segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

SEGUNDA FASE DO GOLPE PODE SER MUITO MAIS REPRESSORA. Imperdível entrevista com Dilma Rousseff

SEGUNDA FASE DO GOLPE PODE SER MUITO MAIS REPRESSORA

Marco Weissheimer
Quase seis meses depois da votação da última etapa do impeachment no Senado Federal, Dilma Rousseff olha para esse período não como uma página virada na sua história de vida ou na história política do país, mas sim como um processo em andamento. “O golpe não acabou”, afirma, advertindo para os riscos que a democracia brasileira corre com o desenrolar do processo golpista. Em entrevista ao Sul21, concedida em seu apartamento em Porto Alegre, Dilma Rousseff fala sobre as raízes profundas e aparentes do golpe, denuncia o desmonte de políticas sociais e de setores estratégicos para o país, como as indústrias naval e petrolífera, e aponta as tarefas que ela considera prioritárias para a esquerda e para todas as forças progressistas do país:

“A questão democrática é fundamental para nós. Sempre ganhamos quando a democracia se aprofundou e sempre perdemos quando ela foi restringida. O que está em jogo hoje é o que vai ser a eleição de 2018. Essa será a pauta a partir da metade do ano. Acho que o Lula, nesta história, cumprirá um papel muito importante, concorrendo ou não. A segunda etapa do golpe pode ser muito mais radicalizada e propensa à repressão. Nossa missão é garantir o maior espaço democrático possível, denunciar todas as tentativas de restrição das liberdades democráticas e tentar garantir em 2018 um processo que seja construído por baixo”, defende.

Veja a entrevista:

Sul21: Em um artigo publicado na semana passada, o sociólogo e cientista político Aldo Fornazieri afirmou que a consequência mais trágica do golpe é a destruição do Brasil enquanto nação e a sua decomposição moral. Do ponto de vista econômico, afirma ele, o país está à venda. Do ponto de vista social, há um grande desastre em curso, com um massacre de direitos. A senhora concorda com essa avaliação?

Dilma Rousseff: Concordo. Acho que ele tem toda a razão. Há exemplos muito concretos, como a questão das empresas que compõem a cadeia de petróleo e gás. Estamos vivendo um momento de destruição dessa cadeia que era uma das mais importantes do país. Ela é uma das mais importantes porque a produção de petróleo em águas profundas exige um fornecimento de equipamentos e serviços de engenharia, uma expertise em extração de petróleo em grandes profundidades sob grande pressão e altas temperaturas. Ela exige uma tecnologia sofisticada. Todos os países desenvolvidos – e mesmo os países em desenvolvimento – que tiveram a experiência da descoberta de petróleo buscaram, de alguma forma, internalizar essa cadeia, fazendo que ela não fosse uma cadeia externa para não ter o efeito da chamada doença holandesa. Nesta doença, cria-se uma riqueza, por exportação ou exploração da mesma, mas essa riqueza não é internalizada na forma de criação de empregos, investimentos, desenvolvimento científico e tecnológico.

Como se chama essa política de internalização? Política de conteúdo local. Essa política foi feita na Noruega e ninguém pode dizer que a Noruega é chavista. Virou uma grande acusação para se interditar uma discussão falar em chavismo, lembrando que Chávez foi muito bom para o país dele, pois diminuiu bastante a pobreza e acabou com a dominação externa da PDVSA (Petróleos de Venezuela). A política de conteúdo local tinha um objetivo claro. Nós tínhamos sido, na década de 90, os maiores produtores de navios, junto com a Coréia do Sul. Nós estávamos em oitavo lugar e a Coréia do Sul devia estar ali pelo 13º lugar. Hoje, a Coréia é um grande produtor de navios e de equipamentos para a extração de petróleo. Ela manteve seu processo de industrialização e de internalização que nós interrompemos no governo Collor quando acabaram com a indústria naval brasileira.

Nós recuperamos essa indústria por meio da política de conteúdo local. Segundo essa política, tudo o que puder ser produzido no Brasil deve ser produzido no Brasil, mantendo-se a busca de mesmo custo, mesmo nível tecnológico e mesma qualidade dos produtos. Essa política estava em curso e, hoje, está sendo inteiramente destruída. O que estamos vendo hoje? Abre-se uma licitação na Petrobras, dirigida a empresas internacionais. Todas elas são grandes empresas de engenharia e todas são investigadas ou por questões administrativas ou por questões criminais em processos de corrupção. Mas podem participar da licitação. Já as nossas empresas estão impedidas de participar. Com isso, se destrói, não só a indústria naval, mas também a possibilidade de fornecimento de equipamentos, exportando empregos para o Japão, Coréia do Sul, Estados Unidos e para a própria Europa.

Esse processo de destruição da indústria naval brasileira e de toda a política de conteúdo local, mais cedo ou mais tarde, vai chegar à Petrobras. O nosso papel é impedir que isso aconteça. A internalização que promovemos não era só de empresas brasileiras. Podia-se internalizar aqui a produção de navios de qualquer nacionalidade. Mas tinha que produzir aqui. Isso foi feito em outros países do mundo. A Noruega fez isso quando descobriu que tinha reservas de petróleo significativas. As nossas são muito maiores.
A questão social é ainda mais grave. O modelo principal aí é a emenda constitucional que foi aprovada congelando por até vinte anos os investimentos. Mas ela não faz só isso, não. Ela enrijece o orçamento e, ao fazer isso, cruza duas coisas. Uma delas é o enquadramento do Brasil, mais uma vez, depois que nós interrompemos o neoliberalismo do Fernando Henrique. Para isso, é preciso “limpar” o orçamento, ou seja, tirar dele esses subsídios desnecessários para os pobres. Essa é a ideia que está por trás dessa emenda constitucional. Mas, além disso, ela também é uma medida de exceção. Está consagrado na Constituição que nós somos um país democrático que elege seu presidente pelo voto direto do povo brasileiro. Quando elegemos um presidente, elegemos um projeto que é executado via orçamento. Se se congela o orçamento por vinte anos, está burlando a Constituição ao longo de cinco mandatos. E onde fica o direito ao voto direto?

Então, o Fornazieri tem toda razão. Nós estamos vendo um processo de retrocesso, cujo objetivo central é reenquadrar o Brasil. Nós, junto com praticamente toda a América Latina, nadamos contra a corrente. Neste período, nós reduzimos a desigualdade enquanto que, no resto do mundo, ela se ampliou. No resto do mundo, a financeirização correu solta e levou a uma concentração de riqueza nunca antes vista. Nós interrompemos as privatizações, a perda de direitos. Por isso, agora, eles querem, também do ponto de vista geopolítico, reenquadrar o Brasil, um país que ousou ser multilateral, dar prioridade para a América Latina, para a África e para os BRICS, mantendo mesmo assim uma relação muito cordial com os países desenvolvidos. O que estamos vendo não se trata apenas de perda de direitos. Querem nos enquadrar em outro modelo, dar para nós outras balizas, outros limites e outra configuração.

Essa é a dimensão mais profunda do golpe. A mais visível é aquela expressa na frase “vamos estancar a sangria antes que eles cheguem até nós”, antes que as investigações de corrupção cheguem à ala política dos golpistas.

Sul21: O golpe foi dado carregando duas grandes “promessas” à sociedade brasileira: o combate à corrupção e a retomada do crescimento econômico. Essas duas “promessas” fracassaram. O desemprego atingiu níveis alarmantes e muitos dos investigados e indiciados na Lava-Jato estão governando o país. Considerando o “não cumprimento” desses temas poderíamos dizer que o golpe fracassou ou suas verdadeiras promessas são outras?

Dilma Rousseff: Eu acho que eles subestimaram a crise econômica e a crise política que eles mesmos geraram. Quando esteve no Brasil, no início de 2015, Stiglitz disse que a crise econômica estava precificada. O que não estava precificado é que se acoplasse a ela uma crise política de proporções gigantescas. Eles defenderam a tese de que a crise econômica era causada por uma falta de confiança que, por sua vez, decorria da crise fiscal. Ou seja, o governo tinha sido muito pródigo nas políticas sociais e havia gasto muito com subsídio ao investimento, gerando uma crise fiscal. Essa crise fiscal teria produzido uma crise de confiança. Enquanto essa não fosse resolvida, nada aconteceria. E a receita para resolver a crise fiscal seria cortar gastos. Um impostinho não pode? Não, de jeito nenhum. Um pato amarelo foi colocado na Avenida Paulista dizendo: ‘não pagaremos o pato’. Leia-se: não venham com impostos para nós porque não pagaremos. Não venham com CPMF, juro sobre capital próprio modificado ou dividendos, que não pagaremos.

A doutrina do corte de gastos é entronizada como a solução para todos os problemas. É óbvio que sempre é possível cortar algum gasto. O que não é óbvio é sustentar que cortar gastos resolve o problema. Quando há uma crise econômica ocorre uma queda da arrecadação. A arrecadação cai mais que as despesas e deprime a demanda, o que, por sua vez, deprime o crescimento, aumentando o desemprego e por aí vai. Então, pode-se cortar gastos, mas têm de aumentar a receita. A hora de aumentar receita é diante da crise. O pato da Avenida Paulista mostra que há sempre um conflito distributivo diante de uma crise. Quando se está numa fase de expansão, sobra dinheiro para todo mundo. Quando começa algum problema é preciso distribuir os cortes.

O problema da subestimação da crise é achar que se sai dessa situação com corte de gastos. A austeridade da Europa já provou que não sai. Os Estados Unidos, pragmaticamente, não fazem isso desse jeito. Hoje, há toda uma escola de economistas, inclusive dentro do Fundo Monetário Internacional, que questiona esse caminho. Agora, essa questão dos impostos é altamente ideologizada. Essa é uma discussão interditada. Os próprios setores progressistas do nosso país têm dificuldade de discutir imposto. Mas não existe forma de financiar um Estado a não ser por imposto ou por endividamento. A face mais explícita no golpe é a FIESP dizendo “não pagamos o pato”. E, entre nós, o silêncio.

No mundo em que o neoliberalismo é dominante há algumas verdades que são sagradas. A primeira verdade sagrada é que é preciso reduzir o tamanho do Estado. A segunda diz que é preciso privatizar, porque o Estado é inepto em certas atividades. Outra defende a redução de direitos sociais, pois eles criariam uma distorção, retirando estímulo para as pessoas competirem. A teoria dos tucanos e do pessoal do DEM sobre o “bolsa esmola” é derivada daí. Agora, o eixo central dessa teoria é a desregulação. O que é a desregulação? Não se meta com o capital financeiro e não tribute. Crie paraísos fiscais, para onde seja possível fugir evitando a tributação. Quando olhamos o comportamento da tributação no mundo, constatamos o seguinte: em toda parte, diminui a tributação sobre ganhos de capital e aumenta a tributação sobre as famílias, trabalhadores, classe média, tudo o que não é ganho de capital.

O fato de eles subestimarem a origem da crise cria um impasse. Nós pegamos uma queda das commodities, uma redução do crescimento da China, uma grave crise hídrica e os Estados Unidos saindo do quantitative easing, política baseada em juros baixos e liberação de muito dinheiro para rolar a dívida. Hoje, no Brasil, eles ficam muito felizes quando o dólar está baixo e o real alto. Esperam que essa relação fique abaixo de 3, ou seja, três reais para um dólar. Somos o único país que comemora isso. Trump criticou a Angela Merkel dizendo que o euro é uma manipulação da Alemanha para ter um marco desvalorizado e poder, assim, aumentar a sua capacidade de competição. Deixando a Alemanha entregue a si mesma, a relação dólar-euro teria o primeiro mais desvalorizado e o segundo mais valorizado. Com isso, os nossos produtos, disse Trump, seriam mais competitivos.

No Brasil, nós comemoramos o oposto. Comemoramos um dólar a menos de três reais, o que inviabiliza a indústria brasileira. A recuperação americana, mesmo com toda a sua desigualdade, se dá porque eles enchem de dinheiro o setor financeiro, desvalorizam o dólar e desandam a exportar. Aqui, o reino da financeirização é total. Percebi isso em toda profundidade no governo. Uma coisa me intrigava: porque toda vez que o juro baixava (em 2012, essa baixa chegou a 2,5%), era como se todo o segmento empresarial virasse de costas para o governo.

Sul21: Há quem diga que ali começou o processo do golpe…

Dilma Rousseff: Eu acho. Acho que uma parte começou ali. O que caracteriza o neoliberalismo hoje não é o fato de que eles tenham elaborado o Consenso de Washington, mas sim a preponderância do setor financeiro sobre o setor produtivo. De certa forma, todos viraram bancos. E quando todos viram bancos, é bom lembrar que, uma parte que não é banco propriamente dito, não está regulada. Uma parte expressiva dos ganhos das empresas passa a decorrer da atividade financeira e não da atividade produtiva. Os Estados Unidos são o que há de mais desenvolvido do ponto de vista do sistema capitalista. Lá, do total do movimento financeiro, 15% vai para o setor produtivo e 85% é compra e recompra de ações, empréstimos e todos os processos de transformar bens em títulos.

Neste contexto, o que explica o aumento brutal da desigualdade nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos? A própria eleição de Trump está relacionada a esse aumento da desigualdade. Esse aumento começou na década de 80, pós-Thatcher e pós-Reagan. O que aconteceu neste período foi a desregulação de todo o setor financeiro. O processo de internacionalização é eminentemente financeiro, tanto para o bem como para o mal. O sistema bancário foi internacionalizado, mas as redes de paraísos fiscais também o foram. Tivemos a partir daí um processo gravíssimo de concentração de riqueza. Esse processo explica o Trump e o Brexit (na Inglaterra).

No caso do Trump, não é só o homem branco sem formação universitária que está ganhando o que ganhava há 60 anos. Há uma estagnação de salário, uma dominação da atividade de serviços sobre a indústria e uma ampliação da financeirização em todas as áreas. A tesouraria das empresas passa a se interessar cada vez mais por valorização financeira. No caso do Brasil, agregue-se a isso o fato de que são sócios do giro da dívida, que permitem grandes ganhos, principalmente se se tem acesso aos mercados internacionais. Se se toma 1% lá fora e aplica 7% aqui, ganha-se 6% sem fazer nada. Essa dominação financeira é casada com o aumento da desigualdade. O nosso negócio não era o aumento da desigualdade, mas a sua diminuição. É importante que se diga isso porque toda a América Latina está sendo enquadrada. Quando enquadraram o Brasil e a Argentina, enquadraram todo o Sul do continente.

O aumento da desigualdade nos países desenvolvidos é fundamental para entender a dinâmica desse processo. Por que deu Trump se o Obama era tão simpático? O que explica o Brexit? Não está claro para ninguém que a raiz da desigualdade é a financeirização. O que dizem para o trabalhador branco americano? Esse bando de latinos está roubando o emprego de vocês. É preciso construir um muro na fronteira com o México. Mas dizem uma segunda coisa interessantíssima sobre o livre comércio. Os acordos como a ALCA, o Transpacífico e o Transatlântico também são responsáveis pelo desemprego, pois levam as empresas americanas para outros países. Ninguém toca no assunto “onde estão os grandes ganhos?”.

Há ainda outra explicação importante. Quando o governo não atende as demandas da sociedade, a política se torna irrelevante. Junto com isso ocorre um processo de despolitização. A política é substituída pela seguinte orientação: “vamos achar os culpados”. Quando mais concreto for o culpado mais fácil é. No período entre guerras foi assim. O surgimento do nazismo e do fascismo decorre dessa ausência de resposta do Estado. O vazio de propostas é preenchido por coisas do tipo “a culpa é dos imigrantes”. Pensar que a culpa pelo aumento da desigualdade nos Estados Unidos é dos latinos é algo ridículo. Estimula-se a briga dos pobres contra os pobres e não se fala nada sobre onde está concentrada a monstruosa riqueza de 16 trilhões de dólares anuais.
Aqui, nós temos um processo de enquadramento do Brasil. Com a eleição de Lula em 2003, nós interrompemos a implementação do neoliberalismo. Não interrompemos tudo, mas bloqueamos uma parte expressiva. Não conseguiram executar, por exemplo, uma pauta de desconstituição dos trabalhadores. Querendo ou não, a política de valorização do salário mínimo levou a um crescimento real de 75% do mínimo. Eles diziam que esse era um dos grandes componentes da inflação. Nós não privatizamos a Petrobras e também não privatizamos três grandes bancos: o Banco do Brasil (que concorre com os grandes bancos privados), a Caixa (único banco imobiliário do país) e o BNDES (único banco de financiamento de longo prazo). Além disso, não retiramos direitos sociais, muito pelo contrário. Foi por isso que decidiram nos enquadrar de novo, como fizeram também com a Argentina.

No caso do Brasil, há um interesse também de nos enquadrar geopoliticamente. Muita gente achou inadmissível a postura multilateral que adotamos e que acabou sendo responsável pelo surgimento dos BRICS, um grupo nada trivial que reuniu China, Rússia, Índia, África do Sul e Brasil. Um dos principais pontos da política externa do governo Obama, é bom lembrar, foi a contenção da China. Segue sendo, aliás. Quando decidimos fazer um banco dos BRICS…

Sul21: Aí já foi abusar da sorte…

Dilma Rousseff: É. Foi um abuso. Tem uma coisa que é muito pouco comentada. Nós criamos uma coisa chamada “Acordo Contingente de Reservas”. Você sabe o que é isso?

Sul21: Não.

Dilma Rousseff: É um FMI. Um acordo contingente de reservas é um fundo monetário dos BRICS, um fundo de 100 bilhões de dólares, a que os países podem recorrer em caso de crise cambial. Criamos, portanto, um banco de investimentos e um fundo contingente de reservas. Acho que isso era o que mais incomodava, além de toda a política dentro do G-20, de não termos votado a favor da invasão do Iraque e essa coisa toda. Então, acho que essas duas questões estavam na pauta: enquadramento econômico e geopolítico.

Sul21: A senhora disse que os articuladores do golpe subestimaram a crise política. Em que consiste exatamente essa subestimação?

Dilma Rousseff: Além dessa relação entre financeirização e aumento da desigualdade, há outro elemento importante. Uma sociedade com aumento abusivo de desigualdade acaba caminhando para ter medidas de exceção. Nós ganhamos quatro eleições. Acho que eles tinham perdido completamente a esperança de ganhar uma eleição dentro do método democrático e acabaram aplicando aquilo que Milton Friedman disse para Pinochet, fazendo com que o politicamente impensável torne-se politicamente inevitável. Isso acabou acontecendo por meio de uma série de medidas. Um exemplo disso foi a atitude do Supremo em relação à nomeação de Lula como ministro. O STF impediu que o Lula assumisse a condição de chefe da Casa Civil e, agora, permitiu que Moreira Franco virasse ministro. Nos dois casos, o Supremo não poderia ter interferido. Ele só interferiu no segundo por causa do primeiro, adotando critérios diferentes nos dois casos.

Quando você não respeita a isonomia, o arbítrio passa a ser a regra e o estado de exceção vai se infiltrando progressivamente na democracia. O principal mecanismo do estado de exceção é construir guetos antidemocráticos. Esses guetos não são territoriais. Podem ser tendências. Um exemplo disso é quando o Tribunal Regional Federal da 4ª Região diz que é possível tomar medidas excepcionais quando se trata de um caso excepcional como a Lava-Jato. Ou seja, pode até suspender a Constituição. Outro é aquilo que o procurador Dallagnol não teve o menor pudor de dizer sobre Lula: “Não tenho provas, mas tenho convicção”.

Quando se entra em um processo de ruptura institucional, como é o caso do impeachment, por aí se abre o caminho principal para o estado de exceção. Cria-se entre os poderes um mundo sem lei. Se é possível acertar o Executivo, sem crime de responsabilidade, que é o poder representativo do Estado, tudo é permitido.

Sul21: Como a Operação Lava-Jato se insere neste processo, em sua opinião?

Dilma Rousseff: O Brasil tem uma tradição de usar o tema do combate à corrupção contra os setores progressistas. Isso vem desde Getúlio Vargas. Em 1964, o golpe foi dado em torno de duas questões: subversão e corrupção. As acusações de corrupção foram lançadas também contra Jango e Juscelino. Acredito que há um componente ideológico fortíssimo aí. O que aconteceu na Lava-Jato tem aspectos bastante graves. O mais grave deles, em minha opinião, é a não preservação, pelo Estado brasileiro, das suas empresas. Pode-se prender executivos, mas preservando a empresa. Não é o que se está fazendo no Brasil. Quando é que a Alemanha fará isso contra a Siemens? Quando é que os Estados Unidos farão isso contra seus bancos? Nunca.

Outra coisa que me parece grave é a utilização político-ideológica de vazamentos seletivos. Esse processo de politização dos agentes judiciários é muito sério. É inadmissível que um juiz fale fora dos autos. Em qualquer lugar do mundo democrático, se um juiz fala fora dos autos, anula-se o processo. Aqui no Brasil, um juiz pode fazer isso que não acontece nada. Nós temos um problema sério para resolver aí. Nós temos um conflito de poderes. O estado de exceção significa o uso do Judiciário de forma política escrachada para fazer julgamentos políticos. Isso é o que mais caracteriza o estado de exceção que pretende transformar algumas pessoas em indivíduos nus, destituídos de qualquer pele de cidadania. Para mim, o exemplo maior de homem nu está nos prisioneiros de Guantánamo. Aquele povo ali é absolutamente nu. Não tem direito a nada. Não são cidadãos, não são prisioneiros de guerra, não são nada.

No Brasil, creio que tentaram fazer isso com o que chamaram de “lulopetismo”. O lulopetismo teve essa característica de ser transformado em um inimigo que deveria ser destruído. Está ficando difícil fazer isso por essa exigência de “estancar a sangria”. O estancamento da sangria - cabe lembrar - foi discutido antes do impeachment. Ninguém pode alegar que desconhecia isso. Está lá gravado, um senador do PMDB gravando outro senador. O que eles não contaram? O resto da gravação. Esse resto da gravação é absolutamente elucidativo, pois denuncia quem são os golpistas. Há uma aliança entre PMDB e PSDB, a qual se junta o pato da FIESP e a mídia.

Sul21: Qual é, na sua avaliação, o peso e o papel da grande mídia comercial em todo esse processo?

Dilma Rousseff: Há, em minha opinião, um processo seríssimo envolvendo a mídia. Creio que o Brasil tem dois grandes problemas estruturais: precisa fazer uma Reforma Política e promover uma desconcentração econômica da mídia. Não se trata de democratização da mídia. Vamos chamar as coisas pelo seu nome. Só poderemos falar em democratização em um quadro onde não haja tamanha concentração econômica. Não quero controle de conteúdo. Quero que a Rede Globo continue falando o que pensa, mas sem todo o poder econômico concentrado nela. Uma das coisas que o Eduardo Cunha negociou para ser presidente da Câmara foi que ele não deixaria andar qualquer projeto relacionado à desconcentração econômica da mídia. Tanto é que, um mês e meio antes de sua eleição para a presidência da Câmara, os jornais pararam de falar mal dele.

Sul21: A senhora viveu dois golpes, em épocas distintas, com características distintas. O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos disse que o golpe de 2016 tem um caráter mais antinacional que o de 1964. Concorda com essa avaliação e acredita que corremos o risco de um processo maior de repressão e fechamento político, considerando recentes declarações de Eliseu Padilha e do próprio Michel Temer?

Dilma Rousseff: Eu concordo que é mais antinacional. Também acho isso. Por outro lado, acho estranho o Exército aceitar um papel de repressão. Eles têm uma atribuição de ser uma força de dissuasão e não de repressão. E não gostam disso. Não querem que o Exército vá para a rua brigar com policiais, por exemplo. Só se mudaram muito de maio de 2016 para hoje. Um Exército não pode se dar ao luxo de reprimir a sua própria população. Isso é muito complicado e não significa garantia da lei e da ordem. O Exército não é um órgão de repressão de movimentos e grandes lutas urbanas. E não pode se tornar isso. Não acredito que os oficiais que estão hoje na direção do Exército concordem com isso.

Sul21: Há alguma resistência visível, dentro das Forças Armadas, ao desmonte de projetos que vinham sendo tratados como estratégicos, como o da construção do submarino nuclear, por exemplo?

Dilma Rousseff: Para a Marinha, é gravíssimo. Há três grandes projetos envolvendo cada uma das forças. Para a Aeronáutica era a construção do caça por meio de uma parceria de incorporação de tecnologia com a Suécia. Para a Marinha, é todo o programa do submarino nuclear. Esse processo avançou muito. Uma parte da engenharia estava lá na França e outra parte estava aqui construindo um submarino não nuclear. A interrupção desse projeto é gravíssima. É algo que, por questões de segurança nacional, não poderia ser interrompido. Para o Exército, havia dois grandes projetos, um sobre a guerra cibernética e outro relacionado ao parque industrial de armas médias e pesadas, além da proteção de espaços estratégicos como linhas de transmissão complexas que, se caírem, fazem cair um pedaço do Brasil. Esses projetos estão baseados em uma visão dupla com a qual trabalhamos, de construção soberana de uma indústria militar e de garantia da segurança nacional. Há um programa que foi construído a partir dessa visão.

Sul21: Considerando todo esse cenário, qual são, em sua opinião, as principais tarefas da esquerda e das forças progressistas do país neste momento?

Dilma Rousseff: A questão democrática é fundamental para nós. Sempre ganhamos quando a democracia se aprofundou e sempre perdemos quando ela foi restringida. O fato de termos um estudo de caso para o avanço do estado de exceção é muito elucidativo. Nós vamos ter um encontro direto com a democracia em 2018. A democracia é vivida todo dia, toda hora e todo minuto. Mas, no Brasil, a gente tende a viver o nacional e o popular em um momento único que é o momento da eleição. O que está em jogo hoje é o que vai ser a eleição de 2018. Essa será a pauta a partir da metade do ano. Acho que o Lula, nesta história, cumprirá um papel muito importante, concorrendo ou não. Será muito ruim para o país se ele não puder concorrer. O Brasil ficará desmoralizado. Ele pode perder a eleição. Não há desmoralização nenhuma nisso. O que não pode acontecer é ele ser impedido de concorrer.

Acho que eles vão vir com tudo. O golpe ainda não acabou. Eu fico com muito medo dessa segunda fase. Analogia nunca é um elemento muito confiável de avaliação, mas a segunda etapa do golpe pode ser muito mais radicalizada e propensa à repressão. Nossa missão é garantir o maior espaço democrático possível, denunciar todas as tentativas de restrição das liberdades democráticas e tentar garantir em 2018 um processo que seja construído por baixo. No Brasil, há uma tendência a acordos por cima. Foi assim que se passou do Império para a República. Um dos motivos pelos quais o Bolsonaro vai ao Congresso e defende o Ustra e a tortura é porque fizemos uma transição por cima para a democracia. Uma transição por cima permite que torturador seja anistiado, sendo que a tortura é um crime imprescritível em qualquer lugar do mundo.

Sempre é possível ter uma transição por cima, mas acho que as condições para termos uma transição desse tipo no Brasil inexistem atualmente. E não é tanto por causa da esquerda, mas sim pelo nível de radicalização da direita no país. Não vamos nos iludir. O leão não é manso. A única transição que está ao nosso alcance é uma transição por baixo que pode lavar a alma desse país em 2018, seja quem for que ganhe. O processo democrático tem o poder e a faculdade de propor um encerramento, se for uma eleição que não implique um golpe, que seria tirar o Lula. Não é uma questão minha ou sua. Não é uma questão individual. É só aí que podemos nos encontrar todos.



DEVASTAÇÃO NO COMERCIO: 108 MIL LOJAS FECHARAM EM 2016

Devastação no comercio: 108 mil lojas fecharam em 2016
Fernando Brito


A manchete de hoje do Estadão dá ideia da devastação que a gente mesmo vê percorrendo qualquer centro comercial ou shopping: “108,7 mil lojas formais encerraram as atividades no País no ano passado e 182 mil trabalhadores foram demitidos, descontadas as admissões do período, revela um estudo da Confederação Nacional do Comércio (CNC)”.

Ontem, Lauro Jardim publicou que 37,6% das salas comerciais de alto padrão para locação que estão vazias no Rio de Janeiro, é o maior índice da história e só um pouco pior que o de São Paulo, de 29%.

Semana passada, a Ford colocou seus trabalhadores em férias coletivas, na unidade de São Bernardo do Campo. Dias antes, a GM havia feito o mesmo.

Diz O Globo que um estudo do Banco Mundial aponta que o número de pessoas vivendo na pobreza no Brasil aumentará entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o fim deste ano.
Mas o Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, insiste que a economia “já está crescendo” e o PIB do primeiro trimestre deve ser positivo.

Pode ser. Mas com o estado de sobrevalorização cambial a que chegamos, só acreditando que os chacoalhos do Trump são só marola.


NPC NO DIA INTERNACIONAL DA MULHER

NPC NO DIA INTERNACIONAL DA MULHER
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O Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) desde sua fundação, há mais de 20 anos, trata as questões de raça e gênero com profundo respeito e atenção. Para nós, são temas centrais na luta pela emancipação da humanidade. Assim como é a luta de classes. Por isso, no ano de 1996, começamos a pesquisar a origem socialista do Dia de Mulher, 8 de março, após lermos o livro "La Journée internationale des femmes" (O Dia Internacional da Mulher), de Renée Coté, escrito em 1984.

 CONHEÇA A VERDADEIRA HISTÓRIA DO 8 DE MARÇO
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No ano de 2004, lançamos o caderno "A ORIGEM SOCIALISTA DO DIA DA MULHER", com pesquisa e texto de Claudia Giannotti e Vito Giannotti. Hoje, está em sua oitava edição.


Ele conta a história da greve de tecelãs que estourou em São Petersburgo no dia 8 de março de 1917, gerando uma grande manifestação que deu origem a Revolução Russa.

Para comprar um exemplar, entre em contato com livraria@piratininga.org.br ou pelo telefone (21) 2220-4623. 

Custo: R$ 10,00 mais frete.

Mas atenção: só temos 50 exemplares.

A nona edição, revista e atualizada, só será lançada em 2018.
 
Para ler entrevista com Claudia Giannotti, concedida em março do ano passado (2016) ao Terra Sem Males, clique aqui.

FALÁCIAS ECONÔMICAS DA TURMA DA CAIXINHA DE PANDORA

Falácias econômicas da turma da caixinha DE PANDORA

Luiz Gonzaga Belluzzo*


Entre 2012 e 2014, a economia brasileira sentiu os efeitos da desaceleração do ciclo expansivo que a beneficiou desde 2004. Nesse período, o governo da presidenta Dilma Rousseff cuidou de conceder isenções fiscais para a turma do Pato, retardou o programa de concessões e segurou o realinhamento de preços administrados.

No crepúsculo de 2014, os formadores da opinião midiático-financeira instilaram a pré-verdade econômica nos ares de Pindorama. O consenso da “turma da caixinha” propalava o desastre: a economia cresceu apenas 0,5% e apresentou um déficit primário de 0,6% do PIB em 2014.

A vitória de Dilma nas eleições aumentou a gritaria: desastre!, desastre! Tanto clamaram pelo desastre que a política econômica da turma da caixinha foi executada com esmero pelo ministro Joaquim Levy.

Dois anos depois, os incautos e crédulos descobriram que a caixinha da turma era a de Pandora.

Aberta a caixinha, os monstros ficaram à solta: o choque de tarifas voou lado a lado com o choque de taxa de juros, de mãos dadas com a forte desvalorização cambial. Para não deixar barato, os preços desaforados convidaram os cortes em investimentos públicos para mais um baile da Ilha Fiscal.

A interação entre o choque de tarifas, a subida da taxa de juros, a desvalorização do real e o corte dos investimentos públicos determinaram a elevação da inflação em simultâneo à contração do nível de atividade, e daí à restrição do crédito.

O encolhimento do circuito de formação da renda levou, inexoravelmente, à derrocada da arrecadação pública.

As fábricas se encharcam de capacidade ociosa. Endividadas em reais e em moeda estrangeira, as empresas são constrangidas a ajustar seus balanços diante das perspectivas de queda da demanda e do salto do serviço da dívida.

Para cada uma delas é racional dispensar trabalhadores, funcionários, assim como, diante da sobra de capacidade, procrastinar investimentos que geram demanda e empregos em outras empresas.

Para cada banco individualmente era recomendável subir o custo do crédito e racionar a oferta de novos empréstimos.

Os consumidores, bem, os consumidores reduzem os gastos. Uns estão desempregados e outros com medo do desemprego. Assim, o comércio capota, não vende e reduz as encomendas aos fornecedores que acumulam estoques e cortam ainda mais a produção.

As demissões disparam. A arrecadação míngua, sugada pelo redemoinho da atividade econômica em declínio. Isso, enquanto a dívida pública cresce sob o impacto dos juros reais e engorda ainda mais os cabedais do rentismo caboclo.

O mergulho depressivo iniciado entre o crepúsculo de 2014 e a aurora de 2015 pode ser apresentado como um exemplo do fenômeno que as teorias da complexidade chamam de “realimentação positiva” ou, no popular, “quanto mais cai, mais afunda”.

As decisões “racionais” do ponto de vista microeconômico, prestam homenagem às falácias de composição que infestam os modelos macroeconômicos: o que parece bom para o “agente individual” – seja ele empresa, banco ou consumidor – é danoso para o conjunto da economia.

Confrontando o trimestre de agosto a outubro de 2016 com igual trimestre de 2015, os dados do IBGE apontam uma elevação de 3,0 milhões de pessoas desocupadas na força de trabalho, um acréscimo de 32,7%. A massa de rendimento real habitualmente recebida pelas pessoas ocupadas em todos os trabalhos mostrou redução de 3,2%.

De janeiro a setembro de 2016, a quantidade de pedidos de recuperação judicial cresceu 62%, em comparação com o mesmo período de 2015, fruto do longo castigo imposto aos fluxos de caixa das empresas, pela queda na demanda e restrições ao crédito. Nos primeiros nove meses do ano, foram feitos 1.405 pedidos de falência no País. O número representa um aumento de 6% em relação ao mesmo período de 2015.

A retração de 0,8% do PIB no terceiro trimestre de 2016 foi a sétima de uma sequência iniciada no primeiro trimestre de 2015.

A mídia brasileira espargiu a convicção da rápida recaptura dos monstros liberados pela turma da caixinha. Até agora, nada. Um amigo empresário encalacrado em sucessivas negociações com os bancos sugeriu, entre rilhar de dentes, que não devemos desperdiçar a mitologia grega com episódios funestos. Disparou: essa turma é do Zé do Caixão.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor


 Fonte: Carta Capital

Privatização dos aeroportos


QUINTA-FEIRA, 16 DE FEVEREIRO DE 2017

Privatização dos aeroportos

Só espero que todos aqueles que consideravam que 'concessão não era privatização' antes de 2016 agora tenham refletido o bastante a respeito do equívoco.

Paulo Kliass *


Inicio meu dia com a leitura de uma notícia que me deixou um pouco atordoado. Não devo ter entendido bem. A matéria trata de um suposto “plano de criação de uma subsidiária da Infraero para ficar com os aeroportos lucrativos ou potencialmente rentáveis que ainda não foram privatizados”. Ou seja, o governo Temer considera a hipótese de constituição de uma empresa estatal em meio a esse discurso todo liberalóide de supremacia do mercado sobre o setor público? E a tão falada crise fiscal a ser combatida por todos os meios? No mínimo, esquisito.


Antes de cair no discurso simplista de que agora todos os sinais estariam trocados, acho importante recuperar no tempo o histórico e o debate a respeito do setor aeroportuário. Lembro-me como se fosse ontem, mas essa polêmica teve início quatro anos atrás. Escrevi um artigo em fevereiro de 2012, onde eu criticava a iniciativa da Presidenta Dilma de promover um festival de concessões de serviços públicos e de infraestrutura para iniciativa privada.
Ao longo do texto eu procurava identificar os equívocos de tal estratégia de cunho inequivocamente liberal, argumentando que havia um conjunto amplo de formas de privatizar as estruturas da administração pública. Desse ponto de vista, promover a concessão de ferrovias, portos, rodovias e aeroportos para a exploração pelo capital nacional e internacional configurava-se em uma modalidade bastante conhecida e utilizada de privatização pelo mundo afora.

Os adeptos do chapabranquismo a todo custo não hesitaram em me criticar. Eu estaria fazendo o jogo da direita, ao criticar a proposta do governo. Eu não estaria percebendo o óbvio: concessão não seria privatização. As condições para a transferência das atividades ao capital privado naquele momento seriam muito menos danosas ao erário público do que as experiências promovidas por governos tucanos. E por aí seguia o blábláblá. Mas não havia meio de dourar a pílula.

Dilma e a nova fase de privatização da infraestrutura.
Infelizmente Dilma não deu ouvidos aos muitos que alertávamos para os riscos envolvidos em tal operação suicida, que significa uma perigosa mudança de rota em direção aos braços dos representantes da ortodoxia liberal e dos hábeis negociadores que se especializaram em fazer fortunas sugando os recursos públicos de forma ilegal e/ou ilegítima. E assim foi dado início a mais uma etapa do processo de aprofundamento da privatização da infraestrutura em nosso País.
À época, o enorme esforço de contorcionismo retórico dos defensores do indefensável se concentrou no argumento de que “concessão não é privatização”. O recurso a tal muleta era mesmo uma necessidade até mesmo de sobrevivência política. Afinal, como dormir sossegado à noite ou discutir com os colegas que até a véspera eram críticos do processo privatizante que tantos males havia causado ao Brasil e à maioria do nosso povo? Árdua tarefa!
Ocorre que não poderiam ignorar que a venda do patrimônio de uma empresa estatal para o empresário é apenas uma dentre as inúmeras formas de privatização que o mundo capitalista já conseguiu conceber e realizar. Pode-se privatizar a gestão de uma empresa ainda de maioria acionária do Estado por meio de facilidades e acordos oferecidos ao mundo do capital. Pode-se privatizar a estrutura de serviços de saúde, por exemplo, por meio dos contratos de gestão oferecidos às famosas organizações sociais. Pode-se privatizar o ensino universitário ao ampliar desmesuradamente a oferta de vagas em instituições privadas – tudo isso com a mão generosa do Estado assegurando recursos para programas como o Prouni e o Fies. Enfim, reduzir o debate a “concessão vs privatização” é uma falsa polêmica. Os termos dessa equação não são antagônicos.Como escrevi logo depois, ainda em 2012, considero que concessão é iguala a privatização.
Concessão é uma forma de privatização.
Assim, pode-se também promover a privatização de serviços públicos por meio de contratos de concessão ao capital. É esse o caso de portos, ferrovias, metrôs, energia, telecomunicações, hidrovias e aeroportos, entre tantos outros. Mas desçamos ao detalhe dos terminais aeroportuários, que nos interessa mais nesse momento. O processo foi feito de maneira lenta, retirando da empresa estatal federal responsável pelo setor a atribuição exclusiva de tal operação. A Infraero foi perdendo a responsabilidade pela gestão de seu patrimônio. Ela foi sendo obrigada a abandonar a sua própria razão de ser, em última instância.
Em agosto de 2011 foi realizado o leilão de um aeroporto ainda pouco conhecido: São Gonçalo do Amarante (RN). A concessão teve início em janeiro do ano seguinte, com todas as fichas tendo sido colocadas no potencial de turismo internacional, especialmente europeu, com destino ao Nordeste brasileiro.
Na sequência, foi realizado um movimento mais ousado, com a entrega de três aeroportos mais apetitosos em termos de potencial de faturamento. Em fevereiro de 2012, foi realizado o leilão em que o governo Dilma ofereceu Brasília (DF), Guarulhos (SP) e Viracopos (SP) ao capital privado. As concessões aos consórcios  tiveram início alguns meses depois, em julho do mesmo ano.
O terceiro lote finaliza essa primeira etapa, quando são outorgados os direitos exploratórios das unidades do Galeão (RJ) e de Confins (MG), que também se localizam dentre os terminais brasileiros de maior movimento e de grande potencial econômico-financeiro. Em meio aos representantes do governo no processo figuravam Moreira Franco e Eliseu Padilha, que não se continham em louvar a participação tão desejada de grupos internacionais nas novas gestões “competentes, profissionais e privadas” dos aeroportos sob nova direção. Os leilões foram realizados em novembro de 2013 e as concessões privadas tiveram início em maio de 2014.
Entre 2011 e 2014 foram 6 aeroportos concedidos.
As generosidades foram concedidas por períodos de exploração que variam entre 20 e 30 anos, com uma média pouco superior a 26 anos nesses 6 primeiros casos. Os detentores do capital privado foram contemplados com recursos públicos para suas operações e têm sido sistematicamente beneficiados com medidas de elevação de tarifas aeroportuárias e condições favoráveis às concessionárias. Apesar da Infraero ainda manter uma participação minoritária formal na composição acionária, a empresa federal não participa da gestão de nenhum dos aeroportos concedidos.
Dando sequência a esse cronograma, o governo Temer definiu a concessão ao mundo privado de outros quatro aeroportos igualmente estratégicos. Os terminais de Porto Alegre, Salvador, Florianópolis e Fortaleza deverão ser leiloados em 16 de março próximo. A conjuntura de crise tem apresentado uma série de incertezas a respeito da disposição do “espírito animal” do empreendedorismo privado em recolher os valores aos cofres públicos em troca do potencial de arrecadação de receita futura.
Essa deve ser, aliás, uma das razões para a surpreendente proposta da nova/velha dupla Moreira Franco e Eliseu Padilha de constituir uma nova empresa pública para atuar na área. Assim, os terminais mais saborosos seriam transferidos para a estatal a ser constituída, com o objetivo declarado de resguardar os “bons” ativos da Infraero e facilitar sua transferência ao capital privado.
Temer prepara o novo pacote de terminais privatizados.
Dessa forma, mantém-se a racionalidade do processo privatizante. Oferecer ao capital toda a sorte de bondades e reduzir ao máximo os riscos da operação. O Estado permanece com a responsabilidade de oferecer serviços aeroportuários de menor rentabilidade, em localidades mais distantes dos centros de maior movimento. Ao mesmo tempo em que fica com o osso do sistema, o setor público se encarrega de oferecer o filé mignon ao capital privado em troca de alguns poucos e minguados recursos apresentados nos leilões. Vale observar que esses lances serão ainda mais desvalorizados em função da recessão que nos aflige. 
Aliás, todos os investidores estão de olho para saber quando e como serão privatizados Congonhas (SP) e Santos Dumont (RJ). Eles são aeroportos muito bem localizados e com alto potencial de exploração econômico-financeira. Ambos simbolizam quase à perfeição o caso típico de prévio investimento pesado do Estado para depois oferecer o empreendimento prontinho para o usufruto seguro por parte do consórcio privado.
Só espero que todos aqueles que consideravam que “concessão não era privatização” antes de 2016 agora tenham refletido o bastante a respeito do equívoco e venham se somar na denúncia de mais essa tentativa de oferecer ao capital privado nacional e internacional a responsabilidade pela gestão dos aeroportos brasileiros.
Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Texto original: CARTA MAIOR