sexta-feira, 15 de junho de 2018

A filial de Moro e Barroso em Mococa

A filial de Moro e Barroso em Mococa. Por Wadih Damous

 
Moro e Barroso
Ao tempo em que se revelou o processo de eugenia praticado por juiz e promotor contra uma Janaína Aparecida Quirino, mulher pobre de uma cidade do interior de São Paulo, o STF julgava se as conduções coercitivas, utilizadas mais de 200 vezes apenas na operação lava-jato, são compatíveis com a Constituição. Autoritários são os tempos em que se torna preciso entrar com ações jurídicas para que a Suprema Corte enxergue o óbvio.
O ministro Barroso, ao debater a questão da constitucionalidade das conduções coercitivas produziu mais uma das suas pérolas, afirmando que o Brasil vive um “surto de garantismo”. A frase não somente é infeliz quando se atenta para a realidade prisional brasileira, como visa ao fortalecimento de um discurso punitivista que manipula o ressentimento e o emocional da massa, assim como os nazistas jogavam a classe média apavorada e os lúmpens, com medo da proletarização e da esquerda, contra a “aliança dos banqueiros judeus com o bolchevismo”.
Enquanto do plenário do Supremo se ouvia as pérolas punitivistas de Barroso, o juiz Sergio Moro, alegando estar “muito ocupado” julgando os casos da Lava Jato, abriu mão da competência de julgar o processo do ex-governador Beto Richa, do PSDB. No mesmo processo em que, em novembro de 2017, argumentou que era juiz prevento do caso porque vislumbrou o envolvimento de dois investigados da operação, um deles Rodrigo Tacla Duran, autor de denúncias (ainda não apuradas) contra atores importantes da malfadada operação.
Do reinado absolutista da Justiça Federal de Curitiba veio outro verdadeiro Édito proibindo que órgãos de controle possam usar provas obtidas em delações premiadas. Para tentar justificar, esqueceu o direito brasileiro decidiu de acordo com a legislação dos EUA. A operação lava jato e a postura de integrantes do STF vêm estimulando uma forma de justiça despótica que não se preocupa em fundamentar os seus atos jurisdicionais a partir de uma racionalidade e dos postulados jurídicos estabelecidos.
Termos como os utilizados por Barroso no debate das conduções coercitivas se repetem e se irradiam por fóruns do Brasil todo. O último exemplo dessa forma de decidir se deu em Mococa.
Tanto o promotor de justiça quanto o juiz daquela cidade se eximiram de buscar na lei e na Constituição os fundamentos para os atos jurídicos que praticaram, prevalecendo a própria vontade de esterilizar uma mulher por ser pobre. Termos como “não tenho prova cabal, mas condeno porque a literatura jurídica me permite”, “nego com base no princípio da colegiabilidade”, “não tenho provas, mas tenho convicção” ou o mais recente “há velha ordem que precisa ser empurrada para margem da história e é nosso papel empurrá-la”, irradiam para o sistema de justiça e criam novas filiais.
Mococa é apenas a mais recente.

Decreto assinado por Temer camufla extinção da Renca, diz senador Randolfe Rodrigues

MEIO AMBIENTE

Decreto assinado por Temer camufla extinção da Renca, diz senador Randolfe Rodrigues

Ano passado o governo tentou liberar a mineração na reserva, mas voltou atrás depois de forte pressão da sociedade

Brasil de Fato | Belém (PA)
,
O decreto permite a exploração de minérios em reserva nacional / Portal Brasil
O presidente golpista Michel Temer (MDB) assinou, nesta terça-feira (12), o decreto nº 9.406, que autoriza a pesquisa ou a concessão de lavra em reservas nacionais, a exemplo da Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca).
O senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP) protestou contra a medida nas redes sociais e, por meio de sua assessoria, afirmou que o decreto “camufla a extinção da Renca” – em setembro do ano passado, o governo federal tentou extinguir a reserva nacional por decreto, mas se viu obrigado a recuar pela pressão da sociedade. Agora, volta à ofensiva para liberar mais empreendimentos de mineração.
“Esse decreto estabelece um dispositivo que diz o seguinte: em zona declarada reserva nacional de determinada substância mineral, o Poder Executivo federal poderá, mediante condições especiais condizentes com os interesses da União e da economia nacional, outorgar autorização de pesquisa ou concessão de lavra. É exatamente a descrição do que é a Reserva Nacional de Cobre, ou seja, de outra forma o Temer está extinguindo a Renca”, diz Randolfe.
O decreto foi publicado no Diário Oficial na quarta-feira (13) e não faz menção à extinção da reserva do cobre no texto, mas há a possibilidade de exploração mineral com a ressalva de que a única substância que não poderá ser explorada é a especificada pela reserva nacional; ou seja, o cobre –que batiza a Renca– não poderá ser minerado, contudo, de acordo com Jarbas Vieira, da coordenação nacional Movimento Pela Soberania Popular da Mineração (MAM), existem outros minerais que despertam o interesse das empresas no mesmo local.
“A questão é que o cobre lá é pífio é mínimo praticamente, não é o central daquela área; o central daquela área são os altos teores de ouro, nióbio que tem ali, os altos teores de ferro, é isso que eles estão de olho”, afirma.
A Reserva Nacional do Cobre está situada na região amazônica entre os estados do Amapá e Pará. Com 47 mil quilômetros quadrados, uma área superior ao território da Suíça, ela foi criada em 1984 e abriga áreas de preservação ambiental, terras indígenas, além de comunidades tradicionais.
Ainda segundo Vieira, o decreto apresenta diversos outros pontos problemáticos como o artigo 41, que estabelece que as “empresas do setor poderão solicitar à Agência Nacional de Mineração uma declaração de que a área ao qual ela tem o direito minerário é de utilidade pública para fins de desapropriação”.
“A gente sabe o que tem acontecido com as comunidades rurais que têm sido desapropriadas para fins de instalação de projetos de mineração: primeiro que não há uma discussão prévia com a comunidade, geralmente já chega impondo que tem que sair; segunda coisa, também não diz se essa desapropriação vai ser responsabilidade do estado ou da mineradora, então têm questões que precisam ser repensadas”, pontua.
Outro problema destacado por Vieira é que o fechamento da mina que é de responsabilidade do minerador e inclui, entre outros aspectos, a recuperação de áreas degradadas, mas “o decreto não prevê de onde sairá esse recurso”.
Além disso o texto estabelece que, em áreas de monopólio, onde há concentração de minério como urânio, será possível fazer a exploração. “O governo está abrindo essas áreas de urânio para empresas internacionais tomarem conta de bens estratégicos”, alerta Vieira.
Sobre os pontos problemáticos apresentados pelo MAM o Ministério de Minas e Energia afirma que a responsabilidade legal para o fechamento das minas é do minerador titular do direito minerário. Quanto a desapropriação será solicitada pelo minerador à ANM, ao qual emitirá o ato autorizativo ou não, contudo o MME não esclareceu de quem é a responsabilidade em efetivar a desapropriação. Ainda segundo o ministério em terras indígenas não há qualquer relação ou interferência por ser necessária uma edição de uma lei pelo Congresso Nacional e sobre o art. 72, referente as Reservas Nacionais de Sustâncias Minerais o decreto número 9.406/2018 é o mesmo do artigo 120 do Decreto 62.934, de 1968, não havendo alteração ou inovação quanto à questão.
Ao final da noite desta quinta-feira (13) o Senador Randolfe Rodrigues apresentou projeto de decreto legislativo para sustar o artigo 72 do decreto.

 
Edição: Diego Sartorato

Os caminhos de dom Angélico nas ruas de seu país


IGREJA

Os caminhos de dom Angélico nas ruas de seu país

Bispo emérito já foi bom goleiro e "aprontava" quando pequeno. Aos 85 anos, continua inquieto na sua missão. "Tenho que dar o meu testemunho de vida"
por Vitor Nuzzi publicado 03/06/2018 11h14, última modificação 12/06/2018 14h16
JAILTON GARCIA/RBA
Dom Angélico
Como bispo emérito ("aposentado"), dom Angélico Sândalo Bernardino vai aonde for chamado. Na casa onde mora, no Jardim Primavera, periferia da zona norte de São Paulo, ele também se movimenta incansavelmente, subindo e descendo, "como se nada estivesse acontecendo", uma pequena escada em espiral que dá acesso a seu escritório, na parte de cima, ao lado de uma mesa grande, estantes, um pequeno altar. Pouco antes da porta está uma foto de um sorridente dom Paulo Evaristo Arns com a frase "Esperança sempre!" e outra em que dom Angélico, de costas, abraça o papa Francisco, em alegre reencontro depois de muito tempo – ele o conhecia há muitos anos, em vários encontros com o ainda cardeal Bergoglio.
As andanças pela casa, pelas ruas e pelo país animam dom Angélico, que já teve sérios problemas no coração – um infarto há 20 anos –, mas conta estar bem de saúde agora. Com 85 anos, preserva um certo jeito de menino – o religioso confessa que era muito moleque quando criança: "O que é isso? Aprontava muito!" Bem em frente à casa, há um campinho onde tem sempre uma turma jogando bola. Ele também já jogou. "Eu era um gato no gol", brinca. 
Foram mais de duas décadas de convivência com dom Paulo, ex-cardeal-arcebispo de São Paulo, a quem sempre se refere afetuosamente. "Eu era coordenador da Pastoral em Ribeirão Preto (cidade do interior paulista). Aí que comecei a conhecer esse grande arcebispo", lembra Dom Angélico, que foi ordenado bispo pelo amigo, em 25 de janeiro de 1975, depois de ser nomeado, no ano anterior, pelo papa Paulo VI. "Trabalhei com dom Paulo e a equipe de bispos por 23 anos", diz, recordando uma frase recorrente do cardeal que remete ao quadro na entrada de seu escritório: "Vamos avante, de esperança em esperança, sempre".
Um depoimento sobre a morte do operário Santo Dias da Silva, em outubro de 1979

Devoto de São Jorge

Corintiano, então, como o cardeal? Dom Angélico diz que a região onde nasceu "é tudo Palestra", palmeirenses. Mas ele passou grande parte da vida na zona leste paulistana. Foram 15 anos na Diocese de São Miguel Paulista. Na salinha de entrada, há um quadro assinado pelo "povo da região de São Miguel" em homenagem ao "homem-palavra".
"Como eu não seria devoto de São Jorge?", pergunta, ao mesmo tempo em que esclarece ser hoje um torcedor desencantado, pela forma com que o futebol passou a ser gerido. "Hoje o que manda nos clubes é o dinheiro. Não é mais a camisa", lamenta.
Além disso, a violência entre torcedores o entristece. "Aqui na Inajar (a Avenida Inajar de Souza, próxima de sua residência) houve um conflito entre torcidas do Palmeiras e do Corinthians, com um rapaz morto", recorda. Ele também não se entusiasma com a Copa do Mundo, prestes a começar. "Gostaria que o Brasil ganhasse para o povo também ficar alegre. No dia seguinte a luta continua."
angelico-2.jpg1964 não foi golpe militar. Foi  civil, financiado pelo poder econômico, apadrinhado pelos EUA. Um poder que permanece. Por que a Fiesp comemorou o impeachment da Dilma?
Para dom Angélico, o poder econômico está no centro das mazelas sociais. "O sistema em que estamos imersos é iníquo. Acúmulo (para poucos) em detrimento de milhões", diz, defendendo uma economia solidária. "Os bens que o Pai deixou são para toda a humanidade. A acumulação não faz sentido. Hoje, temos escravidão de outras formas. Temos representantes financiados por quem? Pelo capital." 
O capital estava por trás do golpe de 1964, afirma. "Não foi golpe militar. Foi golpe civil, financiado pelo poder econômico, apadrinhado pelos Estados Unidos." Um poder que permanece, constata: "Por que a Fiesp comemorou o impeachment da Dilma?" Ele aponta para uma foto e diz que até 31 de dezembro ela é a legítima presidenta do Brasil. "O outro (referindo-se a Michel Temer) é golpista."
Faz menção a uma notícia do começo do ano, quando Temer provou que estava vivo e voltou a receber sua aposentadoria. "Sabe quanto ele recebe? 22 mil. Começa por eles", diz, indignado, referindo-se à reforma da Previdência. "Eu detesto hipocrisia." Ao comentar o noticiário internacional, afirma que Coreia e Irã têm, sim, de se desarmar, mas questiona a autoridade moral de Estados Unidos e Rússia para essa cobrança, se esses países "têm arsenais para exterminar 20 vezes a humanidade".

"Quero ser padre"

Dom Angélico nasceu em 19 de janeiro de 1933, em Saltinho, "a capital do universo", segundo ele. Na época, era um distrito do município de Piracicaba, a 180 quilômetros da capital paulista. Foi o quinto de nove filhos. O pai, Duílio Bernardino, trabalhava na roça. "Nunca teve terra", lembra, falando com carinho dele e de sua mãe, Catarina Sândalo. Um dia, um padre perguntou para um grupo de meninos: "Quem quer ser padre?". Com 11 anos, Angélico quis.
Mas também foi jornalista. Exibe com alegria suas carteirinhas do sindicato da categoria. No Diário de Notícias, de Ribeirão Preto, também no interior paulista, nos tempos do linotipo e da máquina de escrever, fez de tudo na redação, até ser diretor. Já eram tempos de golpe. "Quantas vezes eu tive de vir (a São Paulo) prestar esclarecimentos...", lembra.
As opiniões de dom Angélico o levaram, várias vezes, a ser atacado verbalmente: "comunista", "vermelho", "bispinho" são alguns exemplos. "É porque desconhecem o Evangelho. Evangelho significa partilha. Cada pessoa é sagrada", diz. "Os templos não são os edifícios de pedra, são as pessoas. Não adianta falar que se ama se se convive com as desigualdades. Há um perigo de fechar os olhos para a realidade e refugiar-se em templos. Não tem nada de comunismo, mas de cristianismo."
Ainda como bispo da Diocese de São Miguel, ele ameaçou deitar-se em trilhos. "Na passagem do trem não tinha cancela. O trem pegava", conta, recordando um acidente com um ônibus que resultou em várias mortes. Em uma reunião com moradores, uma senhora sugeriu: por que não paralisar os trens? Antes que a manifestação acontecesse, as autoridades chamaram para conversar. "O superintendente da estação ferroviária me convocou. Macaco velho, fui com mais três pessoas." Pediram um tempo para que as melhorias fossem feitas, o que realmente aconteceu. "Antes do prazo lá estavam as cancelas."
Dom Angélico
O impeachment foi 50% do golpe. A outra metade consiste em evitar a candidatura de Lula. No fundo, no fundo, o que quer o poder econômico? Afastar o poder popular

Lula e o golpe

Os ataques aumentaram quando ele celebrou ato por Marisa Letícia, quando ela morreu, no ano passado. "Não houve instrumentalização nenhuma", afirma, referindo-se a um termo repetido na ocasião. "Houve um ato ecumênico. Encerrado o ato, nós nos retiramos."
Dom Angélico é amigo da família de Lula. Batizou João, filho de Lurian, filha do ex-presidente, e administrou o sacramento dos enfermos em Marisa. Em 7 de abril, dia em que Lula se apresentaria à Polícia Federal, dom Angélico estava em São Bernardo para novo ato ecumênico – e para ser novamente criticado, até por parte do cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, o que rendeu uma resposta do jornalista Roldão Arruda
Da mesma forma que no ano anterior, o religioso desceu do caminhão de som assim que encerrou o ato e seguiu lentamente pela rua, amparado pela irmã Carmem Julieta, uma espécie de guardiã.
Na casa modesta em que mora, há um pequeno teclado na sala. Partitura aberta em Ave Maria, de Gounod. Quem toca é ela (Carmem), diz dom Angélico, depois de oferecer biscoitos de sua própria produção.
Para ele, o impeachment foi "50% do golpe". A outra metade consiste justamente em evitar a candidatura de Lula. Dom Angélico retoma o tema: "No fundo, no fundo, o que quer o poder econômico? Afastar o poder popular". E defende o ex-presidente: "Gostaria que esse pessoal que fala em triplex fosse até o apartamento dele em São Bernardo do Campo. É muito simples". Mas considera improvável que Lula possa disputar a eleição em outubro.
Ao mesmo tempo, diz não ser ingênuo, fazendo sua crítica ao mundo político. "Na história dos partidos, o dinheiro entrou, e entrou valentemente." As críticas se dirigem também ao comportamento da Justiça, especificamente de Sérgio Moro e alguns de seus encontros em outras terras. "Não fica bem que o Moro tenha desfilando nos Estados Unidos. Parece um adolescente. Tem uma Justiça comprometida partidariamente."
PAULO PINTO/AGPT
Com Lula em São Bernardo do Campo, em 7 de abril, dia que em que o ex-presidente decidiu cumprir a ordem de prisão

Testemunho de vida

Organizado, ele arquiva textos, artigos, reportagens, em pastas. Tem muitas fotografias espalhadas pela sala: com o bispo sul-africano Desmond Tutu, com o Dalai Lama, Paulo Freire, Leonardo Boff, dom Hélder Câmara, o deputado Paulo Teixeira ("Meu filho"), ele mesmo na favela de Vila Carvalho (em Ribeirão Preto), onde morou, imagens de ocupações, movimentos sociais. "Aqui é tudo foto de luta, viu, meu irmão?", comenta. "Esse povo é maravilhoso." Sua maior honra, diz, é ser discípulo de Cristo. "Tenho muito o que melhorar. Agora, tenho que dar meu testemunho de vida." 
Em sua mesa, um texto recente do papa Francisco e a Constituição brasileira, "que é rasgada, é pisada". Dom Angélico gosta de ler, principalmente textos religiosos, mas agora é obrigado a reduzir o ritmo, por causa de uma perda de acuidade na vista esquerda. Tapa o olho direito para explicar que, do interlocutor bem à sua frente, só vê um vulto.
Além dos 15 anos em São Miguel, passou 10 na Brasilândia, na zona norte. Foi o bispo responsável pela Pastoral Operária da Arquidiocese, diretor do jornal O São Paulo, responsável regional pela Cáritas, presidente regional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em 2000, nomeado por João Paulo II, tornou-se o primeiro bispo diocesano de Blumenau (SC). Como mandam as regras, aos 75 anos apresentou sua renúncia, aceita em 18 de fevereiro de 2009 pelo Papa Bento XVI.
Dom Angélico celebrou missa por Alexandre Vannucchi Leme, morto em 1973 pela ditadura. Conheceu a família do rapaz, em Sorocaba, no interior, e chegou a sugerir que pelo menos um trecho da rodovia Castelo Branco (primeiro presidente militar do período ditatorial), ligando São Paulo a Sorocaba, recebesse o nome do estudante. Estava ao lado de dom Paulo quando o jornalista Vladimir Herzog foi morto, em 1975. 
Entre as dores do período da ditadura, o bispo emérito lembra de uma em particular. "O que me marcou mais foi a morte do Santo", diz. Santo Dias da Silva era operário e militante da oposição metalúrgica em São Paulo. Alvejado por um tiro, foi assassinado por um policial durante piquete na fábrica da Sylvania, em Santo Amaro, zona sul da cidade, em 30 de outubro de 1979. "Era da minha equipe da Pastoral Operária."
Ele se emociona ao recordar. "No IML, dom Paulo foi abrindo caminho (entre os policiais), e eu atrás dele. Eu coloquei a mão no peito do corpo frio de Santo Dias." O cardeal-arcebispo pôs um dedo no local do tiro e rezou o Pai-Nosso.
Dom Angélico desce mais uma vez a escadaria em caracol. Conta que no dia seguinte teria de ir a Ribeirão Preto para cerimônia em uma creche, como faz uma vez por ano, mas que dificilmente conseguiria viajar devido ao caos nas estradas em razão da paralisação dos caminhoneiros. Mas não deixará de caminhar. "Gosto de estar misturado com o povo."
ACERVO PESSOALFamiliares
Angélico (de óculos) com familiares (da esquerda para a direita): Lilian, Ernesta, Maria, Duílio, Antonio, Catarina, Inês e Irene (está ausente a irmã Cecília)
ACERVO PESSOALCom Dalai Lama
Com o Dalai Lama
ACERVO PESSOALCom Boff
Com o amigo Leornardo Boff
ACERVO PESSOALCom Paulo Freire
Com Paulo Freire

SEM NOÇÃO A deselegância do cardeal Scherer em tempos de polarização política e ódios


SEM NOÇÃO

A deselegância do cardeal Scherer em tempos de polarização política e ódios

Cardeal Odilo Scherer trata dom Angélico Bernardino Sândalo como inimigo após a realização de ato ecumênico no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em homenagem a Marisa Letícia
por Roldão Arruda* publicado 11/04/2018 18h20, última modificação 11/04/2018 19h10
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO
dom_odilo.jpg
Cardeal divulgou a nota sem dar um telefonema para o bispo emérito que mora na mesma cidade
Conheci dom Angélico Bernardino Sândalo quando eu era repórter no Estadão e escrevia sobre religião. Ele me chamava de ‘irmão’. Não era uma exclusividade. Todo mundo é ‘irmão’ de d. Angélico. Até pessoas das quais não gosta. Nunca perguntei o motivo desse tratamento. Imagino que seja para lembrar que somos todos filhos de um mesmo pai. Também imagino que foi essa ideia de fraternidade que o levou, desde a ordenação sacerdotal, a se voltar mais para as pessoas carentes, os que perderam tudo, os migrantes, os sem-teto, os sem-terra, os excluídos.
Na década de 1970, esse interesse do padre Angélico pelos pobres chamou a atenção do então arcebispo de São Paulo, o franciscano Paulo Evaristo Arns. E quando o papa Paulo VI disse a ele que devia dividir seu trabalho e nomear um bispo auxiliar para cada milhão de fiéis da arquidiocese, o primeiro nome que veio à cabeça de d. Paulo foi o daquele padre. Logo depois de sagrá-lo bispo, despachou-o para a periferia, o extremo da Zona Leste, bandas de Itaquera, na época uma das regiões mais carentes da cidade. Lá, o bispo se entrosou tão bem com o povo que até trocou de time: deixou o Palestra Itália pelo Corinthians.
D. Angélico foi um dos principais conselheiros de dom Paulo nos anos da ditadura. Acompanhou-o, lado a lado, no episódio do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, numa dependência do Exército. Editou o jornal católico O São Paulo. Enfrentou a censura à imprensa. Por onde passou estimulou movimentos populares por habitação, creches, transportes.
Hoje, com 85 anos, aposentado, vive numa casa modestíssima na Zona Norte. Às vezes é chamado para alguma celebração especial. No ano passado ministrou o sacramento da extrema-unção à esposa do ex-presidente Lula, Marisa Letícia, de quem era amigo há quase quarenta anos.
Agora o chamaram para o ato ecumênico que lembraria a passagem de um ano da morte de Marisa. Era para um ser ato no interior do sindicato. Mas, com a decretação da prisão de Lula e a multidão que se aglomerava do lado de fora, acabou transferido para a rua. E foi assim que o país viu o bispo ao lado do ex-presidente.
Como era de se esperar, nesses tempos de polarização política e de ódios, a imagem dos dois em rede nacional provocou reações furiosas, quase fratricidas, entre católicos. D. Angélico foi xingado das piores coisas. Como nos velhos tempos da guerra fria, o chamaram de bispo da batina vermelha. Um colunista político disse que rezou uma missa negra, confundindo, como vários outros jornalistas, ato ecumênico com missa.
D. Angélico desceu do caminhão assim que encerrou o ato e Lula começou a discursar. Ninguém prestou atenção nele quando seguiu por uma rua estreita e íngreme, à procura da condução que o levaria para casa. Trajava calça cinza, de cós muito alto, e camisa branca com mangas longas. Os passos eram lentos e amparados pelas mãos da irmã Carmem Julieta, que o acompanha sempre.
No dia seguinte, a assessoria do arcebispo de São Paulo, cardeal Odilo Scherer, divulgou uma nota sobre o assunto. É um texto curto e objetivo. Começa preocupado em isentar o cardeal: diz que ele não tem nada a ver com o ato ocorrido em São Bernardo e explica que "aconteceu fora da jurisdição e responsabilidade do arcebispo e da arquidiocese de São Paulo". Depois desse ato de lavar as mãos, o texto faz a afirmação que logo em seguida se transforma em manchetes de sites, jornais, rádios e TVs: "O arcebispo lamenta a instrumentalização política do ato religioso".
Li e reli a nota. Parece feita às pressas, com o objetivo de dar satisfações aos católicos mais direitistas, e suscita uma pergunta óbvia: se o arcebispo metropolitano não tem nada a ver com aquilo, a quem cabe a responsabilidade? É assim que o cardeal joga a bomba no colo do bispo de Santo André, d. Pedro Cipolini.
Para entender melhor é preciso explicar que a Igreja Católica tem uma divisão própria de territórios. De acordo com essa divisão eclesiástica, São Bernardo faz parte da diocese de Santo André. Indiretamente, portanto, o cardeal está perguntando o seguinte ao irmão e bispo vizinho: como é que você permite que um ato desses ocorra em sua jurisdição?
O alvo mais óbvio da nota, no entanto, é d. Angélico. O cardeal divulgou a nota sem dar um telefonema para o bispo emérito que mora na mesma cidade e a poucos quilômetros de distância. Nem sequer para avisá-lo. Tratou-o, de acordo com os tempos de guerra, como inimigo.
Faltou elegância, no mínimo, ao cardeal. Como arcebispo metropolitano, poderia ter conversado com o bispo de Santo André ou se dirigido à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Por outro lado, em vez de engrossar e estimular o conflito, poderia ter exercido o papel de pastor, acalmando os ânimos e pedindo orações para o Brasil.
Como entender essa reação do cardeal? Existem algumas pistas. D. Scherer é um expoente do conservadorismo católico. Em 2013, no conclave que elegeu o sucessor do papa Bento XVI, o nome dele figurou na lista dos preferidos da ala conservadora. Mas não prosperou. Se é mesmo o Espírito Santo que orienta o conclave, ele deve ter soprado no ouvido dos cardeais, que, após dois papados conservadores, seria melhor optar por uma cabeça mais arejada e reformadora. E eles elegeram o jesuíta Bergoglio, hoje papa Francisco.
Em 2014, o papa afastou o cardeal Scherer e outros três cardeais da cúpula do Banco do Vaticano, instituição financeira envolvida numa série de escândalos, inclusive com suspeitas de lavagem do dinheiro do crime organizado. Foi uma demonstração de que ele veio mesmo para mudar.
No Brasil, o cardeal é um dos poucos integrantes da CNBB que defendem abertamente as propostas do governo Temer para a reforma da Previdência. Antes disso, ele já havia apoiado a proposta que congelou gastos públicos.
Em São Paulo, Scherer procurou demonstrar proximidade com João Doria – tucano que lastreou sua campanha eleitoral para a prefeitura em ataques ao PT e a Lula. Chegou a falar de maneira positiva, em duas ocasiões e publicamente, a respeito da ‘farinata’ que Doria pretendia distribuir nas escolas públicas.
O cardeal até posou ao lado do prefeito tucano quando ele divulgava o composto alimentar. No final da história, porém, ficou falando sozinho. O valor nutritivo do tal composto era tão duvidoso e polêmico que foi posto de lado. Pelo próprio Doria, que já se afastou da prefeitura para se candidatar ao governo do Estado, após ter prometido que jamais deixaria o cargo antes de terminar o mandato.
* Artigo publicado originalmente na página pessoal de Roldão Arruda no Facebook