Cultura
Livro
Copacabana, a princesinha do samba-canção
por Pedro Alexandre Sanches — publicado 13/02/2018 00h15, última modificação 09/02/2018 18h17
O pesquisador Zuza Homem de Mello narra a história do gênero sob o prisma da geopolítica do bairro carioca
Arquivo Público do Estado de São Paulo
No início dos anos 1940, o bairro na Zona Sul da então capital do Brasil pariu um gênero musical
Era um bairro, uma canção ou um gênero musical? Ao cabo de dez anos de pesquisas, o jornalista e produtor paulistano Zuza Homem de Mello, de 84 anos, apresenta o livro Copacabana – A Trajetória do Samba-Canção (1929-1958), que interliga aquelas três dimensões (além de outras) para contar uma única e maiúscula história.
Tal como fizera no importante A Era dos Festivais – Uma Parábola (Editora 34, 2010), Zuza escreve de modo aparentemente intuitivo, mas acaba por entregar um novo tratado sobre cultura e geopolítica, de dimensões maiores que meras quatro paredes praieiras.
A obra que coloca o vulcão em erupção é o samba-canção Copacabana, de João de Barro e Alberto Ribeiro, lançada em 1946 pelo modernista carioca Dick Farney, em papos ao pé do ouvido sobre Copacabana, princesinha do mar/ pelas manhãs tu és a vida a cantar. Cinco anos mais tarde, o modernista mineiro Lúcio Alves fechava o arco luminoso ao apresentar Sábado em Copacabana, do sambista baiano Dorival Caymmi (então convertido em autor de sambas-canção), a vagar pelo bairro-canção da manhã à noite, pra passear à beira-mar, Copacabana/ depois num bar à meia-luz, Copacabana/ eu esperei por essa noite uma semana.
A geopolítica explica tudo, como a narrativa de Zuza vai demonstrar. O Estado Novo de Getúlio Vargas explorara o samba em suas variantes mais fortes, especialmente a do samba-exaltação, sob um painel cultural nacional-popular que orbitava em torno da Urca, do Cassino da Urca e de Carmen Miranda. Eurico Gaspar Dutra tomou posse em 1946 fechando os cassinos, e a boemia órfã da jogatina com grill migrou para a meia-luz das boates de Copacabana.
Valendo-se de pesquisa de Jairo Severiano, o autor ensina que apenas quatro desgarrados sambas-canção fizeram sucesso entre 1940 e 1945. Esse número saltaria para 84 composições sob Dutra, numa galeria que inclui Mensagem, Saia do Caminho (1946), Marina, Se Queres Saber, Segredo (1947), A Saudade Mata a Gente (1948), Chuvas de Verão, Nunca Mais (1949), Errei Sim, Que Será? (1950)...
Entre os intérpretes ainda predominavam aí os da fase anterior do vozeirão de peito rasgado, como os cariocas Francisco Alves, Mário Reis, Orlando Silva e Silvio Caldas e as paulistas Dalva de Oliveira, Isaura Garcia e Linda Baptista. Entre 1951 e 1957, fase de eleição e suicídio de Getúlio e de transferência da capital federal para Brasília por Juscelino Kubitschek, o Brasil seria inundado por 924 novos sambas-canção.
Enquanto aborda a hegemonia dos cassinos, da Rádio Nacional e do teatro de revista, o livro mapeia os rudimentos do gênero desde 1929, quando Henrique Vogeler compôs a melodia de Linda Flor (ou Yayá, ou Ai Yoyô), gravada pela vedete carioca Aracy Côrtes.
É essa a canção que abre a trilha de um subgênero que Zuza define como “um samba romântico mais lento”, para em seguida aprimorar a definição nas palavras do crítico paulista José Ramos Tinhorão, segundo quem o samba-canção era uma “adaptação levada a efeito por compositores semieruditos que, ao passarem a ser convocados como arranjadores das gravadoras, tentaram adaptar o ritmo do samba para o tipo de orquestração que elaboravam, e faziam-no simplesmente retardando o andamento”.
Nesses primórdios destacam-se o mineiro Ary Barroso, autor de Tu (lançada por Silvio Caldas em 1934), Inquietação (idem, 1935), e o carioca Lamartine Babo, autor de Serra da Boa Esperança (gravada por Francisco Alves em 1937). Caso curioso é o de Na Batucada da Vida (1934), de Ary, cujos versos de desgraça (sobre uma narradora cachaceira que adormece como um despacho/ deitadinha como um capacho/ na porta dos enjeitados) foram interpretados com alegria esfuziante por Carmen Miranda. Na Batucada da Vida só se encontraria consigo mesma em 1974, na versão hiperdramática de Elis Regina.
Um triunvirato da aurora do samba-canção completa-se com o breve carioca Noel Rosa, numa série de sambas em modo menor, como Feitio de Oração, Não Tem Tradução (1933), Feitiço da Vila (1934), O X do Problema (1936) e as póstumas Pra Que Mentir? e Último Desejo (1938). A verve samba-cancioneira de Noel só seria desvendada no nascer dos anos 1950, quando a conterrânea Aracy de Almeida inaugurou a era dos álbuns de longa duração com dois volumes de Noel Rosa.
Entre 1946 e 1958, o enclave no tempo-espaço chamado samba-canção (ou Copacabana) iria constituir-se como um gênero-ponte, que levaria a política do corpo do samba ao domínio intelectual da bossa nova, sobre águas turbulentas. Os preconceitos de classe perpassam a narrativa à medida que se separam criadores “tradicionais” de “modernos” ou vanguardistas de “bregas”.
Em meio à vigência do samba-canção, o Brasil foi varrido pela influência do quente cancioneiro latino-americano, sobretudo dos boleros mexicanos e cubanos, implicitamente catalogados por Zuza como “inferiores” ao jazz e às torch songs estadunidenses de Billie Holiday, Frank Sinatra e Nina Simone.
Na versão nacional, essas resultariam nos sambas-canção de dor de cotovelo interpretadas pela carioca Nora Ney (como Ninguém Me Ama, dos pernambucanos Fernando Lobo e Antonio Maria, 1952) e no advento, em tempos de democracia getulista-juscelinista, de duas pioneiras cantoras-compositoras, a carioca Dolores Duran, de Canção da Volta (1954), Por Causa de Você (1957) e A Noite do Meu Bem (1959), e a capixaba Maysa, de Resposta (1956) e Meu Mundo Caiu (1958).
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Se a norte-americanização valorizava nossa fossa, a influência latino-americana redundava no chamado “sambolero”, ouvido como de “mau gosto” por gregos, troianos e bebês bossanovistas. Com alguma ambiguidade, Zuza afirma que tal corrente levava pecha de “música de bordel” e adquiria combustível entre as “classes menos abastadas”. Adentram no recinto Dalva de Oliveira, os fluminenses Angela Maria e Cauby Peixoto, e o gaúcho Nelson Gonçalves.
“Sua intuição privilegiada é quase inexplicável, dada a sua origem simples, filha de um carpinteiro de Rio Claro”, afirma Zuza sobre Dalva. Já Angela Maria é descrita como tecelã de origem operária, mulata de origem humilde, cantora vinculada ao nacional-popular por intermédio do bolero. Como reconhece o historiador, é ela quem vai extrapolar o circuito de boates de Copacabana rumo ao sucesso nacional, a bordo da suave Nem Eu (de Caymmi) e das desbragadas Fósforo Queimado, Vida de Bailarina e Lábios de Mel, todas de 1953.
São celebrados os artistas modernizadores, que passariam para a história como precursores da bossa. Entram nesse rol o Trio Surdina do (breve) violonista paulista Garoto, com Duas Contas (1953), o conjunto vocal Os Cariocas, as composições iniciais do carioca Antonio Carlos Jobim, a gravação de Chega de Saudade (1958) pela carioca Elizeth Cardoso, acompanhada pelo violão do baiano João Gilberto.
Zuza interrompe nesse momento a epopeia do samba-canção, mas deixa no ar a leitura de Tinhorão para a revolução que se avizinhava: “As velhas famílias tinham um piano, as famílias de habitação vertical não podiam ter piano. E vêm as que usam o rádio, as que vão ao cinema, as que vão usar a televisão em casa, o grande programa”.
Ao subir para o apartamento de frente para o mar, o samba virou bossa nova e voltou as costas para o samba-canção e o “sambolero”, que, no entanto, seguiram firme trajetória, quase sempre vestidos por termos mestiços ambíguos de “caipira” a “sertanejo universitário”, de “cafona” a “brega” e tecnobrega, de forró a funk carioca.