quarta-feira, 13 de julho de 2016

Dívida Pública e Estratégia Nacional - O Brasil na Camisa de Força

Dívida Pública e Estratégia Nacional - O Brasil na Camisa de Força

Cortando onde não se deve e deixando de cortar onde se deveria, estão querendo matar o Estado que foi responsável pelas maiores conquistas dos últimos anos


Mauro Sant'Ayanna - Revista do Brasil
Elza Fiuza/ Agência Brasil

Seguindo a linha de criação de factoides adotada por setores do governo interino – exibe-se a bandeira da “austeridade” com a mão e aumenta-se, com a outra, em mais de R$ 60 bilhões as despesas, proventos e contratações. Uma das novidades da equipe econômica interina é a criação de um “teto” para as despesas do setor público para os próximos 20 anos. A principal desculpa para engessar ainda mais o país – e até mesmo investimentos como os de saúde e educação – é, como sempre, o velho conto da dívida pública. Segundo jornais como O Globo, a dívida bruta do Brasil somou R$ 4,03 trilhões em abril, o equivalente a 67,5% do Produto Interno Bruto (PIB) – e pode avançar ainda mais nos próximos meses por conta do forte déficit fiscal projetado para este ano e pelo nível elevado da taxa de juros (14,25% ao ano).
 
E daí? A pátria do Wall Street Journal, os Estados Unidos, multiplicou, nos primeiros anos do século 21, de US$ 7 trilhões para US$ 23 trilhões a sua dívida pública bruta, que passou de 110% do PIB este ano, e se espera que vá chegar a US$ 26 trilhões em 2020. A Inglaterra, terra sagrada da City e The Economist, que tantas lições tenta dar – por meio de matérias e editoriais imbecis – ao Brasil e aos brasileiros, mais que dobrou a sua dívida pública, de 42% do PIB em 2002 para quase 90%, ou 1,5 trilhão de libras esterlinas (cerca de US$ 2,2 bilhões), em 2014. A da Alemanha também é maior que a nossa, e a da Espanha, e a da Itália, e a do Japão, e a da União Europeia...

Já no Brasil, com todo o alarido e fantástico mito – miseravelmente jamais desmentido pelo partido – de que o PT quebrou o Brasil, a dívida pública em relação ao PIB diminuiu de quase 80% em 2002, para 66,2% do PIB em 2015. Enquanto a dívida líquida caiu de 60% para 35%. E poupamos US$ 414 bilhões desde o fim do malfadado governo de FHC (US$ 40 bilhões pagos ao FMI mais R$ 374 bilhões em reservas em internacionais). E somos um dos dez países mais importantes do board do FMI, e o quarto maior credor individual externo dos Estados Unidos.






Então vamos à inevitável pergunta: por que será que os países mais importantes do mundo e as chamadas nações “desenvolvidas” são, em sua maioria, os mais endividados?

Será que é porque colocam o desenvolvimento na frente dos números? Será que é porque não dão a menor pelota para as agências de classificação de risco, que, aliás, estão a seu serviço, e nunca os “analisaram” ou “rebaixaram” como deveriam? Será que é por que conversam fiado sobre países como o Brasil, mas não cumprem as regras que não param – para usar um termo civilizado – de “jogar” sobre nossas cabeças? Ou será que é porque alguns, como os Estados Unidos, estabelecem seus objetivos nacionais, e não permitem que a conversa fiada de economistas e banqueiros e a manipulação “esperta” de dados, feita também por grupos de mídia que vivem, igualmente, de juros, sabote ou incomode seus planos estratégicos?

Todas as alternativas anteriores podem ser verdadeiras. O que importa não é o limite de gastos. Nações não podem ter amarras na hora de enfrentar desafios emergenciais e, principalmente, de estabelecer suas prioridades em áreas como energia, infraestrutura, pesquisa científica e tecnológica, espaço, defesa. O que interessa é a qualidade do investimento.

Como não parece ser o caso, como estamos vendo, dos reajustes dos mais altos salários da República, e dos juros indecentes que o Estado brasileiro repassa aos bancos, os maiores do mundo. Que tal, senhor ministro Henrique Meirelles, adotar a mesma proposta de teto estabelecida para os gastos públicos exclusivamente para os juros e os respectivos bilhões transferidos pelo erário ao sistema financeiro todos os anos? Juros que não rendem um simples negócio, um prego, um parafuso, um emprego na economia real – ao contrário dos recursos do ­BNDES, que querem estuprar em R$ 100 bilhões para antecipar em “pagamentos” ao Tesouro?

Agora mesmo, como o ministro Meirelles deve saber, os juros para igual efeito na Alemanha – com uma dívida bruta maior que a do Brasil – estão abaixo de zero. Os títulos públicos austríacos e holandeses rendem pouco mais de 0,2% ao ano e os da França, pouco mais de 0,3% porque são países que, mesmo mais endividados que o Brasil, não são loucos de matar sua economia, como fazemos historicamente – e seguimos insistindo nisso, com os juros mais altos do planeta, de mais de 14% ao ano, e outros, ainda mais pornográficos e estratosféricos, para financiamento ao consumo, no cheque especial, no cartão de crédito etc.

A diferença entre países que pensam grande e países que pensam pequeno, senhor ministro Henrique Meirelles, é que os primeiros decidem o que querem fazer, e fazem o que decidiram, sem admitir obstáculo entre eles e os seus objetivos. Enquanto os segundos, por meio da ortodoxia econômica – e do entreguismo –, antes mesmo de pensar no que vão fazer, submetem-se servilmente aos interesses alheios, e criam para si mesmos obstáculos de toda ordem, adotando – como as galinhas com relação à raposa na reforma do galinheiro – o discurso alheio.

Aqui, senhor ministro, não determinamos nem discutimos, nem defendemos interesses nacionais, e quando temos instrumentos que possam nos ajudar eventualmente a atingi-los, como ocorre com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, nos dedicamos a enfraquecê-los e destruí-los.

Cortando onde não se deve e deixando de cortar onde se deveria, estão querendo matar o Estado brasileiro, que, de Brasília a Itaipu, foi responsável pelas maiores conquistas realizadas nos últimos 100 anos – na energia, na mineração, na siderurgia, no transporte, na exploração de petróleo, na defesa, na aeronáutica, na infraestrutura.

Não existe uma só área em que, do ponto de vista estratégico, a iniciativa privada tenha sido superior ao Estado, como fator de indução e de realização do processo de desenvolvimento nacional nesse período – até porque, fora algumas raras, honrosas exceções, ela coloca à frente os seus interesses e não os interesses nacionais.

E é com base justamente na premissa e no discurso contrário, que é falso e mendaz, que se quer justificar uma nova onda de entrega, subserviência e privatismo, com a desculpa de colocar em ordem as contas do país, quando, no frigir dos ovos, nem as contas vão tão mal assim. Basta compará-las às outras nações para perceber isso. As dificuldades existem muito mais no universo nebuloso dos números, que mudam ao sabor dos interesses dos especuladores (onde está a auditoria da dívida?) do que na economia real.

Se a PEC do Teto, como está sendo chamada pelo Congresso, for aprovada, as grandes potências, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha – ainda que mais endividadas que o Estado brasileiro – continuarão progredindo tecnológica e cientificamente, e se armando, e se fortalecendo, militarmente e em outros aspectos, nos próximos anos, enquanto o Brasil ficará, estrategicamente, inviável e imobilizado, e ainda mais distante dos países mais importantes do mundo.

Para enfrentar os desafios de um mundo cada vez mais complexo e competitivo, senhor ministro Henrique­ Meirelles, o Brasil precisa de estratégia, determinação e bom senso. E não de mais camisas de força.




Créditos da foto: Elza Fiuza/ Agência Brasil

Criminalização Golpista e Resistência

Criminalização Golpista e Resistência

No golpe em andamento, a criminalização dos movimentos sociais é um dos recursos a serem utilizados por um MP visivelmente inclinado à direita.


César Guimarães
Beto Barata
Amigas e amigos,
 
Uma CPI da Câmara, de maioria de deputados ruralistas e assemelhados, arrogou-se a quebra do sigilo bancário da ABA e do CIMI, não sem a repulsa do mundo acadêmico, inclusive do iesp/uerj.
 
Sugiro que, no golpe em andamento, e que pode culminar na deposição da Presidente Dilma e na posse do Interino usurpador, a criminalização será – já é – um dos recursos a serem utilizados por um MP visivelmente inclinado à  direita (não me refiro apenas a trêfegos turbinados e midiáticos), o mesmo ocorrendo com a Justiça , não excetuando os tribunais superiores, inclusive o STF.  Os poderes da república, agindo sempre de forma legal, ainda que torpe, já praticam e vão praticar, contra a esquerda e os legalistas, não apenas vaga intimidação, mas efetiva criminalização de  entidades e indivíduos – com custos civis, penais, de defesa e de reputação, porque teremos a grande mídia para transformar entrevistas de promotores em indícios, indícios em provas, provas em denúncias e estas em  sentenças  prolatadas por juízes  em nada afeiçoados ao Estado de Direito.  
 
É a judicialização golpista, que se completa com a caça às bruxas  no serviço público.





 
A resistência, parece-me, consiste na denúncia continuada, inclusive nas ruas e nos locais de trabalho,e a mobilização  dos advogados legalistas, que certamente já hão de estar se organizando.  De resto, imagino, os partidos, sindicatos, movimentos e entidades já estarão mobilizados para este aspecto da resistência.
 
Tomo a  liberdade de fazer um segundo ponto, mais sensível talvez.
 
O golpismo, ou seja, a Direita não só está na ofensiva, como tem amplas chances de vitória  e de implementação seu programa. A melhor formulação do programa econômico-social  está no discurso de posse da preposta chefe do BNDES, Maria Sílvia. É um programa de capitalismo integral, digamos assim, neo-liberalismo é termo leve para a privatização e a mercantilização de tudo e qualquer coisa.
 
A implementação de tais "medidas impopulares", para empregar a linguagem acaciana do Usurpador, requer procedimentos ditatoriais contra as "classes subalternas"  e nossas forças políticas.Requer autoritarismo.
 
Como é sabido, a movimentação golpista unificou a burguesia como um todo (tarefa nada simples), a mídia e os maior parte dos detentores dos poderes da república. Nesta guerra de movimento, eles estão avançando com sucesso, enquanto nós estamos dispersos, fragilizados, sem liderança efetiva, a risco da violência golpista. Ela não virá dos militares – para a violência física bastam as polícias estaduais -, mas desta Coalizão, com suas CPIs, juízes, tribunais, mídia e, claro, o poder executivo.
 
Em seu blog Segunda Opinião, Wanderley Guilherme vem dando conta destes  desenvolvimentos. Os que,no IESP, tiveram a oportunidade de assistir a uma bela exposição do Zé Swako, aprenderam que, na esfera do simbólico, o assassinato de caráter "daquela mulher" (o gênero do golpe) é parte importante da formação de um consenso golpista.
 
O momento, para nós, parece-me, é de resistência  na defesa do Estado Direito e da  democracia representativa, inclusive quanto ao calendário  eleitoral: municipais este ano, gerais em 2018 – sem conversa de emendas constitucionais equivocadamente propostas por boa gente de nosso lado.
 
Capitalismo integral, autoritarismo funcional: este o nome do objetivo golpista.
 
A criminalização golpista vai esperar por agosto, quando muitos  verdugos voltam das férias. A caça às bruxas é violência continuada do Executivo. Não me espantaria se, nas medidas de segurança das Olimpíadas, perseguições tivessem um bom pretexto. Afinal, temos na ABIN especialistas em subversão democrática e no Ministério da Justiça, um expert em repressão nas ruas de São Paulo – tem agora a oportunidade de nacionalizar seus notórios saberes.
 
Vale dizer que antecipo para julho uma ofensiva mais ampla do golpismo – as férias universitárias ajudam, para ficar em um aspecto da questão. Contudo, nossas instituições, organizações e pessoas visadas estão a requerer atenção permanente, vigília continua e disposição para resistir.
 
Julho é um mês barato para os golpistas, há que fazê-lo o mais caro possível. Com a paixão  bem informada de quem não cederá e sabe valer-se das trincheiras adequadas.
 
Com este pequeno texto, estou  a sugerir reflexão sobre os males do presente. 
 
São iminentes ameaças ao convívio democrático.
 
Abraços fraternais
Cesar


Créditos da foto: Beto Barata

Temer presenteia as teles com R$ 17 bilhões

Postado em 09/07/2016 12:43

Temer presenteia as teles com R$ 17 bilhões

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Temer teles
Por Altamiro Borges
Tendo como principal lobista na Câmara Federal o ex-presidente Eduardo Cunha, as poderosas multinacionais das telecomunicações foram acusadas diversas vezes de participarem da trama golpista que resultou no impeachment da presidenta Dilma. Agora, com o Judas Michel Temer, elas serão recompensadas com uma medida que dilapida o patrimônio público. Sem maior escarcéu, o Estadão informou nesta terça-feira (5) que o governo interino pretende “transferir para as teles um patrimônio de R$ 17 bilhões”. A medida escancara os verdadeiros objetivos do “golpe dos corruptos”, bancado pelos ricaços, que serve unicamente aos interesses do grande capital. Somente os “midiotas” caíram na conversa fiada das “pedaladas fiscais” e da “salvação nacional”.
Segundo a reportagem, assinada pelos jornalistas Eduardo Rodrigues e Adriana Fernandes, “o pacote de estímulo à economia que está sendo preparado pelo governo do presidente em exercício Michel Temer inclui mudanças regulatórias nas regras do setor de telecomunicações que podem liberar, nos cálculos da equipe econômica, até R$ 17 bilhões em patrimônio das operadoras… De acordo com uma fonte da equipe econômica, o governo decidiu acelerar o processo de alteração da Lei Geral de Telecomunicações (LGT), que irá substituir o atual modelo de concessões no setor por um novo ambiente, o de autorizações. Com essa mudança legal, os atuais contratos de telefonia fixa que acabariam em 2025 serão reconfigurados, liberando as empresas do setor a investirem sem se preocuparem em ter de devolver ativos para o Estado na próxima década. A devolução desses ativos estava nos contratos de concessão”.
Deixando de lado a retórica técnica do Estadão, um jornal que sempre foi entusiasta do desmonte do Estado, o governo privatista de Michel Temer pretende transferir às teles os imóveis e toda a infraestrutura – os chamados “bens reversíveis” –, que seriam devolvidos após o prazo da concessão pública do serviço. Segundo cálculos preliminares, este patrimônio dos brasileiros vale, atualmente, cerca de R$ 17 bilhões – computando-se os edifícios e as redes de cabos e fibras ópticas. Ele simplesmente será entregue às multinacionais do setor – que hoje prestam um serviço de péssima qualidade, cobram tarifas exorbitantes, auferem lucros astronômicos e transferem fortunas ao exterior. Para o decadente jornal da famiglia Mesquita, que apoiou o golpe, esta medida é positiva:
“Esse conjunto de edifícios, instalações e redes de cabos e fibras hoje estão imobilizados por serem indispensáveis à prestação dos serviços no fim das concessões. Mas, com a mudança na legislação, passariam a ser administrados de maneira idêntica aos ativos de companhias que operam sob o regime privado. Ou seja, poderiam ser vendidos ou dados como garantia na obtenção de financiamentos, alavancando imediatamente a capacidade financeira das teles. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) mantém uma lista atualizada desses ativos, cujo valor se aproxima dos R$ 17 bilhões previstos pelo governo. Segundo auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU), no entanto, esse valor seria de R$ 105 bilhões… A disposição do governo em acelerar o processo de mudança no marco legal pode ajudar a Oi, que no dia 20 de junho entrou com o maior pedido de recuperação judicial da história do País, no valor de R$ 65 bilhões”.
As poderosas multinacionais do setor, as famigeradas teles, agradecem tanta generosidade do serviçal Michel Temer e à pusilânime mídia nativa.

Fonte: Pátria Latina

Galeria F: O cinema político pode iluminar as trevas

Galeria F: O cinema político pode iluminar as trevas

O doc narra a incrível saga de Theodomiro Romeiro dos Santos, preso político que se tornou primeiro condenado à morte, no Brasil republicano.


Léa Maria Aarão Reis*
reprodução
Aos poucos, uma coleção de filmes documentários sobre a ditadura civil-militar do Brasil vai surgindo e montando, como diversas peças, o quebra cabeça ainda inacabado que ilumina, mesmo a contragosto dos realmente poderosos no país – muitos deles ainda vivos e cúmplices diretos da prática do horror de então –, dramas e  histórias individuais de quem foi vítima da violência da época.
 
Galeria F, da diretora Emília Silveira, autora do festejado Setenta, (história da troca de setenta prisioneiros políticos pelo embaixador suíço sequestrado) é um desses filmes. 
 
”Documentário no Brasil é cinema de guerrilha. Pouco dinheiro, muito trabalho, pouco público e uma grande compensação pessoal,” diz Emília, exultante, e com razão, depois de ver inserido o seu trabalho no recente e respeitado festival É Tudo Verdade e agora se preparando para exibi-lo nos festivais de Havana e de San Sebastian, na Espanha, ainda este ano.
 
Galeria F estreia no Brasil neste segundo semestre que se inicia sob os bons auspícios de outro filme de resistência, o da cineasta  Tata Amaral, atualmente em cartaz – o Trago Comigo.





 
doc narra a incrível saga de Theodomiro Romeiro dos Santos, nascido no Rio Grande do Norte, militante da luta política desde os 14 anos, preso político que se tornou primeiro condenado à morte, no Brasil republicano. Sobrevivente da tortura, e depois de nove anos encarcerado, fugiu da Penitenciária Lemos de Brito. Era o tempo da Bahia de Antonio Carlos Magalhães e ele, aos 18 anos, matara um sargento ao ser capturado pelo DOI-CODI baiano. Foi condenado à pena de morte por um tribunal militar.
 
Depois de cumprir nove anos de pena, Theodomiro começou a sofrer ameaças. O objetivo era montar uma farsa para matá-lo dentro da cadeia, supostamente por detentos comuns. Em outros países crescia uma campanha pela imprensa, promovida pela Igreja e pelo Partido Comunista do Brasil – o PCBr ao qual pertencia - para salvá-lo. É  então que o prisioneiro da cela dez, na galeria F, dos presos políticos, decide fugir. 
 
Galeria F refaz com Theo parte do caminho dessa fuga, quase 40 anos depois, através de quatro estados  - quatro mil  e seiscentos quilômetros - antes de seu asilo na embaixada da Nunciatura, em Brasília, seguido do exílio na França. Quem o acompanha nesse road movie revisitando a penitenciária e as fazendas por onde passou, é um dos seus quatro filhos, o Guga, que, pela primeira vez entra em contato direto com a história do pai.
 
Trata-se de mais um filme que “não deixa esquecer o que é um regime autoritário,” lembra Emilia Silveira, ela própria presa durante a ditadura militar. “Eu faço filmes a partir do ponto de vista de personagens que  acreditam que é possível melhorar o mundo. Viver com mais justiça social e em paz.”
 
Galeria F tem o dedo da repórter que Emília foi, no passado, na sua trajetória profissional. O roteiro é de outra jornalista, Margarida Autran. Foi quem a apresentou à história de Theodomiro. Assim como o seu Setenta, que também se fundamenta em entrevistas bem conduzidas, aqui, alguns ex-companheiros de prisão de Theodomiro, localizados na época atual, conversam com ele.
 
No início de Galeria F, são folheados álbuns de imagens, recortes, memórias compartilhadas com a família, em Recife, onde Theodomiro vive em companhia da mulher, filhos e netos como juiz do trabalho aposentado. Sua trajetória parte de Salvador, de carro, e refaz o percurso da fuga através das fazendas de cacau, na época (1979) infestadas por duas pragas: a vassoura de bruxa que assolou, durante anos, as plantações do Sul da Bahia e a polícia de Antonio Carlos Magalhães, radicalmente contrário à Lei da Anistia que viria depois, como se vê no filme,  nas suas aparições na Globo, na época. 
 
Numa das sequências de diálogos de Theo com Haroldo Lima, outro companheiro de prisão e hoje já idoso como ele,  é narrada uma experiência singela do amigo, décadas depois de finda a ditadura. Ela mostra como é fundamental o cultivo da memória histórica para a construção do amadurecimento da democracia brasileira e o conhecimento do povo, em especial dos jovens, do que ocorreu no país durante 21 anos. O oposto ao escândalo da “filosofia’’ do atual ministro interino da Educação inspirado no ator pornográfico Alexandre Frota, ambos defensores da perpetuação da ignorância no ensino escolar.
 
“Um dia, conta Haroldo Lima, “encontrei um grupo de crianças estudantes, e perguntei se já tinham ouvido falar na ditadura do Brasil. Ninguém sabia do que se tratava. A época em que os militares eram governo? Insisti. Nem na escola? Ainda tentei. Nada. Não  tinham a mínima ideia do que se tratava.”
 
A experiência de Lima no filme de Emília forçosamente faz lembrar o historiador Alexis de Tocqueville, citado com frequência nestes tempos sombrios de agora. “Quando o passado não ilumina o futuro, o espírito caminha entre as trevas”, escreveu o visconde. 
 
Theodomiro foi anistiado em 30 de outubro de 2011. Quase meio século depois de ser condenado à morte
 
E Emília prepara seu próximo filme enquanto se prepara também, com certeza, para exibir Galeria Fem escolas e universidades. “Será a biografia político afetiva de Antônio Callado, para marcar o centenário do jornalista,  escritor, dramaturgo que sempre se interessou pelo lado  onde vivem as chamadas minorias.”
 
Fazendo o seu cinema político, ela continua tentando jogar luz nas trevas que assediam, mais uma vez, o Brasil.
 

*Jornalista




Créditos da foto: reprodução

Aquarius, um filme de resistência

Aquarius, um filme de resistência

Aplaudido no festival de Cannes, Aquarius é um filme que a direita quer boicotar porque mostra justamente um Brasil que eles tentam esconder.


Léa Maria Aarão Reis*
reprodução
Aquarius é um filme de resistência,” disse o diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, 48 anos, em entrevista coletiva, esta semana, diante da mesma entusiasmada recepção de público e de crítica com que Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, foi saudado no Festival de Cinema de Cannes em 1964 – outro filme de resistência.
 
A semelhança não pára aí. O clássico filme incendiário de Glauber foi apresentado pela primeira vez, em sessão fechada, no Rio de Janeiro, quatro dias depois do comício de Jango, na Central: 17 de março de 64. Agora, com uma notável atuação de Sonia Braga (ressaltada pela mais respeitada crítica internacional) Aquarius, libelo contra a especulação imobiliária desenfreada que desfigura as grandes cidades brasileiras, parece simbolizar aquilo em que está se transformando a sociedade brasileira como escreveu o crítico do jornal britânico The Guardian, Peter Bradshaw: "Essa rica e misteriosa história brasileira é sobre desintegração social". 
 
Para ele, o roteiro, escrito por Kleber, sobre uma mulher de 66 anos, crítica musical aposentada, em pé de guerra contra uma construtora que quer demolir o prédio em que mora, é "linda" e "surpreendente."
 
Já o crítico brasileiro e editor do site Filme B, Pedro Butcher, lembra que o diretor tem um ”controle absoluto do cinema”, demonstrado em O Som ao Redor, seu primeiro longa- metragem de ficção. 





 
"Toda a mídia do Brasil falou sobre o gesto do protesto,” observa surpreso, o autor de Aquarius, que também é roteirista, tem formação jornalística e já exerceu a crítica de filmes, a respeito do protesto e da denúncia do elenco no tapete vermelho do festival. 
 
“Aproveitar os holofotes de Cannes deu certo", disse nas primeiras entrevistas concedidas depois da exibição oficial. “O filme é de resistência e é um pouco um filme de sobrevivência; mas mais ainda se trata de um filme sobre a energia necessária para existir. Às vezes cansa, mas há que encontrar mais energia para continuar a lutar. Penso que a Sônia entendeu isso logo”. 
 
Outro diretor brasileiro que se apresenta em Cannes este ano, na categoria de documentário, com o filme Cinema Novo, Eryk Rocha, filho de Glauber, comenta que o atentado à produção de cultura sofrida pelo país, neste momento, “revela a falta de visão e de dimensão estratégica da importância da cultura e da educação no Brasil. E talvez elas sejam as duas coisas mais importantes do mundo contemporâneo no século 21. São questões estratégicas de Estado de muitos países desenvolvidos, como aqui na França, e essa fusão de ministérios, no Brasil, revela uma miopia, uma falta de projeto, tanto de cultura quanto de educação.” Eryk foi outro que, em suas entrevistas, se mostrou radicalmente contra o impedimento da presidente Dilma e denunciou o golpe.
 
Na trama, que como afirma o The Guardian, é, de certa forma, uma metáfora do Brasil, “abordando temas como nepotismo, corrupção e cinismo”, Sonia Braga, no seu desempenho do personagem deClara, brilha e deixou fascinados os críticos presentes ao festival. “Clara já é uma das heroínas mais revolucionárias do cinema brasileiro, uma mulher forte como  não se encontra no cinema nesta faixa etária: na sua potência como mãe, na sua potência profissional, na sua potência erótica,” louvou o jornal português O Público. 
 
A inesquecível Dona Flor, por sua vez, comenta: “O problema é com os ricos. Querem tirar a todos tudo o que eles têm e querem fazer as cidades feias,” ela acrescentou, no encontro com a mídia, à afirmação do ator Humberto Carrão, outro do elenco de Aquarius, que fala da “falta de educação dos ricos.” Ambos se referiam ao contexto da personagem no filme, uma sexagenária, a única habitante de um edifício na Praia da Boa Viagem, no Recife dos anos 40, que, não querendo abandonar as suas memórias, torna-se “um foco de resistência para os projetos de uma imobiliária e da sua ferocidade,” como diz O Público.
 
Outros calorosos elogios vêm da revista americana Variety, uma das mais importantes da indústria cinematográfica. Para ela, Sonia está "incomparável" no papel de Clara. O autor do texto, Jay Weissberg, definiu Aquarius como um filme "mais sutil, mas não menos maduro" do que O som ao redor, de quatro anos atrás.
 
Para a jornalista Letícia Constant, do Le Monde, o longa é um forte candidato na corrida pela Palma de Ouro. E a conceituada crítica de cinema do jornal, Isabelle Regnier, considerou Aquarius o melhor filme exibido até agora na competição oficial. O jornal escreve que o diretor pernambucano enfoca os problemas do Brasil contemporâneo com beleza e musicalidade. 
 
Ela considera um gesto "simples e forte” o protesto dos artistas no tapete vermelho: “Faz eco à revolta da personagem Clara, interpretada por Sônia Braga.”
 
O Libération também adorou o filme de Kleber que deve estrear no Brasil ainda no segundo semestre deste ano.  O diário de esquerda destaca que ele apresenta no filme um retrato magnífico dos males da sociedade brasileira por meio da Clara “em luta contra a ganância do capitalismo”. Para o Libé a atuação de Sônia Braga é “resplandecente”.
 
O crítico Luiz Joaquim, do site www.cinemaescrito resume as confluências do filme de Glauber e de Mendonça: “Assim como Deus e o diabo assombrou a todos por mostrar o óbvio no que diz respeito a questões da reforma agrária (e não apenas isso), tão em voga no Brasil daquele ano, Aquarius deverá encantar a todos em função de uma muito bem delineada personagem feminina, sexagenária e determinada a nunca renunciar àquilo que acredita ser o correto - mesmo que para isso precise lutar sozinha contra um gigante milionário em recursos financeiros e políticos.”
 
“Soa familiar?” ele pergunta.
 
Sim. É trágico viver para ver que, 52 anos depois de Glauber, entre lutas, idas e vindas, recuos e vitórias políticas e sociais progressistas, depois de tanto sofrimento, o povo brasileiro, como a Clarado pernambucano Kleber, é acossado pelo espírito da mesma malta que retorna desavergonhada, para desmontar uma jovem democracia. 


Resumindo, para O Público,  Aquarius é um filme sensualíssimo, sereno e sinistro sobre a memória ameaçada. Para a tradicional revista francesa Première, o cineasta Kleber Mendonça Filho traçou uma crônica da sociedade brasileira com “ maestria e uma melancolia impressionantes."


Créditos da foto: reprodução