terça-feira, 28 de julho de 2020

História do presente

editora expressão popular

PARA ENTENDER O GOLPE POLÍTICO EM PROCESSO NO BRASIL

História do presente – conciliação, desigualdade e desafios
 Roberto Amaral
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Sinopse
            História do presente – conciliação, desigualdade e desafios é uma seleção de artigos jornalísticos de Roberto Amaral, publicados na revista Carta Capital, sobre o golpe político que depôs a presidenta eleita Dilma Rousseff, em agosto de 2016, desde as primeiras articulações direitistas até a entrada do presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, no governo federal.
           Os artigos de Amaral, marcados pela linguagem militante do calor da hora, do gênero jornalismo opinativo, contribuem para uma análise sobre a história imediata com base na memória política dos principais momentos históricos do Brasil, como as tentativas políticas para derrubar o governo Getúlio Vargas e o golpe empresarial-militar de 1964. O autor, além de informar, questionar e debater os principais fatos políticos da atualidade, convoca os leitores e leitoras para uma reação organizada em frentes populares para derrotar definitivamente o golpismo e restabelecer a democracia política no país.
Trechos do texto
"Roberto Amaral pertence a uma categoria rara, aquela dos cidadãos destemidos até a temeridade e coerentes às últimas consequências. Este livro prova sem deixar dúvidas.  (...) A leitura desta obra desperta a imagem de um clínico muito sábio à cabeceira de um enfermo por ora sem cura". (Prefácio, Mino Carta)
"Ao acompanhar a sucessão de erros e acertos das forças populares diante dos desafios a serem enfrentados, o autor, um cientista político e jornalista que se debruça como intelectual
militante que é, produz um conjunto de reflexões que precisava ser sistematizado e colocado à disposição de leitores interessados em acompanhar os desdobramentos recentes do país.  (Apresentação, Lincoln de Abreu Penna)
"Nestes textos vemos um verdadeiro diário da luta de classes no Brasil, em que Amaral, descreve, não só como observador arguto da correlação de forças na sociedade, mas como militante e atuante incansável. Seus escritos nos ajudam a entender esses períodos da história do Brasil, mas também nos motivam a sermos sempre observadores atentos dos acontecimentos e estudiosos do comportamento das classes sociais na sua luta pelo poder político e a hegemonia na sociedade"(João Pedro Stedile)
"O neoliberalismo, que levou o "mercado" a apoiar o projeto liderado pelo capitão, desconstitui o Estado desenvolvimentista que remonta aos anos 1930, e promove a desindustrialização do país; ao tempo em que escancara a economia ao capital internacional, promove a privatização (em regra, na bacia das almas) das empresas vetores de inovação, esvazia o papel das agências de desenvolvimento e reduz os gastos públicos, orgulhando-se de fazê-lo. Isto em país que caminha da estagnação à recessão, que lamenta duas décadas perdidas, que precisa crescer para enfrentar uma concentração de renda obscena". (Roberto Amaral, maio de 2020)

Sobre o autor
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Roberto Átila Amaral Vieira nasceu em Fortaleza (Ceará), em 1939, foi militante do movimento estudantil, graduou-se em Direito e atuou como jornalista. Foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. Atualmente, é professor, cientista político e jornalista, articulista da revista Carta Capital. É autor de várias obras de não ficção e de ficção, como também de Socialismo, Morte e Ressurreição (Editora Vozes).

Ficha técnica
447 páginas
Expressão Popular
1ª edição junho de 2020
ISBN: 978-659-9041-471
Preço: R$ 20
E-book (epub / mobi)
Coleção: Realidade Brasileira
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Editora Expressão Popular
Rua Abolição, 201 - Bela Vista - 
São Paulo - SP
tel. (11) 3105-9500 
3522-7512  


A tramoia da casa-grande para salvar Bolsonaro

A tramoia da casa-grande para salvar Bolsonaro


Nos bastidores do poder arma-se um golpe contra o país.
Mais uma vez, e mantendo a rotina de nossa história, a casa-grande – aquele 1% que nos governa desde a colônia – intervém na crise política e arquiteta a nova ordem: não se fala mais nas ameaças de  golpe bolsonarista, ao mesmo tempo em que o impeachment do capitão (ou qualquer outra forma de defenestrá-lo) vai para as calendas gregas. O povo que se lixe, pois a classe dominante está preocupada tão-só com seus lucros e dividendos, e esses vão bem, apesar de o país ir muito mal. Vão bem, mas estavam ameaçados pelo desastre do governo. Para preservá-los, é preciso, pois, pôr ordem na casa.
Daí a intervenção da casa-grande e o “acordo de cavalheiros”, em marcha,  traficado entre seus comensais para cumprimento por todos nós.
Os três grandes jornais falam alto com o silêncio sobre a tramoia transacionada pelo “mercado” com militares, ministros do STF, líderes da câmara e do senado e, sem dúvida, os procuradores do grande império. Mas já cuidaram de mudar suas linhas editoriais, adaptada aos novos tempos. Afinal, são aparelhos ideológicos do sistema. Não têm voz própria. No centro do entendimento está  a intocabilidade da “pauta Guedes”, a ser preservada com ou sem o capitão. Por enquanto com ele, ou apesar dele. Aliás, o freio de arrumação decorre do temor que acometeu a casa-grande, receosa de que as turbulências políticas provocadas pelo presidente irresponsável pusessem em xeque os interesses do “mercado”. Este é o fator decisivo; o resto, como o discurso democrático, é só aparência.
A partir desse ponto de união, tudo fica mais fácil pois tudo o mais é negociável, inclusive os “limites da democracia”, inclusive nossos interesses de povo e nação, nosso futuro como país independente, nossa credibilidade junto aos parceiros internacionais. Por isso mesmo é irrelevante a quebradeira das pequenas e médias empresas e o desemprego; secundárias se tornam mesmo as milhares de mortes que a pandemia vem acumulando, graças à inépcia, a incúria e a insensibilidade do governo – e aí não se trata, apenas do capitão, mas de toda a entourage: a imagem que dela guardo é a daquela reunião vinda a público graças à decisão do ministro Celso de Mello.  O fato objetivo é que, para o “mercado”, tornou-se taticamente conveniente a permanência do capitão. Temiam os rentistas que com a água suja do banho também fosse jogada fora a criança.
O capitão, que não sabe o que é neoliberalismo, dedicar-se-á, doravante, ao que lhe interessa, salvar o mandato (e a impunidade sua, a de seus filhos e a de seus “amigos”) e, por consequência, dará tempo ao projeto golpista. Durante esse recesso não açulará suas hordas contra os demais poderes, e nossos ministros e parlamentares se quedarão em sossego. Por algum tempo, pelo menos. E os generais da récua palaciana renunciam a qualquer propósito de intervenção militar, pelo menos em seus pronunciamentos, que deverão ser mais comedidos. Não se fala mais em “novo AI-5”. A justiça, de olhos desvendados, compreenderá o gesto de boa vontade do Napoleão de hospício. Os juízes e os ministros saberão sopesar a nova realidade e saberão julgar, como os parlamentares saberão legislar, todos com as vistas voltadas para "o funcionamento normal das instituições".
Não se sabe se o “bispo” Macedo foi ouvido.
Independentemente do neopentecostalismo comercial-eletrônico, o novo clima republicano será de entendimentos e de “mútuo respeito” entre os poderes que se vinham estranhando, para desgosto do “mercado”, que tudo apostou na agenda do neoliberalismo a la Guedes.  Isto é, tudo permanecerá como dantes no Castelo de Abrantes, pelo menos até a próxima recidiva golpista. Ou até setembro, quando a curva ascendente dos efeitos catastróficos da pandemia se encontrar com a curva descendente dos indicadores da economia, transitando da desaceleração (1,1% de crescimento do PIB em 2019) para uma brutal depressão, com seu  imponderável custo social.
Aí então poderão as ruas voltar a falar, dispensando porta-vozes e desconhecendo acordos que não lhes dizem respeito. A partir deste ponto, porém, qualquer conjectura de futuro, hoje, será irresponsável.
Bolsonaro, portanto, vai ficando, apesar da promessa de tragédia. É o arranjo de nossos dias. Mas, como na política não há almoço grátis, o capitão recebeu um manual de boas maneiras, um cardápio de bom comportamento, ou o que Marcos Coimbra (“Quieto, Bolsonaro, quieto”, Carta Capital 9/07/20) alcunhou de focinheira, para que não morda as mãos de seus donos. É o preço que lhe foi cobrado e que, justiça lhe seja feita, vem pagando nos últimos dez dias. Está “pianinho”. Parece, quase, um homem educado. Até voltar ao seu natural.
Os militares são os fiadores desse mostrengo. É neles que se apoia o bolsonarismo (seja o bolsonarismo “raiz”, seja o das hordas, seja o das milícias, seja mesmo o bolsonarismo “bem comportado”), e é graças a essa coluna de sustentação que o país vive sua pior tragédia em toda a história republicana. Sem ela a crônica que se conta dos dias presentes seria outra, bem diversa, e bem menos lamentável. Os militares, que trouxeram o capitão ao planalto, que governam com ele, com ele querem permanecer, pois os palácios, centros de poder, são sempre mais confortáveis que os quartéis. Para que um fique, todos precisam ficar, ou, para que todos permaneçam em suas comissões, é preciso que, até outra alternativa, permaneça o capitão ocupando o gabinete do terceiro andar do palácio do planalto.
As forças democráticas, porém,  não se podem sentir comprometidas com esse arranjo ditado de cima para baixo, sem sua audiência, – que, aliás, só é requerida quando não lhe falta, como falta agora, capacidade de mobilizar a reação popular. Essa sua capacidade, ou a falta/ausência dela, é que dita o seu peso na arena política.
É evidente que, doravante, o discurso do centro liberal, clamando por democracia, mudará de tom, ao tempo em que a direita não bolsonarista, receosa dos desdobramentos de um golpe militar sem seu controle, ensarilhará as armas. Escassearão os manifestos e mais frágeis ainda ficarão as esperanças de uma grande frente em defesa da democracia e do emprego. Pelo menos enquanto durar a entente, que, se outro objetivo não tivesse, tem esse de dificultar a unidade popular contra a “pauta Guedes”.
Os percalços para a resistência, hoje, são de toda ordem, a começar pela realidade fática que impõe, antes de quaisquer considerações políticas, as dificuldades  de mobilização popular. Aos problemas já conhecidos da crise de organização dos partidos de esquerda e progressistas de um modo geral, e do movimento sindical, somam-se as precauções devidas às medidas de isolamento social exigidas pela pandemia. As novas condições do país, porém, haverão de indicar às esquerdas novos instrumentos e meios de luta, e a construção de um discurso que, sem descurar da defesa da democracia, sempre ameaçada, com ou sem acordos traficados pelas elites entre os comensais da casa-grande, compreenda a urgência do combate ao neoliberalismo, e mais concretamente, à pauta Guedes, e, ainda mais precisamente, que denuncie o desemprego, o grande inimigo das massas.
Nesse quadro cresce a importância da oposição parlamentar,  por mais desanimador que possa ser o desigual confronto com a maioria parlamentar, de centro direita. Grande espaço é oferecido pela campanha eleitoral que se aproxima, se os partidos de esquerda tiverem a competência histórica de divisar, para muito além de uma disputa puramente eleitoral, a oportunidade de seu aproveitamento político para denúncia do real significado do atual governo e do acordo de classe que o sustém. Mas, acima de tudo, essas eleições municipais devem ser vistas pelas esquerdas brasileiras como a grande chance de denunciar o neoliberalismo como expressão do capitalismo financeiro monopolista, de retomar o discurso ideológico, de apresentar suas teses fundamentais, ou seja, valer-se dos meios oferecidos pela campanha para a defesa do socialismo, a que renunciou desde 2002.


______________
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

A Pública, em 10/7/2020

A mentira como método 
 
Nesta semana, Jair Bolsonaro anunciou que está com coronavírus. Como o presidente não tem credibilidade, e sua atitude em relação à pandemia pode ser qualificada, sem exageros, de genocida, houve mais piadas do que compaixão nas redes sociais. Como acreditar em um presidente que já apresentou dois exames negativos, sob ordem judicial, feitos com nomes fictícios, cercados de confirmações e desmentidos, e que aproveitou a comunicação da doença para fazer propaganda da hidroxicloroquina, medicamento reprovado por pesquisadores e especialistas da OMS para o tratamento de coronavírus?
Na imprensa, o ceticismo imperou, com destaque para a coluna de Hélio Schwartsman, que defendeu com (bons) argumentos o direito de torcer pela morte de Bolsonaro. “No plano mais imediato, a ausência de Bolsonaro significaria que já não teríamos um governante minimizando a epidemia nem sabotando medidas para mitigá-la. Isso salvaria vidas? A crer num estudo de pesquisadores da Ufabc, da FGV e da USP, cada fala negacionista do presidente se faz seguir de quedas nas taxas de isolamento e de aumentos nos óbitos. Detalhe irônico: são justamente os eleitores do presidente a população mais afetada.”
Os mais sensíveis que me perdoem, mas até no momento em que foi falar de suas condições de saúde, o presidente fez por merecer o augúrio do jornalista. Além da propaganda da droga, da qual se comprovou apenas os efeitos colaterais negativos, ele disseminou mais uma vez a desinformação - dizendo que os jovens não devem se preocupar com a doença, apesar de diversos óbitos entre os abaixo de 40 anos - e colocou a vida de outras pessoas em risco, retirando a máscara e não respeitando a distância mínima entre ele e os jornalistas.
Nessa mesma semana, o presidente também sancionou, com muitos vetos, a lei que define as medidas para conter o avanço da pandemia entre quilombolas e indígenas, que estão em situação de alto risco. Já são 127 mortos e 2.590 casos confirmados nas comunidades quilombolas e 461 mortos e 13.241 casos que afetam 127 etnias indígenas, o que vem despertando grande preocupação e indignação internacionais. 
Pois bem: Bolsonaro vetou os artigos que obrigavam o Poder Público a garantir o acesso universal à água potável, a distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção das aldeias e a disponibilidade de leitos hospitalares e de UTI. Como falar em “empatia”, como pedem seus seguidores, com um presidente que condena povos inteiros à morte?
Nesse cenário, torna-se ainda mais patético o comportamento de outro membro do governo, o vice-presidente general Mourão e sua improvisada - e fechada - reunião virtual com os investidores internacionais, buscando convencê-los de que o governo está sim cuidando dos povos indígenas e combatendo o desmatamento. Além da humilhação de ter de se explicar aos “estrangeiros” (não é assim que Mourão se refere às ONGs de proteção aos indígenas e ao meio-ambiente?), ele apelou mais uma vez à estratégia carimbada de Bolsonaro: a mentira. Só que convencer a cúpula do capitalismo internacional é um pouquinho mais complicado do que enganar seguidores e agredir jornalistas que insistem em apresentar a realidade à população. Não é com mentiras que o governo vai recuperar os milhões de dólares do Fundo Amazônia, perdidos por sua própria culpa. 
Ainda bem que não estamos sozinhos no mundo. Bolsonaro é que está.
Marina Amaral, codiretora da Agência Pública
O que você perdeu na semana

Barreira contra os javaé. Sob a justificativa de combate à epidemia do novo coronavírus, a prefeitura de Formoso do Araguaia (276 km de Palmas) proibiu desde o dia 1º de julho a entrada de indígenas no espaço urbano. Com a medida, uma barreira sanitária na entrada da cidade passou a impedir a passagem. “A preocupação deles não é com a nossa saúde, e sim para não infectar a cidade. A gente se sentiu muito desprezado”, disse à Folha Vantuíres Javaé, presidente da Conjaba (Conselho das Organizações Indígenas do Povo Javaé da Ilha do Bananal). 

Caso Claudia. O capitão Rodrigo Medeiros Boaventura, que responde na Justiça pelo homicídio de Claudia Silva Ferreira, arrastada por uma viatura da PM por 350 metros na Zona Norte do Rio, agora investiga mortes cometidas por policiais em operações. Seis anos após o crime, o oficial está lotado no 41º BPM (Irajá), um dos batalhões do estado cujos agentes mais matam em serviço, e desempenha funções na área correcional. 

Inquérito contra Hélio Schwartsman. O ministro da Justiça, André Mendonça, determinou que a Polícia Federal abra inquérito contra Hélio Schwartsman, colunista da Folha. Mendonça ordenou que a PF enquadre o jornalista com base na Lei de Segurança Nacional, usada pela ditadura militar para perseguir adversários políticos, após Schwartsman ter condenado o comportamento de Jair Bolsonaro na pandemia. 
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Últimas do site
 
Covid-19 no interior. A partir de dados do Ministério da Saúde a Agência Pública apurou que, até o dia 6 de julho, mais de 10 mil pessoas morreram por Covid-19 em municípios com menos de 100 mil habitantes. Entre essas cidades, 80% não possuíam sequer um leito em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) antes da pandemia – e 78% seguiram sem UTIs até o mês de maio. 

Bolsas para jornalistas. A Agência Pública se junta ao Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração para convocar repórteres de todo o país para propor pautas investigativas sobre a mineração. Serão distribuídas quatro bolsas no valor de R$ 7 mil, além da mentoria da Agência Pública para a produção da reportagem.

Anúncios da Nova Reforma. Canais infantis no YouTube foram um dos principais meios de veiculação da propaganda governamental sobre a reforma da Previdência, que circulou também em canais religiosos, perfis acusados de produzir notícias falsas e contas banidas da plataforma por violarem regras. Reportagem analisou 500 canais que atingiram 9,8 milhões de visualizações em cerca de um mês; ao todo, governo gastou R$ 6 milhões

Aglomeração no transporte do Rio. Enquanto bares cariocas lotam em plena pandemia, trabalhadores de serviços essenciais dependentes do transporte público reclamam do fechamento de estações, controle de filas de entrada e aglomerações nos ônibus. No total, 26 estações em três corredores permanecem interditadas desde 25 de março e sem previsão de reabertura.  
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Ouro na Amazônia. Um estudo recente publicado pelo Instituto Escolhas mostra que a mais grave pandemia global dos últimos cem anos nem chegou perto de arranhar o ritmo da corrida pelo ouro, sobretudo na Amazônia. Apenas nos quatro primeiros meses do ano, 29 toneladas foram oficialmente extraídas no Brasil. Isso já é um terço do que foi extraído nos dois anos anteriores somados: 85 toneladas no total.
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Carta Capital

Sexta-feira, 10 de Julho de 2020
POLÍTICA
Família fundadora do MBL deve R$ 400 milhões em tributos, diz MP
Operação prendeu, em São Paulo, dois homens supostamente associados ao MBL. O movimento nega → Continue lendo no site
POLÍTICA
Ex-secretário de Saúde do Rio é preso por fraudes na compra de respiradores
Edmar Santos teria atuado ativamente no desvio milionário de verba direcionada a compra de respiradores, diz denúncia do MP-RJ → Continue lendo no site
O abandono da Cinemateca: Sem brigada de incêndio, gerador e segurança
Funcionários falam em uma tragédia anunciada e temem o mesmo fim do Museu Nacional → Continue lendo no site
Governo libera R$ 3 bilhões para setor cultural ainda sem prazo para pagamento
Lei Aldir Blanc garantiu o pagamento de R$ 600 aos trabalhadores do setor e aguardava a liberação do crédito para poder ser regulada → Continue lendo no site
ENTREVISTAS 
CartaCapital entrevista Paulo Texeira
O deputado e professor será entrevistado nesta sexta-feira, às 16h, no Canal da Carta no Youtube → Veja como participar
Como Luiza Erundina vê o Brasil atual?
Mino Carta conversa com Erundina na próxima segunda-feira, dia 13, ao vivo o Canal da Carta → Veja como participar

Chomsky: Não podemos deixar que os mestres do capital definam o mundo pós-Covid


Chomsky: Não podemos deixar que os mestres do capital definam o mundo pós-Covid

 

 
02/07/2020 15:15
Manifestantes nas ruas em Indianópolis, Indiana (Jeremy Hogan/SOPA Imagens/Lightrocket via Getty Images)
Créditos da foto: Manifestantes nas ruas em Indianópolis, Indiana (Jeremy Hogan/SOPA Imagens/Lightrocket via Getty Images)
 
Com o surto global da COVID-19, muitos estão achando que uma nova ordem econômica e política está inevitavelmente a caminho. Será? Nos EUA, a classe endinheirada, que prosperou sob Donald Trump, não cairá sem fazer o que estiver ao seu alcance para garantir que as pressões populares por reformas radicais sejam bloqueadas, diz o intelectual mundialmente famoso, Noam Chomsky. Chomsky também nos lembra que o racismo aberto se intensificou sob Trump e que a violência policial é um sintoma da supremacia branca subjacente que atormenta a sociedade norte-americana. Enquanto isso, as políticas antiambientais de Trump e suas decisões de jogar no lixo os tratados de controle de armas estão aproximando o mundo cada vez mais de um holocausto ambiental e nuclear.

C.J. Polychroniou: Muitos têm argumentado, de várias partidos, que a COVID-19 foi um divisor de águas. Você concorda com esse ponto de vista ou estamos falando de uma situação temporária, em que o cenário mais provável, depois que a crise de saúde acabar, é o retorno à rotina usual dos negócios?

Noam Chomsky:
 Não há como prever. Aqueles que têm a responsabilidade primária pelas múltiplas crises que hoje nos ameaçam trabalham duro, incansavelmente, para garantir que o sistema que eles criaram, e do qual eles se beneficiaram grandemente, persista - e de uma forma ainda mais severa, com vigilância mais intensa e outros meios de coerção e controle. Forças populares estão se mobilizando para combater esses desenvolvimentos malignos. Eles buscam desmantelar as políticas destrutivas que nos levaram a esse momento particularmente perigoso da história da humanidade e avançar em direção a um sistema mundial que dê prioridade aos direitos e necessidades humanos, não às prerrogativas do capital concentrado.

Devemos dedicar alguns momentos para esclarecer para nós mesmos o que está em jogo na amarga guerra de classes, que está tomando forma à medida que o mundo pós-pandemia vai sendo forjado. Há muito em jogo. Tudo está enraizado na lógica suicida do capitalismo não regulamentado e, no nível mais profundo de sua própria natureza, tudo se tornou mais aparente durante a praga neoliberal dos últimos 40 anos. As crises foram exacerbadas por virulências que surgiram à medida que essas tendências destrutivas seguiam seu curso. Os mais ameaçadores estão aparecendo no estado mais poderoso da história da humanidade – o que não é um bom presságio para um mundo em crise.

Os riscos foram definidos no Doomsday Clock (Relógio do Apocalipse ) em janeiro passado. A cada ano da presidência de Trump, o ponteiro dos minutos é aproximado para meia-noite. Dois anos atrás, o relógio chegou ao ponto mais próximo desde que o Relógio foi acertado após os atentados atômicos. Em janeiro passado, os analistas abandonaram completamente os minutos e passaram para segundos: 100 segundos para meia-noite. Eles reiteraram as principais preocupações: guerra nuclear, destruição ambiental e deterioração da democracia, a última delas porque a única esperança de lidar com as duas crises existenciais é uma democracia vibrante, na qual uma população informada está diretamente envolvida na determinação do destino do mundo.

Desde janeiro, Trump elevou a probabilidade cada uma dessas ameaças à sobrevivência. Ele continuou seu projeto de desmontar o regime de controle de armas que dava alguma proteção contra desastres nucleares. Até agora este ano, ele encerrou o Tratado de Céus Abertos, proposto por Eisenhower, e impôs condições frívolas para impedir a renegociação do New Start, o último pilar do sistema. Ele agora está considerando encerrar a moratória dos testes nucleares, "um convite para que outros países com armas nucleares sigam o exemplo", disse Daryl Kimball, diretor executivo da Associação de Controle de Armas.

A indústria militar mal consegue controlar sua euforia com a enxurrada de presentes do público para desenvolver novas armas para destruir todos nós, incentivando os adversários a fazerem o mesmo para que, no futuro, novas doações fluam para tentar combater as novas ameaças à sobrevivência. Uma tarefa sem fim, como praticamente todo especialista sabe, mas isso não é pertinente; o que importa é que a generosidade pública flua para os bolsos certos.

Trump também continuou sua campanha dedicada a destruir o meio ambiente que sustenta a vida humana. Sua proposta de orçamento para o ano fiscal de 2020, emitida com a pandemia em andamento, pedia um corte adicional de recursos para os Centros de Controle e Prevenção de Doenças e outros componentes do governo relacionados à saúde, compensados pelo aumento do apoio às indústrias de combustíveis fósseis que estão destruindo as perspectivas de sobrevivência.

E, como sempre, mais financiamento para os militares e para o muro [de fronteira], que é uma parte central de sua estratégia eleitoral. Os líderes corporativos, que Trump instalou para supervisionar a destruição ambiental, estão silenciosamente eliminando regulamentos que restringem um pouco os danos e que protegem a população de envenenamento do suprimento de água e do ar que respiram. O último revela nitidamente a malevolência do fenômeno Trump. Em meio a uma pandemia respiratória sem precedentes, os subordinados de Trump estão tentando aumentar a poluição do ar, o que torna a COVID-19 mais mortal, colocando em risco dezenas de milhares de norte-americanos. Mas isso não importa muito. A maioria não tem escolha a não ser morar perto das fábricas poluidoras - [aqueles] que são pobres e negros, e que votam do jeito “errado”.

Novamente, existem beneficiários: seus principais apoiadores da riqueza privada e do poder corporativo.

Voltando à terceira preocupação dos analistas do Doomsday Clock, Trump acelerou seu programa para desmontar a democracia americana. O ramo executivo foi praticamente destruído, convertido em uma coleção de bajuladores covardes que não se atrevem a ofender o mestre. Seu último passo foi demitir o promotor do Estado de Nova York que estava investigando o pântano que Trump criou em Washington. Ele estava levando adiante a investigação dos inspetores gerais que Trump expurgou quando estavam chegando muito perto. O próximo passo projetado, que acabamos de saber, é um expurgo do comando militar, para garantir obediência fiel ao aspirante a ditador barato no caso de uma crise internacional ou doméstica de sua autoria.

Trump é imitado de perto por Jair Bolsonaro; farsa imitando tragédia. Mas no Brasil, ainda existe uma pequena barreira à criminalidade executiva: a Suprema Corte, que bloqueou as ações de Bolsonaro para expurgar as autoridades que investigam seu próprio pântano. Os EUA estão bem atrás.

É uma conquista e tanto, em apenas seis meses ter elevado significativamente todas as três ameaças à sobrevivência que levaram o Doomsday Clock em direção à meia-noite, ao mesmo tempo em que falhou espetacularmente no trato com a pandemia. Sob a liderança de Trump, os EUA, com 4% da população mundial, já registraram 20% dos casos da [COVID-19]. De acordo com um estudo em uma importante revista médica, quase todos os casos podem ser atribuídos à recusa de Trump e associados em respeitar os conselhos dos cientistas.

No final de março, os EUA e a UE tinham o mesmo número de casos de infecções. A Europa adotou os resultados dos estudos científicos dos EUA e os casos diminuíram muito acentuadamente. Sob Trump, os casos aumentaram para mais de cinco vezes o nível da UE. Pesquisadores europeus estão se perguntando se os EUA desistiram. A Europa está agora considerando uma proibição de viajantes do estado pária que Trump e associados estão construindo.

A ideia de que o governo dos EUA desistiu está enganada. Uma conclusão mais precisa é que os governantes simplesmente não se importam. A preocupação deles é manter o poder e moldar a sociedade futura à sua imagem. O destino da população em geral não é da conta deles.

A tarefa de forjar o mundo futuro não está nas diretivas federais emitidas pelo executivo. Essa é, agora, praticamente a única preocupação do Senado, com uma maioria republicana que talvez seja ainda mais subserviente ao mestre do que ao executivo. O Senado de Mitch McConnell praticamente abandonou qualquer pretensão de ser um órgão deliberativo ou legislativo. Sua tarefa é servir à riqueza e ao poder corporativo, ao mesmo tempo em que entope o judiciário, de cima a baixo, com jovens produtos da Federalist Society, de ultra-direita, que serão capazes de proteger a agenda reacionária de Trump-McConnell por muitos anos do que quer que o povo deseje.

O mais recente esforço republicano para punir a população é apelar à Suprema Corte para que encerre o “Obamacare” ( a Lei de Assistência Acessível) - como sempre, oferecendo nada em seu lugar além de promessas vazias.

A malevolência Trumpiana está trazendo à luz malignidades muito mais profundas da ordem socioeconômica, que não podem ser ignoradas se quisermos evitar a próxima e provavelmente pior pandemia, ou lidar com as ameaças verdadeiramente existenciais à sobrevivência que Trump está trabalhando duro para tornar muito mais graves.

Essas são as perguntas que enfrentamos quando nos perguntamos o que podemos fazer para moldar o momento que emergirmos da atual crise de saúde.

C.J. Polychroniou: Desde a erupção de manifestações em todo o país em defesa da vida dos negros e em apoio ao corte no financiamento da polícia, testemunhamos mudanças maciças nas atitudes do público em relação ao racismo e crescente desafio contra Trump, por figuras líderes do establishment e até mesmo dentro de seu próprio partido. Você pode analisar o racismo na era Trump e especular se o país está pronto para uma nova era nas relações raciais?

Noam Chomsky
: Algumas indicações sobre o “racismo na era Trump” são fornecidas pelo registro de violência racialmente motivada. De acordo com a Liga Anti-Difamação, em 2016, antes da posse de Trump, essa maldição representava 20% das mortes relacionadas ao terrorismo nos EUA. Em 2018, o número subiu para 98%. E continuou nesse nível desde então. O diretor do FBI, Christopher Wray, relatou que extremistas com motivação racial e étnica eram a principal fonte de incidentes e violência letais motivados ideologicamente desde 2018, e que 2019 marcou o ano mais mortal da violência supremacista branca desde o atentado a bomba em Oklahoma City em 1995, relata a Foreign Affairs.

Essa é uma das faces do racismo na era Trump, regularmente difundida a partir da Casa Branca. As demonstrações atuais refletem tendências críticas na direção oposta. As manifestações são inéditas: em escala, em comprometimento, em solidariedade e em apoio popular, indo muito além do que Martin Luther King Jr. alcançou quando ainda era uma figura popular.

Essas demonstrações notáveis testemunham mudanças significativas na consciência popular. Trump, é claro, tem tentado incitar seu bloco de eleitores supremacistas brancos, tuitando acusações selvagens sobre como o país está sendo sitiado pelos radicais violentos que dirigem o Partido Democrata. Mas suas conhecidas técnicas não parecem estar funcionando como antes.

Até agora, os objetivos [de curto prazo] dos manifestantes parecem estar principalmente focados no policiamento. Esse foco nas práticas policiais leva diretamente à investigação de características muito mais fundamentais da sociedade norte-americana. Há ampla evidência de que a violência policial nos EUA está muito além das sociedades comparáveis, mas não ocorre no vácuo social. Os EUA são uma sociedade muito mais violenta.

A violência, é claro, não está nos genes. Ela decorre de doenças sociais que se refletem em muitos aspectos da sociedade, inclusive sua classificação muito baixa entre os países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em medidas de justiça social. Está claro por que essas doenças têm um impacto radicalmente desproporcional na comunidade negra. A violência policial é um sintoma que não pode ser curado ignorando suas raízes.

C.J. Polychroniou: A propagação de protestos, especialmente nas cidades pequenas dos EUA, também trouxe à luz o fenômeno absolutamente estranho do movimento das milícias no país. Até que ponto a ideologia política do Partido Republicano sob Trump está ligada à extrema ideologia antigovernamental do movimento das milícias?

Noam Chomsky: 
Além do ataque à Assembleia Legislativa do Estado de Michigan por membros armados da Michigan Liberty Militia (“pessoas muito boas”, garantiu Donald Trump), o caso mais dramático recente foi na vila de Bethel, Ohio. Uma demonstração pacífica de algumas dúzias de pessoas em apoio ao Black Lives Matter foi atacada por 700 contramanifestantes de gangues de motociclistas, grupos “back the blue” [“apoie o azul", em referência ao uniforme azul dos policiais] e defensores da Segunda Emenda, muitos armados ou com tacos de beisebol ou bastões. A Segunda Emenda não tem nada a ver com a manifestação, mas se tornou um grito de guerra entre os grupos de direita, constantemente evocados por Trump, sempre de forma irrelevante, para inflamar os "durões" com os quais ele conta.

Quanto à ideologia política, os republicanos modernos gostam de entoar o slogan de Reagan de que o governo é o problema, não a solução. Mas sempre ironicamente. Seu ídolo expandiu o governo federal (quase triplicando a dívida nacional). É verdade que a ideologia do partido republicano moderno é em parte antigovernamental. Para eles, o governo tem uma falha séria; é um tanto sensível ao público em geral. A falha pode ser sanada transferindo a formulação de políticas para tiranias privadas que não precisam dar qualquer explicação ao público. Mas o governo às vezes é a solução para os republicanos. Um exemplo é quando o poder do Estado é necessário para esmagar a interferência popular nas doutrinas da fé, a marca do neoliberalismo desde suas origens no período entre guerras, em Viena, como discutimos anteriormente. O governo também é a solução para os enormes subsídios públicos ao setor corporativo, e mais visivelmente, quando a onda de crimes corporativos desencadeada por princípios neoliberais quebra a economia, como acontece regularmente desde Reagan. Os mestres passam o chapéu para serem socorridos pelo estado babá. Isso está acontecendo novamente hoje, embora desta vez a ganância corporativa exigida pela doutrina neoliberal seja apenas parcialmente responsável; desde quando a pandemia começou, as empresas, que enriqueciam acionistas e administradores ricos com recompras de ações, têm exigido e recebido a generosidade pública, como de costume.

Além disso, sempre faz sentido não desperdiçar uma oportunidade. Graças a amigos de alto escalão, "quase 82% dos benefícios da alteração da lei tributária [no estímulo por conta do coronavírus] serão destinados a pessoas que ganham US$ 1 milhão ou mais anualmente em 2020".

O princípio neoliberal norteador é simplesmente uma versão mais nítida do entendimento tradicional de que a função apropriada do governo é "proteger a minoria dos opulentos contra a maioria", como instruiu James Madison na Convenção Constitucional. A principal preocupação do governo é o bem-estar dos "homens de melhor qualidade", como eles se chamavam um século antes, durante a primeira revolução democrática moderna na Inglaterra do século XVII. A "ralé" de alguma forma se defenderá.

Como? No mundo neoliberal, a solução para eles é juntar-se ao precariado, privado de sistemas de apoio (“não existe sociedade”), programas de saúde, assistência à infância, férias, aposentadorias seguras e, de fato, qualquer maneira de escapar da devastação do mercado, o que quer que ele traga.

As pensões ilustram bem a lógica neoliberal. O primeiro passo foi dissolvê-los em 401(k)s privados [um tipo de previdência privada]. Isso pode levar a retornos mais altos para quem tem sorte e a desastres para quem não tem, mas, de qualquer forma, a retirada da segurança desvia a mente das pessoas de "ilusões perigosas" como solidariedade e apoio mútuo ao isolamento em um mercado incerto. O passo seguinte foi dado por Eugene Scalia, que foi escolhido para ser secretário do trabalho com base em suas credenciais como advogado corporativo fortemente contrário aos direitos trabalhistas. Sob a cobertura da pandemia, ele silenciosamente abriu o mercado 401(k) para as empresas destrutivas de private equity, oferecendo-lhes uma enorme fonte de lucro e taxas de administração infladas.

Prosseguindo, depois de demitir o procurador dos EUA no Distrito Sul de Nova York, que saiu da linha investigando pântano em Washington, Trump nomeou como seu substituto Jay Clayton, advogado de private equity que é defensor de longa data da mudança da lei federal "para permitir que os gestores de ativos canalizem mais dinheiro dos aposentados para as empresas de alto risco e alta taxa", relata David Sirota em outra de suas valiosas exposições de crimes corporativos estatais. A Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC), que monitora essas organizações obscuras, publicou outro relatório contundente sobre suas práticas ilegais, que Sirota interpreta, plausivelmente, como um "grito desesperado por ajuda" para impedir o roubo da diligência em andamento. Mas, para evitar essa ameaça, observa Sirota, a Suprema Corte "silenciosamente" restringiu o poder da SEC de punir empresas de private equity.

O círculo se fecha. Segurem seus chapéus enquanto a nova era é forjada pelos mestres, passo a passo - se permitirmos que eles façam o que querem.

C.J. Polychroniou: Desde o surto de coronavírus, Joe Biden parece ter reconhecido que muitos dos problemas enfrentados pelos Estados Unidos contemporâneos são estruturais, não cíclicos. De fato, Biden parece ter se mudado para a esquerda desde que Bernie Sanders suspendeu sua campanha presidencial em abril. Isso levanta a questão interessante sobre se o próprio Biden mudou ou se foram as políticas e a cultura do próprio Partido Democrata. Você pode comentar a agenda política de Biden e a possível mudança de rosto do Partido Democrata?

Noam Chomsky: 
O que Biden reconhece, eu não sei. No entanto, podemos ler seu programa, que foi bem pressionado para a esquerda. Não pelo Comitê Nacional Democrata ou pela classe doadora. Mas pelo envolvimento direto de Sanders e seus apoiadores, e mais importante, pelo constante ativismo dos grupos que a campanha de Sanders reuniu e inspirou. Se o rosto continuará a mudar depende dessas forças continuarem se mobilizando e agindo.

É bom lembrar a perspectiva tradicional de esquerda sobre as extravagâncias quadrienais, incluindo a atual.

Existe uma doutrina oficial de que a política se reduz a votar em uma eleição e depois voltar para casa para deixar o assunto para outras pessoas. Essa é uma maneira maravilhosa de suprimir a população e manter o controle autoritário. A terminologia usada para implementar essa técnica de controle é "vote em X" e você cumpriu sua responsabilidade como cidadão.

A doutrina do establishment está disponível tanto para quem é a favor da política do governo quanto para quem se opõe. Na última forma, foi recentemente chamado de "voto menos grave" [Lesser Evil Vote, algo como voto útil], com a sigla LEV. A doutrina tradicional da esquerda é muito diferente. Ele afirma que a política consiste em constante ativismo para resistir à opressão, não apenas do governo, mas de um poder privado ainda mais severo, e para desenvolver movimentos populares para promover a justiça e o controle popular das instituições. A cada poucos anos, acontece um evento chamado "eleição". Leva-se alguns minutos para ver se há uma diferença significativa entre os candidatos e, se houver, dedicar alguns minutos para votar contra o pior e depois voltar ao trabalho. Para ilustrar a escolha, considere o aquecimento global, claramente uma questão crítica (para alguns, como eu, a mais crítica da história humana, juntamente com a guerra nuclear). Democratas e republicanos diferem bastante sobre o assunto. O último estudo do Pew Research Center constata que:

“Os americanos continuam profundamente divididos politicamente sobre o quanto a atividade humana contribui para as mudanças climáticas. Cerca de sete em cada dez democratas (72%) dizem que a atividade humana contribui muito para as mudanças climáticas, em comparação com cerca de dois em cada dez republicanos (22%), uma diferença de 50 pontos percentuais. A diferença é ainda maior entre aqueles que estão no fim do espectro ideológico. Uma grande maioria dos democratas progressistas (85%) diz que a atividade humana contribui muito para as mudanças climáticas. Apenas 14% dos republicanos conservadores dizem o mesmo.”

Em novembro próximo, a diferença entre os candidatos é um abismo.

*Publicado originalmente em 'Truthout' | Tradução de César Locatelli