Carlos D'Incao
Para entender o que está
ocorrendo na Venezuela nos dias de hoje é preciso - em primeiro lugar - jogar
fora praticamente tudo o que está sendo publicado e divulgado pela mídia
nacional e internacional.
Em segundo lugar, é
fundamental compreender que a atual crise venezuelana segue antigas e sólidas
leis históricas que geralmente aparecem de forma velada e subterrânea, entre
elas destacamos a lei dialética das contradições de classes.
Hoje, na Venezuela, essas
contradições se converteram na única guerra legítima de nossos tempos: a guerra
de classes.
Em uma breve síntese é
importante lembrarmos que a democracia burguesa venezuelana - que como qualquer
democracia burguesa nunca foi e nunca será inexpugnável - falhou em seus
mecanismos tradicionais de contenção das forças progressistas. Ela
"permitiu" que, em 1999, Hugo Chávez fosse eleito presidente da
República, com um significativo apoio parlamentar.
Desde então, a Venezuela
entrou em um processo gradual de transformação social, política e econômica em
direção ao socialismo. Não faltaram tentativas de boicote e golpes de Estado
contra o novo líder bolivariano, dirigidos por uma elite reacionária que não
aceitava a perda de seus privilégios.
Mas, Hugo Chávez conseguiu se
manter no poder porque possuía apoio das Forças Armadas, suporte nas massas
trabalhadoras, e dirigia uma economia que vivia as benesses do ciclo das
commodities - com o valor do barril de petróleo (seu principal produto de
exportação e sua principal fonte de divisas) ultrapassando a barreira dos cem
dólares.
Uma nova Venezuela foi se
edificando nessa conjuntura. Em poucos anos as reformas chavistas eliminaram a
pobreza extrema, reduziram brutalmente o déficit habitacional, erradicaram o
analfabetismo e aumentaram significativamente o poder e o padrão de consumo da
população.
Porém, Chávez sabia que o
mesmo petróleo que gerava as receitas para as suas reformas sociais
progressistas, também travava o desenvolvimento industrial local do país e sua
soberania alimentar. Isso porque as divisas vindas do petróleo eram tão fartas
que era mais barato importar alimentos e produtos industrializados, do que
produzi-los no próprio país.
Para tentar equacionar essa
contradição, seu governo tratou de incentivar e pôr em prática uma profunda
reforma agrária e iniciar um processo de subsídios para a edificação de um
parque industrial para a produção de artigos industrializados que iriam de
eletrodomésticos a veículos automotores.
Sua morte no ano de 2013 marcou
não só o início de um vazio político na Venezuela, como também marcou o já
previsto (e temido) fim do ciclo exuberante das commodities.
O barril de petróleo
despencou e a economia venezuelana entrou em estado deficitário. Por uma margem
ínfima de votos, Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, venceu as eleições
presidenciais contra Henrique Caprilles, o político das elites tradicionais.
Nesse momento, então, a
burguesia venezuelana, com o apoio dos EUA e outras nações reacionárias do Cone
Sul, começou a articular um processo de guerra econômica para desestabilizar
politicamente o governo de Maduro. E essa guerra foi, e continua sendo,
brutal...
O setor de importação, em boa
parte nas mãos da burguesia conservadora, iniciou um processo de especulação de
produtos de gêneros básicos de modo a deixá-los caros e escassos. Isso gerou
uma espiral inflacionária e um enorme pânico na população que partiu para as
ruas à procura de produtos possíveis de serem estocados em seus lares, na
máxima quantidade possível.
O governo de Maduro respondeu
a isso em várias frentes.
A medida imediata de maior
envergadura foi a aprovação de uma lei que possibilita o confisco de produtos e
a estatização de empresas que realizam a especulação de produtos de gêneros
básicos. Seguidamente, ampliou os supermercados populares com preços
subsidiados, para pressionar os especuladores.
Por fim, estabeleceu um
câmbio artificial supervalorizado, especialmente feito para comprar das
empresas privadas produtos importados (com preço em dólar), usando a moeda
local, o bolívar.
Obviamente, a burguesia
venezuelana esperneou e o gigante do norte entrou em ação.
Em uma medida radical, os EUA
deixaram de aceitar o bolívar para a venda de produtos industrializados. Esse
boicote foi seguido pelos tradicionais países subservientes da América Latina,
como a Colômbia e o Panamá.
Soma-se a isso o fato de que
a burguesia venezuelana iniciou um processo de fuga de capitais para os EUA
gerando, inevitavelmente, a quebra da política de câmbio artificial.
Com uma inflação fora de
controle, o governo aumentou os salários em níveis estratosféricos. Ao mesmo
tempo, para tentar frear a fuga de capitais estabeleceu o confisco de poupanças
e contas-correntes com lastro em países estrangeiros e acabou por estatizar
todo o processo de distribuição de alimentos.
Ainda assim, o clima de caos
econômico deu à direita 2/3 do Parlamento venezuelano, na primeira derrota do
chavismo desde 1999. Com esse poder político, o Parlamento poderia, entre
outras coisas, abolir os decretos de Maduro contra a guerra econômica e
adiantar as eleições presidenciais.
Desde 2015, esse cenário de
caos ficou estabelecido e, nos cálculos da direita venezuelana, Maduro iria
"sangrar" até as eleições presidenciais, quando seria substituído por
um presidente conservador, através de um processo eleitoral tradicional.
O que as elites venezuelanas
não esperavam eram algumas mudanças conjunturais, quais sejam: a volta da
valorização do barril de petróleo; o apoio militar da Rússia, e o apoio
econômico da China ao governo de Maduro.
Tudo isso tornou possível o
início da reestruturação da economia venezuelana com a retomada do
abastecimento de todos os gêneros alimentícios e dinheiro suficiente para se
estabelecer uma reserva cambial capaz de controlar a inflação.
Nesse momento, a direita
"surtou de vez" e partiu para a violência aberta contra o governo,
como estamos observando hoje. Os grandes meios de comunicação veiculam de forma
manipuladora fatos e imagens de um período passado, onde havia uma crise de
abastecimento, que hoje está em processo final de superação.
É importante salientar que a
opinião pública internacional tem relevância, pois a elite venezuelana sonha
conseguir aprovar na ONU um boicote econômico aos moldes do que foi feito no
Iraque de Saddam Hussein, estrangulando de vez a economia venezuelana até a
deposição do presidente Nicolás Maduro.
Nas ruas, as elites começaram
a organizar e incitar parte da população para realizar manifestações violentas
e extremadas na qual resultaram mais de 130 pessoas mortas, dentre as quais
mais de 100 chavistas, detalhe convenientemente ocultado pelos grandes meios de
comunicação.
Por outro lado, o Parlamento,
dominado pela direita, abandonou suas funções legislativas e entrou em estado
de desobediência civil, negando-se a acatar qualquer decreto presidencial.
O presidente Maduro respondeu
a esses ataques com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
As eleições para a Assembleia
Constituinte ocorreram em 31 de julho último. A sua composição é formada por
uma esmagadora maioria de chavistas. Pretendem os deputados constituintes superar
a democracia burguesa venezuelana, estabelecendo um regime de participação
popular setorial, com maiores poderes para as forças armadas bolivarianas, às
milícias populares e as organizações sociais.
Com isso, a Revolução
Bolivariana pretende derrotar burguesia venezuelana e acionar um processo de
construção do socialismo.
As acusações de que o
presidente Nicolás Maduro rompeu as "regras do jogo democrático" são
verdadeiras, mas deve-se atentar ao fato de que ele está rompendo com "o
jogo das oligarquias tradicionais dominantes".
Além do mais, uma elite
reacionária, golpista e sabotadora - como é a elite venezuelana - não tem moral
para falar de "jogo democrático".
Se a Revolução Bolivariana
será bem sucedida ou não nessa empreitada é uma questão a ser respondida por
futurologistas. O que já é possível afirmar é que, no mínimo, Maduro não cairá
tão facilmente.
A última chance que a direita
venezuelana possui é tentar - com o apoio dos EUA - criar um ambiente de guerra
civil no seu próprio país. Um ponto muito controvertido. Afinal o governo Trump
é odiado por quase todos os povos do mundo e já possui problemas nacionais e
internacionais em uma escala suficiente.
Os dirigentes da Revolução
Bolivariana sabem disso e não querem perder tempo.
Pouco importa as difamações e
ações dos EUA, o governo revolucionário não vai parar. Ressalte-se que, entre
as difamações destaca-se o patético congelamento das contas de Maduro, como se
ele tivesse alguma conta nos EUA. Na verdade, uma tentativa clássica de tentar
fazer com que ele se pareça com os ditadores bilionários do Oriente Médio. Nicolás
Maduro teve como única renda, ao longo da maior parte de sua vida, um modesto salário
de condutor de trens.
Pouco importa também se parte
da "esquerda" latino-americana como outros partidos socialistas
"Nutella", falem mal do que está ocorrendo na Venezuela e faça coro
com os grandes meios de comunicação e com aqueles que acreditam nas
instituições burguesas. A "esquerda" inocente que acredita nas
falácias de um possível "capitalismo renano" onde todos vão viver
felizes, como na Dinamarca, daqui a 500 anos.
A verdade é que a Revolução Bolivariana
atingiu o seu ponto decisivo. Ou a Venezuela se tornará o segundo país
socialista da América Latina ou terá o seu fim em um banho de sangue muito mais
violento do que o que ocorreu no Chile de Salvador Allende. E Maduro parece, ao
contrário de Allende, ter ouvido Fidel Castro.
Fidel sempre salientou que a
Revolução Socialista, no fim, é a única solução para os povos da América
Latina. E ela não acontecerá sem sofrimento, não ocorrerá sem sacrifícios e
muito menos, sem romper profundamente com as regras do jogo dos sistemas
políticos viciados criados por nossas oligarquias.
E lembremos sempre, a
Revolução não será televisionada.
Não será celebrada pela CNN,
pela BBC e muito menos pela Rede Globo de televisão.
Ela acontecerá nas ruas e passará
pelos olhos daqueles que não apenas sabem ver, mas, sobretudo, conseguem
enxergar.
* Carlos D'Incao é
historiador