terça-feira, 16 de junho de 2015

Maria Lúcia Fattorelli: a brasileira que auditará a economia grega para o Syriza

30/03/2015 - Copyleft

Maria Lúcia Fattorelli: a brasileira que audita a economia grega para o Syriza

Maria planeja fazer na Grécia o que já ajudou a fazer no Equador: permitir que os gastos sociais superem os gastos com o sistema financeiro.


André Cristi

Bernardo Jardim
Uma das pontes entre o Brasil e as novas experiências políticas da esquerda socialista europeia chama-se Maria Lúcia Fattorelli. Auditora da Receita Federal desde 1982, a coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida foi convidada por Zoe Konstantopoulou, deputada do Syriza que ocupa a presidência do Parlamento Grego, a compor o Comitê pela Auditoria da Dívida Grega.

Maria Lúcia já participou de processo semelhante no Equador, quando o presidente Rafael Correa decidiu pela anulação de 70% da dívida que emperrava o investimento público. “Pela primeira vez na história inverteu-se a equação: os gastos sociais superaram os gastos com a dívida”, lembra em entrevista à Carta Maior

O sistema
De acordo com Fattorelli, o significado maior de auditar uma dívida pública é desmascarar o que ela chama de “sistema da dívida”. “É um negócio altamente rentável e que beneficia um pequeno segmento social localizado nos mercados financeiros”, descreve.

Funciona assim: sem transparência e com enormes privilégios (legais, financeiros, políticos) aos bancos e agências de risco, o Estado pega dinheiro emprestado de instituições financeiras públicas ou privadas. O valor emprestado cresce brutalmente em função de juros elevadíssimos. E a dívida vai se tornando meramente contábil - isto é, jogo de juros sobre juros. Segundo Fattorelli, “o endividamento público se converte numa maneira de desvio de recursos públicos em larga escala”.

Segundo o Tesouro Nacional, em 2013 o governo federal gastou R$ 718 bilhões com juros e amortizações da dívida interna e externa, o que representou 40,3% do orçamento federal (o valor gasto em educação, por exemplo, é de 3,4%, em transporte 1%).

Mas não é a corrupção que afasta nosso dinheiro dos lugares em que ele deveria ser investido?

Pois bem. O mensalão, considerado à época o maior caso de corrupção do país, comprovou R$140 milhões desviados. No ano de 2005, a dívida pública consumia mais de dez mensalões por dia.

O caso grego

A manipulação da taxa de risco levou o governo grego a aceitar acordos muito prejudiciais com o FMI e a União Europeia. Endividada e fragilizada, a outrora obediente Grécia se viu invadida por instituições financeiras internacionais, grandes corporações e, por consequência, pela agenda neoliberal: desmantelamento dos direitos sociais e privatização das empresas públicas mais lucrativas.

“Esse mecanismo de pressão da Troika (comitê de bancos, FMI e Banco Central Europeu) contra os países – que por sua vez têm que negociar de maneira isolada – demonstra uma grande assimetria entre as partes, um claro indício de ilegitimidade”, denuncia Fattorelli. E lembra que o FMI é uma agência especializada da ONU, como a OIT e a FAO. Deveria, portanto, atuar segundo os objetivos da Carta da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos - e não segundo os interesses do mercado financeiro.

Ainda segundo Fattorelli, o caso grego constitui um forte exemplo do dano provocado pelo Sistema da Dívida às mulheres. “No início da crise”, relembra, “o desemprego em massa de mulheres foi utilizado para expandir ainda mais os cortes de gastos exigidos pelo programa de austeridade fiscal imposto pela Troika: serviços de creches, assistência social e até certos serviços de saúde deixaram de ser prestados pelo Estado”. A justificativa? Ora, se as mulheres estavam em casa, elas assumiriam tais serviços.

O exemplo equatoriano
O Equador, com auxílio de Maria Lúcia, provou a eficiência da ferramenta de auditoria. Em 2007 o presidente Rafael Correa criou uma comissão para realizar auditoria da dívida interna e externa equatoriana, nomeando diversos membros nacionais e 6 internacionais. Maria Lúcia representou o Brasil. O resultado, segundo ela, foi impressionante: “permitiu a anulação de 70% da dívida externa em títulos. Os recursos liberados têm sido investidos principalmente em saúde e educação”.

A auditoria equatoriana consistiu em tornar transparentes os números da dívida; verificar quais foram os mecanismos e operações que geraram dívidas desde a sua origem; quem se beneficiou dos recursos; em que esses foram aplicados; verificar se foram cumpridas as normas legais e administrativas existentes; quais os impactos sociais, ambientais etc. Após o exame, e diante das evidentes ilegalidades, ilegitimidades e mesmo fraudes comprovadas, só restou a Rafael Correa “dar o calote” numa dívida irreal.

O mais repisado argumento contra a auditoria da dívida é bastante simples: partindo do pressuposto que a auditoria é um calote ao sistema financeiro, o mesmo sistema financeiro fecharia o acesso ao crédito dos países caloteiros. Conforme argumenta Fattorelli, o Equador mostra o oposto: o risco-país caiu e o acesso ao crédito passou a custar menos.

A partir do gráfico abaixo, também cabe observar que a partir de 2011 os gastos com a dívida voltam a crescer, o que mostra que o país não ficou isolado e continuou acessando crédito. Prova irrefutável de que é possível parar de entregar vastos recursos públicos aos rentistas sem convulsão social - resta esperar que outros governos ouçam Maria Lúcia Fattorelli de forma tão generosa quanto ouvem os chicago boys.



"Redes sociais dão voz aos imbecis"


críticas 12/06/2015 - 14h39

''Redes sociais dão voz aos imbecis'', diz Umberto Eco

'O drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade", frisou o escritor e filósofo
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Umberto Eco é escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo conhecido internacionalmente
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"Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel", afirmou o escritor e filólogo Umberto Eco, na quarta-feira, 10. O italiano, crítico do papel das novas tecnologias na disseminação de informações, estava em evento para receber o título de doutor honoris causa em comunicação e cultura na Universidade de Turim.

Segundo Eco, a TV fez com que o “idiota da aldeia” se sentisse em um patamar superior, e a Internet elevou ainda mais essa situação. "Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel", completou.

Para Eco, antes das redes sociais, os ‘’idiotas da aldeia’’ tinham direito à palavra "em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade". ''O drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade", frisou.

Redação O POVO Online

A nova geopolítica do petróleo


11/06/2015 - Copyleft

A nova geopolítica do petróleo

Os conselheiros de Obama partem de um princípio claro: um único planeta, uma única superpotência.


Ignacio Ramonet
esquerda.net
Em que contexto está sendo desenhada a nova geopolítica do petróleo? O país hegemônico, os Estados Unidos, considera que a China é a única potência contemporânea capaz, a médio prazo (na segunda metade do século XXI), de rivalizar com ele e ameaçar sua hegemonia solitária à escala planetária. Por isso Washington instaurou secretamente, desde os inícios de 2000, uma desconfiança estratégica em relação a Pequim.

O presidente Barack Obama decidiu reorientar a política externa dos EUA tendo este parâmetro como critério principal. Washington não quer ver-se de novo na humilhante situação da Guerra Fria (1948-1989), quando teve de compartilhar a sua hegemonia mundial com outra superpotência, a União Soviética. Os conselheiros de Obama formulam esta teoria da seguinte maneira: um único planeta, uma única superpotência.

Em consequência, Washington continua a aumentar as suas forças e as suas bases militares na Ásia oriental, com o intuito de conter a China. Pequim constata já o bloqueio da sua capacidade de expansão marítima devido aos múltiplos conflitos em torno de ilhotas com a Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Vietnã, Filipinas... e pela poderosa presença da sétima frota dos Estados Unidos.

Paralelamente, a diplomacia de Washington reforça as suas relações com todos os Estados que têm fronteiras terrestres com a China (exceto a Rússia). O que explica a recente e espetacular aproximação de Washington com o Vietnã e a Birmânia.

Esta política prioritária de atenção ao Extremo Oriente e de contenção da China só é possível se os Estados Unidos conseguirem afastar-se do Oriente Médio. Neste palco estratégico, a Casa Branca intervém tradicionalmente em três campos. Primeiro, no militar: Washington está implicado em vários conflitos, especialmente no Afeganistão contra os talibans e no Iraque-Síria contra a organização Estado Islâmico.

Segundo, no diplomático, em particular com a República Islâmica do Irã, com o objetivo de limitar a sua expansão ideológica e impedir o acesso de Teerã à força nuclear.
Terceiro, o da solidariedade, especialmente a respeito de Israel, para o qual os Estados Unidos continuam a ser uma espécie de anjo da guarda.

Este grande envolvimento direto de Washington na região (particularmente após a guerra do Golfo, em 1991) mostrou os limites da potência americana, que não pôde realmente ganhar nenhum dos conflitos nos quais se envolveu fortemente (Iraque, Afeganistão). Conflitos que tiveram, para os seus cofres, um custo astronômico com consequências desastrosas até para o sistema financeiro internacional.

Atualmente Washington sabe que os Estados Unidos não podem realizar simultaneamente duas grandes guerras de alcance planetário. Portanto, a alternativa é a seguinte: ou continuam mergulhados no pantanal do Oriente Médio, em conflitos típicos do século XIX, ou concentram-se na urgente contenção da China, cujo impulso fulgurante poderia anunciar a decadência dos Estados Unidos a médio prazo.

A decisão de Obama é óbvia: tem de enfrentar o segundo desafio, pois este será decisivo para o futuro dos Estados Unidos no século XXI. Em consequência, tem de retirar-se progressivamente – mas imperativamente – do Oriente Médio.

Aqui coloca-se uma questão: por que, desde o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se envolveram tanto no Oriente Médio, ao ponto de descuidarem o resto do mundo? Para esta pergunta, a resposta pode limitar-se a uma palavra: petróleo.

Desde que os Estados Unidos deixaram de ser autossuficientes em petróleo, no final dos anos 40, o controle das principais zonas de produção de hidrocarbonetos converteu-se numa obsessão estratégica. Isso explica parcialmente a diplomacia dos golpes de Estado de Washington, especialmente no Médio Oriente e na América Latina.

No Oriente Médio, nos anos 50, à medida em que o velho império britânico se retirava e ficava reduzido ao seu arquipélago inicial, o império norte-americano substituía-o, colocando os seus homens à frente dos países dessas regiões. Sobretudo na Arábia Saudita e no Irã, principais produtores de petróleo do mundo, junto com a Venezuela, já sob controle dos EUA à época.

Até há pouco, a dependência de Washington do petróleo e do gás do Oriente Médio impediu-o de considerar a possibilidade de retirar-se da região. Que mudou então para que os Estados Unidos pensem agora em sair do Oriente Médio? O petróleo e o gás de xisto, cuja produção pelo método chamado fracking aumentou significativamente em começos dos anos 2000. Isto modificou todos os parâmetros. A exploração desse tipo de hidrocarbonetos (cujo custo é mais elevado que o do petróleo tradicional) foi favorecida pelo importante aumento do preço dos hidrocarbonetos, que em média superaram 100 dólares por barril entre 2010 e 2013.

Atualmente, os Estados Unidos recuperaram a autossuficiência energética e estão convertendo-se outra vez num importante exportador de hidrocarbonetos. Portanto, podem agora por fim considerar a possibilidade de se retirarem do Oriente Médio. Com a condição de sarar rapidamente várias feridas que por vezes datam de mais de um século.

Por essa razão, Obama retirou a quase a totalidade das suas tropas do Iraque e do Afeganistão. Os Estados Unidos participaram muito discretamente nos bombardeios da Líbia.

E recusaram-se a intervir contra as autoridades de Damasco, na Síria. Por outro lado, Washington procura em ritmo forçado um acordo com Teerã sobre a questão nuclear. E pressiona Israel para que o seu governo progrida urgentemente em direção a um acordo com os palestinos. Em todos estes temas, percebe-se o desejo de Washington de fechar as frentes do Oriente Médio para passar a outra questão (China) e esquecer os pesadelos do Oriente Médio.

Todo este cenário desenvolveu-se perfeitamente enquanto os preços do petróleo continuavam altos, ao redor de 100 dólares por barril. O preço de exploração do barril de petróleo de xisto é de aproximadamente 60 dólares, o que deixa aos produtores uma margem considerável (entre 30 e 40 dólares por barril).

Foi aqui que a Arábia Saudita decidiu intervir. Riad opõe-se a que os Estados Unidos se retirem do Oriente Médio, sobretudo se antes Washington estabelecer um acordo sobre a questão nuclear com Teerã. Acordo que os sauditas consideram demasiado favorável ao Irão e que, segundo a monarquia wahabita, exporia os sauditas, e mais em geral os sunitas, a converterem-se em vítimas do que chamam de expansionismo xiita. Há que ter presente de que as principais jazidas de hidrocarbonetos sauditas se encontram em zonas de população xiita.

Considerando que dispõe das segundas reservas mundiais de petróleo, a Arábia Saudita decidiu usar o crude para sabotar a estratégia dos Estados Unidos. Opondo-se às orientações da Organização de Países Exportadores de Petróleo (Opep), Riad decidiu, contra toda a lógica comercial aparente, aumentar consideravelmente a sua produção e fazer, desse modo, baixar os preços, inundando o mercado de petróleo barato. A estratégia deu resultado rapidamente. Em pouco tempo os preços do petróleo baixaram 50 por cento. O preço do barril desceu para 40 dólares (antes de subir ligeiramente, até aproximadamente 55-60 dólares atualmente).

Esta política desferiu um duro golpe ao fracking. A maioria dos grandes produtores norte-americanos de gás de xisto estão atualmente em crise, endividados e correm o risco de falir (o que implica uma ameaça para o sistema bancário dos EUA, que tinha generosamente oferecido abundantes créditos aos neopetrolíferos). A 40 dólares o barril, o xisto já não é rentável. Nem as perfurações profundas off shore. Muitas companhias petrolíferas importantes já anunciaram que interrompem as suas explorações em alto mar por não serem rentáveis, provocando a perda de dezenas de milhares de empregos.

Uma vez mais, o petróleo é menos abundante. E os preços sobem ligeiramente. Mas as reservas da Arábia Saudita são suficientemente importantes para que Riad regule o fluxo e ajuste a sua produção de maneira a permitir um ligeiro aumento de preço (até 60 dólares aproximadamente). Mas sem superar os limites que permitiriam ao fracking e às jazidas marítimas de grande profundidade recomeçarem a produção. Deste modo, Riad converteu-se no árbitro absoluto em matéria de preço do petróleo (parâmetro decisivo para as economias de dezenas de países, entre os quais figuram a Rússia, a Argélia, a Venezuela, a Nigéria, o México, a Indonésia, etc).

Estas novas circunstâncias obrigam Barack Obama a reconsiderar os seus planos. A crise do fracking poderia representar o fim da auto-suficiência de energia fóssil nos Estados Unidos e, portanto, o regresso à dependência do Oriente Médio (também da Venezuela, por exemplo). Por agora, Riad parece ter ganho a aposta. Até quando?
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Tradução originalmente publicada em esquerda.net.
Créditos da foto: esquerda.net
Fonte: Carta Maior

Belluzzo: motor quebrou e Levy quer arrumar a lataria


08/06/2015 - Copyleft

Belluzzo: motor quebrou e Levy quer arrumar a lataria

Economista aponta que governo erra ao tentar consertar suposto desequilíbrio fiscal ao invés de se preocupar em fomentar o investimento na infraestrutura.


Luiz Carvalho, do Portal da CUT
Roberto Parizotti/CUT
Para Luiz Gonzaga Belluzzo, os ajustes fiscais do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, erram na forma e no conteúdo. Na forma, porque não foram discutidos com as bases sociais. E no conteúdo, porque focam no desequilíbrio fiscal, quando a preocupação deveria ser investir na infraestrutura para puxar a aceleração da indústria.

Em entrevista ao Portal da CUT, o economista e professor destaca que os ajustes sobre o emprego e a renda dos trabalhadores devem ter como resposta dos movimentos sindical e sociais a cobrança da taxação dos bancos, do patrimônio e da riqueza.

Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda durante o governo Sarney e de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo durante a gestão Quércia, Belluzzo repudia o mito liberal de que o Estado atrapalha o investimento privado – “nas políticas de conteúdo local os EUA estão em primeiro lugar” – e critica a completa irresponsabilidade do aparelho judiciário brasileiro, que impede acordos de leniência para salvar as empresas envolvidas na Lava-Jato.

Os ajustes fiscais eram inevitáveis?
Luiz Gonzaga Belluzzo – O problema começa na forma como foram propostos e executados. Se a presidente foi reeleita com uma plataforma que previa a preservação dos direitos e a manutenção de mecanismos de proteção social dos trabalhadores, era obrigatório, antes de lançar o plano e convidar o ministro Joaquim Levy (Fazenda), discutir com as bases sociais.

Os conservadores fixaram as críticas no desiquilíbrio fiscal, quando o problema veio da forte desaceleração da economia. Conforme eu disse em 2012, por uma questão de estilo da presidente, o governo demorou a promover os programas de infraestrutura, demorou a definir os projetos de concessão e isso se deu no momento em que as forças que levaram a economia a ter um bom desempenho começaram a se dissipar.

E essas forças eram uma situação externa muito favorável, determinada pela demanda chinesa de commodities e pelo crescimento conjunto, até 2007, da economia americana e chinesa. A economia mundial estava favorecendo os países do MERCOSUL, exportávamos manufaturados para os EUA, tínhamos superávit de manufaturados. Isso permitiu que tivéssemos uma política de valorização do salário mínimo, que ajudou muito a demanda interna, que tivéssemos o crédito consignado. Além da queda dos preços de manufaturados chineses, que favoreceram a compra de bens duráveis brasileiros. Esses fatores se dissiparam entre 2011 e 2012 e o Brasil não conseguiu mudar o rumo.

Na crítica dos conservadores isso não existe, a estrutura da economia não existe, o que existe é um conjunto de relações macroeconômicas, que eles não sabem nem manejar direito, e que resultam em decisões de política econômica. Na medida em que a economia foi desacelerando fortemente, foi difícil obter superávit primário que estava conseguindo.

O remédio para esse cenário é esse que o governo tem aplicado?
Belluzzo – É uma tolice o que estão fazendo. Não vão conseguir fazer superávit primário porque a receita cai e o déficit da Previdência sobre com a queda do emprego. Com a queda do volume de transações, os impostos que incidem sobre elas são reduzidos e os empresários também diminuem o nível de atividade para preservar a rentabilidade. Enquanto os bancos racionam o crédito para empresas e aumentam a taxa de juros para o consumidor, além de fazer operações muito rentáveis com a dívida pública.

Essa é uma oportunidade de iniciarmos a revisão da estrutura tributária brasileira. Mais ou menos 55% de impostos são indiretos, pagos igualmente por todos os consumidores, sejam ricos, pobres ou remediados. Enquanto outros impostos diretos, como o imposto de renda, tem participação de 16%. Agora há uma tentativa de se taxar mais os bancos, o patrimônio e a riqueza. Mas não sei se vai prosperar, porque o Congresso Nacional, com as lideranças que tem hoje, não deve acolher uma coisa dessas. As lideranças atuais são muito dependentes de oligarquias regionais e nacionais e elas é que mandam claramente.

Mas as propostas que temos de fazer é para dar o combate a essa lógica, a despeito do erro inicial da presidente de não ter consultado suas bases e ter cedido de uma maneira inacreditavelmente frouxa às demandas dos setores conservadores e ao mercado financeiro.

Qual deveria ser o caminho?

Belluzzo – (Dilma) Deveria ter sido mais cuidadosa com o choque tarifário, porque isso vai produzir impacto lá na frente. Deveria ter discutido com os trabalhadores mecanismos de troca, de manutenção de emprego com os reajustes salariais. Tem gente que diz, “se desvalorizar o câmbio, os salários vão cair“, mas se não desvalorizar não vai ter salário, porque terá desemprego. Veja como reduziu o emprego industrial nos últimos anos, o setor mais afetado. Você deslocou trabalhadores do setor de maior produtividade, com chances maiores de ter ganhos reais, para setores de menor produtividade, onde os salários são menores. O fundamental seria a proteção do emprego, o aumento da taxa de investimento coordenada pelo Estado e a moderação do ajuste salarial em troca do emprego. Esse é o ônus que você tem, tem de fazer uma concessão que tem valor do ponto de vista intertemporal, perde agora, mas ganha na medida em que a economia vai se recuperando.

Alguns economistas defendem que o ajuste de tarifas deveria ter sido feito antes. O senhor concorda?
Belluzzo – A correção do preço de tarifas produz uma inflação de custos, você está realinhando os preços relativos, e de fato houve um equívoco na ausência de reajuste do preço da gasolina, por exemplo. No caso da energia elétrica o problema é mais embaixo porque o modelo elétrico não presta. Na China, por exemplo, a eletricidade serve aos propósitos de rebaixar os custos de produção e não de ser um fim em si mesmo. Claro que você precisa de uma tarifa que remunere adequadamente o capital para permitir o investimento, mas não pode permitir um setor que ‘commodifique’ de tal maneira a energia elétrica que tenha um mercado livre que, de vez em quando, dá saltos e coloca o quilowatt/hora a R$ 800. Não é possível você tratar só através do mercado a tarifa de um fundo universal. Você tem que ter o controle público disso porque é de interesse dos consumidores e das empresas que são produtoras.

A intenção da Dilma foi muito boa, de reduzir a tarifa e adequar, mas infelizmente também a seca não ajudou. Tem uma inflação corretiva de tarifas e em função disso o IPCA está indo a 8,4% e você está tentando combater isso com aumentos sucessivos na taxa de juros, que é um erro.

Por quê?
Belluzzo – Do ponto de vista do equilíbrio fiscal, ao mesmo tempo em que esse modelo persegue o superávit primário, diminuindo gastos e aumentando a arrecadação, também está aumentando o déficit nominal por conta da subida dos juros. E isso afeta a dinâmica da dívida pública, porque a dívida aumenta e vai rapidamente para 70% do PIB, exatamente o que desejam corrigir. É uma fórmula estranha.

Na prática, você está fazendo um ajustamento em cima do emprego e da renda dos dependentes, dos que não tem capacidade de se erguer puxando os próprios cabelos, dependem da relação de emprego. Você está transferindo renda para o setor financeiro e para o rentismo por meio da taxa de juros. Como disse, o sistema tributário tem que tentar corrigir fundamentalmente esse desequilíbrio.

Além disso, estamos amarrados numa situação complicada, uma abertura financeira que foi feita no período posterior à estabilização da moeda e que atrela a elevação da taxa de juros à necessidade de fechar o balanço de pagamentos. A desvalorização cambial estimulou o crescimento das viagens ao exterior, estimulou a remessa de lucros e rendimentos, porque quanto mais valorizado o câmbio, com menos reais você manda mais dólares e produz um déficit manufatureiro enorme. Essa desvalorização cambial que vem de 20 anos e não foi corrigida é fatal. Você tem de ter uma política de comércio exterior que supõe, ao mesmo tempo, controle e abertura para aproveitar o que está acontecendo no mundo. Os chineses chegaram aqui e o Brasil estava completamente despreparado para discutir as propostas.

Nesse cenário, como fica a preservação dos empregos?
Belluzzo – Estão surgindo propostas como essa do Programa de Proteção ao Emprego (PPE), que pode ser aperfeiçoada e deveria ter sido discutida desde o início diante dos efeitos que já se sabia que viriam com a desaceleração da economia. Alguém disse que essa proposta só protege os setores mais aristocráticos da indústria, mas é uma oportunidade para atrair também os menos protegidos para a sindicalização, porque esses ajustes, e isso está expresso no projeto de terceirização, tem como efeito a fragilização ainda maior daqueles em uma situação de precarização e subemprego.

Na Inglaterra cresce muito a porcentagem de zero hour contratc, que é o que vai virar essa terceirização, ter um contrato de zero hora, onde o trabalhador é chamado para tarefas específicas por meio de uma empresa de prestação de serviços que cobra uma parte do rendimento e deixa o trabalhador às vezes dias sem trabalhar.

O capitalismo está reduzindo o papel dos trabalhadores na formação da demanda global e ficando muito mais dependente do investimento pelos empresários. Só que o investimento pelos empresários é afetado pela perspectiva de baixo crescimento. Neste momento, o capitalismo está tentando impulsionar a economia simplesmente pela valorização fictícia da riqueza. Esse é o ponto que temos de atacar, uma regulação mais dura do sistema financeiro para que eles contribuam para a sociedade pagando seus impostos. Para que tenham ao menos uma participação mais produtiva.

Se deixar passar a regulamentação da terceirização como está, vai enfraquecer ainda mais o movimento sindical, como está acontecendo em todo o mundo. Se for necessário flexibilizar, será preciso montar um modelo de proteção em cima de um sistema de contribuição previdenciário e fiscal que permita, por exemplo, ter um programa de renda mínima para proteger aqueles que foram expulsos do sistema. É essa regulamentação que precisa fazer.

O senhor acredita que a saída sejam as relações comerciais externas?
Belluzzo – As pessoas falam para nos integrarmos às cadeias produtivas globais, mas não sabem o que é isso. Os chineses se articularam com as cadeias produtivas locais manejando corretamente os instrumentos centrais da economia para eles. Tiveram o cambio subvalorizado o tempo todo, atraíram investimento estrangeiro, usaram as empresas estatais para fazer joy venture (associação de empresas para explorar determinado negócio sem que percam personalidade jurídica) com as empresas que iam para lá. O sistema financeiro chinês foi praticamente estatal para subsidiar o crédito ao investimento.

E agora, depois que consolidaram o papel internacional, começam a internacionalizar as empresas deles. Temos que avançar muito, colocaria boa parte de capacidade de gestão brasileira e internacional na perseguição desse objetivo, que não implica romper relações com outros, mas não acho interessante entrar em histórias como a Nafta, que fez com que o México se desse mal.

O senhor acha que seria possível um pacto social? Porque alguns pregam, como o economista Marcio Pochmann, que muitos dos industriais estariam mais preocupados com a especulação do que com a produção.
Belluzzo – Com a especulação e o rentismo, porque você introduziu nos últimos 40 anos essa distorção que nasce dentro do capitalismo e contaminou as empresas industriais. Se você olhar o que acontece com o desempenho das indústrias, muitas estão ligadas a esse processo de financeirização. As empresas pagam aos acionistas com dividendos, sobre os quais não incidem impostos. E você dá benefício fiscal porque é como se você tivesse tido oportunidade de aplicar seu dinheiro a juros e optou por continuar mantendo dentro da empresa produtiva. Para resolver isso é preciso resolver como o sistema financeiro opera.

Nos EUA, tem outra bolha, a da Bolsa de Valores e do preço dos bônus. As empresas e os bancos estão cheios de dinheiro e emitindo bônus para fusões e aquisições, portanto para ganhos patrimoniais e fiscais que você obtém com as deduções. E para o chamado buy back, que é quando você compra as próprias ações para reduzir o número e valorizá-las.

Mesmo que a gente tenha desconfiança que é muito difícil fazer um pacto social, acho que é a única forma de você manter a economia de mercado capitalista funcionando e produzindo bem-estar para a população.

Em quais bases o senhor acha que esse pacto deve ser construído?
Belluzzo – Para começar esse pacto deve envolver trabalhadores, empresários e o Estado e isso vai ter repercussão na forma como o orçamento é definido. A ideia do orçamento participativo é muito importante, porque não dá mais para imaginar nessa sociedade que a ideia da democracia representativa é o suficiente. Ela precisa da participação direta frequentemente das camadas da população mais vulneráveis para discutir a alocação de recursos, quanto o Estado será responsável pelo investimento, pela inovação.

Há anos, no mundo todo, o investimento privado não vai sem o apoio do Estado. Nas políticas de conteúdo local os EUA estão em primeiro lugar e aqui o pessoal fica discutindo, porque nem bons liberais conseguimos ser. Esse orçamento, que precisa ter sua construção modificada, leva tempo, exige esforço, mas você pode construir um espaço para ter um modelo que seja benéfico para a economia e preserve os interesses dos trabalhadores.

A segunda questão é que não dá para escapar de uma regulação mais justa do mercado de trabalho, porque as novas tecnologias, a robótica, a nanotecnologia vão destruir empregos e não haverá como recolocá-los. A própria revista Economist recomendou um programa forte de renda cidadã.

Na Europa e nos Estados Unidos do pós-guerra, quando houve aquele movimento virtuoso, boa parte dos empregos criados foi no setor público. Na medida em que as tecnologias acumuladas naquele período entre a Grande Depressão e o pós-guerra entraram em funcionamento, deram força aos ganhos de produtividade muito grandes. Mas, ao mesmo tempo, não criaram empregos suficientes e os trabalhadores foram absorvidos pelo Estado e por programas sociais.

Compara-se muito a crise que a Dilma enfrenta agora com a que o Lula enfrentou e também as respostas de cada governo. Seria possível reeditar aquela fórmula de oferta de crédito e capital?
Belluzzo – São crises diferentes. Em 2009 o Brasil vinha num movimento de crescimento do consumo apoiado nas medidas que o Lula tinha tomado antes, de valorização do salário mínimo, do crédito consignado, da inclusão. Ele destravou o crédito com a desoneração fiscal para duráveis, num cenário de crise foi induzida. Não tinha banco brasileiro metido no subprime (crédito de maior risco oferecido a quem não oferece garantias). O que tinha era uma restrição ao financiamento porque os bancos entraram em uma crise de desconfiança em relação a eles mesmos. E o governo destravou isso com a criação de um fundo garantidor de crédito para recuperar a economia que cresceu 7,6% em 2010.

A crise atual é de outra natureza, é de perda de fôlego, de uma gestão inadequada do período em que começou a desaceleração. Porque o ciclo de consumo acabou, perdeu capacidade, inclusive, de impulsionar e isso foi combinado com déficit na manufatura enorme. Como se você tivesse querendo recuperar a economia sem que o motor dela funcionasse. Esse negócio do ajuste é como o carro que parou, porque o motor parou de funcionar, e você fosse consertar a lataria. Você tinha que rearranjar outro motor do crescimento, que é infraestrutura, para puxar a indústria. Você nunca teve um problema de demanda na indústria, o problema é que a demanda vazou para fora, é só pegar os déficits da indústria manufatureira, que foi mais de R$ 100 bilhões.

Qual sua perspectiva para o Brasil neste ano e até o final do mandato da Dilma?
Belluzzo – Não existe uma categoria mais metida a fazer previsões e cometer erros grosseiros de previsão como os economistas. Mais do que os meteorologistas, mas neste ano já está dado, a queda de 1,5% a 2% do PIB. Tem gente que está jogando o jogo do contente, inclusive meu ex-aluno, o Aloízio Mercadante, que diz que no final do ano vamos nos recuperar. Não foi comigo que aprendeu isso (risos).

Em curto prazo a gente não deve esperar uma recuperação tão breve, até por conta dos efeitos dos ajustamentos, porque os empresários falam uma coisa em público, dizer que tem de ser feito ajuste, e no privado afirma que não vão fazer nada, que estão com medo.

A Dilma foi minha aluna, minha amiga, lamento dizer isso dela, mas ficou apavorada, ficou obcecada com a ideia do investment grade (grau de investimento atribuído a um país por agências internacionais), que é um mito. Acha que vão parar de investir no Brasil com esse diferencial de juros, a 0,25% ao ano lá e 13% aqui?  Ela ficou impressionada com a agressividade do mercado financeiro em relação a ela, exagerando as dificuldades da situação fiscal. Não tenho nada contra o Joaquim Levy, até almocei várias vezes com ele aqui, mas ele é considerado um dos economistas mais concentrados na ideia de que o ajuste fiscal resolve tudo, que é base do crescimento e isso é um equívoco grave.

O câmbio que imaginei que iam deixar desvalorizar mais depressa estão usando para controle de inflação, que eles produziram, em boa parte, com esse reajuste de tarifas. Atrasar o reajuste de tarifa foi muito ruim, mas como você juntou tudo num mesmo pacotão, o impacto foi maior.

Vamos supor que tenhamos uma boa desvalorização cambial e a economia mundial cresça, ao invés de 3%, eleve para 5%. Isso resultará em um impulso das exportações e só vejo esse caminho.

A não ser que o governo consiga definir um programa de concessões na infraestrutura e que comece a funcionar logo. Mas neste ano não terá impacto, porque vai ser anunciado agora, pode ser que interfira no ano que vem. Se o Nelson Barbosa (Ministro do Planejamento) conseguir articular direitinho esse programa de concessões e botar dinheiro dentro da economia, criando renda, emprego, aí acredito que, sendo bem sucedido, teremos espaços para crescer. Mas precisa, para compensar o efeito recessivo das medidas que estão sendo tomadas, aumentar o orçamento de capital do governo e chamar as empresas para a concessões. E tocar o acordo com os chineses, que talvez demore mais, mas também é importante. Não sou pessimista, acho que há espaço para crescer.

Mas o investimento na infraestrutura não é prejudicado por grandes empreiteiras estarem envolvidas na Lava-Jato?
Belluzzo – Isso é a completa responsabilidade do aparelho judiciário brasileiro, no sentido moral. É conversa mole dizer que eles não podem permitir os acordos de leniência para salvar as empresas e suas estruturas. Uma coisa é punir os empresários malfeitores, isso ninguém discute, outra coisa é não deixar esse sistema empresarial, que é complexo e muito grande, funcionar. Não adianta dizer que eles formam um cartel. Eles são um cartel! Hoje em dia, se você olhar toda a economia capitalista, ela é toda muito concentrada, não existe a livre concorrência. Você tem que regular isso e ter força suficiente para impedir que a corrupção comece a andar e entrar por todos os lados. Não sei se o Estado brasileiro tem condições de fazer isso. Agora, impedir que as empresas participem de novas licitações é um absurdo.

O governo pode fazer uma proposta de reestruturação dessas empresas, inclusive, trocando de controle. Não é suportável que as mesmas pessoas voltem a comandar as empresas, mas não pode destruir as empresas e até isso é um fator que dificulta a recuperação do Brasil.

O governo poderia atrair gente para comprar, como os chineses querem comprar, vender outra parte das ações. Fazer com que os empresários paguem com suas ações de controle e revenda essas ações no mercado.

O que é mais difícil. governar o Brasil com o PMDB ou o Palmeiras com a turma do amendoim?
Belluzzo – Eu fui do PMDB, fui assessor do Ulisses Guimarães e era outro MDB. Esse PMDB atual eu não conheço. Mas o Palmeiras é um clube muito conflitivo e eu tive uma experiência de vida muito importante lá, onde prevalece o particularismo de baixa octanagem. Levei a Parmalat ao Palmeiras e as pessoas ficaram contra porque diziam que a Parmalat ia ganhar muito dinheiro. Queriam que perdesse? Estavam montando um time para ganhar campeonatos e ganhamos vários. Com o estádio foi a mesma coisa, mas eu não me queixo, a vida é assim. Teve gente que se jogou no chão quando eu estava no hospital e mandei demolir o Parque Antárctica velho. Depois, quando começou a subir, falavam que não ia funcionar. Agora o estádio tem vários pais. Eu só fui pela primeira vez ao estádio agora, no jogo contra o Atlético Mineiro, porque os que eram contra iriam chegar e dizer coisas hipócritas e eu não gosto de hipocrisia. E os que são a favor iriam querer celebrar de forma personalista e isso não é verdade, não fui eu quem fez o estádio, fui apenas o instrumento de um desejo de milhões de palmeirenses.


Créditos da foto: Roberto Parizotti/CUT
Fonte: Carta Maior 

Destruição econômica e social

Destruição econômica e social

24.05.2015
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Foi muito divulgada esta asserção do professor Wanderley Guilherme dos Santos: "Depois de criado, o Estado liberal transforma-se no estado em que a hegemonia burguesa não é seriamente desafiada. Trata-se de um estado cuja intervenção em assuntos sociais e econômicos tem por fim garantir a operação do mercado como o mais importante mecanismo de extração e alocação de valores e bens."
2. Esse cientista político destaca a óbvia natureza intervencionista (não-admitida) do Estado dito liberal, sem, porém, propor uma denominação que saia dessa contradição em termos.
3. De resto, os muitos que repetem o termo (neo)liberal, mesmo sabendo-o falso, colaboram com a enganosa comunicação social do capitalismo. 
Adriano Benayon * - 15.05.2015
4. O mesmo cientista afirma: "O Estado liberal não é de modo algum um Estado não intervencionista.         Muito pelo contrário, o Estado liberal está sempre intervindo, a fim de afastar qualquer obstáculo ao              funcionamento 'natural' e 'automático' do mercado."
5. Aí está um engano sério. O mercado, nas mãos dos oligopólios e carteis, não funciona natural nem automaticamente: ele é controlado e manipulado por eles, e lhes serve de álibi, ao usarem o termo impessoal "mercado" em relação a ações praticadas por pessoas físicas, a serviço de grupos concentradores de poder econômico e financeiro.
6. Isso é exatamente o contrário do funcionamento 'natural' e 'automático' do mercado e também do que teorizaram os clássicos da economia sobre mercados livres, com participantes igualmente submetidos à concorrência.  Na realidade, a intervenção do Estado capitalista:
 
1) afasta a aplicação dos mecanismos de defesa econômica do Estado, coibidora dos abusos                praticados pelos concentradores;
2) promove o aumento da concentração do poder da oligarquia financeira, através de subsídios governamentais e das políticas fiscal e monetária, entre outras.
7. Portanto, capitalismo é o sistema político e econômico que não admite restrições à concentração dos meios de produção e financeiros, ademais de a fomentar, nas mãos da oligarquia, por menor que seja o número das pessoas que a compõem.
8. Nos países centrais ou imperiais, o Estado liderou o desenvolvimento econômico e nunca abandonou o fomento ao setor privado. À medida que este ganhou corpo, o Estado passou aapresentar-se como liberal, a fazer concessões no campo social e a adotar, na política, formas exteriormente democráticas.
9.  Nos períodos de crescimento e bem mais nos de crises,  a concentração foi crescendo,  e regrediram os avanços, surgindo o fascismo (antes da 2ª Guerra Mundial). E o fascismo não-declarado, como nos EUA, desde antes do inside job de setembro de 2001 (destruição das Torres Gêmeas e míssil lançado no Pentágono).
10. A concentração do poder financeiro mundial alcançou  o incrível grau presente (147 corporações transnacionais, vinculadas a apenas 50 grupos financeiros, detendo mais de 40% da riqueza mundial). 
11. Isso se foi intensificando por mais de 100 anos após se terem os concentradores tornado bastante  fortes, para que o Estado capitalista os protegesse adicionalmente. Os setores mais aquinhoados foram o das armas e a finança.
12. O grande impulso recente deu-se  através da financeirização da economia, abusando os bancos dos privilégios de criar moeda e títulos de toda sorte. Seus acionistas e executivos locupletaram-se assim, beneficiados pela desregulamentação dos mercados financeiros, a qual lhes proporcionou abusar da alavancagem e de fraudes diversas.
13. Ilustrativa da subordinação do Estado capitalista, falsamente dito liberal, à oligarquia financeira foi a resposta ao colapso financeiro de 2007/2008, provendo mais de 20 trilhões de dólares em ajuda aos banqueiros delinquentes, ao invés de realizar as correções estruturais necessárias ao bem da economia e da justiça.
14. De há muito,  as intervenções imperiais  - militares ou não - recrudescem em todos os continentes, gerando sistemas políticos pró-imperiais e Estados vassalos, como se tornou o Brasil, à raiz do golpe de Estado de agosto de 1954, passando a partir das Instruções 113 da SUMOC e seguintes (janeiro de 1955) a subsidiar os investimentos estrangeiros diretos, de modo absurdo.
15. Não há como falar em capitalismo periférico. Há somente indivíduos riquíssimos originários das periferias, como muitos outros dos países centrais, subordinados à oligarquia capitalista mundial.
16. À medida que essa oligarquia se foi apropriando, no Brasil, da estrutura econômica, foi também promovendo sucessivas intervenções e manobras, no campo das instituições políticas, que propiciaram intensificar ainda mais essa apropriação.
17. Temos agora mais uma crise. Nesta, a baixa resiliência - devida à desindustrialização e à desnacionalização - combina-se com o déficit das transações correntes exteriores, mais os  déficits das contas públicas nos três níveis da Federação, resultando em grande salto qualitativo para nova degradação econômica e social.
18. Consideremos as taxas básicas dos juros dos títulos públicos, uma das mega-fontes de agravamento do caos decorrente do "ajuste"  em curso.
19. Nos últimos cinco meses, a taxa SELIC foi elevada várias vezes. Era 11,25%, em novembro de 2014, e chegou a 13,25%, em 30.04.2015, o que significa taxa efetiva em torno de 16,25% aa.
20. Em artigo anterior, comparei a aplicação das taxas de 12% aa. e de 18% aa., durante 30 anos, sobre o atual montante da dívida mobiliária interna, de cerca de R$ 3 trilhões:  a primeira resultaria em R$ 90 trilhões, e a segunda em incríveis R$ 430 trilhões, quantia igual ao dobro da soma dos PIBs de todos os países do mundo.
21. A taxa atual alçaria o estoque da dívida para R$ 274,73 trilhões de reais.
22. Tal como as letais taxas de juros, as demais políticas  do "ajuste" só podem ter por objetivo concluir a desestruturação (destruição) econômica e social do País.
23. Em função dos estratosféricos juros da dívida e também da intenção restritiva do "ajuste", os investimentos públicos sofrem enormes cortes. Do mesmo modo, a demolição de direitos sociais, incluindo generalizar a terceirização, significa extrair sangue de organismos anêmicos.
24. É inútil esperar resultados positivos de tais medidas, porque, na atual estrutura, dominada pelos carteis transnacionais, e dada a infra-estrutura existente, nenhum "ajuste" levará a diminuir significativamente o "custo Brasil", qualquer que seja a taxa de câmbio.
25. Até mesmo as subsidiárias das transnacionais, que poderiam apresentar custos competitivos, inclusive por não precisarem do crédito local, absurdamente caro, preferem, em vez disso, auferir lucros fabulosos no País, reforçados pelos incríveis subsídios que lhes dão a União, Estados e municípios.
26. Elas remetem esses lucros ao exterior, disfarçados em despesas por serviços, superfaturamento de importações (dos equipamentos, máquinas e insumos)  e subfaturamento de exportações. Assim, seus custos são forçosamente altos.
27. Já as empresas de capital nacional vêm sendo alijadas do mercado, desde 1954.  Além de não contarem com as vantagens dos incentivos e subsídios, que só as transnacionais estão em condições de aproveitar, elas foram desfavorecidas pelas políticas públicas e deixadas à mercê das práticas monopolistas dos carteis multinacionais.
28. A política de crédito as afeta de modo especialmente agudo, pois os juros que despendem -  são múltiplos da taxa dos títulos públicos. Já as transnacionais, além de não necessitarem de crédito, bastando-lhes reinvestir pequena parcela dos lucros, têm acesso a crédito barato no exterior.
29. A partir dos anos 90 e após a devastação produzida pela dívida externa, passou-se às indecentes privatizações, já que a classe dominante eram os controladores das transnacionais, cujos  governos impõem suas vontades, diretamente e através de agentes, cooptados e corrompidos.
30. Sob o modelo dependente, o País carece de poder armado e financeiro para fazer valer seus interesses na esfera mundial, e sua inserção externa  é a pior possível, pois os segmentos de maior valor agregado e maior emprego de tecnologia são controlados pelos carteis mundiais.
31. A própria infra-estrutura, como a dos transportes, inclusive em sua orientação geográfica,  foi desenhada para servir o interesse das corporações estrangeiras, tal como a escolha dos investimentos, priorizando a extração de minérios em escalas imensas, com pouco ou nenhum processamento no País.
32. Também na agricultura, privilegia-se a grande escala, segundo as regras dos carteis mundiais do agronegócio e suas tradings, abusando-se dos agrotóxicos, transgênicos e fertilizantes químicos, para grande dano dos solos e da saúde pública.
33. Entre os grandes escárnios ilustrativos da submissão do Brasil à condição de periferia imperial é a Lei Kandir, que isenta de tributos as exportações primárias.  A Inglaterra entendeu, já no Século XIII, que era vital sair dessa condição, quando a lã de seus carneiros ia para as indústrias de Flandres e da Itália.
* - Adriano Benayon é doutor em economia pela Universidade de Hamburgo e autor do livro Globalização versus Desenvolvimento.
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Réus graúdos levam Zelotes para longe dos holofotes

RÉUS GRAÚDOS LEVAM ZELOTES PARA LONGE DOS HOLOFOTES
Hylda Cavalcanti
A investigação de crimes praticados por grandes empresários, detentores de fatia considerável do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, caminha relegada ao desinteresse por falta de associação a um escândalo que reverta em dividendos ou prejuízos políticos.
Segundo o que foi apurado até agora, foram usadas empresas de fachada para fazer a intermediação com os empresários interessados em pagar propina para se dar bem nos julgamentos. Segundo o que foi apurado até agora, foram usadas empresas de fachada para fazer a intermediação com os empresários interessados em pagar propina para se dar bem nos julgamentos. O tratamento dado por parte do Judiciário e da imprensa à Operação Zelotes é uma amostra disso, se comparado à Lava Jato. Essa tem sido a constatação de parlamentares, representantes do Ministério Público, analistas econômicos e profissionais do meio jurídico, que se debruçam sobre a elucidação de um escândalo que pode chegar R$ 19 bilhões desviados do Tesouro Nacional.
A Operação Zelotes foi deflagrada em 28 de março por diversos órgãos de investigação em conjunto com a Polícia Federal. Resultou na descoberta de uma fraude com a Receita Federal, no período de 2005 a 2013 – grandes empresas subornavam integrantes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), ligado à Fazenda, para serem absolvidas do pagamento de impostos ou reduzir de forma significativa o valor a ser pago.
Entre as empresas investigadas estão grandes corporações, como RBS (maior afiliada da Rede Globo), Gerdau, Votorantim, Ford, Mitsubishi, BRF (antiga Brasil Foods), Camargo Corrêa, e os bancos Santander, Bradesco, Safra, BankBoston, Pactual, Brascan e Opportunity.
Enquanto em várias operações de caráter semelhante essa fase já teria resultado em prisões preventivas e medidas mais adiantadas, autoridades, Ministério Público e parlamentares alertam para o risco de a investigação não chegar a um resultado efetivo. Segundo o procurador da República Frederico Paiva, “o caso até agora não entusiasmou nem o Poder Judiciário nem a mídia, ao contrário do que acontece com a Operação Lava Jato”.
Ele criticou o que chamou de “passividade” por parte dos órgãos envolvidos na investigação e afirmou, durante audiência pública no Congresso Nacional, que os escândalos de corrupção no Brasil só despertam interesse quando há políticos no meio. “Quando atingem o poder econômico, não há a mesma sensibilidade. É preciso que a corrupção seja combatida por todos. Os valores são estratosféricos”, afirmou.
Representações
O MP entrou com representação na Corregedoria do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região contra o juiz responsável pela operação, Ricardo Leite, da 10ª Vara de Brasília. Leite só entregou os documentos referentes ao inquérito em curso à CPI em 1º de junho, e teria tomado decisões que não ajudaram as investigações. Ele só se manifestou pelos autos, negou a prisão temporária de 26 pessoas suspeitas de integrar o esquema e rejeitou o pedido de bloqueio de bens de investigados.
O deputado Paulo Pimenta (PT-RS) divulgou que entrará com medida no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra o magistrado. Ele acusa Ricardo Leite de ser responsável por processos antigos contra personagens da Zelotes que não foram nem sequer chamados a depor. “A conduta prejudica o combate à corrupção e ao crime do colarinho branco no Brasil”, acusa.
Segundo Frederico Paiva, o MP se prepara para apresentar à Justiça, até julho, denúncias formais por corrupção e lavagem de dinheiro contra investigados na Zelotes. No total, são analisados 74 processos do Carf com suspeita de serem resultado de fraudes. Entre 15 e 20 tratam de valores que chegam a irregularidades da ordem de R$ 5 bilhões. O procurador acha que não será possível reunir provas suficientes para anular a maior parte dos 74 julgamentos suspeitos. “O Ministério Público não vai conseguir, infelizmente, alcançar 10% dos ilícitos que foram praticados no caso”, diz. “É preciso que o Poder Judiciário entenda que provas contra a corrupção só são obtidas com medidas invasivas.”
Delegados envolvidos nas investigações já acenaram que, em mais de 90% dos casos, podem não ser encontrados indícios suficientes para anular as supostas irregularidades, por causa da negativa de várias medidas investigativas que dificultou a obtenção de provas. Eles querem desmembrar as investigações, numa forma de tentar contornar as dificuldades e agilizar os trabalhos. “Muita coisa que foi praticada não terá processo. Alguns vão ficar para trás”, lamenta o procurador.
Problemas estruturais
O escândalo envolvendo o Carf descortina dois problemas estruturais brasileiros. O primeiro é o modo de funcionamento do conselho em si. O segundo, a dificuldade de se apurar e julgar crimes tributários no país. Para o procurador Frederico Paiva, esse atual modelo do órgão, que será reformulado, é propício à corrupção e ao tráfico de influência.
“Para fazer investigações desse tipo dependemos antes, muitas vezes, da atuação da Receita Federal, que precisa atestar a existência do crédito tributário definitivo, decorrente de uma fraude. E isso dificulta nosso trabalho”, afirma o delegado da PF e coordenador-geral de Polícia Fazendária, Hugo de Barros Correia, ao destacar que, por esse motivo, tem diminuído o número de inquéritos na área de direito penal tributário no país – sem falar que a PF só pode investigar casos de sonegação previamente investigados no Carf.
No início de maio, um levantamento feito pelo gabinete do senador Otto Alencar (PSD-BA) constatou que mais de 120 mil processos tramitam no Carf, contestando a cobrança de R$ 565 bilhões em impostos e multas. “Se o governo fizer um Refis, dispensar multas e juros e der um desconto de 30% sobre o valor devido, ainda receberia o suficiente para evitar esse doloroso ajuste fiscal”, avaliou o senador, ao divulgar os dados.
A lista surpreende pelos números: apresenta 780 processos com valores acima de R$ 100 milhões sendo contestados, além de 4.295 ações com valores entre R$ 10 milhões e 100 milhões e 13.190 referentes a valores entre R$ 100 mil e R$ 10 milhões. Outros 93.698 processos de empresas com pendências na Receita pedindo a revisão das dívidas têm valores abaixo de R$ 100 mil.
O menor grupo, composto por 780 ações, corresponde ao maior valor em impostos e multas que a União teria a receber de grandes empresas: soma mais de R$ 357 bilhões. “É nesse grupo que estão os grandes clientes, que pagam propinas aos conselheiros para ter os valores anulados ou reduzidos. O Carf foi criado para poupar os grandes conglomerados de pagar impostos”, critica o senador.
Reformulação
O Carf tem atualmente 27 conselheiros (há sete cargos vagos), indicados entre representantes dos contribuintes e do fisco, em igual proporção. As indicações de representantes da iniciativa privada costumam ser feitas pelas confederações nacionais da Indústria (CNI), do Comércio (CNC) e da Agricultura (CNA). Os conselheiros não são remunerados. Pelo que tem sido descoberto, muitos deles, no entanto, trataram de dar um jeito próprio de compensar esse detalhe. Segundo o que foi apurado até agora, foram usadas, inclusive, empresas de fachada para fazer a intermediação com os empresários interessados em pagar pela propina para se dar bem nos julgamentos.
O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, chegou a anunciar que uma reformulação do conselho, depois de todos esses escândalos, “trará clareza para os contribuintes e segurança para o governo”. Levy disse que a proposta definitiva de reforma do regimento do órgão seria publicada até o início deste mês de junho. O texto foi submetido a consulta pública e, conforme explicou o ministro, as sugestões apresentadas pela sociedade estão sendo consolidadas. As mudanças passam por redução do número de turmas e reorganização da câmara superior de julgamentos.
Levy recebeu do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinícius Furtado Coêlho, um documento com propostas de reforma. A principal medida, aprovada no último dia 18 de maio pela entidade, é a proibição para que advogados com papel de conselheiros no Carf exerçam a advocacia privada. “A OAB poderia vetar a atuação no Carf apenas a advogados que atuassem em causas contra a Fazenda Nacional. Entendemos que o impedimento cabe em qualquer situação”, explica o presidente da OAB.
Como forma de equilibrar a situação dos conselheiros que são advogados, a sugestão da Ordem é que esses profissionais, quando passarem a integrar o Carf, recebam salários entre R$ 11 mil e R$ 22 mil. O projeto já foi enviado ao Congresso Nacional.
No Senado, onde foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar o caso, a relatora, Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), destacou que a comissão quer ter acesso ao máximo de informações. “O resultado que queremos obter não é só punir e prender empresas e culpados, mas trazer para os cofres públicos os recursos que nunca poderiam ter saído”, ressalta. Os senadores querem mais.
“O principal objetivo da CPI é investigar as razões da existência do esquema criminoso e, ao mesmo tempo, obter informações para orientar a adoção de medidas que evitem a repetição de tão lamentáveis fatos”, completa o presidente da comissão, senador Ataídes Oliveira (­PSDB-TO).
Na Câmara, por sua vez, o deputado Paulo Pimenta, relator de subcomissão da Casa que acompanha as apurações do escândalo, afirmou que já pediu ao juiz Ricardo Leite para ter acesso ao processo, que está sob sigilo de Justiça. Jornalista por formação, Pimenta terminou envolvido em uma polêmica com a mídia após ter sido acusado pelo jornal Folha de S.Paulo de “inflar” a Operação Zelotes com interesses de abafar a Lava Jato.
“A imprensa brasileira trabalha os casos de corrupção não a partir do ato em si, mas a partir de quem praticou a corrupção e quem está envolvido nesses escândalos. Só depois desse filtro, dessa censura prévia, e só depois de verificar se não irá atingir interesses dos grupos econômicos influentes, é que a imprensa decide qual o tamanho da cobertura jornalística que dedicará, ou, então, se irá varrer os acontecimentos para debaixo do tapete, sumindo com esses fatos do noticiário”, rebateu. Para Pimenta, com todos os empecilhos observados até agora, o caminho para o desfecho do caso está apenas começando.
Por Hylda Cavalcanti, da RBA

Os cidadãos servos e o Congresso do PT

 


14/06/2015 - Copyleft

Tarso Genro: Os cidadãos servos e o Congresso do PT

Se o fascismo financeiro não for brecado, fará desaparecer as liberdades políticas democráticas e todo o sistema de direitos individuais e coletivos.


Tarso Genro
Marcos Oliveira/Agência Senado
Depois de um formidável massacre a que foi submetido nos últimos anos, tanto por motivos justos como injustos, tanto pela direita conservadora como pelo néo-udenismo renovado, massacre este que transitou de maneira sistêmica pela grande mídia, toda ela, como se sabe, boa pagadora de impostos e isenta de qualquer mácula moral ou interesses subalternos  -depois de ser tratado, por mais de dez anos, como inventor da corrupção no Brasil - o Congresso do Partido dos Trabalhadores em Salvador, se é verdade que não resolveu nenhuma das questões de fundo, que o PT ainda precisa encarar, também demonstrou que o Partido tem uma capacidade de resistência extraordinária, uma militância séria e dedicada e quadros dirigentes, em todas as correntes de opinião, dispostos a reinventar a utopia e a não se entregar para as fatalidades burocráticas e para espontaneidade do cansaço.

A minha análise parte de alguns pressuposto que certamente não são majoritários no PT e isso ficou refletido na aprovação das teses da maioria e na rejeição das principais emendas do bloco minoritário, interno ao Partido, composto pela Mensagem e outros grupos internos do PT.  Primeiro, entendo que o Partido deveria recuperar a sua posição clara de sujeito político dirigente e proponente, e não apenas manter-se como "partido-suporte" do Governo, mero "ordenador" de custos políticos,  sem deixar de dar sustentação para que o Governo governe com estabilidade.

Segundo, entendo que o partido deveria lançar-se numa política de reconstrução, que não é apenas de "retomar" relações com os "movimentos sociais", mas é estabelecer relações com a nova inteligência política do país, restabelecer relações com a academia, com os centro de produção cultural-científica e artística, com os novos setores do mundo trabalho, emergentes das revoluções tecnológicas em curso, o que só poderia ser feito com o arejamento do grupo dirigente atual, formando um novo grupo de direção, que incorporasse novos quadros, sem deixar de aproveitar a experiência e a qualidade dos quadros dirigentes atuais, bem como com um novo sistema de eleição das suas direções.

Terceiro, o Congresso deveria tratar da "nova questão do Estado", que ainda não foi abordada de maneira convincente e profunda pelas gerações atuais da esquerda mundial e que, aqui no Brasil, estando ainda o PT  no governo, é um tema que poderia avançar de maneira significativa, com os nossos acertos e erros, ao longo desta década, que resultaram em extraordinários avanços na inclusão social e na redução da miséria, que hoje estão sendo colocados em xeque.

Esta terceira questão é a mais importante de todas. Ela remete para as duas anteriores e também porque traduz uma questão concreta, na política imediata, que tem uma enorme consequência estratégica. Ela parte de um pressuposto, que, se estiver correto, inverte a lógica da ação política da esquerda, para fortalecer o Estado e para responder à crise da democracia e a quase inocuidade dos processos eleitorais. Seu resumo é o seguinte: o Estado, em geral, e particularmente os estados sufocados pela dívida pública, foram capturados pelo capital financeiro - ordenado pelas agências privadas de risco e agências estatais dos países ricos, dos quais os bancos são intermediários - captura, esta, que determina que estes estados só se tornem "determinantes da vida social", para responder às necessidades do capital financeiro. Tornam-se os Estados, assim, cada vez mais ineptos e insensíveis, politicamente, para responder até mesmo aos chamados direitos naturais do Século XVIII, sem falar nas respostas econômicas e sociais decorrentes das lutas por mais igualdade.

As políticas que estes Estados precisam realizar, independentemente de quem está no Governo, passam a ser destinadas fundamentalmente a responder aos pagamentos da dívida pública, parte dela legítima e responsavelmente assumida pelos governos precedentes e grande parte dela decorrente do jogo especulativo do mercado financeiros mundial, que financia as políticas dos ricos nos países ricos, os investimentos bélicos de caráter colonial--imperial, sem falar na vida luxuosa de uma pequena elite, interna e externa ao país,  ligada aos grandes negócios globais.

Os estados, submetidos à chantagem permanente da dívida -vejam a Grécia-  não só tem dificuldades de desenvolver políticas alternativas para o seu projeto nacional de caráter democrático e social, como também transformam a sua cidadania numa cidadania "sem direitos", uma cidadania mais próxima da condição de servos, reforçando o "estatismo" só naquilo que lhe torna apto para a aplicação de políticas financeiras determinadas de "fora para dentro". Assim, ao mesmo tempo que se enfraquece o papel regulatório e social do Estado, se fortalece - como sua força principal para subordinar a política e os governos - seus Bancos Centrais, que se tornam mais fortes que os parlamentos e os partidos.

A força normativa do Estado e suas principais decisões que moldam a vida política, vem das determinações que ele, Estado, ordena na vida social, através dos Bancos Centrais. E isso não se faz sem autoritarismo e sem corrupção, que se espalha como uma gigantesca metástase no Estado e na sociedade civil: as reformas neoliberais, que agridem os direitos da cidadania não se fazem sem alianças fisiológicas e sem uma boa dose de corrupção na estrutura estatal, porque a "dinheirização" passa ser o elemento central da política, em substituição a programas de governo capazes de atrair e mobilizar os cidadãos.

Independentemente da honestidade da maioria dos políticos de todos os partidos, dos Presidentes, dos Ministros de Estado, dos servidores públicos, a política que se fortalece, vinga, e que  tem o apoio dos setores mais privilegiados no país e da ampla maioria da mídia tradicional é esta: a política que substitui as decisões políticas de Estado, para imprimir um projeto econômico e social, é transformada em decisões de gestão financeira da dívida, como política de Estado mais "universal" e fatalmente obrigatória.

Ao recusar a fazer um exame profundo do "ajuste" e das suas consequências para o conjunto da sociedade, o Congresso deixou a militância e a nossa base social desarmada, para enfrentar um debate sobre o futuro. Sequer se tratava de  exigir da Presidenta uma mudança de rumo agora, porque as escolhas que foram feitas pelo Governo, supostamente "para sair da crise", neste momento são irrevogáveis. Não só  porque quaisquer outras exigiriam um grau de mobilização social e uma unidade política, baseada em determinados princípios (que parte do nosso Partido e  os nosso aliados atuais não estão em condições de absorver), mas também porque não teriam maioria parlamentar para serem aplicadas. Mas é do profundo exame crítico do "ajuste" e da  crítica  à forma despolitizada e tecnicista com  que ele foi  proposto e está sendo aplicado, é que o PT recuperaria a credibilidade para dizer a natureza da política econômica do futuro, para um novo ciclo de governos progressistas  no Brasil.

A absorção, pela maioria, da necessidade de uma Frente orgânica, à esquerda, para o futuro, e o reconhecimento, ainda que formal, da necessidade de uma nova política econômica desenvolvimentista e social, dentro do atual governo, foram sinalizações positivas do Congresso. Mas seu elemento político mais importante,  do ponto de vista da minoria que eu integro, foi o manifesto unitário da maioria dos parlamentares do PT, senadores e deputados, (que gerou ao final a "Carta do Rio Vermelho" da minoria), que exigia que mudanças mais profundas fossem pautadas pelo Congresso. Na verdade não se trata, como quer a grande mídia, de sermos  "mais" ou "menos" radicais. Trata-se de sermos apenas mais consequentes com a nossa história, não só não aceitando que não existem outras alternativas, mas propondo-as de forma clara, mesmo "contra a corrente", formada por uma opinião pública manipulada pela grande mídia.

Togliatti, em 1935, num texto ("A propósito do fascismo"), em  que criticava  o tipo de aparato estatal proposto pelo fascismo,  "no qual o cidadão não tem direitos (...) diante do Estado, porque a origem de cada direito está no próprio Estado" , também, de forma profética, adiantava uma crítica do Estado "bancocentralizado" dos tempos atuais. É o estado necessário ao capital financeiro,  para controlar a sociedade: o Estado dos "cidadãos-servos", que não tem direito nem de discutir nem propor "ajustes", para saírem de uma crise porque, afinal, "não tem alternativas".

Este fascismo financeiro,  que toma conta do mundo e agora se prepara para esmagar a Grécia, se não for brecado em países mais fortes, como é o nosso,  fará desaparecer não só as liberdades políticas democráticas, porque tornará irrelevantes os partidos e os governos, mas também  fará desaparecer, como disse Togliatti,  "todo o sistema de direitos individuais e coletivos". A questão democrática em curso, hoje, integra de maneira incontornável, a crise da democracia, com a crise financeira do Estado. Isso o nosso Congresso não respondeu e é nosso dever compartilhar com os demais setores da esquerda e com o centro progressista e democrático a busca de saídas fora das alternativas da ortodoxia.


Créditos da foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Fonte: Carta Maior

O Sal da Terra


12/06/2015 - Copyleft

O Sal da Terra - Salgado, desenhista da luz no mundo de sombras

"Somos um animal muito feroz; somos terríveis," diz Sebastião Salgado no documentário dedicado a ele por Wim Wenders.


Léa Maria Aarão Reis
Reprodução/O Sal da Terra
Quando se refere à nossa espécie, a frase do mineiro Sebastião Salgado, um ícone vivo da fotografia do nosso tempo, permeia o espírito do festejado documentário sobre sua extraordinária obra, O Sal da Terra (The salt of the earth, de 2014), que há mais de três meses lota cinemas nas principais cidades do Brasil.

“Somos um animal muito feroz; somos terríveis,” diz Salgado em uma de suas intervenções, uma espécie de guia para o roteiro do filme que ampliam e aprofundam o drama contido nas imagens que produz. Dirigido pelo alemão Wim Wenders, outro ícone do cinema contemporâneo (autor de Buena Vista Social Club), e pelo jovem filho de Sebastião, também fotógrafo, Juliano Ribeiro Salgado, este documentário emociona e choca até os espíritos mais desencantados com a natureza humana que parece viver, hoje, com seu lado sombrio, os últimos resquícios de piedade e benevolência na sua experiência.

Photo significa luz, em grego”, lembra Wenders no filme, ”e o fotógrafo é alguém que desenha com a luz no nosso mundo de sombras. Quando conheci as fotos de Salgado, por acaso, em uma galeria alemã, percebi que o autor era alguém que se importava com os outros. Tive então o forte impulso de me aproximar dele.”

Foi assim que se iniciou a amizade entre o cineasta alemão casado com uma fotógrafa profissional e Sebastião Salgado. Ele hoje tem 71 anos, nasceu em Minas Grais, em Aimorés, foi criado na fazenda de gado do pai, na beira do Rio Doce, e quando moço se exilou em Paris por conta da ditadura. É economista por formação. Na mira da lente da sua Canon, o aventureiro-viajante e testemunha da nossa época  acompanhou os grandes êxodos originários de deslocamentos forçados de populações, registrou guerras pelo poder através do planeta e, nelas, assassinatos gratuitos de milhares de civis; a devastação da natureza, a destruição de florestas e a poluição oceanos, a crueldade dos genocídios que, - isto é o pior -, se perpetuam apesar das denúncias cada vez mais vazias e descartáveis e dos protestos oficiais risíveis.

Dividido em capítulos intitulados Outras Américas, Sahel, Trabalhadores, Imigrantes, Êxodos, Instituto Terra - o filme tem inicio com as célebres e impressionantes imagens de Salgado retratando o delírio da corrida do ouro em Serra Pelada, nos anos 80. “Parecia uma Babel”, ele descreve, falando devagar e baixinho como é do seu feitio. “Era como as minas do rei Salomão. Cinquenta mil pessoas murmurando, subindo e descendo as escadas precárias de madeira montadas no abismo, 50, 60 vezes ao dia. Escravos do desejo de enriquecer, com o ouro como que entranhado na alma. Parecia o início do mundo.”

Nesta série, Trabalhadores, imagens impressionantes mostram também os poços de petróleo do Kuwait incendiados por Sadam Hussein. “Ficávamos durante 24 horas seguidas sem ver a luz do sol tal o volume de fumaça negra que subia no ar.”

O fascínio do filme está não apenas no respeito e na delicadeza com que Wenders trata o precioso material que tem nas mãos. Caso por exemplo das sequências dirigidas anteriormente por Juliano, com surpreendentes imagens de uma das últimas comunidades de morsas existentes no planeta, em uma ilha deserta do Ártico. “No Ártico não há horizonte,” comenta Salgado.

A apresentação das suas próprias fotos, na longa entrevista-guia que concede a Wenders, oferece uma dimensão aprofundada do seu trabalho de 40 anos. Desde que deixou o Banco Mundial e a Organização Mundial do Café, em Paris e Londres quando estudou e analisou os mercados mundiais, comerciais e industriais que regem o mundo, antes de se profissionalizar como fotógrafo.

“Não se pode construir um futuro sem pensar na nossa origem,” diz Salgado, no doc. “As luzes da minha fotografia vieram da fazenda do meu pai e a forma barroca do meu trabalho veio de Minas Gerais. Eu moro em Paris, mas nunca saí de Minas.”

Sua longa viagem é acompanhada por Wim Wenders e começa com a identificação, quando jovem, com a Teologia da Libertação, no Brasil, e com o começo dos movimentos dos sem terra, no nordeste brasileiro. Depois, os Andes e as montanhas da América Latina, a “América Latina profunda onde a vida e a morte estão sempre próximas porque para as comunidades que conheci no continente, morrer é uma continuação da vida”.

O périplo prossegue nas imagens dos saragurus, no sul do Equador; dos mrixes e dos tarahumares no México e, anos mais tarde, na África, no Sahel. Fotografando os coptas da Etiópia (fotos impressionantes da política brutal no norte do país) e, seguindo rastros dos Médicos Sem Fronteiras, os genocídios africanos e o massacre de tutsis em Ruanda. “Certa vez, percorremos 150 quilômetros vendo corpos, cadáveres, na beira da estrada; isto dá a dimensão daquela catástrofe.”

“Depois de ver também os 120 mil mortos na minha última viagem a Ruanda, em 1990,” diz Salgado,“ eu saí da África pensando como a espécie humana é feroz. Saí de lá sem acreditar mais na salvação da humanidade. Achando  que não merecemos viver.”

Foi Lélia, sua mulher, arquiteta e companheira da vida toda quem ajudou o marido a se refazer. “Nós começamos a ir mais vezes para a fazenda para melhorar  seu astral porque foi um momento dele de muita tristeza com o mundo,” ela explica no filme.” E foi de Lélia a ideia de replantar a Mata Atlântica na fazenda que tinha sido do pai de Sebastião. As imagens da região, antes e de depois do projeto batizado como Instituto Terra, são emocionantes. Mais de dois milhões de árvores foram plantadas numa área antes devastada. Para Sebastião, o retorno às origens foi importante depois da sua última viagem a Ruanda.

A partir de então Salgado passou a fotografar a natureza e animais. A mostra organizada por Lélia com essas imagens, com o título de Gênesis, que levou multidões ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, é uma visão mais otimista do fotógrafo. “É uma carta de  amor ao planeta que ele tinha visto devastado”, observa Wenders.

Alguém observou que em O Sal da Terra há uma “serena gravidade e contenção acompanhando cada imagem”. É o estilo de Wenders. Ele não esconde a imensa admiração pelo seu personagem, desvela a paixão dele pela vida, pelo ser humano, pelos  animais e a natureza.

Nós diríamos que o fotógrafo que já foi acusado de estetizar a miséria – na época ele respondeu: “Nossa linguagem é necessariamente estética. Criticar isso é como criticar um escritor por sua forma de escrever”  -, hoje convive melhor com os animais e com a natureza. Melhor do que com seres humanos, que afinal são o sal da terra tanto para alimentá-la como para destruí-la.

*O Sal da Terra foi indicado ao Oscar de documentário, este ano. Recebeu o Prêmio do Júri na seção Un Certain Regard do Festival de Cannes 2014 e ganhou o premio francês César de melhor documentário. Pode ser visto na íntegra e legendado na internet ou alugado nos serviços competentes da televisão.



Créditos da foto: Reprodução/O Sal da Terra
Fonte: Carta Maior