domingo, 6 de agosto de 2017

Savonarola e o destino do inquisidor

História

A
Savonarola e o destino do inquisidor

por Nirlando Beirão — publicado 06/08/2017 00h15, última modificação 04/08/2017 16h47
O abade dominicano acabou fritado na mesma fogueira em que assava os “hereges” e “corruptos”

Savonara
Piazza della Signoria, 23 de maio de 1498. O frade Savonarola e dois discípulos encaram as chamas


Mesmo depois de punido por uma morte infame, o abade dominicano Girolamo Savonarola foi tido na conta de santo por muitos cidadãos de Florença. Fim do século XV, 1498: o destino do lunático fora selado.
Mas, antes, Savonarola incendiara a têmpera da comuna com o combate sem trégua aos “ímpios e pecadores” e com a doutrina de higienização ética que expelisse do convívio social – de preferência de forma exemplarmente violenta – os dissidentes do establishment.
Teve legiões de seguidores apalermados – e assustados – e virou a seu favor a opinião pública de uma Florença, no entanto, culta e sofisticada. Perseguidor implacável dos pretensos hereges, foi condenado por heresia.
Inquisidores de todas as épocas são terroristas por vocação, disseminam o pânico e proclamam sentenças em nome de uma primazia moral fundada no delírio sadomasoquista de uma missão purgativa ditada pelo Céu – em certos casos, pelo “mercado”.
São gente, em geral, muito doente da cabeça e, quando não, passageiros da hipocrisia e do farisaísmo. Jogam para a plateia, até que a plateia, de tanto manipular o exibicionismo deles, se cansa do jogo. Antes mesmo do definitivo julgamento da História, costumam dar-se mal.
Savonarola é o mais notável chefe de uma escola que, ao longo dos séculos, aflorou aqui em ali, em Salem, Massachusetts, perseguindo bruxas, ou na Alemanha nazista, dizimando os judeus; em Washington, DC, com o senador Joe McCarthy, caçando comunistas nas telas e debaixo da cama, ou na República curitibana da Lava Jato, fanatizada pelos holofotes da mídia reacionária.
Procedia Savonarola, precursor de Moro e Dallagnol, de uma família tradicional de Ferrara, na região da Emilia Romagna. Foi educado nas manhas da escolástica e esmerou-se nas contorções enganosas do silogismo.
Francesco Guicciardini, seu contemporâneo, anota em História de Florença sua “retórica eloquente”. Savonarola era, de fato, impetuoso e suas aparições públicas logo revelaram um extremista. Tinha sangue nos olhos. Soube aproveitar o vácuo político a seu favor.
Lorenzo di Medici, o Magnífico, morrera. O filho e sucessor, Piero, revelou-se um desastre. O exército francês do rei Carlos VIII cruzara os Alpes e se preparava para invadir Florença. Os florentinos entraram em pânico.
“Em tais circunstâncias”, escreveu o historiador Michael White, de Oxford, especialista em Renascimento, “é frequente que um indivíduo com carisma extraordinário, uma mensagem forte e alguma inteligência possa segurar as rédeas do poder e se levantar mais alto e mais rápido que qualquer um poderia ter sonhado em tempos mais simples e calmos”.
Florença era uma república desde 1115. Uma república da elite, mas, ainda assim, com leves concessões de representação popular. Setenta mil habitantes haviam sobrevivido à devastação da Peste Negra, no fim do século XIV.
“Existe liberdade igual para todos”, exagerou, em 1428, Leonardo Bruni, um entusiasta de Florença. “A esperança de ter altos cargos e de ascender é a mesma para todos.” Era, de todo modo, a mais liberal das cidades-Estado da Península, com a possível exceção de Veneza.
A democracia não estava na agenda afetiva de um homem que deixou de se ver como político e passou a pregar como se fosse um profeta, imprecando contra a devassidão moral, do alto do balcão do Palazzo Vecchio, para multidões aglomeradas na Piazza della Signoria, dispostos, tanto os ricos quanto o populacho, a embarcar na fantasia de um regime teocrático intermediado por Savonarola.
Ele falava em dialeto toscano, o que ampliava o apelo de sua oratória inflamada. Especialmente depois de ter sido chamado às falas pelo papa Alexandre VI, em 1495, o frade passou a guiar suas decisões terrenas por visões sobrenaturais – que ele anotava minuciosamente em seu Compendium Revelationum.
Convocado em Roma, recusou-se a ir a acabou por romper com o Vaticano. Anunciou que Florença era “a nova Jerusalém”, “a cidade de Cristo”, centro de uma cristandade purgada de seus pecados.

Fetiche de todo bom inquisidor, logo Savonarola acendeu sua fogueira. Ali, passou a queimar obras de arte e objetos considerados produtos da vaidade humana, luxo desnecessário ou peças imorais.
Jogou nas brasas obras clássicas de Dante, Boccaccio e Ovídio. Não custou muito para condenar à fogueira todo aquele que insurgisse contra sua ditadura alucinada. Artistas, escritores e livres-pensadores sofreram na pele o desatino da fé.

Pouco a pouco, os florentinos começaram a pressentir que haviam sido feitos do patos e aos entrechoques entre as tradicionais facções do poder (Bianchi, Bigi, Arrabiati, Frateschi, Piagnoni) veio se juntar a progressiva ofensiva movida pelo ofendido papa Alexandre VI. Em maio de 1497, Savonarola foi excomungado.
Mesmo num Estado laico como Florença, esse tipo de ordálio traz consequências. O que começara como promessa havia se degenerado em horrível distorção de um governo civilizado. A intolerância e a injustiça têm, às vezes, pernas curtas.
Savonarola
Sempre de preto, o fanático Savonarola acendeu a sua fogueira. Queimava dissidentes e livros (Foto: Alamy/Fotoarena)
A danação de Savonarola aguçou-se quando seu aliado mais influente, o rei francês Carlos VIII, com o qual havia negociado uma trégua, morreu subitamente. O sacerdote celerado logo iria saborear seu próprio veneno.
Foi preso e torturado, confessou que forjara as tais “visões” e, juntamente com dois seguidores próximos, igualmente frades, foi enforcado e depois assado na Piazza della Signoria, em 23 de maio de 1498, na mesma grelha em que assara seus desafetos.
Florença começou a cicatrizar as feridas e, com o necessário mea-culpa, se refazer da ressaca, com caras novas e propósitos arejados. Entrava em cena na vida pública, como secretário da Segunda Chancelaria, um jovem chamado Nicolau Maquiavel.
Sai Savonarola, entra Maquiavel – difícil engolir sem amargura a insuportável superioridade intelectual dessa Florença, quando, em outros cenários de brutalidade inquisitória, se sai Sergio Moro entra Gilmar Mendes.

Realmente devemos a modernidade ao capitalismo?


Realmente devemos a modernidade ao capitalismo?



05 Agosto 2017

“Ainda que Marx e Edison sejam a consequência do capitalismo, nenhuma grande revolução científica do Renascimento e da Era Moderna (AverróisCopérnicoKeplerGalileuPascalNewtonEinsteinTuringHawking) se deveu a esse sistema. O capitalismo selvagem produziu muito capital e muitos Donald Trump, mas muito poucos gênios”, escreve Jorge Majfud, escritor uruguaio, professor em Jacksonville University, em artigo publicado por Página/12, 04-08-2017. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.

Uma das afirmações que os apologistas do capitalismo mais repetem e menos se questiona é aquela que afirma que este foi o sistema que mais riqueza e mais progresso criou na história. Devemos a ele a Internet, os aviões, o YouTube, os computadores a partir dos quais escrevemos e o todo o avanço médico e as liberdades sociais e individuais que podemos encontrar hoje.

O capitalismo não é o pior, nem o menos criminoso dos sistemas que já existiram, mas esta interpretação arrogante é, também, um sequestro da história pela ignorância.

Em termos absolutos, o capitalismo é o período (não o sistema) que produziu mais riqueza na história. Esta verdade seria suficiente, se não a considerássemos tão enganosa como quando, nos anos 1990, um ministro uruguaio se ufanava de que em seu governo haviam sido vendidos mais celulares que no restante da história do país.

A chegada do homem à Lua não foi simples consequência do capitalismo. Para começar, nem as universidades públicas e nem as privadas são, em seus fundamentos, empresas capitalistas (exceto alguns poucos exemplos, como o fiasco da Trump University). A NASA também nunca foi uma empresa privada, mas estatal e, além do mais, se desenvolveu graças à prévia contratação de mais de 1.000 engenheiros alemães, entre eles Wernher von Braun, que haviam experimentado e aperfeiçoado a tecnologia de foguetes nos laboratórios de Hitler, que investiu fortunas (é verdade, com alguma ajuda econômica e moral das grandes empresas norte-americanas). Tudo, dinheiro e planejamento, foi estatal.

União Soviética, sobretudo sob o comando de um ditador como Stalin, ganhou a corrida espacial ao colocar, pela primeira vez na história, o primeiro satélite, a primeira cachorra e até o primeiro homem na órbita, doze anos antes do Apollo 11 e apenas quarenta anos após a revolução que converteu um país atrasado e rural, como a Rússia, em uma potência militar e industrial, em algumas poucas décadas. Nada disso se entende como capitalismo.

Claro, o sistema soviético foi responsável por muitos pecados morais. Crimes. Mas, não são as deficiências morais as que distinguiam o comunismo burocrático do capitalismo. O capitalismo só se associa com as democracias e os Direitos Humanos por uma narrativa, repetitiva e cruciante (teorizada pelos Friedman e praticada pelos Pinochet), mas a história demonstra que pode conviver perfeitamente com uma democracia liberal; com as genocidas ditaduras latino-americanas que precederam o pretexto da guerra contra o comunismo; com governos comunistas como China e Vietnã; com sistemas racistas como África do Sul; com impérios destruidores de democracias e de milhões de habitantes na Ásia, África e América Latina, como foram, nos séculos XIX e XX, Inglaterra, Bélgica, Estados Unidos, França, etc.

A chegada à Lua, assim como a criação da Internet e os computadores, que são atribuídas ao capitalismo, foram basicamente (e, em certos casos, unicamente) projetos de governos, não de empresas como Apple ou Microsoft. Nenhum dos cientistas que trabalharam nesses revolucionários programas tecnológicos, agiu como empresário ou buscando se tornar ricos. De fato, muitos deles eram ideologicamente anticapitalistas, como Einstein, etc. A maioria era formada de professores assalariados, não os agora venerados entrepreneurs.

A esta realidade há que acrescentar outros fatos e um conceito básico: nada disto surgiu do zero, no século XIX ou no século XX. A energia atômica e as bombas são filhas diretas das especulações e dos experimentos imaginários de Albert Einstein, seguido de outros gênios assalariados. A chegada do homem à Lua teria sido impossível sem conceitos básicos como a Terceira lei de Newton. Nem Einstein e nem Newton teriam desenvolvido suas maravilhosas matemáticas superiores (nenhuma delas por causa do capitalismo) sem um conjunto de descobertas matemáticas introduzidas por outras culturas, séculos antes. Alguém consegue imaginar o cálculo infinitesimal sem o conceito de zero, sem os números arábicos e sem a álgebra (al-jabr), para nomear alguns poucos?

Os algoritmos que os computadores e os sistemas de internet utilizam não foram criados nem por um capitalista, nem em qualquer período capitalista, mas séculos atrás. Conceitualmente, foi desenvolvido em Bagdá, a capital das ciências, por um matemático muçulmano de origem persa, no século IX, chamado, precisamente,  Al-Juarismi. Segundo Oriana Fallaci, essa cultura não deu nada às ciências (ironicamente, o capitalismo nasce no mundo muçulmano e o mundo cristão o desenvolve).

Nem o alfabeto fenício, nem o comércio, nem as repúblicas, nem as democracias surgiram no período capitalista, mas em dezenas de séculos antes. Nem sequer a imprensa em suas diferentes versões alemãs e chinesas, uma invenção mais revolucionária do que o Google, foi graças ao capitalismo. Nem a pólvora, nem o dinheiro, nem os cheques, nem a liberdade de expressão.

Ainda que Marx e Edison sejam a consequência do capitalismo, nenhuma grande revolução científica do Renascimento e da Era Moderna (AverróisCopérnicoKeplerGalileuPascalNewtonEinsteinTuringHawking) se deveu a esse sistema. O capitalismo selvagem produziu muito capital e muitos Donald Trump, mas muito poucos gênios.

Isto sem falar de descobertas mais práticas, como a alavanca, o parafuso ou a hidrostática de Arquimedes, há 2.300 anos. Ou a bússola do século IX, uma das descobertas mais importantes na história da humanidade, de longe muito mais importante do que qualquer telefone inteligente. Ou a roda, que vem sendo utilizada no Oriente há 6.000 anos e que ainda não saiu de moda.

É claro que entre a invenção da roda e a invenção da bússola passaram vários séculos. Mas, o tão vangloriado “vertiginoso progresso” do período capitalista não é nenhuma novidade. Exceto períodos de catástrofe como o foi o da peste negra, durante o século XIV, a humanidade veio acelerando o surgimento de novas tecnologias e de recursos disponíveis para uma crescente parte da população, como, por exemplo, as diferentes revoluções agrícolas. Não é necessário ser um gênio para advertir que essa aceleração se deve à acumulação de conhecimento e à liberdade intelectual.

Na Europa, o dinheiro e o capitalismo significaram um progresso social diante da estática ordem feudal na Idade Média. Mas, logo se tornaram o motor de genocídios coloniais e, depois, em uma nova forma de feudalismo, como o do século XXI, como uma aristocracia financeira (um punhado de famílias acumulam a maior parte da riqueza em países ricos e pobres), com duques e condes políticos e com vilões e vassalos desmobilizados.

O capitalismo capitalizou (e os capitalistas sequestraram) séculos de progresso social, científico e tecnológico. Por essa razão, e por ser o sistema global dominante, foi capaz de produzir mais riqueza que os sistemas anteriores.

O capitalismo não é o sistema de alguns países. É o sistema hegemônico do mundo. É possível abrandar seus problemas, é possível desmantelar seus mitos, mas não é possível eliminá-lo, enquanto não entrar em sua crise ou declive, como o feudalismo. Até que seja substituído por outro sistema. Isso no caso de que reste planeta ou humanidade. Porque o capitalismo também é o único sistema que colocou a espécie humana à beira da catástrofe global.


Fonte: Revista IHU On Line

Achille Mbembe: “A era do humanismo está terminando”


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24 Janeiro 2017

“Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo”, escreve Achille Mbembe. E faz um alerta: “A crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização”.

Achille Mbembe (1957, Camarões francês) é historiador, pensador pós-colonial e cientista político; estudou na França na década de 1980 e depois ensinou na África(África do Sul, Senegal) e Estados Unidos. Atualmente, ensina no Wits Institute for Social and Economic Research (Universidade de Witwatersrand, África do Sul). Ele publicou Les Jeunes et l'ordre politique en Afrique noire (1985), La naissance du maquis dans le Sud-Cameroun. 1920-1960: histoire des usages de la raison en colonie (1996), De la Postcolonie, essai sur l'imagination politique dans l'Afrique contemporaine (2000), Du gouvernement prive indirect(2000), Sortir de la grande nuit – Essai sur l'Afrique décolonisée (2010), Critique de la raison nègre (2013). Seu novo livro, The Politics of Enmity, será publicado pela Duke University Press neste ano de 2017.
O artigo foi publicado, originalmente, em inglês, no dia 22-12-2016, no sítio do Mail & Guardian, da África do Sul, sob o título "The age of humanism is ending" e traduzido para o espanhol e publicado por Contemporeafilosofia.blogspot.com, 31-12-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Não há sinais de que 2017 seja muito diferente de 2016.

Sob a ocupação israelense por décadas, Gaza continuará a ser a maior prisão a céu aberto do mundo.

Nos Estados Unidos, o assassinato de negros pela polícia continuará ininterruptamente e mais centenas de milhares se juntarão aos que já estão alojados no complexo industrial-carcerário que foi instalado após a escravidão das plantações e as leis de Jim Crow.

Europa continuará sua lenta descida ao autoritarismo liberal ou o que o teórico cultural Stuart Hall chamou de populismo autoritário. Apesar dos complexos acordos alcançados nos fóruns internacionais, a destruição ecológica da Terra continuará e a guerra contra o terror se converterá cada vez mais em uma guerra de extermínio entre as várias formas de niilismo.

As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais.

A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última instância, a coisa certa.

Com o triunfo desta aproximação neodarwiniana para fazer história, o apartheid, sob diversas modulações, será restaurado como a nova velha norma. Sua restauração abrirá caminho para novos impulsos separatistas, para a construção de mais muros, para a militarização de mais fronteiras, para formas mortais de policiamento, para guerras mais assimétricas, para alianças quebradas e para inumeráveis divisões internas, inclusive em democracias estabelecidas.

Nenhuma das alternativas acima é acidental. Em qualquer caso, é um sintoma de mudanças estruturais, mudanças que se farão cada vez mais evidentes à medida que o novo século se desenrolar. O mundo como o conhecemos desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os longos anos da descolonização, a Guerra Fria e a derrota do comunismo, esse mundo acabou.

Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo.

O capitalismo e a democracia liberal triunfaram sobre o fascismo em 1945 e sobre o comunismo no começo dos anos 1990 com a queda da União Soviética. Com a dissolução da União Soviética e o advento da globalização, seus destinos foram desenredados. A crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização.

Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. Combinando os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo compartilharam relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra – a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.

Cada um destes artigos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. É provável que o choque entre estas duas ideias e princípios seja o acontecimento mais significativo da paisagem política da primeira metade do século XXI, uma paisagem formada menos pela regra da razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e afetos.

Nesta nova paisagem, o conhecimento será definido como conhecimento para o mercado. O próprio mercado será re-imaginado como o mecanismo principal para a validação da verdade. Como os mercados estão se transformam cada vez mais em estruturas e tecnologias algorítmicas, o único conhecimento útil será algorítmico. Em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão tudo o que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão derivados principalmente da computação. Como resultado da confusão de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa que não tiver nada para vender.

A noção humanística e iluminista do sujeito racional capaz de deliberação e escolha será substituída pela do consumidor conscientemente deliberante e eleitor. Já em construção, um novo tipo de vontade humana triunfará. Este não será o indivíduo liberal que, não faz muito tempo, acreditamos que poderia ser o tema da democracia. O novo ser humano será constituído através e dentro das tecnologias digitais e dos meios computacionais.

A era computacional – a era do Facebook, Instagram, Twitter – é dominada pela ideia de que há quadros negros limpos no inconsciente. As formas dos novos meios não só levantaram a tampa que as eras culturais anteriores colocaram sobre o inconsciente, mas se converteram nas novas infraestruturas do inconsciente. Ontem, a sociabilidade humana consistia em manter os limites sobre o inconsciente. Pois produzir o social significava exercer vigilância sobre nós mesmos, ou delegar a autoridades específicas o direito de fazer cumprir tal vigilância. A isto se chamava de repressão.

A principal função da repressão era estabelecer as condições para a sublimação. Nem todos os desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser dito ou feito. A capacidade de limitar-se a si mesmo era a essência da própria liberdade e da liberdade de todos. Em parte graças às formas dos novos meios e à era pós-repressiva que desencadearam, o inconsciente pode agora vagar livremente. A sublimação já não é mais necessária. A linguagem se deslocou. O conteúdo está na forma e a forma está além, ou excedendo o conteúdo. Agora somos levados a acreditar que a mediação já não é necessária.

Isso explica a crescente posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos nos referindo à normalização de um estado social da guerra. Tal estado seria em si mesmo um paradoxo, pois, em todo caso, a guerra leva à dissolução do social. No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes.

O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça existencial. Eles anseiam genuinamente um retorno a certo sentimento de certeza – o sagrado, a hierarquia, a religião e a tradição. Eles acreditam que as nações se transformaram em algo como pântanos que necessitam ser drenados e que o mundo tal como é deve ser levado ao fim. Para que isto aconteça, tudo deve ser limpo. Eles estão convencidos de que só podem se salvar em uma luta violenta para restaurar sua masculinidade, cuja perda atribuem aos mais fracos dentre eles, aos fracos em que não querem se transformar.

Neste contexto, os empreendedores políticos de maior sucesso serão aqueles que falarem de maneira convincente aos perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela globalização e pelas suas identidades arruinadas.

A política se converterá na luta de rua e a razão não importará. Nem os fatos. A política voltará a ser um assunto de sobrevivência brutal em um ambiente ultracompetitivo.

Sob tais condições, o futuro da política de massas de esquerda, progressista e orientada para o futuro, é muito incerto. Em um mundo centrado na objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política.

Se a civilização pode dar lugar a alguma forma de vida política, este é o problema do século XXI.
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