quinta-feira, 24 de maio de 2018

Dois anos depois: dez argumentos para compreender o golpe jurídico-parlamentar

Dois anos depois: dez argumentos para compreender o golpe jurídico-parlamentar

"Tempo perdido não se recupera. A fortuna cansa-se de trazer sempre às costas o mesmo homem". Sabedoria popular portuguesa

 
23/05/2018 16:38
AP
Créditos da foto: AP
 
1 - Explicações monocausais para as mudanças desfavoráveis que abriram a situação defensiva, com elementos reacionários, em que vivemos desde, pelo menos, 2016, não são convincentes. O tema é demasiado complexo para hipóteses que privilegiam ou repousam em um só fator. É preciso aprender com as derrotas. Interpretações unilaterais, incompletas, conduzirão a conclusões erradas. A explicação deve ser pluricausal. Não foram, essencialmente, as políticas anticíclicas do governo Dilma Rousseff que explicam a sua queda. Embora seja verdade que uma fração da classe dominante, em especial, o capital financeiro, fosse muito crítica, antes de 2015. Mas esta crítica não era hegemônica. Essa explicação, quase unânime nos círculos liberais e reacionários, e com alguma influência em meios de esquerda é uma “cortina de fumaça” e, portanto, é falsa.

2 - A Lava Jato escancara, há quatro anos, a luta entre duas frações da classe dominante: aquela que quer manter o sistema partidário mais ou menos intacto, e aquela que decidiu deslocar o PT e reformar o regime político, “trocando a roda com o carro em movimento”. A burguesia não é uma classe com interesses ou posições econômicas e políticas monolíticas. Nenhuma classe social tem um “comitê central”. O regime democrático-eleitoral é mais confortável para a burguesia, justamente, porque vigoram liberdades democráticas para que suas diferentes frações possam disputar a defesa dos seus interesses imediatos, e suas apostas estratégicas, em espaço público. A superestrutura empresarial e política girou, aos poucos, para o impeachment, mas, finalmente, em poucos meses, a classe dominante se unificou e decidiu apostar no golpe, sob pressão da mobilização dos setores médios impulsionada pela extrema-direita, fundamentalmente, em função do resultado de 2014; da dificuldade da alternância eleitoral diante do prestígio do PT e de Lula; da estagnação econômica provocada pela queda dos investimentos como consequência da taxa média de lucros; e da pressão de uma fração do imperialismo que condicionou investimentos no Brasil à redução dos custos produtivos: peso fiscal do Estado, proporção dívida pública/PIB, e elevação do salário médio acima de US$700,00.

3 - Governos, mesmo governos de colaboração de classes e de coalizão, mesmo no Brasil, não caem porque deixaram de ter apoio unânime na classe dominante. Apoios unânimes são raros, mesmo quando são governos de partidos de representação direta do capital. Podem se manter, indefinidamente, com apoio de algumas frações. Só estão ameaçados de queda quando a burguesia se une e passa em bloco para a oposição, e tem luz verde de uma fração importante imperialista. Ainda assim é necessário alimentar uma subversão social para derrubar o governo.

4 - Governos não caem, em regimes presidenciais de países da periferia, porque perderam a popularidade. Têm que ser derrubados. Se impopularidade fosse fator suficiente para derrubar governos eleitos, o governo Temer já teria sido defenestrado no ano passado, depois da divulgação das gravações na garagem do Palácio. E não caiu. Aguentou o julgamento no STE e duas votações na Câmara dos Deputados. Para que isso aconteça é necessária uma mobilização social muito forte para abrir o caminho. Sem essa intervenção, o Congresso e a Justiça não alcançam a legitimidade para que possam resolver a crise de governabilidade, sacrificando o governo, mas preservando o regime político. É necessário, também, que o governo de turno não tenha capacidade de se defender apoiado em sua base social, neutralizando as pressões pela interrupção do mandato.

5 - Não foi, tampouco, o giro do MDB para a oposição, nem a conspiração de Temer conduzindo Eduardo Cunha a presidência da Câmara dos Deputados que explicam, para o fundamental, o golpe jurídico-parlamentar. Também não foi o giro dos banqueiros, ou da Fiesp, que explicam a inversão da situação política, a queda de Dilma, ou a prisão de Lula. Tudo isso contou, mas foram fatores superestruturais. Interpretações que valorizam, excessivamente, a operação da luta de partidos na superestrutura da sociedade flertam, perigosamente, com concepções conspirativas da história. A luta de partidos tem um grande lugar na história, mas não substitui a luta de classes. O papel dos indivíduos tem, também, o seu lugar, mas só muito excepcionalmente, ou seja, em situações revolucionárias ou contrarrevolucionárias, alteram o curso qualitativo dos acontecimentos.

6 - Sem que tivessem saído milhões de pessoas dos setores médios enfurecidas às ruas para, a pretexto de apoiar a operação Lava Jato, derrubar o governo, Dilma Rousseff não teria sofrido impeachment, em função das chamadas “pedaladas fiscais”. A questão chave deve ser a análise da multiplicidade de fatores que empurraram a classe média para a campanha de derrubada do governo. Ocorreu um processo lento de deslocamento dos setores médios para a oposição, sobretudo, durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff. Ele se expressou nas ruas em junho de 2013. A explosão de junho de 2013 foi um fenômeno complexo, portanto, policlassista. Setores médios, com audiência de massas, liderados por grupos de extrema-direita desceram, também, às ruas. Por isso houve combates tão violentos contra as bandeiras vermelhas. Não foram somente os setores mais escolarizados de assalariados urbanos que se sentiram motivados, depois da repressão as passeatas contra os aumentos de passagens. Embora tenham, em geral, prevalecido reivindicações progressivas, uma parte do mal estar social dos setores médios esteve presente.

7 - Em 2015/16 estas franjas médias voltaram às ruas, agora, furiosamente, inconformados com a vitória eleitoral do PT em 2014, e provocados pela inflação da educação e saúde privadas e demais serviços em alta; pelo endividamento das famílias; pela tendência de queda do salário médio da escolaridade superior; pela estagnação do crescimento; pelo peso crescente do IRPF; pelo crescimento da criminalidade; e, finalmente, pelo bombardeio das denúncias de corrupção. Os erros dos governos liderados pelo PT, não os seus acertos, empurraram a imensa maioria da classe média para as mãos das lideranças burguesas. A burguesia brasileira passou a ter, pela primeira vez depois de meio século, a hegemonia nas ruas.

8 - Aliás, aquilo que, em perspectiva histórica, merece ser considerado excepcional foi a vitória eleitoral, por quatro vezes em sequência do PT para a presidência. A vitória de Lula em 2002 remete às lutas da década de oitenta e ao desgaste social acumulado depois dos dois mandatos de FHC. Mas as três vitórias eleitorais seguintes só foram possíveis em função do contexto externo extraordinário de valorização do preço das commodities, que ofereceu o fundamento para as taxas de crescimento econômico que alicerçaram a estratégia “ganha-ganha” das políticas sociais que levaram a classe dominante a sustentar os governos liderados pelo PT, mesmo depois do escândalo do “mensalão”, e ampliaram a base social do lulismo. A tendência do capitalismo contemporâneo não é a ampliação de reformas. Mesmo nos países centrais, o que acontece é o contrário. Não compreender estas restrições históricas à concessão de reformas só poderá alimentar ilusões políticas de que uma nova experiência de conciliação de classes merece ser replicada.

9 - A incapacidade do PT e do lulismo de levantar uma mobilização dos trabalhadores e dos setores populares, à altura do desafio colocado pela campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff, é uma das chaves de compreensão das derrotas que vieram em seguida, até à prisão de Lula. Quando se decidiram ir para as ruas, já era demasiado tarde. A luta política tem os seus tempos. E a direção do PT e Lula tiveram muito tempo para se decidir, porque o golpe palaciano foi articulado, ao contrário do Paraguai, em “câmara lenta”. Entre a carta de ruptura de Michel Temer, a renúncia de Joaquim Levy, no finalzinho de 2015, e o giro da Fiesp e a unificação da burguesia, e as mobilizações de alguns milhões de “amarelinhos” em março/abril, até a votação do impeachment em maio de 2016, existiu um espaço de seis meses. Não conseguiram se defender. Porque mesmo quando estavam sendo encurralados pela pressão burguesa, apostaram na via das negociações, uma escolha, politicamente, suicida. Por quê?

10 - Este é outro tema pluricausal. Explicações monotemáticas não são convincentes. Pesou a incrível decisão do PT e de Lula de privilegiarem as alianças no Congresso Nacional, e se negarem a se apoiar na mobilização popular durante os seus treze anos de governo, até na hora do golpe; pesou o mal-estar na classe trabalhadora organizada diante do giro político de Dilma Rousseff a partir da vitória de 2014, aceitando as chantagens burguesas por um ajuste fiscal que não poderia deixar de ter sequelas recessivas graves; pesou a dificuldade de mobilização da ampla maioria do povo pobre que não tem instrumentos de auto-organização; pesou a extrema burocratização dos sindicatos, ainda hoje, a rede de organizações de representação da classe operária e do povo mais poderosa; pesou a fragilidade orgânica do PT, ainda o maior partido, mas que se transformou em um aparelho eleitoral profissionalizado, impotente diante da tarefa de levar milhões às ruas. O que, entretanto, é certo é que as derrotas estimulam reflexões sobre a responsabilidade dos dirigentes. Assim como a derrota de 1964 abriu uma crise no PCB, a derrota de 2016 já abriu uma crise no PT que não poderá ser represada. Lula é um preso político diante da Lava Jato. Mas não é inocente diante da tragédia econômico-social que se abate sobre o destino de dezenas de milhões que sofrem as sequelas do governo Temer. Sem crises nada se transforma. A reorganização da esquerda brasileira está apenas começando. E o futuro passa pela Aliança impulsionada pelo Psol e o MTST.
*Publicado originalmente no Esquerda OnLine

Antonio Candido, por Roberto Schwarz

Antonio Candido, por Roberto Schwarz

Blog da Boitempo recupera um texto histórico de Roberto Schwarz, escrito em forma de "verbete", sobre o mestre Antonio Candido.

 
23/05/2018 15:46
Blog da Boitempo
Créditos da foto: Blog da Boitempo
 
Em homenagem a Antonio Candido de Mello e Souza, que nos deixou hoje, dia 12 de maio de 2017, o Blog da Boitempo transcreve abaixo um verbete escrito por Roberto Schwarz, um de seus maiores discípulos e herdeiros intelectuais, em 1993 para a Revista da USP. O texto oferece um panorama sucinto e afiado de alguns dos pontos-chave da trajetória e obra deste que é amplamente considerado o maior crítico literário brasileiro, e um dos últimos representantes de uma geração de “intérpretes do Brasil” responsável por encabeçar nossa dita “tradição crítica”.

* * *

Antonio Candido (de Mello e Souza) (n.1918). Figura central da crítica brasileira a partir dos anos 40. Iniciou a carreira como responsável pela seção de livros da revista Clima, a qual fundou com um grupo de amigos em 1941. O periódico refletia o novo espírito universitário crítico, instalado em São Paulo por influência da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, recém-criada em 1934. Nesta, uma equipe notável de professores trazidos da Europa assegurava à nova geração o contato com o padrão de pesquisa contemporânea: o autoditatismo começava a ser substituído pela formação sistemática. Por outro lado, São Paulo fora o Centro do Movimento Modernista de 1922, cujos expoentes, personagens já históricas e míticos, estavam vivos e também eram frequentados pela nova geração. Lembremos enfim a característica do momento, marcado pela polarização ideológica e a seriedade social dos anos 30, com a sua arte empenhada, a oposição ou adesão à ditadura Vargas, e o ponto de fuga na Segunda Guerra Mundial.

Entre 1943 e 1947, AC assinou um rodapé semanal na grande imprensa, as “Notas de Crítica Literária”, tornando-se um nome conhecido nacionalmente. Os artigos acompanhavam o dia-a-dia da produção, de principiantes como de autores consagrados, além de livros estrangeiros que pudessem interessar no debate. Com discernimento seguro – a prova dos nove para qualquer crítico – saúdam as estreias de Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa. Já os autores com reputação feita são analisados com seriedade e sem complacência, no mesmo espírito em que na semana anterior havia sido estudado um livro, suponhamos, de Gide, Eliot ou Silone. A naturalidade e o equilíbrio na circulação entre as letras europeias e locais configura um raro momento de desprovincianização na crítica brasileira. Uma seleção desses ensaios, com ênfase crítica de ficção, foi reunida em Brigada Ligeira em 1945. Futuramente, quando os rodapés forem publicados no conjunto, com a sua parte de debate de ideias contemporâneas e comentário histórico-sociológico, além de estético, teremos um panorama de época variado e vivo, a melhor introdução à vida intelectual do período. A energia da prosa, que não foi desmentida pelo tempo, se deve à intimidade refletida com o quadro das posições ideológicas e artísticas no país, e também fora dele. Deve-se igualmente a uma rara constelação de preferências, que a evolução histórica ulterior valorizou: a perspectiva é socialista, mas anti-stalinista, amiga da experimentação formal audaciosa, além de convencida, no caso das artes, da precedência da obra sobre a opinião política expressa, o que permitia ao crítico engajadamente antifascista a consideração isenta dos autores com simpatia pela direita. A eventual reorganização democrática das sociedades no pós-guerra, incluída aí a brasileira, fornecia o prisma por onde avaliar o processo cultural na sua diversidade.

O método crítico de Silvio Romero, tese universitária defendida em 1945, expõe e discute a obra do importante e rebarbativo historiador naturalista das letras brasileiras. O debate gira em torno da explicação da literatura por fatores extraliterários. Trata-se de estabelecer a parte que devem ter na crítica literária as considerações internas, de composição artística, e as externas, de condicionamento social e psicológico, preferidas por Sílvio. Por via oblíqua, AC examinava os pressupostos da própria atividade em curso, marcada pela preocupação política, no que registrava o influxo do New Criticism e levava a cabo um primeiro esforço de auto superação. A estratégia adotada é indicativa de uma convicção teórica, aliás uma lição: em lugar de debater a alternativa genérica entre estudos de contexto e estudos de forma, diretamente nos termos da discussão e da bibliografia internacional a respeito, AC prefere colher o problema na sua feição local, exposta nos impasses metodológicos do predecessor. A versão abstrata ou universalista da questão lhe pareceria acadêmica no mau sentido, deixando escapar os tópicos relevantes, sempre ligados a uma história particular.

Formação da literatura brasileira (momentos decisivos), publicada cm 1959, estuda o período de 1750 a 1870. Do ponto de vista da história literária, a primeira metade é arcádica, e a segunda é romântica. Do ponto de vista da história política, uma pertence à Colônia, e a outra à nação independente. Estas correspondências notórias, assimiladas pelo viés do Romantismo patriótico, haviam dado origem à série dos lugares-comuns do nacionalismo, que tiveram grande vigência: a estética neoclássica é portuguesa e alienada, enquanto a romântica é nacional e autêntica; o universalismo é atrasado, ao passo que o localismo é progressista; a poesia arcádica é menos brasileira que o lirismo indianista, etc. Já o livro de AC, conforme indica o título, considera esses períodos em conjunto, como os momentos decisivos na formação do sistema da literatura nacional, numa linha, portanto, de unidade interna.

“Formação” designa aqui o processo bastante deliberado pelo qual se constituiu um sistema nacional de obras, autores e público, na órbita do movimento longo da independência política. Trata-se de uma ordem nova, ciosa do vínculo interno, diversa da que governou as letras coloniais, as quais passaram a existir nacionalmente através da mediação da primeira. Como parte de um projeto de autonomia, o sistema se completará quando uma continuidade de obras mais ou menos consciente houver recoberto e elaborado os assuntos e as áreas geográficas do país, tendo incorporado a seu trabalho os recursos da literatura contemporânea, o que ocorreu na virada do Romantismo para o Naturalismo. As consequências críticas deste ponto de vista são numerosas. Entre elas, uma relação complexa com o dinamismo nacional, reconhecido como fato e recursado como horizonte: o ciclo da formação é descrito com recuo, sem parte com o nacionalismo que o animou, o qual, passado o seu tempo, se tornaria ranço. A mudança afeta as apreciações, causando uma troca geral de acentos, cuja ironia histórica é instrutiva. Sirva de exemplo a poesia do Arcadismo, com os seus pastores atemporais e paisagens de convenção, tão estranhos à América. Pois AC mostra como esta estilização permitiu aos poetas expressar uma experiência americana e moderna, qual seja, a distância desanimadora e ainda assim o contato entre o fim-de-mundo das Minas Gerais e a convenção literária do Ocidente: ao passo que a cor local romântica, além do que ensejou de apreensão do particular, por momentos expressava a sujeição às expectativas europeias e convencionais de exotismo em relação ao país. Noutro plano, pensando em definições gerais – na verdade as definições consagradas pela evolução artística europeia –, nada mais diverso do Arcadismo que o Romantismo, de sorte que uma historiografia baseada no universalismo dos critérios estilísticos, que aliás esteve em voga na época, só podia conceber aquelas escolas em oposição. Já no curso da formação brasileira, sob a égide e pressão do engajamento patriótico das letras, aqueles movimentos em aparência tão incompatíveis adquirem uma decisiva continuidade de fundo, ou de função e espírito, que no caso é a sua marca específica. Analogamente, a oposição entre universalismo e localismo se redefine, saindo da dimensão sucessiva – o primeiro no século XVIII, o segundo no XIX – para integrar o vaivém moderno das necessidades da expressão no país.

Dito isso, o lugar da Formação na estante fica ao lado das obras clássicas de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. Como estes mestres haviam feito para os padrões da sociabilidade e da vida econômica, AC historia o vir-a-ser do sistema literário nacional, relativamente estável, auto referido, com dinamismos e problemas próprios, que cabe identificar e estudar. Neste sentido tangível, trata-se de um livro fundador. Pelo que representaram de conquista no ambiente, vale a pena destacar ainda a exigência da fatura e o ponto de vista esclarecido. A erudição literária e histórica, impecável e sóbria, firma um padrão novo. As influência estrangeiras são estudadas sem ofuscação colonizada nem arrepios nacionalistas. O livro renova e aprofunda a leitura de praticamente todos os autores de que trata, que são muitos. Possui em alto grau a arte do perfil e da caracterização breve, também de figuras menores. E trouxe a uma disciplina comparativamente atrasada e enumerativa como a história das literaturas nacionais a preocupação com a unidade substancial e articulação interna do objeto, que as ciências sociais mais elaboradas então cultivavam.

Em palavras do Autor, a Formação busca reconstituir a história dos brasileiros no seu desejo de terem uma literatura. Esta aliança de esforço artístico e missão nacional, um fato de época, relevante e definidor, obriga a crítica a atender às duas dimensões, ou seja, a praticar a análise interna das obras bem como a salientar o seu papel na edificação da cultura pátria. A propósito seja dito que a ironia acompanhando expressões como esta última é característica do livro, emprestando distância e acerto literário à sua prosa, às voltas com uma empreitada histórica inseparável de certa dose de oficialismo. Nos ensaios posteriores, espalhados em revistas e sucessivos volumes, AC adota um ângulo diferente. Ainda usando a sua terminologia, o interesse agora se concentra nos processos de estruturação, onde elementos da realidade externa se tornam forças ordenadoras internas à obra, aí correndo o seu destino estético, revelando dimensões que escapam ou divergem da ideologia e das intenções deliberadas do artista. Em consequência, a prioridade passa para a análise formal, ligada à configuração objetiva da obra, em cujo âmbito as intenções do criador não passam de um elemento a mais, frequentemente recontextualizado de modo imprevisto, revelador, e até comprometedor.

O exame atento a tudo e ao mínimo na organização interna de um romance ou poema, apoiado na convicção da relevância cognitiva da elaboração artística, descobre relações que têm, além da potência artística, valor heurístico para a exploração da realidade histórica. Estamos diante da inversão do esquema “reducionista”, onde a realidade explica as obras. Em “Dialética da malandragem” (1970), ensaio característico a esse respeito e central para a crítica brasileira dos últimos decênios, a análise formal permitiu AC a mostrar: a) a qualidade notável de um romance tido como menor (as Memórias de um Sargento de Milícias [1854], de Manuel Antonio de Almeida); b) a sua posição central na literatura e cultura do país, colocando em foco uma linha de força – a malandragem – até então despercebida, que vem da Colônia e é retomada em algumas obras-primas do Modernismo; c) uma conexão estreita entre a sua originalidade formal e uma peculiaridade da estrutura de classe da sociedade brasileira, esta última salientada e revista a partir de seu papel matricial na organização profunda da narrativa, à qual portanto coube a função heurística, de estrutura-guia; d) a consideração comparativa daquela “originalidade nacional”, ponderada no âmbito da humanidade contemporânea, no caso através de um esboço de confronto entre a “malandragem” do Sargento de Milícias e o rigorismo puritano da Scarlet Letter (1850), de Hawthorne. Cada um destes passos traz um avanço, seja pela leitura renovada e mais interessante, seja pela dimensão inédita posta em evidência. Trata-se, enfim, da realização exigente e não dogmática do programa dialético na crítica, um programa muito proposto e nunca cumprido, que é, sem exagero, uma das aspirações intelectuais deste século. A inspiração geral é marxista, ao passo que o instrumental é elaborado com independência, no quadro do debate corrente nas ciências sociais e na crítica literária dos anos 50 a respeito da natureza da forma. Pode-se falar de um estruturalismo desenvolvido por conta própria, de inspiração antropológica e sociológica, em oposição ao marxismo vulgar, mas em todo caso anterior à moda estrutural de inspiração linguística, à qual discretamente os trabalhos de AC se opuseram como uma alternativa de esquerda. Igualmente notável, nesta linha de crítica, é o ensaio “De Cortiço a Cortiço”, onde se estudam comparativamente O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, e L’assommoir, de Zola.

A partir de fins dos anos 60, AC começa a publicar ensaios onde se combinam a análise e o depoimento exato. São escritos que abrem mão da terminologia e exposição científica, mas não da disciplina mental e dos conhecimentos correspondentes. Apoiado na excelente memória, onde está repertoriada a experiência nesta altura já longa do estudioso da literatura e da sociedade, o ensaísta circula reflexivamente entre anedotas, testemunhos, decênios, explicações teorias, numa prosa precisa e ágil.

A leitura do prefácio-homenagem à 5ª edição de Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, bem como da “Digressão Sentimental sobre Oswald de Andrade” ou das reflexões sobre “A Revolução de 1930 e a cultura” produz o efeito de uma forma literária própria, difícil, realizada à perfeição.

Em 1960, ao dar um curso em Montevidéu, AC fez amizade com Ángel Rama, cuja militância latino-americana o impressionou. O desconhecimento recíproco entre hispano-americanos e brasileiros bem como o esforço necessário para superá-lo passam a figurar entre as suas preocupações. O estudo pioneiro sobre “Literatura e Subdesenvolvimento” é um resultado desta perspectiva unificadora.

A importância do professor, cujas aulas são legendárias pela clareza e elegância, é tão grande quanto a do crítico. A posição de relativo destaque dos estudos literários no debate intelectual do país se deve em parte a seus esforços atualizadores. Foi dos primeiros a introduzir a Teoria Literária no currículo universitário, em 1961. Na mesma época passava a dar cursos de pós-graduação sobre autores brasileiros modernos, que até então não eram objeto de pesquisa acadêmica.

***

Roberto Schwarz é crítico e membro do Comitê editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem esquerda. Seu livro mais recente é Nós que amávamos tanto “O capital”: leituras de Marx no Brasil, escrito em conjunto com Emir Sader, José Arthur Giannoti e João Quartim de Moraes, sobre o legado dos “Seminários Marx” e a recepção do marxismo no Brasil. Pela Boitempo, também assina artigos nas coletâneas Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil, organizada por Benjamin Abdalla Júnior e Salete de Almeida Cara, e As utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado, organizado por Ivana Jinkings e João Alexandre Peschanski.
*Publicado originalmente no Blog da Boitempo

Golpista tenta "se limpar". Sem sucesso. O povo não é bobo.

LULA: DIGA A TODOS QUE EU ESTOU VOLTANDO

CULPADO PELO CAOS, PARENTE FAZ CHANTAGEM E DIZ QUE PREÇOS SÓ CAEM SEM ELE