terça-feira, 23 de maio de 2017

AH, SE MORO NÃO TIVESSE QUEBRADO O BRASIL...

Ah, se Moro não tivesse quebrado o Brasil...

Teria sido possível prender os corruptos e salvar as empresas!

Entrevista
Paulo Henrique Amorim


Conversa Afiada reproduz importantíssima entrevista de Walfrido Jorge Warde Júnior, sócio da Warde Advogados, formado em Direito e Filosofia pela USP e doutor pela USP, a Alexa Salomão:

O advogado Walfrido Warde Júnior (...) defende: “Precisamos punir os responsáveis, mas também preservar os negócios”, diz.

(...)

Nós temos algumas leis que gravitam no entorno do problema da corrupção, especificamente da corrupção endêmica, que é o caso da Lava-Jato. Temos a lei de improbidade administrativa, pela qual o Estado busca ressarcimentos – condena quem causou o dano a pagá-lo e impõe outras punições. Por exemplo: não poder fechar contratos com o poder público – caso de empresas; ou perder direitos políticos – caso de pessoa física. Essa ação é pelo Ministério Público. Tem também o processo penal. O autor também é o Ministério Público. Além disso, tem o processo administrativo, que, no caso da Lava-Jato, é tocado pelo Ministério da Transparência (antiga Controladoria Geral da União, CGU), que pode levar à improbidade administrativamente. Então, fazer uma leniência com a ex-CGU não significa que o Ministério Público vá parar uma ação penal. O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) busca infrações às regras de proteção à concorrência. TCU (Tribunal de Contas da União) vê se tudo é feito conforme as regras, se a indenização é correta, se a multa é adequada. E por aí vai.

·        O correto seria negociar com todos ao mesmo tempo?

Correto seria que tivéssemos uma legislação que trouxesse toda essa gente para sentar à mesa, em colaboração.

·        Mas o que estamos vendo é concorrência e busca de protagonismo entre eles.

Não podemos ter um combate inconsequente. Quando digo inconsequente é um combate que destrua a empresa brasileira, que acaba com o capitalismo nacional.

·        É isso que está acontecendo?

Estamos vendo isso acontecer. A gente tinha um modelo de capitalismo – podemos discutir se era certo ou errado, mas era assim – escorado em relações entre Estado e empresas. As construtoras eram como recheios do Estado. De um lado, negociavam com o Estado financiamentos para as suas atividades; do outro lado, desde os anos 90, passaram a exercer funções estatais, como concessionárias de serviços públicos.

O perecimento dessas relações tem impacto. Mesmo que elas não tenham sido condenadas, têm problema de reputação. O Estado não pode financiá-las, contratá-las. Simplesmente congelamos um setor importantíssimo da economia.

·        Como empresas corruptas são punidas em outros países?

Temos coisas que nos distinguem do resto do mundo. Primeiro, falta pragmatismo no tratamento dessas questões. No resto do mundo a lei põe todo mundo na cadeia, apresenta qual é o dano, qual indenização deve ser paga, de uma maneira possível, para impactar o mínimo possível a empresa. A segunda coisa é o nosso nível de concentração econômica. Essas empresas são todas pelos donos. É mais fácil quando são de capital aberto.

·        O executivo é uma peça móvel.

Exato. Não há dúvida que no caso brasileiro tem essa dificuldade: achar que uma organização vai deixar de ser como ela era porque você mandou o executivo embora, mas o controlador permanece, é uma ilusão.

(...)
Lá em 2015, a gente tinha uma proposta (veja no Conversa Afiada entrevista com o professor Gilberto Bercovici, um dos co-autores dessa proposta - PHA) que retornou há pouco na voz do ministro Bruno Dantas (do TCU). Você não vai na holding e tira o controlador, mas é possível fazer uma abertura do fechadíssimo mercado de infraestrutura transferindo as concessões. Vamos supor que após a investigação se conclui o tamanho do prejuízo que uma empreiteira causou ao erário. Ela paga transferindo ao Estado as ações do projeto dessa hidrelétrica e o Estado leva a leilão. Se der para cobrir a multa, maravilha. Se não, precisa dar ações de outros projetos.

·        Mas o Estado já foi lesado e ainda vai entrar nisso. Por quê?

Você tem ressarcimento rápido, permite que as empresas paguem a sua dívida com a sociedade e o País e destrava o mercado de infraestrutura.

·        Fazer algo assim não pode dar a sensação de que elas não estão sendo devidamente punidas?

Vão ficar sem punição se quebrarem e não pagarem o que devem. Podem achar que deixar que elas quebrem seria uma punição. Não é. Isso seria uma vendeta emocional.

(...)

Não existem Estados distintos. Existem agentes distintos do Estado. A força-tarefa tem um trabalho importantíssimo de combate à corrupção. Mas não é possível imaginar que Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário estão apartados de outros interesses nacionais. A minha ponderação é simples. Precisamos punir os responsáveis, mas também preservar os negócios.


SONHO E REALIDADE

SONHO E REALIDADE
Mino Carta


Diretas antecipadas são a solução inteligente e pacífica, mas a Casa Grande vai resistir.

Os fados costumam arcar com um papel importante, às vezes decisivo, na história do Brasil. Em meio ao caos precipitado pelo golpe de 2016 irrompe o elemento-surpresa de sorte a abrir uma perspectiva para a saída da crise. A solução correta, pacífica e inteligente, está na convocação de eleições diretas antecipadas no prazo mais curto possível. Ao povo a palavra final.

Não faltam pedras neste caminho, a se considerar que as instituições da República inexistem, enquanto os senhores da Casa Grande cuidarão, conforme a tradição manda, de conciliar seus interesses com a nova conjuntura.

Houvesse condições de confiar nos poderes republicanos, contássemos com Legislativo e Judiciário à altura da situação, poderíamos apostar em um retoque constitucional capaz de reduzir ao mínimo o tempo de um governo provisório eleito indiretamente para logo alcançar o momento das diretas.

Corremos o risco, contudo, de ter de padecer a súbita presença no Planalto de Cármen Lúcia, por exemplo, ou Nelson Jobim. Pasmem: talvez Fernando Henrique. E que tal Henrique Meirelles?

Não duvidemos que seja este o projeto de saída acalentado pelos golpistas e não nos deixemos enganar se a mídia nativa se apressasse a abandonar o barco que soçobra. Trata-se de um específico barco, e não do transatlântico das prepotências e das artimanhas da Casa Grande.

Os barões midiáticos saberão instruir editorialistas, colunistas, repórteres, âncoras, locutores, no sentido que lhes convém, a eles apenas e não ao País.

Nos corredores da Casa Grande ouve-se murmurar os nomes mais cotados para reger a orquestra do futuro e ninguém como Henrique Meirelles, o homem para todas as estações, seria mais adequado para a manutenção do projeto de país até hoje comandado por Michel Temer.

Diga-se que aos infinitos atributos de Meirelles soma-se o de ter sido presidente do Conselho de Administração da holding da JBS, de 2012 a 2016. Sublinho, JBS, a empresa do Joesley Batista, o grande acusador do momento.

A capa de Veja pós-depoimento de Lula na República de Curitiba tem a força altamente simbólica de toda a ferocidade, no nível extremo e mais vulgar, que o ódio de classe pode atingir no Brasil do golpe de 2016. A campanha das Lojas Marisa por ocasião do Dia das Mães não deixa por menos. E é fácil imaginar os aplausos que saudaram as duas iniciativas e os cumprimentos calorosos recebidos pelos autores, celebrados por sua genialidade.

Vivemos um estado de exceção em que tudo se permite impunemente. A Casa Grande manda sem intermediários, ao contrário da ditadura da segunda metade do século passado, que entregou aos militares o serviço sujo. Assenhorou-se das instituições e fez delas suas aias, valeu-se da colaboração dos milenaristas curitibanos e confirmou a mídia nativa no departamento de propaganda. Os jagunços prontificam-se a vestir uniforme policial.

E os barões midiáticos são titulares da mansão, representada País afora, uma das suas dependências se estabelece no Rio de Janeiro nas cercanias da Lagoa Rodrigo de Freitas e em São Paulo às margens fétidas do Rio Pinheiros. Dali reinam os senhores Marinho, e ganham, inclusive, a genuflexão de políticos que se dizem de esquerda: o apoio do plim plim é indispensável à sua ascensão. Vale acrescentar que uma entrevista nas páginas amarelas de Veja também é muito valiosa.

Em diversas passagens dos governos de Lula e Dilma, a SECOM virou antessala da Globo, enquanto CartaCapital era definida revista chapa-branca por praticar o jornalismo com o respeito devido à verdade factual, embora punida por um critério técnico que na Inglaterra teria fulminado The Economist. Nem se fale dos tempos do ministro Paulo Bernardo. Como propagandista das vontades da Casa Grande, a mídia esbalda-se agora, fiel à tarefa de semear o ódio contra o operário ousado além da conta e do seu partido.

Escrevi mais de uma vez neste espaço que a vitória de um ex-metalúrgico nas eleições de 2002 representava um divisor de águas na história do Brasil, ao inaugurar uma nova estação política em busca da democracia autêntica, até então impedida pela monstruosa desigualdade social. Iludia-me, como já se dera inúmeras vezes. Mudança houve, contudo, no sentido oposto e o Brasil correu vertiginosamente no rumo do passado remoto.

Nos dois mandatos de Lula, o País tornou-se protagonista na ribalta da política mundial, hoje passa a figurar no coro grego dos desgraçados. Os vendilhões da pátria que dizem amar, conforme convém aos canalhas, cuidam de assegurar-lhe a condição de súdito de algum império. E quem haverá de impedi-los? Por ora, não é imaginável a revolta das ruas.

Dizia um grande brasileiro, exceção obviamente, Joaquim Nabuco, que não bastava abolir a escravidão, seria preciso acabar com a cultura da escravidão, caso contrário o Brasil padeceria mais três séculos de prepotência e atraso. Palavras escritas há bem mais de cem anos, tragicamente proféticas.

Manter a maioria neste limbo, neste prematuro oblívio, foi o objetivo da chamada elite, sempre eficaz nos seus intentos, como costumava sublinhar Raymundo Faoro. Sábia apenas no empenho de manter de pé a Casa-Senzala e a Senzala, ao mesmo tempo incapaz de entender que o povo é um tesouro do País, a par das inúmeras dádivas oferecidas pela Natureza.

História dolorosa até o absurdo absoluto dos dias de hoje, sem descurar de variados aspectos da situação. Elite cada vez mais ignorante, grosseira, exibicionista, feroz. Podemos entender a resignação de quantos trazem nos lombos a marca da chibata, assim como podemos perceber a índole e os humores da chamada elite ao confrontar os senhores atuais com aqueles desenhados por Debret, enquanto escravos agitam sobre suas cabeças leques descomunais. São exatamente os mesmos.

Neste cenário, e com tais personagens, ainda há quem suponha viver em um recanto digno da contemporaneidade. Nutrem os pretensos letrados a certeza de que convivem aqui direita e esquerda, como se houvesse ideologias vivas além daquela da predação.

Sim, haverá um ou outro conservador, ou liberal à moda antiga, algum respeitável leitor de Marx e Gramsci, assim como há os generosos e solidários leitores de CartaCapital. Mas a dicotomia criada à sombra da Revolução Francesa nas nossas paragens, sobretudo nesta quadra da história, não tem a mais pálida chance de medrar.

Não sei se teremos a ventura de assistir à reedição da campanha das Diretas Já de 1984. Reuniu milhões em ruas e praças, foram as primeiras, fluviais manifestações populares movidas pelos mais dignos intuitos. Recordo, porém, e com pesar, que José Sarney, futuro presidente da República, foi quem comandou no Congresso a rejeição da emenda das diretas por uma vantagem de dois votos apenas.

CartaCapital certamente apoiaria a candidatura de Lula se a razão acabasse por triunfar e vingasse a solução das eleições antecipadas. Um destacado juiz italiano, Gerardo Colombo, integrante da força-tarefa da Mani Pulite, na qual Sergio Moro diz inspirar-se, veio ao Brasil no ano passado para entender de perto o funcionamento da Lava-Jato.

No regresso à Itália disse textualmente ao amigo Antonio Vermigli: “Se Mani Pulite tivesse se portado como o juiz Moro, nós é que teríamos acabado na cadeia”. Vermigli é um carteiro toscano que, depois de aposentado, tornou-se respeitado ativista político e bom amigo de Lula, e como tal participou de uma recente reunião na Câmara dos Deputados em Roma com os advogados do ex-presidente, chamados a expor irregularidades e absurdos jurídicos cometidos pela República de Curitiba.

Sinto muito comunicar aos nossos fiéis leitores que este é o meu último editorial, só voltaria a escrever se as diretas fossem convocadas sem maiores delongas e se, finalmente, a justiça fosse feita. Minha ausência neste espaço não significa que abandono a pequena e valente equipe de CartaCapital, de honestos praticantes do jornalismo, tanto mais em um momento de dificuldade extrema. Estamos asfixiados financeiramente por um governo ilegítimo, sabidamente corrupto, e pelo abandono de setores do empresariado que outrora tinham maior compromisso com a diversidade e a pluralidade.


Yvonne Jean, Brasília e a UnB (1962-1965)

Yvonne Jean, Brasília e a UnB (1962-1965)

As expectativas e as desilusões de um projeto modernista nas colunas de uma jornalista de origem belga que abraçou o Brasil.

Por Ana Paula Teixeira
“Viviam-se tempos de nacionalismos expressos em experimentos de uma nova arquitetura política para as instituições estatais, visível, inclusive, nos prédios que deviam abrigá-las, espelhando o poder e a ousadia que deviam mover o país”. É o que relata Angela de Castro Gomes sobre o período que vai de 1930 a 1964 no Brasil. [1] E poucos marcos representam tão bem esse clima como a construção de Brasília.
A nova capital, moderna e planejada, cidade-modelo construída no interior do país, era o espelho de um Brasil que se desenvolvia, que se urbanizava (de forma original) e que tinha a expectativa de não repetir os erros dos países europeus, bastante óbvios depois da Segunda Guerra Mundial. Para isso, o modernismo acabou se tornando a grande promessa. Esse movimento artístico de ressonância global, que era também uma sensibilidade política e uma forma de entender o mundo, já estava presente nas artes e na arquitetura do país há décadas. Mas chegaria ao seu esplendor com a construção de Brasília: uma cidade que nascia sob a égide do futuro, do planejamento e da inteligência, uma cidade que nasceu para ser ela toda uma espécie de obra de arte a céu aberto no interior do Brasil.
Yvonne Jean e Correio Braziliense
A jornalista Yvonne Jean e o prédio do “Correio Braziliense” ao fundo. Foto: Arquivo Público do Distrito Federal – Fundo Privado Yvonne Jean.
A ideia de Brasília era impactante e contagiante. Especialmente para uma jornalista de origem belga, apaixonada pelo Brasil. Yvonne Jean, de ascendência judia, veio para o Rio de Janeiro aos 29 anos de idade fugindo da invasão nazista em seu país. [2] Aqui se casou e se naturalizou brasileira. Com bom trânsito na vida intelectual e artística, incluiu uma carta de recomendação do poeta Carlos Drummond de Andrade que destacava sua “brasilidade” em seu processo de naturalização. [3]
Jean chegou ao porto do Rio de Janeiro pela primeira vez em 1940 e, embora fosse histologista de profissão, começou a escrever para a imprensa carioca já no ano seguinte, estreando com uma crônica sobre sua vinda para o Brasil. Nela, Jean revelou seu pouco conhecimento sobre o país e suas expectativas: “Como não se imagina nem teatros, nem cinemas (…) fica-se assustado pela carência da vida citadina. (…) Imaginai o que experimentei encontrando-me face a face com o edifício de A Noite”.[4] Seu estranhamento, contudo, deu lugar à familiaridade. Jean rapidamente incorporou o “nós”, colocando-se ao lado dos brasileiros, por exemplo, ao se referir aos países europeus. Em uma de suas colunas, falou da França como “um país que sempre nos serviu de guia espiritual no passado” [5] [grifo nosso]. Entre 1941 e 1971, a antiga histologista e agora jornalista escreveu crônicas e reportagens sobre diversos temas, mas principalmente sobre arte, cotidiano, cultura e educação para os jornais Diário de NotíciasCorreio da ManhãÚltima Hora e Correio Braziliense, entre outros títulos.
Ida para Brasília e a vida na nova capital
Em 1962, Jean migrou com a família para a nova capital brasileira atendendo ao convite do antropólogo Darcy Ribeiro para entrar para atuar na nova Universidade de Brasília. [6] Na UnB ela trabalharia para o Centro de Extensão Cultural. Neste momento, se opera um encanto esperançoso muito parecido com o que ela vivenciou quando da chegada ao Brasil: sua produção na imprensa é marcada pelas observações do cotidiano, por suas expectativas quanto ao desenvolvimento da cidade e pelas reivindicações em tons otimistas.
 Brasília só ficaria completa com “uma educação nova ao alcance de todos” e quando uma “cultura autônoma e dinâmica impregnar o concreto e o vidro dos prédios, dando-lhes sua vida efetiva”. 
Em Brasília, a jornalista assumiu novamente o pronome no plural durante toda sua contribuição na imprensa – agora um nós mais local: “Nós que fazemos questão do título de ‘brasilienses’; nós que para cá viemos há oito, nove ou dez anos, para morar e não para pousar vez ou outra…” [7]. E não se tratava só de uma forma de escrever e ganhar leitores, como se poderia desconfiar. Yvonne tinha se envolvido muito pessoalmente com o desenvolvimento da nova capital – acreditava que era preciso transformar Brasília em lugar de cultura e arte. O Brasil, conforme ela mesma explicou certa vez, criou “uma moderna cidade sem grades” que só ficaria completa com “uma educação nova ao alcance de todos” e quando uma “cultura autônoma e dinâmica impregnar o concreto e o vidro dos prédios, dando-lhes sua vida efetiva”. [8] Mas como ela contribuiu para esse projeto?
Além da divulgação da arte na capital e das reivindicações públicas que fazia por meio da imprensa, como o pedido de conclusão ágil das obras do Teatro Nacional – “Onde já se viu capital de um país sem teatro” [9] – organizou na UnB cursos e palestras com artistas locais e de outros estados, como o de “Artesanato no Brasil” que orientou em 1963. [10] Em dezembro de 1968, fundou a Galeria Paiol, embora tenha durando apenas um ano. Como poliglota – ela falava nove línguas – Yvonne também atuou como intérprete em conferências internacionais e na tradução de obras, como a peça Cristo versus Bomba, que lhe rendeu parceria com a diretora Silvia Orthof.
Os textos de Yvonne Jean no Correio Braziliense são sintomáticos de seu envolvimento profundo com os sonhos da cidade-modelo. Sua coluna se chamava “Esquina de Brasília” e foi publicada entre janeiro de 1962 e março 1971, exceto por um breve momento (maio de 1962 a fevereiro de 1965), quando mudou de nome: “expliquei que daria o primeiro e principal lugar ao assunto número um do Brasil, em geral, e de Brasília em particular: à educação. Tanto fiz isto que a ‘Esquina de Brasília’ acabou transformada em ‘O Ensino Dia a Dia’!” [11] Este era justamente o momento em que Jean estava mais envolvida e empolgada com a UnB. “Escolas de concepção moderna estão nascendo, uma universidade renovada e renovadora está se preparando a irradiar cultura na cidade nova.” [12]
Mas não era só ela que estava entusiasmada. Quando abriram as inscrições para o primeiro vestibular “Nada menos que 120 candidatos apresentaram-se no primeiro dia”. [13] Havia um enorme entusiasmo com a construção da universidade que estava presente em quase todas as colunas de Jean. Falava-se de um currículo inovador, de professores altamente capacitados, de uma instituição, enfim, que poderia ser comparada com as melhores congêneres do mundo.
A UnB simbolizava todo o sonho de Brasília no âmbito da cultura e das mentalidades: uma universidade integradora – tanto dos estudantes e não estudantes, como dos estudantes de outras localidades nacionais ou do estrangeiro, das trocas entre departamentos etc. –, com propostas pedagógicas inovadoras para a época, tais como a divisão por semestres e créditos de disciplinas, cursos-tronco integrando estudantes de áreas afins, centro de promoção de cultura e pós-graduação. Além da arquitetura em si, que fez Oscar Niemeyer e Alcides Rocha Miranda “passarem alguns dias e algumas noites desenhando plantas” [14].
Intervenções militares na UnB
Embora a UnB seja atualmente uma referência nacional de ensino superior, seu projeto inicial sofreu um grave baque logo nos primeiros anos após sua inauguração, em 1962, com o Golpe Civil-Militar de 1964. Nos 18 meses seguintes ao golpe, foram realizadas duas invasões militares com a justificativa de expurgar os comunistas da instituição: em abril de 1964 e em outubro de 1965. [15] Na primeira, tropas militares apreenderam livros e materiais considerados “subversivos”. [16] E quanto à segunda, ela ocasionou a demissão ou retorno às repartições de origem de 15 professores. A reação da comunidade docente da UnB foi um pedido de demissão coletiva de cerca de dois terços do seu corpo docente. [17] A evasão de intelectuais esmagou o núcleo inicial do projeto da UnB. Saíram personalidades como o arquiteto Oscar Niemeyer, o físico que acabara de retornar do CERN, em Genebra, Roberto A. Salmeron, o jurista José Sepulveda Pertence, que se tornaria Ministro do STF entre 1989 e 2007, o artista plástico Athos Bulcão, entre outros.
Nos dias que se seguiram à primeira invasão, Jean não comentou sobre o episódio diretamente, porém não deixou de mencionar algum desconforto mais generalizado: “Em momentos de crise, dificuldades ou transformação, o cinema é, sem dúvida, um lenitivo. Infelizmente, não o encontramos em Brasília. (…) Só nos permitimos fazer um apêlo aos nossos dois únicos cinemas para que nos proporcionem o divertimento que qualquer pessoa encontra em qualquer outra cidade do país, mesmo pequena.” [18] Já na segunda invasão, Yvonne Jean faz uma cobertura mais detalhada, publica a carta dos professores e posicionamento dos estudantes. E nas semanas seguintes destaca as mudanças negativas que parecem começar na UnB, como as declarações do então reitor Laerte Ramos de Carvalho de que “a Extensão Cultural não era essencial à UnB”, portanto, poderia parar o setor – que para a jornalista era “exatamente uma inovação surgida naturalmente no conceito novo da universidade” – ou “a segunda sugestão de corte [devido a verbas]” do reitor se referindo ao Instituto Central de Artes. [19] Cerca de um mês depois, claramente desapontada, Jean reposicionou sua coluna, justificando que o ensino primário já estava consolidado, o secundário “estava nos trilhos” e o superior “perdeu as características específicas da experiência UnB.” [20]
Ditadura e memória em Brasília
Yvonne Jean continuou realizando trabalhos para a UnB – principalmente de traduções e como intérprete em conferências –, mas sua relação com a universidade tinha mudado. Ela retomou a coluna “Esquina de Brasília”, mas focada no cotidiano da cidade. Suas colunas exprimiam otimismo – “Aqui em Brasília, onde tudo é possível de se criar” [21] –, porém, ao mesmo tempo, quase que de maneira indissociável, também evidenciavam o quanto do projeto de Brasília ainda estava no papel. A nova capital, que demorou a se consolidar como centro de poder político – o general Médici foi o primeiro a governar exclusivamente de Brasília (1970-1974) [22] –, também não tinha se consolidado como referência sociocultural. Em 1970, ela expressa sua insatisfação pela falta de grupos de teatro em Brasília e pela escassez de visitas de grupos de fora, pelos fechamentos das galerias de arte e reclama que nenhum artista brasiliense foi selecionado para a Bienal de Arte de São Paulo daquele ano. Relata um encontro na casa de Dinah Silveira de Queiroz e Dário Castro Alves, que permitiram que a artista paulista Alice Maria exibisse seus objetos de cerâmica para convidados, atribuindo, então, às pequenas iniciativas individuais o estabelecimento de novos pontos de contato que a cidade precisaria estabelecer. [23]
A jornalista não foi alvo das investigações na UnB, mas em 1969 foi acusada de fazer parte de uma reunião do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1971 Jean é considerada culpada.
É interessante observar que, apesar do exílio de Darcy Ribeiro e outros tantos colegas, Jean permaneceu residindo em Brasília até o fim de sua vida. Isso não quer dizer que esta permanência tenha sido fácil. A jornalista não foi alvo das investigações na UnB, mas em 1969 foi acusada de fazer parte de uma reunião do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1971 Jean é considerada culpada. Uma semana depois da sentença, em 6 de abril de 1971, ela sai do Correio Braziliense e não retoma mais às suas atividades recorrentes na imprensa. [24] Após recursos, sua condenação é confirmada em 1972: 12 meses de prisão convertida à prisão domiciliar devido às suas condições de saúde. [25]
Nesse período, ela escreveu um livro sobre sua experiência de prisão e julgamento e outro com memórias de suas mais importantes entrevistas na imprensa. Ambos, no entanto, não foram publicados – embora seus livros infantis das décadas anteriores tenham sido reeditados. Ela faleceu, viúva, em 1982, ainda residindo em Brasília, onde mora seu único filho, João Luís. Seu herdeiro doou todos os materiais do escritório da mãe para o Arquivo Público do Distrito Federal, que disponibiliza o Fundo Privado Yvonne Jean para consulta no local, sendo que quase todo material – exceto o acervo de fotografias – se encontra digitalizado. Os historiadores do jornalismo, da UnB, de Brasília e da trajetória de Yvonne Jean agradecem.

Notas
[1] GOMES, Angela de Castro. As Marcas do Período. In: GOMES, Angela de Castro (coord.) Olhando para dentro 1930-1964. Coleção Histórias do Brasil Nação 1808-2010. Vol. 4. Madrid e Rio de Janeiro: Fundação Mapfre e Editora Objetiva, 2013. P.
[2] Seu nome ao chegar no Brasil era Yvonne Silberfeld. Na imprensa, ela assina com o pseudônimo Yvonne Jean e, ao casar, seu nome se torna Yvonne da Fonseca. No entanto, durante seu processo de naturalização, por um erro, seu nome oficial se torna Yvonne Jean da Fonseca. Fonte: ARQUIVO NACIONAL. Processo de naturalização de Yvonne Jean da Fonseca. Naturalização Proc.: 35190 Cód. Ref. 78.787/1949.
[3] Ibidem.
[4] JEAN, Yvonne. Viagem absurda. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 12 out. 1941.
[5] JEAN, Yvonne. Leon Moussinac, o Instituto dos Altos Estudos Cinematográficos e a Escola de Arte decorativa de Paris. Correio da Manhã, 14 nov. 1948.
[6] Site da Associação Nacional de Escritores: http://www.anenet.com.br/
[7] JEAN, Yvonne. Esquina de Brasília. Correio Braziliense. Brasília, p. 17, 12 out. 1941.
[8] JEAN, Yvonne. Esquina de Brasília – Começando o dia. Correio Braziliense. Brasília, 19 jan. 1962.
[9] JEAN, Yvonne. Esquina de Brasília – E o Teatro Nacional. Correio Braziliense. Brasília, 11 abril 1962.
[10] ARQUIVO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL, BR DFARPDF YJ.PI-6-0016 (1)d.
[11] JEAN, Yvonne. Esquina de Brasília. Correio Braziliense. Brasília, 19 jan. 1962.
[12] Ibidem.
[13] JEAN, Yvonne. Esquina de Brasília – Universidade “Bossa Nova”. Correio Braziliense. Brasília, 21 jan. 1962.
[14] Ibidem.
[15] Em 1968, houve ainda uma terceira invasão militar, mais grave, que culminou na prisão de 60 pessoas e um estudante foi baleado na cabeça, embora tenha sobrevivido depois. Neste episódio foir preso Honestino Guimarães, líder estudantil que posteriormente se tornou um “desaparecido político”.
[16] Nesta ocasião, as tropas militares retiram livros da biblioteca como propaganda e uma bandeira que diziam ser da China comunista. O episódio foi noticiado no dia seguinte pelo Correio Braziliense com a seguinte manchete: “Material de Propaganda Comunista Apreendido Pelo Exército na UNB. Um dia depois, o mesmo jornal publica, embora não em formato de errata, um esclarecimento do vice-reitor de que a bandeira apreendida que aparecia na foto, na verdade, era do Japão e não da China. Ver: CORREIO BRAZILIENSE. Material de Propaganda Comunista Apreendido Pelo Exército na UNB. 10 abril 1964; CORREIO BRAZILIENSE. Material de Propaganda Comunista Apreendido Pelo Exército na UNB. 10 abril 1964; CORREIO BRAZILIENSE. Bandeiras na Universidade. 11 abril 1964; SALMERON, Roberto A. A universidade interrompida: Brasília 1964-1965. Brasília: ed. UnB, 2007, p. 184.
[17] CORREIO BRAZILIENSE. 180 professores deixam UnB. 19 out. 1965.
[18] JEAN, Yvonne. Esquina de Brasília. Correio Braziliense. Brasília, 11 abril 1962.
[19] JEAN, Yvonne. Esquina de Brasília. Correio Braziliense. Brasília, 24 out. 1965.
[20] JEAN, Yvonne. Esquina de Brasília. Correio Braziliense. Brasília, 03 nov. 1965.
[21] JEAN, Yvonne. SESI faz espetáculo com atores amadores que fica de qualidade. Correio Braziliense, 14 abril 1970.
[22] CHAIA, Migue; CHAIA, Vera. A Dimensão Política de Brasília. In: Cadernos da Metrópol, n. 20, 2º. Sem. 2008, pp. 165-178.
[23] JEAN, Yvonne. Esquina de Brasília. Correio Braziliense. 26 set. 1970.
[24] De acordo com o Centro de Documentação – CEDOC dos Diários Associados, Yvonne Jean pediu desligamento imediato. Porém, não temos como saber com certeza se houve um acordo para sua saída por conta da sua condição de condenada por subversão pelo regime militar.
[25] JORNAL DO BRASIL. STM reduz a pena de um e mantém a condenação de 19 réus de Brasília. 10 jun. 1972.

Ana Paula Tavares Teixeira é subeditora do Café História. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV). Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.