sábado, 9 de janeiro de 2016

Apontamentos sobre a crise republicana

 Roberto Amaral
É preciso lembrar que as crises costumam se transformar em tragédia.
A pauta se oferece rica, e os temas da política internacional são atraentes, ainda que desagradáveis, a começar pelo muito que a onda terrorista nos cobra de reflexão, para além da mediocridade estandardizada de nossa imprensa, neste episódio como em todos, condicionada em sua miopia pelo que lhe dizem suas matrizes norte-americanas e europeias.
Na ‘guerra’ aos aspectos externos do chamado terrorismo, um produto ocidental alimentado por políticas ocidentais (como ‘ocidentais’ leiam-se nomeadamente as políticas de EUA, França e Inglaterra), as potências imperialistas terminarão por construir uma guerra de verdade, porque isto faz parte de seu DNA, pois de guerras vivem, delas carecem, e por isso mesmo as estimulam, as provocam, as financiam, como Arábia Saudita, Turquia, EUA, França e Inglaterra financiam, hoje, os conflitos que dilaceram o Oriente Médio.
Dilaceramento que, destruindo países, aniquilando nações e promovendo genocídios, atendem aos jogos da geopolítica dos impérios. Ou seja, nada dizem respeito aos interesses dos povos vitimados, postos em guerra independentemente de seus projetos de povos, nações e países.
Assim, as potências imperialistas financiam os conflitos – e a partir deles e em última análise –, financiam o terrorismo, que é, fundamentalmente, um subproduto desses conflitos. Há o estímulo político, há a provocação ideológica, há a motivação religiosa e há a intervenção, direta ou indireta, seja fornecendo recursos, como o faz a Arábia Saudita, seja comprando petróleo do Estado Islâmico, como o faz a Turquia (acusada pelo general Wesley Clark, ex-comandante da OTAN), seja vendendo ou fornecendo armas como fazem os EUA com os ‘rebeldes’ na Síria.
Por detrás da derrubada do avião russo na fronteira da Síria com a Turquia, há algo muito mais sério, e mais preocupante do que a retórica belicista dos príncipes de Ancara e Moscou. Ali se trava um ensaio maior de um conflito maior, que diz respeito à redistribuição de poder das potências militares no Oriente Médio, neste caso um simples pasto, território para ocupação e exploração, espaço para experimentos guerreiros e confrontos calculados.
Não se esqueça, porém, o Ocidente (pelo menos não ignoremos nós) que esse urso ferido e humilhado que já foi a poderosa União Soviética, conserva as garras atômicas de seu tempo de império.
Aqui em nosso subcontinente, a confirmação da vitória do candidato direitista (ou, mais do que isso, do adversário do kirchnerismo), significa, antes de mais – e não é pouco –, a interrupção de uma vaga populista-de-centro-esquerda-nacionalista-anti-neoliberal (como classificar esse segmento do peronismo?) que gozava o poder havia 13 anos. Esse fenômeno pode ser, politicamente, um fato isolado, ou seja, um episódio exclusivamente argentino, sem risco de contaminação regional.
À derrota eleitoral do peronismo, porém, pode somar-se a reiteradamente anunciada e pleiteada e desejada e proclamada derrota do chavismo nas próximas eleições legislativas venezuelanas.
No mesmo passo são crescentes as dificuldades de Rafael Correa no Equador, e, em menor grau as de Bachelet no Chile. Dificuldades, todavia, que conhecem seu Himalaia entre nós, com a crise continuada do governo Dilma – e do petismo e do lulismo –, a menos de um ano de nossas eleições municipais. Não se afirma, já, que a ‘onda rosa’ inaugurada por Chávez em 1999 – mas que reconhecidamente teve seu apogeu nos dois governos Lula – encontrou seu ponto de refluxo.
A vitória de Macri, nesse sentido, é apenas um indicador, ainda que grave e significativo, mais significativo ainda quando sua leitura se casa com a crise brasileira, na qual a ameaça ao mandato da presidente Dilma é fator preocupante, conquanto não seja a ameaça mais grave.
Cuidemos, hoje, de nossa miséria, a crise da política anunciadora de uma provável crise institucional, essa caracterizada pela iminência de uma anomia dos poderes da República. Seu epicentro gira em torno do Executivo, mas a ele não se limita, contaminados que estão o Legislativo e o Judiciário, e por isso mesmo igualmente desamparados da confiança da sociedade, trabalhada incessantemente pelos fatos objetivos (“mensalão”, Lava-jato, contas no exterior) agravados pela acentuação ideológica dos meios de comunicação de massa, construindo um ambiente de desesperança, desgosto e desânimo capaz de desarticular qualquer sentimento de nacionalidade.
Instala-se o círculo vicioso do desânimo levando ao desânimo, a depressão aprofundando a depressão, o anúncio da recessão levando à recessão de fato, o sentimento de perda antecipando derrotas.
É nesse ambiente que o Executivo vive sua crise agônica, caracterizada pela crise de governança que abala os poderes da Presidência, poderes que precisam ser fortes em qualquer modelo de presidencialismo, mormente nesse nosso, que se chama de ‘coalizão’ para acentuar sua absoluta ausência de caráter ideológico.
Diante dessa fragilidade crescem as dificuldades de relacionamento da Presidência com um Congresso cujos titulares majoritariamente há muito renunciaram às regras da ética republicana, o que por seu turno aprofunda a ingovernabilidade, e ameaça de descrédito a instituição, já desmoralizada a essência do mandato parlamentar, eivado de ilegitimidade. Ilegitimidade derivada do mau exercício do mandato, mas fundamentalmente derivada da própria origem do mandato parlamentar, comumente adquirido mercê da influência, decisiva, do poder econômico.
Nossa República macunaímica não regateia surpresas. No momento em que é ameaçada a integridade do mandato da Presidente da República, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal são objeto de apuração criminal e podem, a qualquer momento, ser destituídos de seus cargos e, mesmo, presos, como o precedente de Delcídio Amaral muito bem sugere. De outra parte, as contas da presidente da República estão a depender de um Tribunal de Contas cujo presidente, candidato à reeleição, responde a sindicância interna acusado de tráfico de influência, ao tempo em que é investigado na Operação Lava Jato.
As contas de campanha dos candidatos Dilma-Temer serão julgadas por um TSE onde se sobressai um ministro pouco afeito ao decoro e que se comporta menos como magistrado que como um inflamado líder oposicionista.
Nesse vácuo proporcionado pela falência funcional do Congresso e do Executivo, assoma o Poder Judiciário. O STF, partidarizado, legislando e criando direito novo a cada julgamento, e julgando cada vez mais a partir de premissas políticas ou conveniências corporativas, se impõe aos poderes fundados na soberania popular e passa a articular uma história própria. Assim se transforma, ele também, em fator de desestabilização política e insegurança jurídica, o que ofende os direitos da cidadania.
Se não há direito anterior condicionando o julgado, se o direito atual pode ser modificado, se os conceitos dos institutos jurídicos podem ser alterados a cada voto para justificarem decisões, o Estado de direito, tão referido pelos julgadores e reclamado pelos juristas, transforma-se em estado de desassossego.
A crise da Política compreende a crise das instituições e caminha para a crise da democracia representativa, alimentada pelo fracasso rotundo dos partidos e a ausência de lideranças com as quais possa o cidadão comum se identificar num momento de pânico cívico. Adolf Hitler já foi tábua de salvação de um povo levado ao desespero, desespero que na Itália pavimentou a ascensão de Mussolini, na Argentina elevou Perón, porque as crises costumam se transformar em tragédia, como foi na Itália contemporânea a emergência de Berlusconi navegando nas vagas das Mãos Limpas.
Blog do Roberto Amaral

A grande seca do Nordeste


sábado, 2 de janeiro de 2016

A grande seca do Nordeste

Foto de uma das vítimas da Grande Seca, Ceará, 1878. Foto de Joaquim Antônio Correia, “Vítimas da Grande Seca”, Albúmen, Carte de Visite, 9 X 5,6 cm, Ceará, CA. 1878. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
Das grandes secas que assolaram o Brasil, uma das mais graves e lembradas foi aquela que compreendeu os anos de 1877 à 1879, ficando conhecida como a grande seca do Nordeste. Foram quase três anos seguidos sem chuvas, com perda de plantações, mortes de rebanhos e miséria extrema. A situação foi tão desesperadora, que famílias inteiras se viram obrigadas a migrar para outros estados, promovendo uma onda de imigrações.

O cenário ficou cada vez mais caótico, principalmente quando os retirantes chegaram em outras cidades e estados. Devido à miséria extrema das pessoas que chegavam, os moradores locais temiam saques no comércio e armazéns. Além disso, as cidades para as quais as vítimas da seca se dirigiam começaram a ficar cada vez mais apinhadas de flagelados. Fortaleza, por exemplo, converteu-se na capital do desespero. De 21 mil habitantes pelo censo de 1872 passaram a ter 130 mil.

Somando-se ao quadro caótico, os rebanhos de animais sobreviventes sucumbiram diante da ação de zoonoses, furtos, fome e sede. A flora e a fauna da região praticamente desapareceram. Por fim, para completar o quadro de tragédia, houve um surto de varíola, dizimando milhares de pessoas. Finalmente o governo imperial enviou ao Nordeste uma comissão de engenheiros para a perfuração de poços, construção de estradas de ferro e armazenamentos de água, para assim resolver o grande problema da seca.

Vítimas das secas de 1877/1878, no Ceará – Brasil. Foto: autor desconhecido, Biblioteca Nacional.
Curiosidade:

Calcula-se que 500 mil pessoas morreram por causa da seca, em que o Estado mais atingido foi Ceará. O imperador dom Pedro II foi ao Nordeste e prometeu vender “até a última joia da Coroa” para amenizar o sofrimento dos súditos da região. Não vendeu, porém enviou engenheiros para a construção de poços.

Alguns anos depois da primeira grande seca no século XIX, em 1915 um novo episódio assolou o sertão nordestino. Mais uma vez, a nova seca fez com que diversos nordestinos migrassem para as grandes cidades, porém, ao contrário do primeiro episódio, o governo cearense resolveu se precaver de uma maneira desumana. Desta feita, o governo criou os primeiros currais humanos, campos de concentração em regiões separadas por arames farpados e vigiadas 24 horas por dia por soldados para confinar as almas nordestinas retirantes castigadas pela seca.

Notícia sobre o Campo de Concentração dos Flagelados, publicada no Jornal O POVO, em 16/04/1932.
A oeste da cidade de Fortaleza foi erguido, então, na região alagadiça da atual Otávio Bonfim, o primeiro campo de concentração brasileiro. Ali ficaram confinadas cerca de 8 mil pessoas com alimentação e água controladas e vigiadas pelos soldados do Exército. Naquele mesmo ano de 1915, após incentivos para que os retirantes migrassem para a Amazônia, o curral humano foi desativado.

Cerca de 17 anos mais tarde, em 1932, foi a vez de reabrir o campo de concentração de Otávio Bonfim e criar novos currais humanos. Naquele ano, outra grande seca castigou novamente o sertão nordestino, fazendo com que, mais uma vez, milhares migrassem para os grandes centros urbanos. Após dezessete anos, nem o governo federal, nem os governos estaduais haviam se precavido para diminuir os efeitos da seca e a solução, novamente desumana, passou a ser a criação e ampliação dos campos de concentração nordestinos.

Vítimas da seca. Crianças e adultos jazem ao lado da linha férrea que levava para o Campo de concentração de Senador Pompeu. De forma assustadoramente parecida, as cenas brasileiras dos currais humanos lembravam bastante os campos de concentração nazistas.
Pela segunda vez, foram erguidas regiões cercadas por arames farpados e vigiadas diariamente por soldados para confinar os nordestinos afetados pela seca. Corpos magros, de cabeças raspadas e numeradas se apinhavam aos montes dentro dos cercados de Senador Pompeu, Ipu, Quixeramobim, Cariús, Crato (ou Buriti, por onde passaram mais de 65 mil pessoas) e o já conhecido Otávio Bonfim, os maiores currais humanos instalados no Brasil para conter a massa castigada pela seca dos anos de 1915 e 1932.

Poema “Campos de Concentração no Ceará”, por Henrique César Pinheiro.

No Estado do Ceará
A exemplo do alemão
Houve por aqui também
Campo de concentração
Lá era pra matar judeu
Aqui o povo do sertão.

Na seca de trinta e dois
Criamos uns sete currais
Para evitar que famintos
Criassem problemas sociais
E pudessem invadir
Na capital seus mananciais.

Currais foram construídos
Em Senador Pompeu, Ipu,
Quixeramobim e Crato,
Fortaleza e Cariús.
Fortaleza teve dois
Otávio Bonfim, Pirambu.

Pessoas foram confinadas
Como bando de animais.
Tinha a cabeça raspada
Sacos de açúcar, jornais
Era o que lhes serviam
Como vestes mais usuais

Sem nome, ou identidade,
Chamados por numerais.
Desta maneira estavam
Registrados nos anais.
Só se comia farinha,
Rapadura nos currais.

Toda essa gente foi presa
Sem ter crime praticado
E para isto bastava
Somente estar esfomeado.
Pedir prato de comido
Que seria logo enjaulado.

E controlados por senhas,
Pelas forças policiais.
Quem entrava não saía,
Senão pros seus funerais.
Sessenta mil lá morreram.
Nos registros oficiais.

Para aqueles locais, todas
Pessoas foram atraídas.
Com promessas que seriam
por médicos assistidas,
Que teriam segurança
E fartura de comidas

Experiência que houve
Somente aqui no Ceará.
Que se iniciou em quinze
Naquela seca de torrar
Depois disso os alemães
Trataram de aperfeiçoar.

Alguns campos projetados
Para abrigar duas mil pessoas
Dezoito mil chegou alojar.
Presos por vilões e viloas,
Felizes os governantes
Ainda cantavam suas loas.

Em Ipu todos os dias
Morriam de sete a oito.
A maioria era de fome
E até por ser afoito,
Nas tentativas de fugas,
Pro que não havia acoito.

Nas décadas posteriores,
Pra mudar essa imagem,
governos criaram albergues
para evitar sacanagem,
mesmo assim pouco funcionou
pois sempre há malandragem.

E o povo nordestino
ainda de pires na mão,
espera de todos governos
pro problema solução.
Agora estamos na briga
pela tal transposição.

Ceará de Terra da Luz
É chamado no Brasil.
Foi nosso primeiro estado
Que escravatura aboliu
Pra isso não foi necessário
Nem mesmo usar um fuzil.

Mas a geração atual
Tem que redimir o erro
De governantes passados.
Não permitir o desterro
De seus filhos pra terra alheia
e muitos acham o enterro.

HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO
FORTALEZA/MARÇO/2008
HENRIQUE CÉSAR

REFERÊNCIAS:

– “A SECA DE 1877 – 1879“, FÁTIMA GARCIA, FORTALEZA EM FOTOS.
– AZEVEDO, MIGUEL ÂNGELO. CRONOLOGIA ILUSTRADA DE FORTALEZA.
– KOSSOY, BORIS. UM OLHAR SOBRE O BRASIL: A FOTOGRAFIA NA CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DA NAÇÃO (1833 – 2003). 1° EDIÇÃO. SÃO PAULO: FUNDACIÓN MAPFRE E EDITORA OBJETIVA, 2012. P. 94.
– LESSA, LETÍCIA. CURRAIS DE GENTE NO CEARÁ.
– “CURRAIS HUMANOS“. DIÁRIO DO NORDESTE
– SÁ, CHICO. “CEARÁ: NOS CAMPOS DA SECA“. REVISTA AVENTURAS NA HISTÓRIA. EDITORA ABRIL: 2005.
– ARQUIVO “O POVO NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO“. 1932.


TALITA LOPES CAVALCANTE

28 anos, formada em Economia, paulista de nascença e sulista por opção, é apaixonada pela liberdade de viver e fazer o que tiver vontade. Exatamente por isso, sonha um dia poder viver de espalhar o conhecimento a quantas pessoas puder. Atua como administradora, criadora de conteúdos no site.


Texto original: IMAGENS DE MUSEU

Retrospectiva 2015

Noam Chomsky: poder e terrorismo

Clique:

https://www.youtube.com/watch?v=7hjI0tF8lUs

Uma conversa interditada: o país que o Brasil poderia ser

04/01/2016 00:00 - Copyleft

Uma conversa interditada: o país que o Brasil poderia ser

Em seu primeiro artigo em 2016, FHC conseguiu sepultar a América Latina em uma crise 'terminal', sem dedicar uma única linha à crise global.

por: Saul Leblon

Wilson Dias / Agência Brasil
O hiato da passagem de ano, quando a sociedade se recolhe e o Estado Midiático opera a meia fase, produz um ensaio de desintoxicação que desnuda a asfixia da norma.
 
A norma é o agendamento diuturno da sociedade por interesses unilaterais que se apresentam como os de toda a nação.
 
O objetivo da parte que se avoca em expressão do todo é claro: interditar a conversa urgente da população brasileira com ela mesma.
 
Trata-se e barrar adesões à insurgência contida na interrogação: como se faz o país que o Brasil poderia ser, mas ainda não é?


 
O monólogo do enredo conservador impõem-se como o garrote vil do discernimento popular.
 
Desmoralizar partidos (não raro com a ajuda dos mesmos) é um dos seus ferrolhos.
 
Espetar o carimbo da ‘disfuncionalidade  populista’ em tudo o que não for ‘mercado’, outro.
 
Dissociar os desafios nacionais do neoliberalismo global em pane, a engrenagem mestra do conjunto.
 
Nada disso se faz sem a mídia azeitada, sistematicamente abastecida de insumos condizentes.
 
Em seu primeiro artigo em 2016, publicado neste domingo, o tucano Fernando Henrique Cardoso, brindou-nos com proficiente radiografia  do que classifica como colapso do bolivarianismo na América Latina.
 
‘Este populismo começa a se desfazer. São sinais promissores’, desancou alvejando regimes ‘anticapitalistas e anti-norteamericanos’.
 
‘A confusão entre populismo e políticas “de esquerda”, pontificou o paladino das privatizações, ‘baseia-se em um equívoco: o de que são “progressistas” medidas que propiciam melhoria imediata das condições de vida, mesmo sem condição de se manter no tempo’.
 
‘Sem o charme do populismo mais vigoroso e com o Tesouro vazio, como manter a “hegemonia” do PT? Impossível’, ejaculou, algo precocemente, para encerrar sua mensagem às tropas aliadas do golpismo e da vigarice:
 
‘Comecemos 2016 com ânimo, imaginando que pelo melhor meio disponível (renúncia, retomada da liderança presidencial em novas bases, ou, sendo inevitável, impeachment ou nulidade das eleições) encontraremos os caminhos da coesão nacional’.
 
O lince da sociologia da dependência conseguiu sepultar a AL em uma crise ‘terminal’, sem dedicar uma única linha causal ao entorno.
 
Ou seja, o mundo exaurido pela entropia dos livres mercados, aqui vendidos como alternativa ao ‘desastre petista’.
 
A singela omissão ao capitalismo realmente existente seria retificada pelos fatos no dia seguinte.
 
Nesta 2ª feira, um jornalismo useiro e vezeiro em vender a ideia de um Brasil-ilha-de crise (cercado-de-prosperidade-por-todos-os-lados), acordou sobressaltado com o estrondo na porta das redações.
 
Era o despencar de 7% da bolsa chinesa, associado a uma desvalorização recorde do yuan, mais um pico de baixa das encomendas à indústria norte-americana, que teve em dezembro a maior queda em seis anos, combinada à estagnação das exportações da maior economia da terra.
 
Peculiaridades locais à parte, o pano de fundo é a mais longa convalescença de uma crise capitalista desde 1929.
 
A impulsioná-la, uma demanda global estrangulada por empregos tíbios, classe média em decadência e ensaios de novas bolhas especulativas por todos os lados, fruto de um capital parasitário que se autovaloriza sem agregar riqueza à economia real.
 
‘Não me passou’, poderia dizer o tucano detentor da mais alta patente intelectual da direita brasileira.
 
Seu ego não o permite e nenhum colunista isento irá cobrá-lo.
 
Une-os o mesmo diagnóstico conveniente à elite e ao holerite.
 
Não debater a fundo a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro reduz uma transição de ciclo econômico a um desastre petista, que a volta do PSDB cuidará de reverter.
 
O que isso significará na prática pode ser lido antecipadamente no noticiário que vem da Argentina.
 
Desmonte de políticas públicas. Reforço do monopólio midiático (lá afrontado). Instrumentalização da justiça. Desvalorização fulminante do poder de compra das famílias assalariadas. Liberação dos mercados. Revogação de impostos aos ricos e de subsídios que beneficiam os pobres. Estrangulamento fiscal do Estado e provável novo ciclo de alienação do patrimônio público.
 
Tudo isso faz do macrismo o laboratório de ponta da restauração neoliberal, que o martelete midiático preconiza como panaceia para o Brasil.  
 
O noticiário morno da passagem do ano ressaltou, por contraste, o ensurdecedor tropel dessa catequese cotidiana.
 
Se quiser escapar à armadilha do arrocho, o país precisa desesperadamente abrir canais alternativos para estabelecer uma conversa ecumênica, direta, democrática sobre o passo seguinte do seu desenvolvimento.
 
Não se recuse aqui a necessidade de uma reordenação estrutural para que o país possa retomar sua construção. Ela terá custos; envolve garantias e concessões, evoca o alongamento de ganhos no tempo, exige grandes pactos feitos de salvaguardas e metas para emprego, salários, juros, inflação, tarifas e resultados fiscais.
 
Trata-se de uma negociação da democracia com o mercado e o Estado.
 
Não é um jogo em que o vencedor leva tudo, mas uma repactuação mediada pela correlação de forças na sociedade.
 
O sacrossanto ‘ajuste’ apregoado pela mídia, ao contrário, equivale à paz salazarista dos cemitérios.
 
O povo ocupa o posto de defunto e o dinheiro grosso, o de coveiro.
 
Desenvolvimento é tudo menos a paz mórbida suspirada pela bonança do privilégio.
 
Desenvolvimento consiste em superar estruturas existentes e criar outras novas.
 
Em sociedades marcadas pela contraposição de interesses de classe, imaginar que isso ocorrerá em perfeito equilíbrio é como vender o elixir dos mercados racionais.
 
Curto e grosso: o que hoje se chama de ajuste, como se fora uma panaceia das boas técnicas do ramo, nada mais representa do que a restauração plena do neoliberalismo em diferentes nações da América Latina.
 
O governo Dilma já viveu esse experimento em seu primeiro ano de mandato.
 
A miragem se desfez, como é sabido, na forma de mais crise e mais impasses.
 
A meta-síntese do processo, o superávit fiscal de 1,2% do PIB, foi revogada pela impossibilidade física de se compatibilizar recessão com a arrecadação.
 
Hoje, os milicianos do Estado Midiático, entre eles, moças e rapazes assertivos na defesa do mercado financeiro, declaram-se ‘surpresos’ com o tamanho do buraco escavado pelos cortes de gastos recessivos e juros siderais.
 
Distraídos, tampouco haviam percebido o tamanho da contração internacional que há oito anos comprime as fronteiras da economia global e já derrubou as cotações de commodities ao menor nível em 16 anos.
 
É nesse lusco-fusco surpreendente para quem ainda acha que o Brasil é uma ilha de crise em um planeta cercado de prosperidade, que o alvorecer de 2016 oferece uma nova chance de o governo abrir um calendário de conversas substantivas com as forças da sociedade.
 
Assunto: as linhas de passagem para o país atravessar o pântano mundial sem abdicar de construir uma democracia social tardia no coração da América Latina.
 
Diante das circunstâncias e do adiantado da hora só há uma forma de fazê-lo.
 
A Presidenta Dilma precisa falar regularmente à sociedade; em cadeia nacional e em fóruns tripartites setoriais.
 
Se quiser pautar a mídia sem se deixar pautar por ela, o governo deve reconhecer na democracia o único contraponto à ditadura do mercado e acioná-la como fator hegemônico na reordenação do curso do desenvolvimento.
 
FHC, Serra e outros valem-se da névoa espessa criada pelo próprio noticiário para insistir em políticas e agendas condenadas, mas ainda não substituídas no plano mundial --o que dificulta a sua ruptura definitiva no país e, mais grave, no próprio campo progressista.
 
A expectativa de que o vendaval pudesse amainar depressa ancorava-se, como se viu, na subestimação da dominância financeira intrínseca à natureza do problema, que agregou desafios adicionais às políticas contracíclicas.
 
Desfeita a miragem de uma turbulência passageira verifica-se que os avanços de agora em diante serão mais difíceis.
 
Após vitórias significativas contra a pobreza, ir além, em tempos de vacas magras, no pasto ralo das commodities, implica afrontar a desigualdade nos seus alicerces estruturais. Ou seja, ali onde se sedimenta o estoque da riqueza, na esfera fundiária, urbana, patrimonial, tributária ou financeira.
 
Fábulas amenas de retorno a um mundo de desconcentração financeira amigável e produtiva, sob o comando dos mercados, custam caro.
 
No final, não entregam o prometido.
 
É esse purgatório em dimensões compactas que o Brasil está a experimentar.
 
Recidivas da crise mundial –como as desta 2ª feira de bolsas em transe--  evidenciam a urgência de um poder de coordenação, capaz de colocar as coisas no papel de coisas; e devolver à sociedade o comando do seu destino.
 
Todo o desafio brasileiro hoje gira em torno desse nó górdio.
 
A mídia tanto insiste que às vezes até setores do governo e do PT parecem acreditar na mística dos mercados racionais, que farão as melhores escolhas para o bem da sociedade.
 
O país precisa desesperadamente estabelecer uma agenda de conversas entre os brasileiros sem ser pautado pela mistificação midiática.
 
Só há uma pessoa capaz de puxar essa conversa porque foi legitimada na urna para fazê-lo: a Presidenta da República.
 
Companheira Dilma Rousseff, o bonde da história está passando a sua frente, pela segunda vez.
 
Tenha certeza, não haverá uma terceira.