terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A sanidade do que chamam de loucura

A sanidade do que chamam de loucura

Ouço de alguns que um novo governo Lula, nas condições que se encontra o Brasil, seria um fiasco, porque a situação é tão difícil que o governo teria de ser um “estelionato eleitoral”, eleito com propostas pró-trabalhador mas obrigado a ser mais um a “cumprir do dever de casa” e, inapelavelmente, cortar direitos  da população e arrochar gastos públicos.
Lembro sempre do “óbvio” que é uma bobagem, tão bem descrito por Darcy Ribeiro em seu “Sobre o Óbvio”, onde ele descreve as tolas obviedades, desde o achar que era achar que o Sol gira em torno da Terra – “uma coisa que todo mundo pode ver” até o fato de que temos de dar errado, como país, porque nos tornamos um povo miscigenado.
Numa entrevista, Leonel Brizola contou que, na volta do exílio, no final de 1979, que “se chegasse um sujeito e dissesse que eu em três anos seria governador do Rio de Janeiro e que a primeira obra que eu iria inaugurar seria uma passarela para o Carnaval, eu diria:  ‘olha, interna o índio velho aí, que está fora da casinha’.
Fora da casinha, para quem não conhece o gauchês, é doido varrido.
Pois não é que fui encontrar o mesmo raciocínio numa postagem do Gustavo Conde, colaborador e companheiro deste blog, sobre o Lula?
Vale a pena ler e pensar: o que é louco, o Brasil ser o que é ou não ser o que pode ser?
Leia o texto do Gustavo e pense nisso:
Volte aos anos 90. Se você nasceu depois, pegue uma máquina do tempo e volte também. Você vai curtir. Tinha racionamento de energia, o salário mínimo era de 64 dólares, a Vale do Rio Doce era vendida a 3,3 bilhões de reais e o Brasil tinha aquele timaço com Mauro Silva no meio de campo.
Mas, eu não quero falar do governo FHC, não, aquele suprassumo da gestão pública internacional. Eu quero falar de outra coisa.
Vamos lá: suponha que, nessa viagem no tempo, você encontre uma pessoa que te diga as seguintes afirmações taxativas:
“- O Lula vai ser eleito em 2002. Ele vai pagar a dívida externa e ainda vai emprestar dinheiro ao FMI. Ele vai fazer a transposição do Rio São Francisco, vai fazer três mega usinas hidrelétricas na região norte e vai fazer um programa contra fome que vai tirar 40 milhões de pessoas da miséria.
– A Petrobrás vai descobrir a maior jazida de petróleo do século 21 e o ministério da educação vai fazer 2 imensos programas de inclusão (Prouni e Fies) que levarão mais de um milhão de pessoas ao ensino superior. Lula vai, ainda, transformar a indústria naval brasileira na quarta maior do mundo e vai construir 14 novas universidades e 214 novas escolas técnicas.
– O Brasil será a 7ª economia do mundo, o 4º mercado da indústria automobilística e o presidente dos EUA vai chamar Lula de “the guy” (“o cara”).
– A Petrobrás vai fazer a maior captação de ações da história do capitalismo mundial (120 bilhões de reais em 2010), o Brasil será o país com uma das menores taxas de desemprego do mundo e será sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas num intervalo de 2 anos.
– Lula vai deixar o governo com 90% de aprovação popular, vai fazer o sucessor (a sucessora: será uma mulher, ex-guerrilheira, ex-torturada, ex-presa pela ditadura) e vai receber das universidades mais importantes do mundo a maior quantidade de títulos Honoris Causa que um chefe de estado já recebeu em toda a história”.
Agora respire e responda: do que você chamaria esse cidadão que lhe contou tudo isso? De louco? Pois veja como nos acostumaram a chamar de loucura aquilo que é possível e natural.
Louco, mesmo, é o Brasil conformar-se em ser um fiasco.

Arrecadação de impostos no Brasil sempre foi implacável com o mais pobre

Arrecadação de impostos no Brasil sempre foi implacável com o mais pobre

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Arrecadação de impostos no Brasil sempre foi implacável com o mais pobre
Por Marcio Pochmann
Do ponto de vista contábil, o Estado devolve através de políticas públicas para o conjunto da sociedade o que capturou na forma de tributação do excedente gerado pelo processo econômico, após deduzir o custo do seu próprio funcionamento. Nesse sentido, interessa saber a eficácia e o custo do Estado para gastar o que arrecada pelos impostos, taxas e contribuições, bem como de onde vem e para onde vai a tributação de responsabilidade estatal.
Historicamente, a preocupação arrecadatória no Brasil sempre esteve distante de qualquer preocupação de equidade, pois voltada à acumulação privada e por consequência favorável aos detentores de riqueza. Noutras palavras, a evolução das receitas e dos gastos não deixou de apontar o caráter de classe do Estado, justamente porque tem se apresentado implacável com o pobre e afável com o rico.
Com isso, constata-se, por exemplo, que a estrutura tributária que a República brasileira herdou do Império (1822-1889) pouco se alterou em relação a seu perfil regressivo. Ou seja, o predomínio da receita pública advinda dos tributos indiretos que são os que mais incidem proporcionalmente sobre os que menos renda possuem.
Com a passagem da sociedade agrária para a urbana e industrial, a partir de 1930, as principais fontes das receitas públicas se deslocaram do comércio externo para o consumo interno, o que permitiu desprezar os rendimentos dos capitais e propriedades, entre outras formas de renda dos ricos. Até a Revolução de 1930, o imposto de importação que representava quase dois terços da receita pública foi sendo gradualmente substituído pela tributação da produção e, principalmente do consumo interno.
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Desde então, três principais reformas tributárias foram realizadas para permitir a elevação das receitas públicas, o que acentuou ainda mais o peso dos impostos, taxas e contribuições na base do que no topo da pirâmide social brasileira. A primeira reforma tributária, por exemplo, transcorreu com Getúlio Vargas que se mostrou fundamental para viabilizar a industrialização, enquanto a segunda, sob a ditadura militar, modernizou o sistema de tributação e a administração pública, com avanços na tributação direta (Imposto de Renda) sem alterar o sentido da regressividade na arrecadação, ademais de ampliar o gasto público para os que menos precisavam.
A terceira reforma desencadeada na Constituição Federal de 1988 introduziu novos tributos que buscaram financiar a ampliação e descentralização do gasto público, sobretudo no chamado Estado de bem-estar social. Em virtude disso, as sucessivas medidas impulsionadas pelos governos democraticamente eleitos aumentaram a arrecadação pública na mesma velocidade com que pioraram a qualidade tributária e a sua regressividade na oneração da população.
No ano de 2012, por exemplo, os brasileiros com rendimento mensal de até 2 salários mínimos comprometiam 197 dias do ano com pagamentos de tributos, enquanto aqueles com renda acima de 30 salários mínimos precisavam de 106 dias do mesmo ano para o pagamento dos tributos. Quase quarenta anos antes, em 1975, quem recebia até 2 salários mínimos comprometia 103 dias do ano com tributos, ao contrário daqueles com 30 salários mínimos e mais de renda, com 75 dias comprometidos com a tributação.
Diante disso, o Brasil neste início do século 21 precisa construir uma nova matriz tributária que seja contemporânea da dupla transição relacionada às exigências da economia sustentável ambientalmente com os novos requisitos da sociedade de serviços. Ao contrário do passado, portanto, o sentido da nova matriz tributária deve se orientar pelo objetivo da equidade tributária.
Um bom exemplo disso seria o alívio do Imposto de Renda (IR) para 13,5 milhões de declarantes que recebem até 5 salários mínimos mensais. De um lado porque o valor arrecadado por esse segmento de brasileiros (50% do total dos 27 milhões de declarantes) representa apenas 1% (R$1,2 bilhão) de toda a receita do IR.
De outro lado porque a reintrodução das normas de tributação sobre lucros e dividendos vigentes até o ano de 1995 permitiria ampliara a arrecadação do IR em mais 44 bilhões de reais. Para isso, cerca de 2,2 milhões de declarantes ricos seriam atingidos, possibilitando a elevação da receita total do IR em quase 39%.

 Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

A encruzilhada de 2018: entre 1968 e 1988

Política

Previsão de Ano Novo

A encruzilhada de 2018: entre 1968 e 1988

por Guilherme Mello — publicado 22/12/2017 15h14
A atual crise política e institucional só tem paralelo com poucos episódios da história recente, entre eles o golpe militar e a retomada da democracia
Rovena Rosa / Agência Brasil
Ato contra Temer
2018 é um ano que não permite prognósticos
[Este é o blog do Brasil Debate em CartaCapital. Aqui você acessa o site]
Dois mil e dezessete está terminando e com isso inaugura-se a temporada de previsões para o ano vindouro. Se em tempos normais tal exercício já deve ser enxergado com boa dose de ceticismo, tais previsões merecem uma dose extra de desconfiança diante da atual situação brasileira e internacional. A crise política e institucional que vive o País parece só guardar paralelo com alguns poucos episódios da história brasileira recente, dentre eles o golpe militar e a retomada da democracia, ambos acontecimentos envoltos em um enorme ambiente de incerteza.
Na década de 1960, após o golpe de 64, o episódio político mais marcante certamente foi a edição do AI-5 em 1968, que representou um aprofundamento do golpe e uma escalada no autoritarismo já presente desde de 1964, mas que dava sinais de que poderia ser revertido.
Nunca é demais lembrar que algumas grandes lideranças do período democrático apoiaram o golpe de 64, acreditando que a situação era extraordinária/transitória e que duraria apenas alguns anos até o pleno restabelecimento da democracia através de eleições diretas. Às vésperas do AI-5, boa parte dos opositores da ditadura militar estava razoavelmente organizada politicamente, com o apoio de artistas e da intelectualidade, promovendo manifestações e atos de grandes proporções. O candidato favorito era JK, que, mesmo acusado em escândalos forjados de corrupção, trazia ao povo a lembrança dos tempos de prosperidade e otimismo que seu governo representou.
Em pouco tempo, todas as esperanças ruíram. O AI-5 foi a confirmação de que, em um golpe de Estado, pode-se saber quando se dá seu início, mas é quase impossível prever seu fim. O receio daqueles que promoveram o golpe de arcar com o custo político e jurídico daquilo que fizeram os impulsiona para frente, obrigando-os sempre a aprofundar o estado de exceção ao invés de abrandá-lo, na esperança de promover a destruição final de seus adversários. A única saída é ampliar as arbitrariedades, caçar seus inimigos e manter-se no poder.
À luz da história, é possível que 2018 tenha elementos similares aos de 1968. O golpe, que teve início ainda em 2014 logo após a vitória de Dilma Rousseff no segundo turno, já se tornou pródigo em proteger amigos e perseguir adversários, especialmente o trabalhador brasileiro e seus representantes políticos.
Assim como em 68, o ataque aos artistas, às universidades, aos sindicatos e aos movimentos sociais faz parte do arsenal mobilizado pelos golpistas para garantir sua posição política. Assim como em 1968, a caça aos inimigos não trouxe a legitimidade esperada e exigirá uma perseguição ainda mais voraz às lideranças populares que ousam questionar o golpe. Assim como em 1968, a perspectiva de um processo eleitoral livre e verdadeiramente democrático assusta profundamente os defensores do golpe, incluindo parte da mídia que o respaldou, diante da hipótese real de que as forças populares voltem ao poder.
Talvez a maior diferença seja que em 1964 o golpe vestia farda, enquanto em 2014 o golpe veste terno e toga. A despeito da roupagem, o conteúdo ideológico dos dois golpes é bastante similar: involucrados por uma aura de moralismo, os reais interesses por trás dos golpes foram a proteção dos mais ricos e o desprezo pelo trabalhador e pelo pobre, assim como pela democracia.
Michel Temer
Temer em apresentação natalina. Do que ri?
Se esta chave de leitura for demasiadamente pessimista para o eventual leitor, talvez seja o caso de lembrar que 2018 também possui elementos em comum com um ano muito mais alvissareiro, o de 1988 e da promulgação da constituição cidadã. A profunda crise econômica, a descrença no governo de plantão, a luta organizada de parcelas relevantes da sociedade e a derrota das forças conservadoras da antiga ditadura militar abriram espaço para a construção de um pacto social que, mesmo recheado de problemas e contradições, representou a retomada da democracia e abriu a perspectiva de uma nova era de inclusão social.
Foi a luta dos derrotados em 64 que possibilitou, em um momento de fragilidade do golpe e das ideias que representava, a retomada da democracia e a construção das bases na qual o pobre voltou a existir à luz da lei brasileira.
O ano de 2018 certamente não está escrito nas estrelas. A quantidade de incertezas que o envolve não nos permite fazer nenhum tipo de prognóstico confiável, mas parece evidente que a disputa política se dará em um ambiente de total anormalidade, herança típica dos momentos de golpe de Estado. Todos os agentes políticos relevantes, inclusive juízes e promotores, sabem que uma eventual derrota em 2018 pode representar sua “morte” política dali pra frente.
Quando a disputa deixa de ser pelo comando do Estado e passa a ser pela sobrevivência física e política, não se pode mais dizer que vivemos uma democracia, pois a aceitação da derrota significa uma sentença de morte para os perdedores. E ser democrata é, em grande medida, saber perder.
Mas, mesmo neste ambiente hostil, é viável derrotar o golpe antes que um novo AI-5 se consolide, sendo necessário uma profunda intensificação da luta popular, da mesma ou maior intensidade que aquela que garantiu a volta da democracia e a promulgação da Constituição cidadã, atualmente tão maltratada por nossos legisladores e governantes.
*Guilherme Santos Mello é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON-UNICAMP) 
Fonte: Carta Capital

O colapso anunciado de um projeto de desenvolvimento sustentável

Sustentabilidade

Agroecologia

O colapso anunciado de um projeto de desenvolvimento sustentável

por Roberto Porro e Noemi Miyasaka Porro — publicado 21/12/2017 12h42, última modificação 21/12/2017 12h43
A gestão fundiária e ambiental do governo Temer provoca a desestabilização pelos ruralistas de áreas de uma reserva legal no Pará
Roberto Porro
O colapso anunciado de um projeto de desenvolvimento sustentável
Desmatamento na Reserva Legal do PDS Virola-Jatobá
[Este é o blog do Brasil Debate em CartaCapital. Aqui você acessa o site]
Mais uma vez o legado do incansável trabalho da irmã Dorothy Stang na região da Transamazônica está ameaçado. Desta vez, está em jogo a própria existência do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Virola-Jatobá, e com ele a integridade de florestas que até ontem se estendiam por mais de 30 mil hectares. Ao lado do PDS Esperança, o Virola-Jatobá foi criado há 15 anos como fruto do trabalho da missionária em busca de uma solução que aliasse conservação ambiental com reforma agrária.
A situação do PDS Virola-Jatobá agravou-se nos últimos meses, devido às crescentes pressões de setores contrários a efetivas políticas fundiárias e ambientais na Amazônia, e em particular, devido à desarticulação da atuação do INCRA no município de Anapu. O órgão é responsável pela gestão do assentamento com características ambientalmente diferenciadas. Há quinze anos, os PDS foram criados como uma proposta que incluía o uso sustentável de uma vasta área de reserva legal sob domínio coletivo de agricultores familiares.
No PDS Virola-Jatobá, formalmente denominado PDS Anapu III e IV, esta reserva florestalcoletiva chega a mais de 35 mil hectares. A mesma não pode ser utilizada para cultivos nem pastagens, apenas para o uso sustentável sob manejo dos recursos florestais madeireiros e não madeireiros (frutos nativos da Amazônia, óleos para usos culinário e cosmético extraídos da floresta, plantas medicinais, castanhas, palhas para artesanatos e construção civil e outros). Os assentados têm o direito de cultivar as chamadas “áreas de uso alternativo” do PDS, que correspondem a lotes de cerca 20 hectares para cada uma das 160 famílias.
Passados quinze anos do início do assentamento, mais de 90% da área do PDS continuava sob cobertura florestal no início de 2016. Na reserva legal do assentamento foi implantada uma iniciativa de manejo em nome da Associação Virola-Jatobá, que representava os assentados, como alternativa para apoiar os meios de vida locais sem que fossem repetidos os altos níveis de desmatamento observados nos projetos de colonização e assentamentos convencionais na região da Transamazônica. Muitas têm sido, contudo, as pressões contra esta iniciativa, e à modalidade de PDS como um todo.
Desde a sua origem, a proposta de PDS contrariou setores do poder local envolvidos na exploração ilegal de madeira e na especulação do mercado de terras, resultando no assassinato de irmã Dorothy em 2005. Ante à reação global, o governo democrático e popular  promoveu um período de aparente resgate de legalidade. Assentadas em terras com maciça cobertura florestal, mas cobiçadas por especuladores e madeireiros por seu potencial valor, as famílias do PDS Virola-Jatobá engajaram-se em iniciativas para manter a área de sua reserva legal relativamente conservada até recentemente.
Um acordo com uma empresa privada para manejo florestal vigorou entre 2008 e 2012. Foi interrompido por normativa do INCRA que passou a vedar a gestão direta de empresas florestais em projetos de assentamento. A partir de 2014 os assentados buscaram apoio para reestabelecer o manejo florestal por meio de suas próprias organizações, numa trajetória marcada pela extrema dificuldade no licenciamento e na condução da exploração florestal, mesmo com apoio de organizações de pesquisa como a Embrapa, Universidade Federal do Pará e Instituto Floresta Tropical.
Nos últimos dois anos, que coincidiram com alterações na gestão fundiária e ambiental conduzidas pelo governo federal, intensifica-se uma orquestração de distintos setores ruralistas atuantes em Anapu visando a desestabilizar de vez a proposta do PDS. Pecuaristas, madeireiros, especuladores imobiliários e políticos querem que essas terras passem pelos mesmos processos que resultaram em degradação e reconcentração fundiária. Desmatamentos são inicialmente feitos por agricultores descapitalizados que, sem apoio governamental, são estimulados a formar pastagens e subsequentemente a repassar seus direitos a outros. Mais de 600 famílias passaram pelos 160 lotes do PDS Virola-Jatobá desde sua instalação. A intensidade desta extrema mobilidade se acentua a partir de 2015.
Tudo isso acontece à vista de órgãos públicos imobilizados. O INCRA encontra-se desprovido de recursos financeiros e humanos adequados, mas sobretudo desprovido de orientação política que, não apenas freie este processo, mas proponha soluções efetivas. O IBAMA, igualmente sem recursos, encontra-se paralisado pela falta de resposta governamental às recentes retaliações de madeireiros contra servidores que ainda defendem a floresta em pé. 
A atual situação do PDS Virola-Jatobá é de completa falta de governança. Passados mais de dois anos sem uma ação efetiva do órgão fundiário em Anapu, o assentamento tem sido gradualmente ocupado por pessoas que foram ilegalmente adquirindo os lotes de uso alternativo, de 20 hectares. Com pretensões de domínio sobre áreas muito maiores, tais atores investem na progressiva derrubada de florestas na reserva legal.
Estes ocupantes não aceitam as normas ambientais do PDS, sendo apoiados e financiados por aqueles que ainda prevalecem incólumes na perversa realidade fundiária na Amazônia: os chamados grileiros, especuladores que lucram com a venda de terras públicas tanto no interior da reserva legal do PDS quanto em terras adjacentes de domínio da União em processo de incorporação ao assentamento. Invasões iniciadas em 2015 resultaram na grilagem de terras em parte da reserva legal e desmatamento detectado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que já alcança mais de 300 hectares.
Também se beneficiam aqueles que adquirem e processam madeira ilegal, desde toras de espécies valiosas, transportadas na calada da noite para serrarias clandestinas, a estacas para cercar pastagens em fazendas, continuadamente retiradas e vendidas sem nenhum escrúpulo pelos ocupantes irregulares. Este comércio se constitui hoje numa das principais formas de financiamento da derrubada das florestas na região, sendo que a espécie mais utilizada para a confecção de estacas é o acapu (Vouacapoua americana), que tem seu comércio atualmente proibido por normativa ambiental federal.
A desestabilização do PDS Virola-Jatobá teve seu ápice, contudo, neste 15 de novembro, por meio de um movimento que se mostrou bem articulado e focado na transformação da floresta na reserva legal do PDS Virola-Jatobá em terra para quem nela quiser “tirar” um lote, para nele viver ou vender. Nesse movimento aliam-se grupos sociais distintos, financiados pelo setor privado ruralista que pratica a ilegalidade, e articulados por aqueles que foram se estabelecendo irregularmente no PDS, sem que os órgãos fundiários e de fiscalização ambiental os impedissem.
Foram inúmeras as denúncias de delitos e irregularidades apresentadas a estes órgãos, e mesmo ao Ministério Público Federal, desde 2015, pelas famílias do PDS que insistiam, via associação e cooperativa, na busca de seus direitos por viverem na legalidade sem, contudo, serem atendidas.
Neste 15 de novembro, cerca de duas centenas de posseiros invadiram a reserva legal do PDS Virola-Jatobá, demarcando lotes de 500 a mil metros de frente, alcançando entre 100 a 200 hectares. A maior parte destes ocupantes vem da cidade de Anapu, movida por boatos intencionalmente plantados sobre a existência de terras livres no PDS para se “tirar” um lote.
Um movimento frenético de motocicletas passou a ser observado pelas estradas instaladas na reserva legal, estradas estas construídas com apoio do INCRA para o escoamento da safra legal do manejo florestal comunitário, que seria realizado no fiml de novembro e agora está ameaçado. Os invasores trazem motosserras para consolidar nos próximos dias sua ocupação e deixar marcas permanentes no que era a floresta destinada ao Manejo Florestal Comunitário. Em meio ao caos e na eminência do saque da floresta, muitos dos assentados regulares do PDS aderiram a esta ocupação, desesperados por ver seus direitos sobre a reserva legal serem apropriados por recém-chegados, e principalmente, por não mais acreditar na ação do Estado.
As famílias que ainda resistem, mesmo correndo eminente risco, apelam para uma ação conjunta que possa reverter a invasão, manter a floresta em pé, viabilizar a continuidade do Manejo Florestal Comunitário e restaurar a dignidade do emblemático PDS Virola-Jatobá.
Em Anapu, repete-se a perversa estratégia observada em inúmeras situações na Amazônia, nas quais a atuação de grupos contrários a políticas efetivas de reforma agrária e conservação ambiental antagonizam setores do campesinato e de comunidades tradicionais, distorcendo o foco de conflitos sociais. É sobretudo em nome dessas famílias que escrevemos este artigo e lançamos nota, em teor de denúncia aberta e de apelo.
Há muito pouco tempo para evitar danos irreversíveis não só às florestas do Projeto de Desenvolvimento Comunitário, como também ao ideal daqueles que acreditam ser possível manter essas florestas em pé, por meio de iniciativas que gerem renda e alcancem ao menos parte do que, num dia não tão distante, foi sonhado por irmã Dorothy.   
COLABORADORES CIENTES DO CONFLITO E DOCUMENTO, QUE MANIFESTARAM APOIO À DEFESA DO MANEJO FLORESTAL COMUNITÁRIO NO PDS VIROLA JATOBÁ:  
  • Marlon Costa de Menezes, engenheiro florestal, professor da Faculdade de Engenharia Florestal de Altamira, Universidade Federal do Pará.
  • Deivison Venicio Souza, engenheiro florestal, professor da Faculdade de Engenharia Florestal de Altamira, Universidade Federal do Pará.
  • Fábio Miranda Leão, engenheiro florestal, professor da Faculdade de Engenharia Florestal de Altamira, Universidade Federal do Pará.
  • Rafael Costa Miléo, engenheiro florestal responsável técnico do Projeto de Manejo Florestal da Associação Virola Jatobá.
  • Marcelo Galdino de Almeida, engenheiro florestal, Instituto Floresta Tropical - IFT
  • Tatiana Deane de Abreu de Sá, engenheira agrônoma, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental
  • Milton Kanashiro, engenheiro florestal, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental
  • Ademir Roberto Ruschel, biólogo, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental
  • Lucas Mazzei, engenheiro florestal, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental
  • David Escaquete, engenheiro florestal do IMAFLORA
  • Guilherme B. Stucchi, engenheiro florestal do IMAFLORA
  • Wallisson Maciel, assessor do IMAFLORA
  • Rodrigo Antonio Paza, assessor do IMAFLORA
  • Rafael Brevigliero, engenheiro florestal do IMAFLORA
  • Jéssica dos Santos Pacheco, advogada, colaboradora do Projeto Automanejo
  • Rodrigo Pereira, engenheiro florestal, professor do Instituto Federal do Pará, campus Ananindeua
  • Daniel Palma Perez Braga, engenheiro florestal, doutorando na ESALQ, Universidade de São Paulo

*Roberto Porro é antropólogo e engenheiro agrônomo, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental;  Noemi Miyasaka Porro é antropóloga e engenheira agrônoma, pesquisadora do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares, Universidade Federal do Pará
Fonte: Carta Capital