causa deles, o general Sérgio Etchegoyen é um dos notáveis do novo governo, indicado pelo presidente interino para assumir a Secretaria de Segurança Institucional.

Assim, enquanto a Argentina faz história na inédita condenação dos criminosos da Condor, o Brasil marca passo e retrocede. Depois de cinco generais-presidentes responsabilizados pela violência da ditadura, Brasília abrigou, em sequência, seis presidentes civis omissos diante da impunidade dos torturadores. E chega ao fundo do poço, agora, com o inesperado e exasperante Governo Temer.

Que vergonha, Brasil!



*Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor de Operação 
Condor: o Sequestro dos Uruguaios (ed. LP&M, 2008)


Créditos da foto: reprodução

Movimentos do campo dão início a manifestações contra Temer; entenda as pautas

Movimentos do campo dão início a manifestações contra Temer; entenda as pautas

Pressão sob a Reforma da Previdência, Minha Casa Minha Vida e fim do MDA é objetivo de atos desta semana


Rute Pina
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Desde a última quarta-feira (8), a Frente Brasil Popular (FBP), que reúne mais de 60 entidades e movimentos populares, promove uma série de atos e mobilizações pelo país contra o governo do presidente interino Michel Temer (PMDB). Os atos fazem parte da Jornada Nacional de Luta contra o golpe e pela defesa de direitos.
 
Os atos ocorrem até sexta-feira (10), quando haverá uma grande mobilização nacional, junto à Frente Povo sem Medo, além de uma greve geral convocada pela CUT e pelo PT.
 
Denunciando também a retirada de direitos adquiridos, as ações da Jornada chamam a atenção também para pautas específicas, como o posicionamento contra a Reforma da Previdência e a extinção do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo fortalecimento do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV).
 
Segundo os organizadores, essas medidas "devem ser combatidas por meio de ações unificadas entre movimentos populares do campo e da cidade".

 
Entenda quais são as pautas dos movimentos que estão nas ruas:

Reforma da Previdência



 
Ocupações em agências do Banco do Brasil, da Caixa, do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e de superintendências do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) têm como objetivo a defesa do atual sistema previdenciário.
 
O Ministério da Fazenda, que agora engloba a antiga pasta da Previdência, já sinalizou que deve realizar uma reforma até o final deste ano, que passará a ter efeitos já em 2017,  segundo Eliseu Padilha.
 
A proposta é que vigore a idade mínima para a aposentadoria de 65 anos para homens e mulheres do campo e da cidade, e que a renda seja desvinculada do salário mínimo. Hoje, no campo, os homens podem se aposentar aos 60 e as mulheres, aos 55 anos.
 
A professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Denise Gentil, cuja tese de doutorado desmonta o mito de déficit para a Previdência, garante que não existe hoje, no Brasil, necessidade de reforma no sistema previdenciário, e que o governo "espanca a lógica" ao aprová-la.
 
Para ela, a medida é "contraditória", tendo em vista as desonerações e a desvinculação de receitas da União, sobretudo da Seguridade Social. "O governo reformulou completamente o Ministério da Previdência e colocou a pasta dentro do Ministério da Fazenda. O Ministério da Previdência sofreu ordem de despejo no governo Temer", lamentou.  
 
A professora calcula que a Seguridade Social (conjunto de políticas sobre as áreas da Previdência, da saúde e da assistência social) teve um superávit de R$ 20 bilhões, ao contrário do que afirma o senso comum.
 
"Não é minimamente razoável mandar o sacrifício desta conta aos cidadãos, quando o governo está fornecendo uma ampla margem de lucro para as empresas com as desonerações e está pagando uma elevadíssima taxa de juros. Hoje, o orçamento público está à disposição do capital financeiro. É claro que a população tem que reagir", analisou Gentil.
 
Entre entre 2011 e 2015, acredita-se que governo tenha desonerado cerca de R$ 157 bilhões de receitas, sobretudo da Seguridade Social, o que equivale a aproximadamente 3% do PIB em um ano. Tramita ainda no Congresso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 87/2015, de autoria da presidenta afastada Dilma Rousseff (PT), que amplia o percentual da Desvinculação das Receitas da União (DRU) de 20% para 30%.
 
Na semana passada, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou a proposta em primeiro turno, com o apoio da base de Temer. "Quem acha que está faltando receita não desonera nem faz desvinculação, certo?", questiona a professora.
 
Gentil acredita que a reforma não obterá sucesso porque resultará no empobrecimento da população e no aumento do número de pessoas carentes e pobres. "É uma reversão de tudo o que conquistamos nos últimos 10 anos. E o pior é que isso não vai resolver o problema fiscal do governo, porque os impactos de uma reforma da Previdência só vão aparecer em dez ou 15 anos", afirmou. Segundo ela, os motivos da reforma não são fiscais.
 
"É uma exigência do setor financeiro. Quanto mais o governo precariza seu sistema de Previdência, mais ele empurra as pessoas a comprarem plano privado de Previdência. É um grande acordo entre o Estado e o setor financeiro. Vai muito além de uma situação demográfica ou uma questão social. É isso que chamamos de financeirização dos serviços públicos. Grande parte da renda das famílias hoje é sugada por previdência privada e plano de saúde, que são direitos assegurados na Constituição Federal e que o governo deveria estar ofertando para todos, de forma universal", disse.

 


 

Minha Casa Minha Vida - Rural



 
Uma das primeiras medidas do novo ministro das Cidades, Bruno Araújo, foi cancelar duas portarias  do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) que haviam sido assinadas anteriormente por Dilma. Após pressão dos movimentos populares, ele voltou atrás.
 
Mesmo assim, as manifestações desta semana estão pautando o fortalecimento do programa e a reivindicacão de que as promessas de campanha da presidenta sejam plenamente atendidas, com destaque para o âmbito rural.
Em abril deste ano, Dilma já havia sinalizado uma redução de 3 milhões para 2 milhões de casas entregues na nova fase do MCMV até 2018. Michel Temer, por sua vez, anunciou mais um corte, para 1,5 milhão de unidades, ou seja, para metade da previsão anunciada em 2014. Desenhado em três grupos, a Faixa 1 do MCVM, que é praticamente toda subsidiada pelo governo, é a que mais sofrerá cortes.  
Para Daniel Vieira, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná, é crítico que estes cortes impactem diretamente os mais pobres.  "O que o Temer está fazendo é pior do que a não-operalização do que havia no governo Dilma: é o corte do recursos da União. O programa continuará existindo, mas sem o subsídio do governo federal. Do jeito que está sendo apontado, será um programa de crédito. Nessa condição, ele corta assentamentos, agricultura familiar, quilombolas, indígenas, porque praticamente todos estavam na faixa 1", disse.
O déficit habitacional brasileiro caiu entre os anos 2007 e 2012. O déficit habitacional rural representa 15% do total e caiu cerca de 25% no período,  tanto em termos absolutos quanto relativos, segundo estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicado (Ipea). No entanto, segundo Vieira, não há  como afirmar que o déficit vem sendo reduzido. "O número de projetos protocolados há um ano totalizava cerca de 230 mil pedidos de casas nas áreas rurais. De lá para cá, contratou-se em torno de 20 mil casas. Tem um número enorme de projetos parados protocolados", afirmou.
Além disso, os movimentos populares pedem mudanças no programa para melhor atender às populações do campo, que hoje têm acesso restrito ao programa. "A lei permite que posseiros, por exemplo, acessem o programa. Mas as normativas internas dos bancos não lhes dão condições, porque eles não têm os documentos exigidos", disse o militante.
Vieira afirma que a autorização para que parentes de até terceiro grau construam no terreno dos assentados, desde que o proprietário autorize, e a desburocratização para as reformas de moradias do campo através do MCMV estão entre "uma série de pequenas coisas que precisam melhorar no programa para o acesso do nosso público".
Ele lembra ainda do pagamento das obras atrasadas e da liberação de recursos financeiros para os projetos que já foram contratados, mas cujas construções ainda não foram iniciadas.

Fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário



No final do mês passado, o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, afirmou que o governo estuda a possibilidade de criar a Secretaria de Desenvolvimento Agrário, que seria vinculada à Presidência. 
Padilha enfatizou que o possível rearranjo não terá impacto de "um centavo". O Desenvolvimento Agrário era um ministério autônomo até a entrada de Temer, que fundiu os ministérios do Desenvolvimento Agrário e do Desenvolvimento Social.


Créditos da foto: reprodução

'O Brasil tem fortes luzes no final, mas ainda está no corredor polonês'

'O Brasil tem fortes luzes no final, mas ainda está no corredor polonês'

'A prioridade de um país deve ser a preservação de sua gente. A prioridade é pensar no povo brasileiro, mas pensá-lo com realismo', adverte Carlos Lessa


Patrícia Fachin - IHU
reprodução
"Durante o governo Dilma eu dizia que a presidente sabe das coisas, mas tem muito medo de fazê-las, então enunciava uma medida e não a fazia ou fazia apenas um pedaço, e com isso conseguia unir críticas a ela por fazer e por não fazer. Temer está na mesma situação e tem um comportamento muito parecido com o de Dilma”, resume Carlos Lessa à IHU On-Line, ao comentar os primeiros dias do governo interino de Michel Temer.
 
Na avaliação dele, "infelizmente” o atual governo tem "uma inspiração neoliberal muito forte e não está colocando em primeiro plano a grande questão do Brasil de hoje: o Brasil é urbano e dentro das cidades há muitas pessoas desempregadas, sem seguro-desemprego e, inclusive, passando fome”. Aliás, frisa, "temos de aceitar como fato terrível que temos uma situação de fome avançando sobre a população urbana”.
 
Na entrevista a seguir, Lessa afirmou que é "contra a política econômica que está sendo executada, o que não quer dizer que fosse a favor da política econômica que Dilma fazia”. Para ele, no atual momento, o Brasil está "caminhando em uma direção muito perigosa, aliás, o perigo da situação foi visto com a própria situação que Dilma transmitiu de herança, ou seja, deixou um cenário político em que todas as lideranças dos partidos estão vulneráveis”.
 
No que diz respeito à economia, explica, a "crise econômica é de difícil resolução” porque "se acentuarmos a contração da atividade da indústria metalomecânica, teremos uma recessão e uma situação de desemprego trágico dentro do Brasil, e se tentarmos proteger essa indústria, teremos uma situação de mobilidade cada vez mais dramática”.

 
Ex-presidente do BNDES, Lessa também comenta as mudanças anunciadas por Temer referentes ao Banco e pontua que "o BNDES é visto, no atual governo, como uma roda quase inútil, porque a ideia de que o investimento privado é compatível com o clima de cortes e de redução dos fundos disponíveis é uma característica da visão neoliberal. Essa moça que virou a presidente do BNDES [Maria Silvia Bastos Marques] é uma neoliberal e creio que ela fará a lição de casa, que é rigorosamente atrofiar as operações do BNDES. Agora, isso não quer dizer que eu faça minha a orientação que foi dada ao BNDES no período que vai praticamente de 2005 até agora; não faço”.
 
Na avaliação do economista, entre as soluções para resolver as atuais crises no futuro, destaca-se a necessidade de fazer uma reforma política e o aperfeiçoamento da consciência do voto. Nesse sentido, menciona, a população precisaria mudar a perspectiva durante o voto e se perguntar: "Eu voto a favor do quê? E não contra quem”.
 

Carlos Lessa é formado em Ciências Econômicas pela antiga Universidade do Brasil e doutor em Ciências Humanas pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas - Unicamp. Em 2002, foi reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e presidente do BNDES.
 
Confira a entrevista.
 
IHU On-Line - Como o senhor está acompanhando o atual momento político e econômico do país? O que está acontecendo no país na sua avaliação?
 
Carlos Lessa – Penso que estamos assistindo a uma superposição de crises de diversas configurações. A primeira, a mais visível, mais midiatizada e emocionante, é a crise política, mas por baixo dela está uma crise social que é muito ampla. Porém, essa não é uma novidade na vida brasileira, no sentido de que as dificuldades dos vários grupos sociais vulneráveis se acentuaram, embora jamais tenham tido um refresco. Finalmente há uma crise do modelo econômico, a qual interpreto como sendo um corredor polonês extremamente difícil entre o que é necessário para manter a atividade da economia brasileira e o que é necessário fazer para diminuir a sua vulnerabilidade.
 
Estamos vivendo uma situação muito complicada do ponto de vista de modelos de encadeamentos de atividades econômicas e estamos extremamente vulneráveis por uma razão muito simples: o coração da nossa atividade industrial é a indústria metalomecânica e seus diversos segmentos, em que a mais importante é a indústria de montagem de veículos. Contudo, os números desse mês não deixam dúvidas de que a contração das empresas de automóveis em relação ao mesmo mês do ano anterior foi da ordem de quase 20%, e a contração das vendas de veículos de trabalho, basicamente de caminhões, foi de 30%, ou seja, estamos vendo na estrutura industrial que o produto de maior visibilidade, que é o veiculo automotor - seja para consumo, seja para produção -, diminuiu dramaticamente em um ano.
 
IHU On-Line - O que é necessário para resolver as crises política e econômica?
 
Carlos Lessa – Essa crise econômica é de muito difícil resolução pela seguinte razão: não se pode diminuir a produção dos veículos automotores sem gerar uma cadeia extensa de desemprego, sem gerar uma crise de arrecadação em diversas instâncias da federação, porque União, estados e municípios dependem muito do que acontece na indústria; porém, se mantivermos o Brasil produzindo, se descobrirá que é impossível resolver a crise de mobilidade urbana. Então, estamos numa situação de "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Quer dizer, se acentuarmos a contração da atividade da indústria metalomecânica, teremos uma recessão e uma situação de desemprego trágico no Brasil, e se tentarmos proteger essa indústria, teremos uma situação de mobilidade cada vez mais dramática. E nós sequer tomamos consciência dessa encruzilhada, que será muito difícil de ser enfrentada, mas que tem de ser enfrentada, debatida.
 
Além disso, precisamos aceitar como fato terrível que temos uma situação de fome avançando sobre a população urbana: está aumentando a fome entre as pessoas no país. Aí alguém pode dizer que existe o seguro-desemprego, mas ele só funciona para quem já teve emprego. E quem nunca teve?
 
Crise política
 
Sobre a crise política, na minha avaliação, as reformas que foram feitas com a Constituição de 88 tiveram sucesso na dimensão da garantia dos direitos civis, de livre circulação, de não ser preso sem processo, sem possibilidade de defesa etc. Nesse plano o Brasil avançou muito, porém no plano da representação política o sistema perdeu a vitalidade, a promessa de esperança que trouxe quando a Constituição foi proclamada em 88. Então, é necessário discutirmos com seriedade uma reforma política. De novo, trata-se de uma discussão difícil: você acha que os parlamentares vão renunciar a dois anos de mandato e os senadores a seis anos? De forma nenhuma. Então, como se faz uma reforma política com a própria representação política decidindo a respeito? É muito difícil fazer isso. Estamos vivendo impasses: há o impasse da economia e o impasse da vida pública.
 
Nós brasileiros temos de colocar em discussão o Brasil; o país tem de ser discutido para valer e não podemos ter ódio nesse processo, porque ele é assustador e permite cultivar soluções extremas que não resolvem a situação, mas aumentam o grau de insegurança.
 
"O sonho não pode ser o de destruir ou esmagar fulano, porque se for isso, estamos convertendo a vida num conflito, cujo prêmio é duvidoso"
 
IHU On-Line - Que leitura está fazendo dos desdobramentos da Lava Jato, que trouxe à tona uma série de informações envolvendo políticos do PT, PMDB, PSDB e outros, e as últimas notícias sobre o pedido de prisão de Renan, Jucá e Sarney por tentativa de obstrução da Lava Jato?
 
Carlos Lessa – A Lava Jato está pegando um partido muito grande, o PT, o segundo maior partido em tamanho, também o PMDB e o PSDB, sem falar nas organizações políticas menores. Como a população vê isso? Pode ver como sendo um descrédito do sistema de representação, mas com isso não se pode esquecer de uma coisa: só é possível mudar o sistema pelo voto, mas é preciso aperfeiçoar a consciência do voto. As pessoas têm de perguntar o seguinte: eu voto a favor do quê? E não contra quem. Tem de mudar essa perspectiva.
 
Acho que a população tem a perspectiva de que se trata de uma crise muito complicada, porém, a maneira como ela está lendo a crise é de que há uma crise entre A x B e B x C, mas isso não aponta solução. A grande característica da ordem democrática é que ela leva à vitória e não destrói a oposição. Mas quando cada elite quer destruir a outra, não se tem ordem democrática. Nós estamos vivendo um momento de crise profunda.
 
A resposta que dou a essa pergunta é parecida com a da maioria da população: estou vendo a situação extremamente difícil a curto e longo prazo. Sei que o longo prazo é feito de sucessivos prazos curtos, mas no curto prazo há um componente fortuito, ou seja, o acidente de percurso, que nenhum de nós controla. O que podemos controlar e discutir é qual é o nosso sonho, para assim nos aproximarmos dele. O sonho não pode ser o de destruir ou esmagar fulano, porque se for isso, estamos convertendo a vida num conflito, cujo prêmio é duvidoso.
 
Vou dizer uma coisa com toda sinceridade: tenho 80 anos e acho que não vou ver a solução dessa crise, mas a geração que vai ver a resolução dessa crise e levar o Brasil ao patamar de uma sociedade mais avançada é a geração que está na universidade agora e a garotada que está entrando na escola. A briga dessa geração por melhoria de ensino é um dado extremamente importante para a vida brasileira. Eles vão se perguntar por que a educação não melhora.
 
O Brasil quer ser celeiro do mundo, mas como isso será possível se ainda existe fome no Brasil? Isso é um absurdo. Essas questões serão discutidas pelos jovens, do mesmo modo que a questão da educação, pois se todo mundo diz que a educação é importante, por que não se resolve essa questão? O tema da educação vai politizar, no bom sentido, a sociedade brasileira, e as universidades estão contribuindo para esse debate.
 
IHU On-Line - Como analisa os primeiros dias do governo interino? Percebe uma tensão interna no governo, que avança e recua em suas decisões? Quais as razões disso?
 
Carlos Lessa – Durante o governo Dilma eu dizia que a presidente sabe das coisas, mas tem muito medo de fazê-las, então enunciava uma medida e não a fazia ou fazia apenas um pedaço, e com isso conseguia unir críticas a ela por fazer e por não fazer. Temer está na mesma situação e tem um comportamento muito parecido com o de Dilma. Infelizmente, o atual governo tem uma inspiração neoliberal muito forte e não está colocando em primeiro plano a grande questão do Brasil de hoje: o Brasil é urbano e dentro das cidades há muitas pessoas desempregadas, sem seguro-desemprego e, inclusive, passando fome.
 
Nenhuma sociedade consegue avançar com pessoas tendo essa sensação de vulnerabilidade enorme, que hoje atravessa a sociedade brasileira. A questão da mobilidade urbana continua intocável e, como eu disse, é uma situação muito difícil de resolver. A questão do desemprego e dessa política de exportar alimentos nos joga num corredor polonês, ou seja, estamos numa fila em que dos dois lados tem gente com chicotes e começamos a correr e não podemos parar de correr porque estamos no meio do corredor. Mas só tem um jeito de sair dali: apesar de tomar chicotadas, se continua correndo e no final se vê a luz. Eu acho que temos uma luz no final. O Brasil tem fortes luzes no final, mas ainda está no corredor polonês.
 
"Nenhuma sociedade consegue avançar com pessoas tendo essa sensação de vulnerabilidade enorme, que hoje atravessa a sociedade brasileira"
 
IHU On-Line - O que é possível esperar da política econômica do governo interino? Já é possível fazer avaliações?
 
Carlos Lessa – Quando uma pessoa está desempregada, a inflação de 4% ou de 6% tem algum efeito sobre essa pessoa? Nenhum, porque ela não tem acesso às coisas de que precisa. Então, a população convive com as mais variadas taxas de inflação, e todas elas são terríveis para quem está desempregado. O preço do arroz está subindo, mas se a pessoa está desempregada, mesmo se o preço estivesse baixando, ela não teria condições de comer.
 
O que quero dizer é que a prioridade de um país deve ser a preservação de sua gente. A minha gente brasileira está nas cidades, porque 80% da população é urbana e só vive se puder comprar as coisas. E se não puder comprar, como vive? Quem está com fome tem de comer. Então me pergunto por que os municípios brasileiros não lançam um mutirão de frente de trabalho para quem quer trabalhar, porque quem está desempregado trabalha por um salário-mínimo; se o salário-mínimo é, na nossa definição, o mínimo que uma pessoa precisa para sobreviver, nós precisamos garantir a sobrevivência dos trabalhadores urbanos. A prioridade é pensar no povo brasileiro, mas pensá-lo com realismo.
 
IHU On-Line – A política econômica atual não está contemplando essas questões no sentido de encontrar saídas para a situação do desemprego e da retomada do crescimento da indústria?
 
Carlos Lessa – Não, não vi nenhuma posição em relação a isso. A única notícia positiva que ouvi do governo Temer é que não venderá a Petrobras. Isso é positivo, mas não é suficiente, porque se puxar o tapete dos negócios que a Petrobras precisa, ela irá se converter cada vez mais numa empresa vulnerável. Então, não pode mexer no regime de concessões. Se mexerem para tornarem a Petrobras mais frágil, estaremos mal.
 
O grande ativo que o Brasil tem hoje são os 300 bilhões de dólares de reserva internacional. Eu usaria uma parte dessas reservas para comprar ações da Petrobras na Bolsa de Nova York, para recuperar o controle. Como vamos aceitar que a maior empresa brasileira seja tornada um ativo cada vez mais barato? Não consigo entender. Prefiro ter ações da Petrobras do que dólares ou euro. Aí alguém pode dizer que ter dólar e euro dá oxigênio. Mas não, isso está retirando o nosso oxigênio, porque ao invés de estarmos com a Petrobras correndo risco de ser condenada a pagar bilhões de dólares, nós deveríamos estar comprando ações da Petrobras. Foi irresponsável a atitude de vendê-las, e se as ações estão muito baratas, está na hora de o Brasil comprá-las. O que estou querendo dizer é que algumas questões podem ser discutidas com seriedade.
 
IHU On-Line – Como o quê, por exemplo?
 
Carlos Lessa – Não acho que os processos burocráticos brasileiros possam ser aplaudidos. Não acho que possa ser aplaudido o fato de o governo estar dividido em mais de vinte ministérios, e também acho um erro brutal que quase 40% dos cargos públicos sejam de comissões, mas é possível repensar a organização do Estado brasileiro. Não acho nada interessante que as pessoas saiam do setor privado e vão para o Banco Central e depois retornem para o setor privado. É uma promiscuidade terrível. Os funcionários de carreira do Banco Central que deveriam ser os diretores do Banco. Do mesmo modo, os funcionários de carreira deveriam substituir os cargos de comissão.
 
Ontem foi sabatinado o presidente do Banco Central [Ilan Goldfajn], e ninguém perguntou a ele como se sentia transitando do Banco Itaú para o Banco Central e depois voltando para o Itaú. Isso é terrível. O cargo de presidente do Banco Central é um cargo de Estado e deveria ser, em princípio, ocupado por um funcionário do Banco Central.
 
Para fazermos uma analogia, nós temos uma boa diplomacia, porque é uma diplomacia de carreira, temos Forças Armadas com carreira definida, ninguém pode nomear um general, e por isso acredito que poderia haver uma carreira no Banco Central. Como você sabe, [Luiz Carlos] Trabuco indicou um presidente do Banco Central. Ele tem 6% das ações do Grupo Bradesco. Logo, essa não é uma situação correta. Assim como não é uma situação correta o atual presidente do Banco Central sair de uma carreira extremamente bem nutrida no Banco Itaú para ir para o BC. Os diretores do Banco Central sempre são recrutados de bancos privados, e sabem que ao saírem do Banco Central poderão fazer carreira nos bancos privados. Você quer fazer o favor de me explicar que promiscuidade é essa? É como se generais pudessem fazer assim: saem da carreira como major e voltam para a carreira como generais. O que você acha? Isso é muito complicado e essas questões precisam ser discutidas.
 
"Não se pode fazer com que o ganho do exportador seja aumentar a fome dos brasileiros desempregados"
 
Também não acho correto fazer o país prisioneiro da taxa de câmbio, porque, para proteger a indústria, a taxa de câmbio tem que estar mais alta, mas protegendo a indústria com a taxa mais alta, premia muito além do razoável quem exporta. Então, seria necessário algum imposto de exportação, pois nem isso nós temos no Brasil, e o imposto de importação pode ser aplicado em alguns momentos como diferencial para manter o preço interno e ao mesmo tempo permitir que o exportador ganhe. Mas não se pode fazer com que o ganho do exportador seja aumentar a fome dos brasileiros desempregados. Espero que decisões desse tipo sejam discutidas.
 
Sou contra a política econômica que está sendo executada, o que não quer dizer que eu fosse a favor da política econômica que Dilma fazia. Estamos caminhando em uma direção muito perigosa, aliás, o perigo da situação foi visto com a própria situação que Dilma transmitiu de herança, ou seja, deixou um cenário político em que todas as lideranças dos partidos estão vulneráveis. Portanto, é óbvio que precisa haver um reforma política. Mas dá para fazer a reforma política com os políticos que querem manter seus mandatos? Como fazer a reforma política certamente é o ponto, porém como fazer começa por uma discussão muito séria sobre educação, comida, desemprego, e não com essa discussão de "corta, corta”. Aceito uma taxa de inflação mais alta se não houver desemprego no país porque, como disse, para o desempregado, a taxa de inflação é sempre infinita. Então, se tiver que ter alguma inflação para gerar emprego produtivo, eu estou dentro.
 
Acredito que há emprego produtivo no país para toda a força de trabalho urbana desempregada. E sabe qual é? Não estamos com um mosquito [Aedes Aegypti] pela frente? Por que não fazemos uma frente de trabalho para enfrentar a questão do mosquito na cidade? Poderíamos reduzir poderosamente os locais onde ele pode se multiplicar, como terrenos baldios abandonados e cheios de lixo, construções fechadas. Na verdade, deveríamos estar mobilizando a população disponível para enfrentar o mosquito. Essa questão da saúde pública é prioritária e se começa tentando resolver os problemas de saúde pública e evitar a fome.
 
IHU On-Line - O senhor já presenciou outros momentos de crise no país. Eles se assemelham à atual ou vivemos um momento peculiar?
 
Carlos Lessa – Eu vi outras crises no Brasil e vi uma crise absolutamente colossal, que foi a do início dos anos 1960, porém havia no debate da época uma linha que propunha reformas de base e outra linha que propunha uma paralisação conservadora. Ganhou a paralisação conservadora e ela fez uma coisa que é preciso relembrar: tentou degolar a oposição. Porém, o mais curioso de tudo é que dentro do Golpe Militar houve um segundo Golpe em 1967, ou seja, a verdade é que em quatro anos a situação de 1964 se modificou, mas isso não quer dizer que tenha se modificado para ir para o paraíso.
 
Aliás, nasci em 1936, isto é, na Era Vargas, e acho que o Brasil até 1988 foi um Brasil com Vargas, contra Vargas e sem Vargas, pois Getúlio Vargas se manteve como a expressão de um projeto nacional, que agora acabou. Qual é o projeto? Eu não sei. Qual é a diferença fundamental entre o projeto de Fernando Henrique Cardoso e o projeto do primeiro governo Lula? Qual é a mudança fundamental entre o Lula do segundo mandato e a Dilma do primeiro mandato? Qual é o projeto nacional que anima o Brasil? Em 1988 tivemos um projeto nacional, que era recuperar os direitos que haviam sido afrontados, desprezados e violentados no processo autoritário, e nós queríamos melhorar a questão social. Eu interpreto que os direitos civis foram recuperados e a tentativa de enfrentar um pouco a questão social foi feita no governo do PT. Porém, qual é o combustível de agora? É o combustível que "mata e esfola”?
 
O Brasil precisa lutar contra a corrupção, porém se luta contra a corrupção lançando mão da violência? Não é por aí. Temos de formar uma consciência contra a corrupção, uma consciência a favor do Brasil e do povo brasileiro.
 
IHU On-Line - Alguns criticaram o BNDES nos últimos anos por conta da sua intervenção e apoio aos gigantes econômicos. O que deu errado no projeto lulista em relação ao BNDES e que mudanças é possível esperar da nova gestão?
 
Carlos Lessa – Essa é uma pergunta extremamente interessante. Diria que o BNDES é visto, no atual governo, como uma roda quase inútil, porque a ideia de que o investimento privado é compatível com o clima de cortes e de redução dos fundos disponíveis é uma característica da visão neoliberal. Essa moça que virou a presidente do BNDES [Maria Silvia Bastos Marques] é uma neoliberal e creio que ela fará a lição de casa, que é rigorosamente atrofiar as operações do BNDES. Agora, isso não quer dizer que eu faça minha a orientação que foi dada ao BNDES no período que vai praticamente de 2005 até agora; não faço.
 
O Brasil apoiar as atividades dos grandes grupos brasileiros ligados à exportação de produtos brasileiros não é uma ideia errada. A ideia errada é fazer isso sem nenhum critério com respeito a investimento dentro do Brasil. Por exemplo, só para mencionar o exemplo da Petrobras, a compra da refinaria de Pasadena e a compra da refinaria do Japão são erros imensos, porque o que tínhamos de fazer era desenvolver internamente as atividades energéticas no Brasil, ao invés de comprar ativos duvidosos no exterior, que já viraram hiperduvidosos. Além disso, houve corrupção.
 
Se somarmos os erros estratégicos e a corrupção, teremos uma equação muito ruim. No entanto, a Petrobras é um sucesso, apesar de tudo. Aliás, a coisa que mais me chamou a atenção foi que nos últimos meses a Petrobras foi a companhia brasileira – das listadas na bolsa de valores - que mais recebeu novos acionistas, e isso é uma indicação de que o povo brasileiro aplaudiria se o governo retornasse as ações que foram mandadas para o exterior.
 
Também considero que a fusão da Petrobras e da Eletrobrás seria fundamental para o nosso Brasil; sou favorável a uma empresa chamada "Energibras”, mas com diretores de carreira. A ideia do cargo em comissão é do cargo que chega com o governo para dar marca daquele governo, porém as funções de Estado são funções de carreira. Nós poderíamos começar a discutir a gestão pública para a democracia, não? Esse é um filão importante para ser explorado.
 
"Os Estados Unidos não estão moribundos, mas estão tendo uma 'visita da saúde' do velho espírito norte-americano com Trump"
 
IHU On-Line – Vislumbra mudanças na política externa brasileira com o novo governo? Alguns têm feito críticas à postura que está se adotando em relação ao Mercosul. O que o senhor tem percebido e avaliado?
 
Carlos Lessa – Estou muito preocupado por uma razão: a diplomacia brasileira não está interpretando corretamente, no momento, a situação mundial. Creio que tende, sim, a mudar, e mudar para pior. Não penso que o governo Lula tenha sido um governo brilhante, mas pelo menos tentou afirmar a soberania brasileira nas relações internacionais.
 
Como abriremos mão do Mercosul? Como abriremos mão do sonho da integração sul-americana em um mundo que está cada vez mais vivendo uma situação geopolítica complicadíssima? Há um projeto Eurasiano que torna a América do Sul mais marginal e mais marginalizada, uma navegação pelo Ártico, deslocando a navegação do Cabo, na verdade, tornando, ao meu juízo, a América do Sul mais ao Sul do mundo.
 
Nós temos nos Estados Unidos uma ressurgência do velho espírito norte-americano com a candidatura do [Donald] Trump, que se propõe, explicitamente, a fazer um muro em relação ao resto do mundo e especialmente em relação aos latino-americanos. Nós estamos vendo uma desagregação do chamado bloco Anglo-saxão, em que a Inglaterra não sabe se vai ou se fica, se fica ou se vai; mas se for ou não for, Estados Unidos e Europa caminharão em uma ou outra direção. Agora, vemos a Europa, claramente, em uma das alternativas caminhando para a Eurasia.
 
Nós estamos no Atlântico Sul, com uma enorme perda de trabalho do pré-sal, no baixo ventre da economia norte-americana, com Trump falando de levantar um muro. Dialeticamente pode ser que a vitória do Trump favoreça o Brasil no sentido de pensarmos de novo mais a nação brasileira, porque a vitória do Trump colocará a nação dos Estados Unidos em pauta como uma força muito grande. Eu não acho que a vitória do Trump, se acontecer, será qualquer catástrofe, acredito que não haverá guerra mundial com ele; o Estado norte-americano é suficientemente inteligente para impedir uma coisa dessas. No entanto, creio que o nacionalismo norte-americano será politicamente uma diversão "re-dominante” e rearticulada do mundo.
 
Antigamente havia uma expressão chamada "visita da saúde”, ou seja, quando um moribundo está péssimo, poucos dias antes do falecimento, apresenta uma melhoria. Os Estados Unidos não estão moribundos, mas estão tendo uma "visita da saúde” do velho espírito norte-americano com Trump. Para nós, isso é hostil, mas a hostilidade fará com que tenhamos consciência da importância de reforçar os laços com nossos irmãos sul-americanos e africanos. Tenho a impressão de que os dados geopolíticos do mundo se modificarão muito, e o Brasil pode ter brechas aí.