terça-feira, 17 de abril de 2018

PF INSTAURA INQUÉRITO APÓS OCUPAÇÃO DO MTST A TRIPLEX

A inquisição cria o mártir

Política

Opinião

A inquisição cria o mártir

por Mino Carta — publicado 16/04/2018 00h30, última modificação 13/04/2018 17h08
Desde a sinistra noite de 7 de abril, Lula está preso em Curitiba enquanto o país precipita no abismo do Estado de exceção. E dias piores virão...
Paulo Pinto
Lula
A entrega de Lula nos braços do povo disposto a entrentar a força de choque
Na noite de 19 de abril de 1980, estava eu com o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, Luiz Inácio da Silva, melhor conhecido como Lula, à espera da Polícia Federal, que iria prendê-lo. Ele mostrava-se tão sereno quanto no dia 6 de abril de 2018, antes de se entregar à PF. Trinta e oito anos depois, fui ao sindicato para constatar que Lula não perde a dignidade de presidente, do sindicato e da República.
Quando cheguei, por volta de 1 da tarde da sexta 6, o povaréu já se aglomerava na rua que margeia o prédio do sindicato e uma banda, no palanque erguido em frente à fachada do edifício, batucava uma peça clássica do racismo nativo, “O teu cabelo não nega, mulata”, entoada em coro por muitos da multidão. Pensei com meus botões: eis o povo brasileiro, mesmo na hora da tragédia resignado e incapaz de perceber o significado de uma cantoria que o humilha.
Os fatos cancelaram a primeira impressão, e ao repensar experimentei uma súbita, pacata satisfação interior, quase alegria, a despeito do momento aziago. Aquele povo, umas 15 mil pessoas, calcula-se, que no dia seguinte impediria a primeira tentativa de Lula de sair do sindicato para se entregar, estava pronto para a briga, mesmo se chegasse a tropa de choque.
Rendeu-se à segunda tentativa, quando o líder decidiu sair a pé pela rua que, em outras circunstâncias, o viu carregado em triunfo. Ao contrário de muitos figurões petistas, aquela gente não acredita em conciliação, como sucedâneo do célebre jeitinho brasileiro, forma lamentável de conduzir a vida ao sabor de arreglos por baixo do pano.
Noite sinistra, nunca sairá da memória de quem a viveu, ou mesmo aos olhos e sentimentos de quem acompanhou aquele longo enredo pela televisão. Cenário plúmbeo, rasgado pelo lampejo dançante de faróis e semáforos, agitado pelas hélices dos helicópteros, sulcado por gritos e buzinas e pela procissão fúnebre daqueles reluzentes carros negros.
Enfim, o voo do mesmo monomotor que já transportou Fernandinho Beira-Mar. A uma TV chinesa, o inquisidor Sergio Moro dissera ter reservado ao ex-presidente condenado sem prova o mesmo tratamento dispensado a criminosos sentenciados.
Quando vi Lula sair do helicóptero pousado no teto da sede central da PF curitibana, descer uma escada à vista de assistentes divididos em dois grupos distintos, enquanto fogos iluminavam a noite a saudar o desastre do País, e o vi sair de cena a caminho da cela, imaginei cidadãos conscientes a caírem em profundo desconforto igual ao meu, diante de tanta prepotência e insensatez.
Naquela manhã, Lula havia pronunciado um forte e altivo discurso durante a cerimônia religiosa celebrada no dia do aniversário da esposa falecida, a inesquecível Marisa, que ainda o deixa em lágrimas quando a recorda. De improviso, como de hábito, mas muito bem urdido em torno de uma ideia mestra: o momento e a memória do seu governo metamorfosearam o líder com uma ideia, e ideias não podem ser enjauladas.
A imagem é bela e expõe, em primeiro lugar, o problema central do país da casa-grande e da senzala: o monstruoso desequilíbrio social. O discurso me diz que Lula clareou seu pensamento, percebeu os verdadeiros inimigos e repudiou a contemporização.
Os golpistas atingiram seu maior objetivo, alijaram das eleições o grande favorito. Em compensação, criaram o mártir, o Mandela, o Mujica brasileiro. Nem por isso garantiram a continuidade do estado de exceção a resultar do golpe de 2016, à falta de um candidato potável. As tensões sociais, que serpenteiam debaixo da aparência de normalidade, têm condições de agravar a crise de todos os pontos de vista e de levar, até o fim do ano, a uma conjuntura ainda mais assombrosa do que o cancelamento do pleito a bem da paz nacional.
Depois das mais recentes declarações do general Villas Bôas, inequivocamente a favor da condenação de Lula, logo aprovadas por muitas vozes militares, o futuro comportamento das Forças Armadas é uma incógnita a turvar pesadamente o panorama. Arrisco-me a dizer que dias piores virão. Precipitamos no abismo e a queda não promete um pouso feliz.
A partir de 40 anos atrás, as três greves (1978, 79 e 80) deflagradas por Lula representaram um vigoroso desafio à ditadura. Tanto desassombro engatilha graves riscos. O tempo não era, porém, de desalento. No começo de abril de 1980, Raymundo Faoro, amigo fraterno, acaba de deixar a presidência da OAB e me pede para levá-lo ao palanque de Lula na Vila Euclydes. De lá, o líder comanda a greve. Assim conto aquele dia nas páginas de O Brasil, meu penúltimo livro (Editora Record, 2013).
“E é mais um dia e estou no Aeroporto de Congonhas à espera de Faoro. Estranha figura esguia cerca-me como ectoplasma, percebo que de trás de um jornal desfraldado me observa e segue meus vagos passos da espera. Penso em um policial de experiência escassa, e já se aproxima sem mistério, dobrou com diligência o jornal e pergunta a Faoro, que acaba de chegar, se ele vai a São Bernardo. Explica: “Fernando Henrique Cardosopede, por favor, que os senhores passem pela residência dele antes de seguir para a Vila Euclydes”. Como souberam da chegada do ex-presidente da OAB?
FHC
Este, sim, é dono de uma fortuna imobiliária (Foto: Fábio Motta / Estadão Conteúdo)
“No apartamento de FHC, uma dama de cabelos azuis entrada em anos, a mãe do futuro presidente, serve café em xícaras elegantes e lhes declina a origem, são de Limoges. A tese que o dono da casa formula pretende que a visita de Faoro à Vila seja inoportuna, conhecer Lula é uma coisa, subir no palanque armado no estádio é outra, “bem diferente”. Por quê? “É óbvio, não é mesmo?”
No momento, não há quem, entre intelectuais orgânicos e nem tanto, perca a ocasião de repetir uma expressão cunhada por Nelson Rodrigues, e repetida à exaustão em suas crônicas, com largo êxito: em certos casos qualifica o óbvio como ululante e até os editoriais do Estadão se apossam de quando em quando da expressão rodriguiana. O anfitrião pretende descerrar o óbvio ululante: Faoro é “reserva moral” do País e como tal há de ser preservado, ir à Vila é risco inútil. Faoro não se rende à (...) Admite, porém, uma etapa no Paço Municipal de São Bernardo a caminho da greve.
“Ali somos aguardados por uma conferência de mochos soturnos (...) À cabeceira senta-se o prefeito e a sua direita é reservada a Fernando Henrique, o qual, pressinto, deu uma aula prévia sobre Faoro. Quem é este Faóro, ou Faoro? Ou não seria faraó? Fernando Henrique perora a sua causa com denodo e busca o apoio dos mochos: Faoro não deve subir no palanque. Digo que vou partir para o campo apinhado. Faoro ergue-se em toda a sua imponência e me segue. A massa sobre o gramado abre-se diante daquele gigante engravatado, não sabem quem é, mas o entendem graúdo, vindo para emprestar seus poderes, quiçá mágicos, ao líder de uma greve também rebelião.”
Singular figura, FHC, acima do bem e do mal, blindada, para usar uma expressão cara aos jornalistas, perdão, propagandistas nativos. Nesta quadra trágica da nossa história, o ex-presidente atribui-se o papel de grilo falante do Brasil.
Vive em sossego, aparentemente à larga, morador de um apartamento de 400 metros quadrados de construção em área dita nobre da capital paulista e ainda dispõe de uma fazenda em Minas com pista de pouso ao lado, construída pela Andrade Gutierrez, para servir também à fazenda fronteiriça de Aécio Neves.
E mais, de outro apartamento senhorial, para variar de 400 metros quadrados. Espaço, muito espaço, para o pensamento do príncipe dos sociólogos, na Avenue Foch, recanto dos mais chiques de Paris, próximo do hotel dos lordes e príncipes árabes, o Plaza Athenée.
Conspícua fortuna imobiliária de um professor universitário aposentado. Como presidente, FHC comandou a maior bandalheira da história brasileira, a privatização das comunicações, comprou votos no Congresso para lograr a emenda da reeleição e quebrou o País mais de uma vez.
Cavalheiro refinado, jamais veranearia em apartamento de 200 metros quadrados em praias de farofeiros. Em compensação, no seu instituto, local doado por um banco, os sofás são forrados de veludo e as cortinas adamascadas. É estranho, bastante estranho, que inquisidores do porte de Sergio Moro e Deltan Dallagnol não tenham sido picados por alguma suspeita, por mais vaga.
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Trinta e oito anos atrás, Lula preso no Dops foi tratado com o justo respeito, graças também à brandura do próprio diretor da PF, Romeu Tuma: diariamente, mandava buscar Marisa e os filhos para visitarem o pai, servia-lhe, às vezes, lulas fritas no almoço, frequentemente o hospedava na sala contígua ao seu gabinete para deixá-lo à vontade.
Quando, durante o cativeiro, a mãe de Lula faleceu, Tuma tirou o uniforme de dois policiais, vestiu-os à paisana, e mandou que acompanhassem o preso ao velório e ao funeral. Enquadrado na chamada Lei de Segurança Nacional, Lula foi condenado em liberdade. Não cabe esperar que os atuais carcereiros tenham um comportamento longinquamente similar. Eles também são movidos a ódio, igual aos beócios que envergam a camiseta canarinho, ricos e pobres.
A fórmula combina à perfeição dois preconceitos de profundidade visceral: o racial e o social, o que torna mais surpreendente a presença na área até de miseráveis, dos quais Cristo na cruz diria: “Perdoai-os, Senhor, não sabem o que fazem”.
Já o inquisidor Moro sabe perfeitamente o que faz com empenho atroz, e garante: o STF impediu um grande retrocesso, para gáudio das manchetes. Ele sabe que o Supremo poderia ter impedido não este apenas, mas o espantoso retrocesso provocado pelo golpe de 2016, o mais grave e insano sofrido pelo Brasil, ao qual a inquisição de Curitiba e Porto Alegre ofereceu uma contribuição decisiva.
Mandela e Mujica
Lula passa a ser o Mandela e o Mujica brasileiro (foto: David Turnley e Wanezza Soares)
No caso a que Moro se refere, destaque para quem votou a favor de Lula, e entre estes é a voz de Gilmar Mendes que se eleva para surpreender o auditório. O ministro clama contra os “fascistoides das ruas” e “a mídia opressiva”.
A surpresa é relativa. Mendes é figura sempre disposta às apostas altas, bem ao contrário, por exemplo, da patética Cármen Lúcia, ou de quem, como Rosa Weber, a confessar candidamente votar contra seus princípios a bem da corporação, maria vai com as outras de toga. Esta é a Justiça de um país abandonado ao seu destino ao apresentar o rosto que merece.
Dia 6 de abril não me escapou no sindicato, muito ampliado em relação àquele de 40 anos atrás, o comparecimento de vários hipócritas e diversos incompetentes, maus conselheiros para quem lhes dá ouvidos. O PT de hoje em nada se assemelha à ideia original, semeada durante as greves do final dos anos 70, enfim realizada no começo dos 80 sobre uma plataforma francamente de esquerda, a desaguar, às vezes, em um patrulhamento que eu tinha como exagerado.
Aparadas algumas arestas, seria um partido indispensável à evolução do País e do seu povo. Pelo caminho perdeu o ímpeto e a determinação. O discurso de Lula indica o retorno ao passado, a deitar raízes fundas na minha memória.

Uma enciclopédia para entender o golpe de 2016

Política

Imprensa

Uma enciclopédia para entender o golpe de 2016

por Eduardo Nunomura — publicado 15/04/2018 00h30, última modificação 13/04/2018 10h53
Livro mostra como a mídia atuou para derrubar Dilma e apoiou a tomada do poder pelo ilegítimo Temer
Paulo Pinto/Fotos Públicas
Manifestação contra Dilma
As marchas carolas de 1964 foram reeditadas em 2015 como parte da estratégia do golpe
Uma dezena de universidades públicas mobilizou-se para criar disciplinas sobre o golpe de 2016, seguindo a iniciativa do professor da Universidade de Brasília Luis Felipe Miguel. Na primeira aula, na segunda-feira 5, o cientista político explicou por que essa palavra é tão repelida justamente por aqueles que a puseram em circulação no Brasil.
“Não foi só uma mudança em quem ocupa a Presidência. É uma mudança profunda, que se pretende definitiva, imposta unilateralmente e em desrespeito à lei por grupos de dentro do Estado, nas regras do jogo político. Em uma palavra: é mesmo um golpe”, escreveu o professor.
A academia começa a cumprir o seu papel, e é preciso dar nome aos bois, ainda que estes tenham o infortúnio de ser chamados de Temer, Cunha, Aécio ou Geddel. A esta altura do campeonato, só mesmo golpistas não admitem que Michel Temer é um presidente ilegítimo e o mandato popular de Dilma Rousseff foi roubado por eles.
Porém, a jornalista Maria Inês Nassif alerta no prefácio da Enciclopédia do Golpe - O papel da mídia que, se as futuras gerações se dedicarem a estudar esse período da história brasileira por meio do noticiário da imprensa comercial, certamente considerarão que tudo transcorreu dentro da normalidade institucional.
“O que aconteceu é o que aconteceu: não existem duas versões para um Congresso que se reúne e depõe uma presidente legitimamente eleita e entrega o poder a um vice de passado nebuloso; não há duas interpretações para um Judiciário que condena inocentes inventando interpretações sobre textos legais que variam conforme o réu; não há duas visões sobre uma mídia que omite, esconde e manipula”, resume Maria Inês.
A obra de 251 páginas contém 28 verbetes escritos por profissionais e estudiosos da comunicação, cientistas políticos, filósofos e historiadores. Os capítulos tratam de temas variados, que vão desde uma radiografia do conluio entre jornalistas e o Judiciário, passando pela falta de democratização da mídia, o protagonismo político da TV Globo, a tomada das redes sociais por movimentos reacionários e a ainda influente agenda imposta pelos veículos tradicionais. O foco é a centralidade da mídia hegemônica, tida pelos organizadores da obra como a principal responsável pela narrativa dos acontecimentos. 
“Indispensável a contribuição da propaganda inutilmente disfarçada de jornalismo para demonizar Lula, alvo maior da manobra golpista, reconhecido como principal entrave ao projeto de um Brasil-satélite no quintal dos EUA, país em demolição atado a instituições medievais, insignificante no plano internacional, exportador ainda e sempre de commodities”, defende Mino Carta, diretor de redação de CartaCapital, na introdução da enciclopédia.
Enciclopédia do golpe
. Organizadores Wilson Ramos Filho, Miguel do Rosário e Maria Inês Nassif. Editora Praxis, 251 páginas. 60 reais.
“De fato, uma mídia empresarial totalitária, com força e decisão para capturar e ditar o rumo dos acontecimentos parece ter sido a principal engrenagem motora da ruptura da normalidade democrática”, anota o filósofo Bajonas Teixeira de Brito Junior, da Universidade Federal do Espírito Santo.
Para ele, é possível traçar paralelos entre a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que defendeu o golpe de 1964, com o que define como “pseudo ‘movimentos de protesto’”, como o MBL, Vem pra Rua e Revoltados Online, reeditando a estratégia golpista em 2015.
No conjunto, a enciclopédia presta-se a iluminar sombras de uma cobertura visivelmente negativa praticada pelos maiores e mais privilegiados veículos midiáticos. Ela é classista, por estar em defesa dos interesses empresariais das elites, e não surgiu com o impeach-ment. Mais de um autor defende que o golpe já vinha sendo fermentado desde que o PT assumiu o poder.
“A Globo, com seus obedientes mervais, já vinha trabalhando desde o ‘Mensalão’, em 2005, para construir a ideia de que o PT inventou a corrupção no Brasil”, afirma o jornalista Rodrigo Vianna.
Autores dos verbetes descrevem a onipresença da emissora global para a “construção e disseminação de propaganda antipetista e antiesquerda”, segundo Maria Inês. “O processo de impeachment foi um jogo de futebol. A Globo passava a bola para a Folha, que deixava a Veja perto do gol, que tocava para o Sergio Moro completar de cabeça”, explica o jornalista Miguel do Rosário.
Essa triangulação só foi possível por haver um sistema midiático altamente concentrado no Brasil e cujo antídoto, a democratização dos meios de comunicação, jamais chegou a representar uma ameaça real às empresas.
Ora a imprensa atacava ferozmente o governo federal por aventar colocar em pauta esse assunto, ora Lula e Dilma não só recuavam como continuavam a favorecer as grandes corporações destinando generosos recursos por meio da propaganda oficial. Entram nessa combinação as revistas semanais VejaÉpoca IstoÉ, como anota o professor Frederico de Mello Brandão Tavares, da Universidade Federal de Ouro Preto. “Em ‘tempos de golpe’, estas revistas (...) funcionam como gatilho para a pauta noticiosa. Vendem opinião como notícia.”
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Outro verbete essencial é o caráter misógino do golpe. Para a socióloga Eleonora Menicucci, ex-ministra de Políticas para as Mulheres do governo Dilma, e a jornalista Júlia Martim, a mídia “estimulou em todas as oportunidades as críticas pautadas em questões comportamentais e não políticas”.
Esse conteúdo machista alimentou e fortaleceu um discurso de ódio, que acabou invadindo as redes sociais manipuladas por robôs, perfis anônimos e favorecendo a explosão das fake news, que também virou um verbete. “A imprensa brasileira faz parte da articulação de um golpe protagonizado por uma elite de homens brancos, declarados como heterossexuais e defensores de uma sociedade estruturada no patriarcado.”
Este é o segundo volume da Enci-clopédia do Golpe. O primeiro foi lançado em novembro e procurou explicar como cada um dos golpistas atuou em 2016. Escreveram verbetes, entre outros, os historiadores Luiz Alberto Moniz Bandeira e Fernando Horta, o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo (consultor editorial da CartaCapital) e o sociólogo Jessé Souza.

A maior mentira do mundo


A maior mentira do mundo

O império norte-americano nunca havia mentido tanto como hoje, ao ignorar o poder que perdeu

 
17/04/2018 09:09
 
 
O império norte-americano nunca havia mentido tanto como hoje, ao ignorar o poder que perdeu.

As ridículas e pedantes ameaças de seu grande chefe, como suposto defensor da democracia, são vistas como as de um demente que, ao amedrontar o mundo com seu imenso poderio, não convence mais ninguém, nem mesmo com a desfaçatez das suas mentiras. São preocupantes as suas declarações e decisões, devido à ferocidade insana que expressam, e que podem terminar em um holocausto que ele mesmo viveria, em seus últimos momentos, e compartilharia com todo o país que governa.

O problema é ainda mais grave, porque Mr. Trump, com sua alarmante cólera de Zeus tronante, é somente uma expressão da crise e da cegueira da qual padecem as classes dominantes do seu império, e de outros que, em uma ofensiva mundial, o apoiam, combinando seu silêncio cúmplice com seus meios de comunicação massiva, em um concerto de interesses e ganâncias em comum.

As potências dominantes e os diferentes apoios financeiros, militares, políticos e midiáticos dos quais se servem, em geral, deixam de lado seus distintos estilos de dominação e acumulação, e arremetem em função do poderio de seus donos e senhores, e dos interesses que uns e outros pretendem defender como valores respeitáveis, dos que cada vez mais se burlam, como a democracia, os direitos humanos e o estilo de vida civilizado, honorável e eficiente.

No caso dos Estados Unidos, os interesses e valores que realmente movem os senhores das grandes corporações os levam a apoiar, em suas zonas de influência e nas regiões que dominam – caso da América Latina e do Caribe –, governos golpistas ou encabeçados por multimilionários. Temos exemplos de ambos os casos com Michel Temer no Brasil e Mauricio Macri na Argentina. Ambos agem, em seus países, para destruir o poder dos movimentos de tendência socialista, nacionalista ou moderadamente patriótica, debilitando-os com variadas medidas de repressão, cooptação, pressão e, no caso dos governos vizinhos de caráter progressista, ajudando na desestabilização, seja contra a invicta Cuba, a cada vez mais contraditória Bolívia, a desmantelada Nicarágua ou o já traído Equador.

Mais que isso, muitos triunfos de revoluções passadas, e rebeliões ou movimentos progressistas, terminaram sofrendo com o fogo amigo como o tempo. As contradições afetaram sobretudo os processos mais recentes, onde as lutas e vitórias democráticas e sociais também trouxeram políticas que terminaram possibilitando a desestruturação, desintegração e desorganização. Nesse equívoco, que já havia levado ao fracasso as antigas revoluções, como a mexicana, agora afetou também o de alguns governos populares e seus sucessores, onde também temos casos recentes no Brasil e na Argentina. Muitos países da chamada “onda progressista latino-americana” aplicaram medidas de efeitos diretos e indiretos que, ao adotar a lógica do mercado e da globalização neoliberal privatizadora do Estado, terminaram promovendo, de um lado, a cultura do individualismo, do enriquecimento multimilionário e da macrocorrupção, e por outro, o desmantelamento do Estado-nação, ou de seus poderes, suas empresas e recursos estatais e nacionais, assim como a perda de sentido do interesse geral e do bem comum nos partidos políticos. Descartadas as ideologias e programas de governo, com alternativas que não mostram possibilidade alguma de serem viáveis, seja do ponto de vista social ou em projetos visando o futuro, a política agora se limita a oferecer o combate à corrupção, ou ao narcoterrorismo, sem explicar como o farão. Partidos e políticos profissionais dos governos de turno e das oposições sequer defendem um programa político que impeça o despojo dos recursos das nações, ou mesmo uma moderação levemente patriótica que se proponha defender ao menos a educação pública, ou que seja capaz, por sua política financeira e econômica de proporcionar emprego e segurança social aos formados. Mais que isso, nenhum partido político apresenta e defende um programa de controle monetário e produtivo, ou de serviços. Tampouco propõem medidas necessárias para acabar com a sistemática acumulação das terras nas mãos de poucos, ou com os consequentes problemas do desemprego rural, as crescentes migrações de camponeses já sem fontes de vida e de trabalho, enquanto as grandes corporações agrícolas, mineiras e industriais impõem o terror e o narcotráfico no campo, deixando as comunidades sem segurança, sem território, sem terra, sem água, sem alimentação, sem saúde…

Assim, enquanto nenhum partido ou movimento institucional defende um programa coerente, que permita sair de tão grave situação, surge uma crescente rejeição aos imigrantes que tentam se refugiar nos países sede das corporações e do poder imperial. Desestruturadas, as nações em desenvolvimento já não têm nada a oferecer. Seu papel no simulacro de democracia neoliberal é garantir que os que obtém os cargos de eleição popular sejam os que vão fazer negócios com a venda dos bens que os Estados ainda conservam, sabendo que, se chegam a ser acusados de corrupção, nada acontecerá, ninguém os perseguirá, e se perseguem, tampouco poderão encontra-los. Tudo isso acontece porque, do começo ao fim, de cima para baixo, a corrução e o capitalismo tardio formam parte do atual sistema global e seu funcionamento, como política da acumulação através da transferência de renda aos mais ricos, e da exploração dos recursos humanos e naturais com as tecnologias mais avançadas e a mão de obra mais mal paga – quando não é simplesmente escravizada. Como os benefícios da ação formal e legal cabem na ordem dos delitos para seus beneficiados principais do centro e da periferia, os grandes bancos, que dominam o sistema, estabeleceram suas próprias redes de paraísos fiscais, que ademais servem para não pagar impostos ao fisco e esconder os bilhões desviados por velhos e novos multimilionários, que se enriquecem mais e mais, com todo tipo de alianças e apoios das corporações e bancos. Utilizam uma linguagem enganosa para justificar as crescentes taxas de juros e gerar dívidas impossíveis de pagar. Tudo isso cria um sistema de recolonização financeira, que conta com as empresas qualificadoras, como a Moody’s, e com uma rede de bancos vampiros, dependentes ocultos da grande banca.

Esses e muitos outros tipos de dominação e acumulação são os que caracterizam o sistema. Essa é maior mentira do mundo: dizer que defendem, com o aberrante pretexto de que correspondem às mais novas e eficazes políticas científicas, a luta pela democracia e pela liberdade, argumentos com os quais promovem uma guerra integral, formal ou informal, pacífica e violenta, a todos os movimentos e países que atentam contra seus valores e interesses. O problema, para este grande mentiroso – e por isso essa mentira se encontra assim tão escancarada –, é que decidiu fazer da vítima prioritária nesta região o atual governo da Venezuela.

O governo dos Estados Unidos – com o apoio das grandes potências do Ocidente – lançou a mais feroz ofensiva contra o pequeno e valoroso país da Venezuela, cujo patriótico, rebelde e democrático governo é acusado de oprimir o povo e deixa-lo à mercê da fome e da escassez, quando, na realidade, é um país que, com seu governo e a imensa maioria de seus cidadãos, está plenamente identificado com uma das mais importantes lutas liberadoras do nosso tempo.

Na ofensiva integral e crescente, o governo dos Estados Unidos e o complexo empresarial, militar, político e midiático do qual ele forma parte, mostram a mesma sanha que, desde 1959, vem mostrando contra a Revolução Cubana, que sofre com os ataques ao país que é seu principal provedor de combustível – e com esses recursos, caso continue os recebendo, a ilha pretende passar a impulsar novamente um maior desenvolvimento igualitário. Contra isso, os Estados Unidos fomentam e toleram um crescente mercado negro, e criam, eles mesmos, misteriosos e improvados ataques de som criminosos, como a curiosidade de que vitimaram apenas o pessoal da embaixada estadunidense, e ninguém mais nos arredores. Com esse tipo de farsa, pretendem renovar o medo contra a “ditadura comunista”, com a qual é impossível manter boas relações diplomáticas e comerciais.

Paradoxalmente, e como já ocorreu na longa história do processo revolucionário em Cuba, diante do insistente e crescente ataque contra a Venezuela, nem o poderoso império – que, com suas incontáveis mentira, diz fazer todo o possível para salvar o povo venezuelano de uma nova e feroz ditadura – nem o povo empobrecido e rebelde conseguem derrubar o “inepto governo”, e por isso o império se vê obrigado a promover outra farsa, sustentando que a situação política de Venezuela representa um “grande perigo para a segurança nacional dos Estados Unidos”.

Semelhante argumentação não é algo novo, pois antes se dizia que tudo era parte de uma estratégia de defesa conta o projeto comunista. Hoje, com a maior parte do mundo dominada pelo capitalismo, uma justificativa assim é francamente ridícula. O governo da Venezuela está muito longe de ser um perigo para a segurança dos Estados Unidos. Na verdade, é óbvio que o superpoder imperial esconde algo mais do que a suposta defesa do povo da Venezuela contra “um governo inepto, repressivo e corrompido”, para a qual tenta instaurar no país outro governo que sim respeite a democracia e a liberdade do povo venezuelano, tal como esses conceitos são entendidos pelo império, como nos casos do Brasil, onde recentemente colocaram no poder um presidente, através de um golpe brando, e da Argentina, onde apoiaram o multimilionário Macri, que adquiriu sua imensa fortuna de forma comprovadamente ilegal.

Também vale a pena observar o silêncio cúmplice e o apoio velado das grandes potências do mundo ocidental, de seus governos e seus meios de comunicação massiva, que validam uma versão uniforme da realidade, mais que em outros tempos, e participam de um ataque subsidiado por milhões de dólares entregues aos meios de comunicação aliados, os quais se agregam à luta contra o “bárbaro, cruel e inepto” governo da Venezuela”.

A denúncia da “barbárie” e das “barbaridades” do governo venezuelano contra o seu próprio povo mostram uma estranha coincidência com os argumentos do governo de turno dos Estados Unidos, forma parte de uma bem coordenada campanha apoiada tanto em imagens de foto e vídeo quanto em análises publicadas nas páginas editoriais dos grandes diários do mundo, assim como comentários e notícias nas redes sociais, ou nos foros econômicos e políticos que defendem os direitos humanos. Para o desagrado maiúsculo dos apátridas, essa campanha sofreu uma grande e inesperada derrota quando o governo venezuelano convocou o referendo para a instauração de uma nova assembleia constituinte que, verdadeiramente represente o povo, e que tem a força para conduzir e organizar eleições nas que a máfia opositora, supostamente democrática, se nega a participar, com ridículos pretextos de perdedora, sabendo que enfrentar as ruas agora revelaria uma oposição que sofre com uma grande impopularidade.

Aqui é o momento de esclarecer que outras medidas o império e as forças oligárquicas empresariais, locais e internacionais – de países como Colômbia, Brasil e outros vizinhos alinhados – montaram para desestabilizar e derrubar o governo “inimigo da civilização, da democracia, dos direitos humanos e da segurança dos Estados Unidos”. Também é necessário explicar que o imperialismo já havia empregado, em intervenções anteriores, uma estratégia que parece ser aperfeiçoada, com o tempo e o auxílio das tecnociências da comunicação, que é a construção mentirosa de narrativas que comprovem as acusações feitas e as novas mentiras que aparecem para apontar a ineficácia do governo e das instituições do Estado. Também se faz necessário mostrar que, em outros casos, em outros países, não se trata só de publicar essas mentiras, mas também de semear provas que levem a um processo judicial humanitário, por tribunais que as grandes potências integram e dominam, e que agora julgam os governos das nações recolonizadas.

A síntese desses fatos terá que incluir também outra circunstância significativa: tamanha mentira não deve ser atribuída somente ao governo de Trump e das oligarquias que o acompanham. Tudo o que vemos agora começou durante o governo neoliberal e globalizador de Barack Obama, o que nos obriga a repetir estes fatos para não seguir alimentando a crença de que se trata da política de um presidente mentalmente insano, e sim de uma metodologia instalada pelo império, falsamente atribuída a um indivíduo.

Tampouco podemos fazer uma perfeita síntese da maior mentira do mundo se não falamos de outra grande razão que se esconde sob a nobre luta, para nos perguntar: por que tão grandes batalhas, e tão poderosas forças, com tamanhas técnicas e políticas antigas e modernas, agora renovadas e enriquecidas com as novas ciências e tecnociências, não são capazes de derrubar o supostamente ditatorial e bárbaro governo de Venezuela, que destrói, desgoverna, empobrece e mata de fome as pessoas em seu próprio país? Por quê?

Numa análise mínima das tentativas de derrubar esse governo, podemos destacar algumas das muitas razões políticas pelas quais a resistência venezuelana tem triunfado, e seguirá triunfando.

A enorme capacidade de resistência começou quando o comandante Hugo Chávez mostrou, com palavras e com ações, que a revolução venezuelana tem um caráter antimperialista e anticapitalista, e que devia e podia organizar uma nova força apoiada pelo exército bolivariano venezuelano, junto com um crescente sistema de poder baseado na estruturação de comunas e de redes de comunas, seus conselhos e comissões promotoras e coordenadoras.

Na Venezuela, se construiu uma resistência invencível, que o presidente Chávez formulou e entregou ao seu sucessor, Nicolás Maduro que a mantém, a enriquece. É essa resistência a que apoia cada um dos seus atos de governo e que explica o conteúdo dos seus discursos e entrevistas. Em todas as suas declarações sempre aparece com força a coincidência de que suas palavras têm, tanto nos fatos como na estruturação, a sintonia com a realidade ética de que Chávez foi o precursor de um novo projeto de revolução, não só venezuelana como bolivariana, original não só pelo fato de que foi apoiada desde o princípio e até agora pelo sucesso das políticas sociais, especialmente após o fracassado golpe de Estado de 2002, protagonizado por militares traidores, que logo foram  dominados e presos pelo seu próprio exército, com o apoio de uma imensa multidão que desceu dos morros de Caracas para libertá-lo e protegê-lo, convencidos de que era o mais valioso defensor do povo. Assim, Chávez passou a governar com mais firmeza e apoio, e conseguiu unir aqueles que, fossem civis ou militares, tinham a convicção ética e política de trabalhar pelos empobrecidos povos do mundo. Povos e exércitos que façam seus os interesses gerais podem construir, e construirão outro mundo, que sem dúvida é possível, em que a organização da vida e do trabalho sejam capazes de alcançar a prática concreta da liberdade, da justiça, e uma genuína democracia estruturada, dando poder aos cidadãos, diferente das que deixam os pobres de fora, às vezes até sem direitos formais de serem considerados como cidadãos, reduzidos à condição de servos ou assalariados.

Nas alternativas ao mundo atual, o Movimento 26 de julho, em Cuba, e o Exército Zapatista de Libertação Nacional, no México, abriram caminhos de vida, liberdade, justiça e democracia que são referente universais. Junto com eles está o exemplo da Venezuela, iniciado pelo comandante revolucionário Chávez, que não só expressou as formas éticas e ideológicas que Nicolás Maduro, seu indiscutível herdeiro, segue fielmente, como também as formações da luta moral na qual se fundamenta a prática, com a estruturação dos programas e das políticas, um planejamento que vai muito além das palavras, verdadeiro estatuto sobre o que deve ser uma sociedade livre, democrática e socialista. Uma cartilha que sai das palavras e define as ações.

Assim, quando queremos falar sobre porque a grande mentira não foi capaz de derrubar o governo revolucionário da Venezuela, temos que explorar tanto os ideais e valores dos insubmissos como os que se fazem realidade na variada organização da resistência militar, à qual se inclui a forte e estruturada resistência intelectual e moral.

Ao poder dessa união estão adicionadas outras forças não menos importantes, como o poder defensivo para esta guerra integral – chamada de quarta geração –, cujo campo de luta abarca todas as atividades materiais, intelectuais, financeiras, econômicas, políticas e bélicas, articuladas entre si. E tudo isso respeitando e fazendo respeitar as diferenças religiosas e filosóficas, que no caso da Venezuela se identificam na maneira de pensar e de agir de seus dirigentes, como o fez reiteradamente Chávez, com o catolicismo como guia religioso e o marxismo como guia científico e revolucionário, e com o liberalismo ilustrado e radical como apoio, como foi para Bolívar, o pai da Pátria. Valores do Iluminismo que estão presentes desde a revolução francesa e que foram reformulados na América Latina pelos que propuseram lutar pela independência. Hoje, o desafio é estruturar a soberania do povo, única autoridade legítima das nações, e por isso, capaz de impor, com seu poder organizado, a máxima felicidade possível de todos os habitantes, e capaz de alcançar, de verdade, a união dos países numa grande nação que inclua a todos.

A maior mentira do mundo é a mesma que o imperialismo usou para derrubar Salvador Allende em seu momento, e não há dúvidas que a Venezuela está trabalhando para fortalecer sua capacidade concreta de enfrentar essas políticas que agora ameaçam o seus país, seja através dos embargos, das desvalorizações da moeda, do ocultamento de provisões ou dos traidores infiltrados nas Forças Armadas.

A maior mentira do mundo pode seguir armando novas formas de ataque, como a que busca com os serviçais presidentes de outros países, reunidos numa espécie de cúpula das colônias, e que apoiam a falsa realidade. Porque, por trás da maior mentira do mundo está uma guerra visando se apoderar da maior reserva de petróleo do mundo.

Não passarão!

Pablo González Casanova é um sociólogo e doutor em ciências políticas da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), condecorado pela Unesco em 2003 por sua defesa da identidade dos povos indígenas da América Latina