sábado, 15 de abril de 2017

Imagem do "justiceiro" é a nova versão do populista latino-americano

12/04/2017 18:57 - Copyleft

Imagem do "justiceiro" é a nova versão do populista latino-americano

Em sua participação nas Jornadas de 2017, o professor de Direito Constitucional Pedro Serrano explica como a exceção vem tomando conta do Estado brasileiro


Tatiana Carlotti
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Em sua participação nas Jornadas de 2017 o jurista Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, abordou a questão do Estado de exceção na contemporaneidade, mostrando como a exceção tomou conta do país ao ingressar no ambiente do Direito e se tornar um modo de gestão estatal da violência pelo Estado.
 
Partindo das transformações do capitalismo global, a partir da década de 1980, Serrano analisou como o Estado autoritário é uma exigência dessa nova ordem, capitaneada pelo capital financeiro, tecnológico e militar. Uma de suas atribuições, inclusive, é gerenciar a violência resultante da imensa desigualdade social provocada por essas transformações.
 
A exceção “se tornou uma forma de governabilidade”, subvertendo “o sentido, no plano internacional, do Estado nação”, destacou o jurista. Às Forças Armadas, por exemplo, cabe o papel de polícia mundial utilizando o mote da “segurança nacional” para justificar as guerras globais contra o “inimigo”. Os Estados nacionais, por sua vez, encontram-se reféns dos interesses das grandes corporações já que “qualquer medida prejudicial aos interesses do capital pode significar a saída deste capital do país”.
 
Essas transformações do capitalismo global também promoveram um forte processo de concentração dos poderes político e cultural nas mãos do poder econômico, resultando em “um modelo extremamente conservador e autoritário”. Segundo Serrano, essa forma distinta de “anarquia de produção intensa, que concentra poder cultural e político, exige um estado nação autoritário que suprima as liberdades públicas e os direitos sociais ao máximo possível”. Os dados brasileiros atestam a dimensão desse processo: em 1990, o país contava com 3 mil a 4 mil mortos em violência; hoje, são 60 mil.
 
A equação do chamado neoliberalismo é simples: “De um lado, se subtrai do Estado o poder de realizar benefício social e integração; de outro, amplia a possibilidade do Estado de suprimir liberdades e de aprisionar. No caso do Terceiro Mundo, em especial, a possibilidade de realizar genocídio e ampliar a violência”.
 
Neste processo, destacou, dá-se a atuação de um poder desconstituinte, capitaneado pelo sistema de justiça que engloba o juiz, o promotor, o legislador e a mídia. “O sistema de justiça é fator dominante desse poder desconstituinte”, apontou Serrano, ao exemplificar a atuação desse poder no Brasil: “não se altera formalmente a pauta da Constituição de 1988, mas inicia-se um processo de emendas constitucionais e com isso vai se esvaziando o sentido da Constituição. O Judiciário aceita e isso se estabiliza no sistema”.
 
Roupagem democrática do Estado autoritário
 
Destacando a ideia da provisoriedade, a identificação de um inimigo social e a suspensão de direitos como características do Estado de exceção, Serrano lembrou que “nas ditaduras latino-americanas havia a interrupção assumida e performática do ciclo democrático. Os governos de exceção e ditatoriais assumiam o comando sempre com o discurso da provisoriedade. Essa era a característica dos governos de exceção”.
 
Isso mudou. “Como essa nova forma de capital vende para o mundo uma ideia de democracia, mas ao mesmo tempo e contraditoriamente, pleiteia um Estado autoritário, surgiu no mundo Ocidental a figura de um Estado com uma roupagem democrática e com um conteúdo autoritário”.
 
Nesta nova roupagem, “são mantidas as figuras da autoridade democrática, das instituições democráticas, dos processos de decisão democráticas, mas eles são subvertidos em seu sentido”. Este processo, reiterou, é “capitaneado pelo sistema de justiça que se torna um gerenciador de medidas de exceção”, marcadamente a partir dos anos 2000.
 
Essas medidas de exceção podem ser facilmente identificadas na realidade brasileira. Por exemplo, a utilização da figura do bandido e do bandoleiro como forma de descaracterizar a identidade dos cidadãos. Uma figura, aliás, muito bem localizada nos territórios ocupados pelas forças policiais locais que passaram a ser forças de ocupação territorial. “A maioria das pessoas que tem contato com a polícia nesses ambientes morre ou sofre graves prejuízos à sua integridade física. E se é preso não tem direito de defesa”.





 
Os dados falam por si: 42% da população carcerária está presa sem decisão de primeiro grau; 70% não tiveram decisão definitiva; 2/3 dessa população - a 4ª. maior população carcerária do mundo – não tiveram decisão definitiva e as pessoas estão presas por ordem cautelar. “A gente desobedece claramente a determinação da ONU e da OEA de não utilizar prisão cautelar como forma de controle social”, avaliou.
 
Além disso, a população carcerária no Brasil é composta, basicamente, de pequenos traficantes, furtadores e pessoas que realizam roubos sem vítimas. “Essa é a essência da nossa população carcerária. Dos homicídios, apenas 5% são resolvidos”. Trata-se, portanto, de “um sistema altamente punitivo que deixa de punir o crime mais grave que existe que é a ofensa à vida”.
 
Só pode haver inquérito onde não houver devassa
 
Outro aspecto de exceção salientado por Serrano é a perseguição política, sobretudo contra líderes de esquerda na América Latina. “Essa segunda modalidade de políticas de exceção constitui-se na instituição de um processo penal de exceção, com capa e proteção da autoridade democrática de um juiz, visando a perseguição por razões políticas”.  
 
Tradicionalmente, explicou, a exceção foi concebida como zona de anomia, ou seja, “uma atividade de soberania absoluta não governada por norma nenhuma”. No caso da América Latina, em especial no Brasil, ocorreu o contrário. Nós tivemos uma hipernomia, “uma ampliação imensa do número de normas sancionatórias em várias áreas do Direito” visando sancionar a cidadania.
 
Junto à quantidade absurda de normas sancionatórias, ocorreram dois outros processos: “a produção de normas penais por conceitos indeterminados, subvertendo o sentido do Estado de Direito no país”, e a criação de mecanismos de investigação contrários aos inquéritos de investigação. “O inquérito é um direito da pessoa. Só pode haver inquérito onde não houver devassa”, afirmou Serrano ao citar o exemplo do ex-presidente Lula. “O que se promove contra o Lula é uma devassa. Não se está investigando uma conduta para saber se ele é o autor”, a ideia é investigar tudo o que ele fez, “vamos pescar, vamos ver o que o Lula tem de ruim”.
 
Segundo Serrano, como o Estado autoritário não pode colocar todo mundo na cadeia, quem aplica as normas, escolhendo quem será ou não culpado, detém um imenso poder de seleção. Com isso “a ideia de inocência e culpa se dilui” e a “a sociedade inteira fica com a faca no pescoço”. Fragilizada e atomizada, a sociedade permanece quieta achando que assim irá escapar. Um fenômeno que Serrano denomina “espectro de exceção” pelo qual a sociedade permanece sob domínio do autoritarismo.
 
Diluição do pacto humanista
 
Um terceiro elemento da política de exceção destacado pelo jurista é o apoio da sociedade. Trabalhando com os conceitos de Hannah Arendt de ralé (os que almejam uma sociedade indivisível e rechaçam a política) e de povo (os que defendem a política e a democracia como instrumento na solução dos conflitos), ele destacou que “o estamento populista é um elemento essencial na formação da ralé na América Latina”.
 
Em 1964, os militares brasileiros traziam a ideia “de estarem acima dos outros, de serem superiores moralmente e dotados da capacidade de purificar os pecados da política, além do uso da força para trazer a ordem, que é a essência da reivindicação da ralé”. Esse papel, agora, vem sendo cumprido pelo juiz ou pelo promotor: “a ralé exige deles não a aplicação do Direito, mas o combate ao crime e a ordem”.
 
Lembrando que hoje a ralé é criada pela mídia, Serrano apontou que “a figura do Justiceiro é a figura do novo populista latino-americano”. A incompatibilidade disso com a democracia é antiguíssima, salientou: “uma incompatibilidade óbvia entre a democracia e figuras personalizadas que utilizam a função pública para ter promoção pessoal, vendendo-se como fazedoras de Justiça, acima da ordem jurídica de Constituição, como seres providos de uma moralidade substancialmente acima do resto da sociedade”.
 
Serrano avalia que “o pacto humanista que fazia parte desse frágil encontro entre capitalismo e democracia liberal no século XX se dilui”, as pessoas deixaram de ter “sublimação por conta de valores humanistas”. Ressaltando que “essa agressividade, essa desumanidade, essa flexibilização da sublimação inerente ao processo civilizatório” são elementos constituintes da ralé, Serrano foi preciso em seu diagnóstico: “nós vivemos um problema de ultra repressão no campo político e de ausência de repressão da subjetividade”.

Desordem e regresso


12/04/2017 18:11 - Copyleft

Desordem e regresso

"A aprovação e a implementação de medidas em tempo recorde deve-se à posição politicamente dominante alcançada pela coalizão que sustentou o impeachment"


Marcus Ianoni* - Jornal do Brasil
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O governo Temer, empossado em decorrência de um impeachment bastante controverso (que corrobora para a deterioração do consenso quanto ao teor democrático atribuído às instituições), vem executando um programa não sancionado em pleito eleitoral algum e social e economicamente regressivo. A atual gestão presidencial não conta com o respaldo da opinião pública. Segundo pesquisa CNI-IBOPE divulgada em 31 de março, 55% dos entrevistados consideram o governo Temer ruim ou péssimo e apenas 10% avaliam-no como ótimo. O Latinobarómetro de 2016 indicou que apenas 9% dos brasileiros acreditam que se governa para o bem de todo o povo. Se uma das principais estruturas de alavancagem da legitimidade do regime democrático é a soberania popular expressa pelo voto universal, sendo a outra o desempenho do governo, então o país está no pior dos mundos, pois não conta, efetivamente, na conjuntura pós-impeachment, com nenhuma dessas duas dimensões do processo de legitimação da democracia. Para agravar o quadro, diga-se de passagem, a crise produziu um fenômeno inédito: o desaparecimento da confiança interpessoal. O país está na desordem e em trajetória de regresso ao desempenho decadente tanto dos índices de desigualdade quanto da estrutura produtiva. No entanto, o slogan do governo é “Ordem e Progresso”.
 
A democracia pode ser entendida apenas como um regime político cujos procedimentos formais permitem a seleção periódica dos representantes, através do mecanismo eleitoral, desde que acompanhado de alguns requisitos, como a idoneidade do pleito, as liberdades de associação (não só partidária) e de expressão e o direito à informação. Mas a democracia também pode ser vista em uma dimensão mais ampla que a de um regime institucional, para a qual importa haver uma sociedade democrática, estruturada em uma cultura política de suporte aos valores, às instituições e às práticas da democracia.
 
De 2015 para cá, com a emergência de uma nova direita, estimulada pela grande mídia e apoiada no conservadorismo liberal e, em certa medida, em valores autoritários; com o casuísmo de certas decisões e práticas institucionais, a começar pelas que resultaram no impedimento, mas também aquelas observadas nos abusos jurídicos da Operação Lava Jato, que têm sido referendados pelo TRF-4 com base no argumento de que “uma situação inédita, [merece] um tratamento excepcional”; com o aumento da repressão policial aos movimentos sociais, inclusive, por exemplo, no âmbito das instituições de ensino, como se estivéssemos na velha ditadura militar; enfim, essa involução no conteúdo das ações de atores com recursos de poder no Estado e na sociedade aponta para uma reversão do teor de democracia nas instituições e na cultura política.
 
Por outro lado, afora a dimensão política, há também em curso uma regressão imensurável nas esferas econômica e social. Desde antes de assumir a Presidência, o PMDB vinha defendendo a realização de um conjunto de reformas de cunho liberal, visando, em tese, resgatar a “confiança” dos investidores e retirar o Brasil da recessão iniciada no segundo semestre de 2014. O documento “Uma Ponte para o Futuro” enfatizava a necessidade de “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada”, colocando em primeiro plano as empresas (cuja racionalidade formal, de mercado, apóia-se na busca sistemática do lucro), e não a Nação. Obviamente, as empresas têm uma importância-chave, porém, a nação é a construção histórica de um povo que, organizado politicamente por meio de seu Estado, procura ser soberano, isto é, dispor dos meios necessários para projetar e realizar de maneira autônoma o seu futuro coletivo. Uma racionalidade econômica apartada de um projeto nacional de inclusão popular da cidadania vai de encontro ao ideal democrático de igualdade e aponta para a instabilidade política, sintoma claramente em manifestação nesta conjuntura em que os interesses neoliberais, cuja operacionalização tem produzido em todo o mundo fortes tendências de exclusão social, estão sendo convertidos em decisões de políticas públicas.
 
A constitucionalização, por vinte anos, de um teto de gastos públicos com base na variação da inflação do período anterior marca uma ruptura com o pacto social firmado na Constituição de 1988 e impede que o Estado cumpra a função de indução do desenvolvimento, que requer crescimento, para o que os investimentos públicos são fundamentais. A mudança no marco regulatório do pré-sal desobriga a Petrobras de participar em no mínimo 30% da extração de petróleo, para abrir caminho às multinacionais, ou seja, ao aprofundamento da desnacionalização da estrutura produtiva e da dependência externa. O fim da política de conteúdo nacional para a cadeia produtiva de petróleo e gás enterra uma iniciativa importante de estímulo à industrialização e ao desenvolvimento tecnológico. A regulamentação da aquisição de terras para estrangeiros visa que o capital forâneo se ocupe do agronegócio e da destruição ambiental. (Será mera coincidência o anúncio, depois não confirmado, de ocorrência do mal da vaca louca no Rio de Janeiro, seguido da exagerada Operação Carne Fraca?). A aprovação da terceirização das atividades-fins e o intuito de abolir a legislação trabalhista apontam para a versão pós-moderna da superexploração do trabalho nas terras tupiniquim, onde há uma das nações mais desiguais do planeta. A proposta de estabelecer uma idade mínima de aposentadoria para homens e mulheres aos 65 anos e um tempo de contribuição de 49 anos para o cidadão usufruir do benefício integral, enfim, a reforma da previdência vai, na prática, restringir muito os estratos sociais mais vulneráveis ao acesso a esse direito, prejudicar os que possuem expectativa de vida menor e os que estão no mercado informal de trabalho. Por outro lado, a dívida ativa das empresas para com o INSS é de R$ 462 bilhões, três vezes o déficit do RGPS (Regime Geral da Previdência Social) em 2016 (R$ 151,9 bilhões). Vários programas estão sendo engavetados, por exemplo, o Ciência Sem Fronteiras. Seremos a fronteira sem Ciências? Outros, que tinham uma função relativamente importante para a sustentação do investimento e da atividade, como o Minha Casa Minha Vida e o Programa de Aceleração do Crescimento, passaram por uma forte redução de recursos. O ajuste recessivo só piora as condições precárias e de calamidade pública de alguns estados da federação e de áreas-chave como a segurança pública.
 
Essas decisões e políticas públicas visam reorientar a organização formal da sociedade segundo princípios liberais de empresa e concorrência. Visam induzir a que a dinâmica das relações sociais seja voltada em grau muito maior para a eficiência de mercado, mas de uma concepção desregulada de mercado, um mercado selvagem e, como nunca antes na história, promotor de injustiças e desequilíbrios estruturais. O Estado está sendo profundamente transformado, reduzido, com a concentração das suas atividades na efetivação jurídica dos contratos. Abre-se ao setor privado uma maior capacidade de impor as decisões de alcance coletivo, de modo a se subordinar o todo às partes mais poderosas.
 
A aprovação e implementação do conjunto dessas medidas em tempo recorde na história do Brasil deve-se à posição politicamente dominante alcançada pela coalizão de classes e parlamentar que sustentou o impeachment, nucleada nos grandes rentistas, financistas e industriais, que, por meio de suas associações de interesses e outros laços, têm ampla influência e suporte nos atuais partidos governistas. Essa coalizão possui também tentáculos nas elites da burocracia pública de todos os Três Poderes e nos segmentos conservadores da classe média, que se mobilizaram para o impeachment.
 
Há um forte movimento no sentido de buscar atrair a poupança externa, ou seja, as empresas estrangeiras, as multinacionais, que vêem o país como uma plataforma de valorização do capital. A coalizão no poder promove um aprofundamento da associação dependente, tanto material quanto ideológica, com as grandes corporações dos países do Hemisfério Norte. Os trabalhadores, formais e informais, e os setores médios ligados a sindicatos foram excluídos da base sociopolítica do governo a partir do impeachment, tornando-se politicamente mais frágeis, isto é, menos capazes de influenciar a tomada de decisões. Entretanto, a reforma da previdência parece anunciar uma retomada da ação das forças progressistas. Mas, no que depende do vetor de classes que assumiu o leme do Estado, a estrutura social e de poder do Brasil caminha no sentido de aprofundar o seu caráter imensamente desigual.
 
Ocorre no Brasil a crescente fusão do poder econômico e do poder político, em contexto de dependência nacional frente aos centros financeiros e tecnológicos internacionais. O compromisso entre capital e trabalho para o desenvolvimento nacional, institucionalizado na Era Vargas e recuperado nos governos petistas, é seriamente fragilizado, com graves consequências para a maioria da sociedade, sobretudo os setores mais vulneráveis e dependentes das políticas econômicas e sociais do governo. No lugar desse compromisso são colocadas a desorganização e a desvalorização não só do trabalho, com o aumento da informalidade e da precarização dos empregos, mas igualmente do capital produtivo nacional que, apesar de ter apoiado o impeachment, é acossado, junto com os trabalhadores, pelo aperto do ajuste fiscal de longo prazo, pela valorização cambial e pela política monetária restrita.
 
Somam-se a tudo isso a continuidade da Operação Lava-Jato e a deflagração da Operação Carne Fraca, que, no intuito de combaterem práticas ilícitas em grandes empresas, direcionaram suas investigações para os setores nos quais o Brasil é internacionalmente competitivo: petróleo, construção civil e agronegócio. A seletividade e a irresponsabilidade da Polícia Federal e do Ministério Público na condução das investigações provocam o desmantelamento de empresas nacionais, gerando perdas significativas para a economia, e beneficiando as corporações internacionais, que passam a ter no Brasil um amplo mercado para operar, inclusive adquirindo gigantescas propriedades rurais. A desnacionalização da economia, ao deslocar os núcleos dinâmicos do país para o exterior, reforça a dependência em relação aos centros decisórios mundiais e às estratégias dos interesses estrangeiros. O ataque simultâneo ao trabalho e ao capital nacionais torna o país menos capaz de oferecer à maioria dos seus cidadãos possibilidades de engrandecimento individual e coletivo, assim como de efetivar a soberania popular no que diz respeito aos rumos históricos da Nação. Enfim, o ultraliberalismo do atual governo recria a desordem e o regresso à trajetória de decadência do Brasil. 2018 trará um fundo ao poço que parece não tê-lo? (Agradeço ao apoio de Felipe Maruf Quintas).
 
Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), ex-pesquisador visitante da Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia.







Créditos da foto: Youtube




Um teste de realidade fiscal aos republicanos norte-americanos

12/04/2017 18:21 - Copyleft

Um teste de realidade fiscal aos republicanos norte-americanos

Agora Trump e os republicanos propoem reforma tributária - começando por impostos corporativos, indo para o de pessoas físicas - como se isso fosse fácil


Nouriel Roubini
AFP
O primeiro grande alvo legislativo do presidente norte-americano Donald Trump - "revogar e substituir" o “Affordable Care Act de 2010 ("Obamacare") - já implodiu, devido à ingenuidade de Trump e republicanos do Congresso sobre as complexidades da reforma do sistema de saúde. Sua tentativa de substituir uma lei imperfeita mas popular por uma pseudo-reforma que privaria mais de 24 milhões de americanos dos cuidados básicos de saúde estava condenada ao fracasso ou a afundar os membros republicanos do Congresso nas eleições de meados de 2018 se aquela lei tivesse passado.
 
Agora, Trump e os republicanos do Congresso estão propondo uma reforma tributária - começando com os impostos corporativos e depois passando para o das pessoas físicas - como se isso fosse mais fácil. Não será porque as propostas iniciais dos republicanos acrescentariam trilhões de dólares ao déficit orçamentário e canalizariam mais de 99% dos benefícios para o 1% superior da distribuição de renda. Um plano oferecido pelos republicanos na Câmara dos Deputados dos EUA para reduzir a alíquota do imposto de renda corporativa de 35% para 15% para compensar as receitas perdidas com um ajuste do imposto na margem (BAT) está morto na chegada. A BAT não tem apoio suficiente, mesmo entre os republicanos, e violaria as regras da Organização Mundial do Comércio. Os cortes de impostos propostos pelos republicanos criariam uma queda de receita de US $ 2 trilhões na próxima década e eles não podem cobrir esse rombo com as economias de receita que viriam com seu plano de reforma no sistema de saúde ou com os US $ 1,2 trilhões que poderiam ser esperados de um BAT.
 
Os republicanos agora devem escolher entre seguir com seus cortes de impostos (e adicionar US $ 2 trilhões à dívida pública) ou buscar uma reforma muito mais modesta. O primeiro cenário é improvável por três razões. Primeiro, os republicanos do Congresso, fiscalmente conservadores, se oporão a um aumento imprudente da dívida pública. Em segundo lugar, as regras do orçamento do Congresso exigem que qualquer corte de impostos que não seja totalmente financiado por outras receitas ou cortes de gastos expire dentro de dez anos, de modo que o plano dos republicanos teria apenas um impacto positivo limitado na economia.
 
E, em terceiro lugar, se os cortes de impostos e o aumento das despesas militares e de infraestrutura aumentarem os déficits e a dívida pública, as taxas de juros terão de aumentar. Isso iria inibir gastos sensíveis a juros, como com habitação, e levar a uma valorização do dólar americano, o que poderia destruir milhões de empregos, atingindo mais fortemente o eleitorado chave de Trump - eleitores brancos da classe trabalhadora.
 
Além disso, se os republicanos estourarem com a dívida, a resposta dos mercados poderia colapsar a economia dos EUA. Devido a este risco, os republicanos terão de financiar qualquer redução de impostos com novas receitas, e não com a dívida. Como resultado, esse rugir de leão para a reforma tributária será provavelmente será reduzido a guincho de camundongo.
 
Mesmo cortar a taxa dos impostos corporativos de 35% a 30% seria difícil. Os republicanos teriam que ampliar a base tributária forçando setores inteiros - como os farmacêuticos e a tecnologia -, que atualmente pagam pouco imposto, a começar a pagar mais. E para obter a taxa de imposto sobre as empresas abaixo de 30%, os republicanos teriam de impor um aumento no imposto mínimo sobre os lucros estrangeiros dessas empresas. Isso significaria um afastamento do sistema atual, no qual trilhões de dólares em lucros estrangeiros continuam sem tributação, a menos que sejam repatriados. Durante a campanha presidencial, Trump propôs uma taxa de 10 %, permitida uma só vez (“feriado”),  para incentivar as empresas norte-americanas a trazer seus lucros no exterior de volta para os Estados Unidos. Mas isso iria entregar apenas US $ 150-200 bilhões em novas receitas - menos de 10% do déficit fiscal de US $ 2 trilhões implícito no plano dos republicanos. De qualquer forma, as receitas de um imposto de repatriação deveriam ser utilizadas para financiar despesas de infraestrutura ou para a criação de um banco de infraestrutura. Alguns congressistas republicanos, que já sabem que o BAT não seria um ponto de partida, estão agora propondo que o imposto de renda corporativo seja substituído por um imposto sobre o valor agregado (IVA), o que é legal sob as regras da OMC. Mas, Os próprios republicanos sempre se opuseram fortemente ao IVA, e há até mesmo um “cáucus” republicano anti-IVA no Congresso. A visão republicana tradicional sustenta que tal imposto "eficiente" seria muito fácil de aumentar ao longo do tempo, tornando mais difícil "privar a besta" de gastos "esbanjadores" do governo. Os republicanos apontam para a Europa e outras partes do mundo onde a taxa de IVA começou baixa e gradualmente aumentou para níveis de dois dígitos, superior a 20% em muitos países. Democratas, também, historicamente se opuseram a um IVA, porque é uma forma altamente regressiva de tributação. E embora pudesse ser menos regressivo, excluindo ou descontando alimentos e outros bens básicos, isso só tornaria menos atraente para os republicanos. Dada esta oposição bipartidária, o IVA - como o BAT - já está morto no pântano. 
 
Será ainda mais difícil reformar os impostos sobre o rendimento das pessoas físicas. As propostas iniciais de Trump e da liderança republicana teriam custado entre US $ 5 e US $ 9 trilhões na próxima década, e 75% dos benefícios teriam chegado ao topo 1% - uma ideia politicamente suicida. Agora, após abandonar seu plano inicial, os republicanos afirmam que querem um corte de impostos neutro em termos de receita e que inclui, portanto, nenhuma redução para o 1% superior dos assalariados.
Mas isso, também, parece missão impossível. A implementação de cortes fiscais neutros para quase todas as faixas de renda significa que os republicanos teriam que eliminar muitas isenções e ampliar a base de uma forma politicamente insustentável. Por exemplo, se os republicanos eliminassem a dedução de juros hipotecários para os proprietários de casas, o mercado imobiliário americano poderia falir.
 
Finalmente, a única forma sensível de oferecer alívio tributário aos trabalhadores de renda média e baixa seria elevar o imposto dos ricos. Esta é a ideia populista socialmente progressista que um plutocrata pseudo-populista nunca aceitaria. Logo, tudo indica que os republicanos continuarão a se iludir que políticas tributárias de estímulo pela oferta (“trickle-down”) funcionam, a despeito do peso esmagador das evidências em contrário.


Créditos da foto: AFP

Um padre com cheiro de ovelhas: o Pe. Cicero Romão Batista

12/04/2017 18:35 - Copyleft

Um padre com cheiro de ovelhas: o Pe. Cicero Romão Batista

Pe. Cícero antecipou nosso discurso ecológico com os seus 10 mandamentos ambientais, válidos até hoje ("não derrube o mato nem mesmo um só pé de pau" etc)


Leonardo Boff
ARQUIVO/RBA
Nos dias 20-24 de março se realizou em Juazeiro do Norte,Ceará, o V­º Simpósio Internacional Padre Cícero com o tema “Reconciliação…e agora?” Fiquei admirado pelo alto nível das exposições e das discussões com a presença de pesquisadores nacionais e estrangeiros. Tratava-se da reconciliação da Igreja com o Pe. Cícero que sofreu pesadas penas canônicas, hoje questionáveis, sem jamais se queixar, num profundo respeito às autoridades ecclesiasticas e reconciliação com os milhares de romeiros que o consideram um santo.
 
Indiscutivelmente o Pe. Cícero Romão Batista (1844-1034), por suas múltiplas facetas, é uma figura polêmica. Mas mais e mais as críticas vão se diluindo para dar lugar àquilo que o Papa Francisco através do Secretário de Estado Card. Pietro Parolin, numa carta ao bispo local Dom Fernando Panico de 20 de outubro de 2015, expressamente diz que no contexto da nova evangelização e da opção pelas periferias existenciais a “atitude do Pe. Cícero em acolher a todos,especialmente aos pobres e sofredores, aconselhando-os e abençoando-os, constitui, sem dúvida, um sinal importante e atual”.
 
O Pe. Cicero corporifica o tipo de padre adequado à fé de nosso povo, especialmente nordestino. Existe o padre da instituição paróquia, classicamente centrada no padre, nos sacramentos e na transmissão da reta doutrina pela catequese. É um tipo de Igreja que se autofinaliza e com parca incidência social em termos de justiça e defesa dos direitos humanos especialmente dos pobres.
 
Entre nós surgiu um outro tipo de padre como o Pe. Ibiapina (1806-1883), que foi magistrado e deputado federal, tendo abandonado tudo para, como sacerdote, colocar-se a serviço dos pobres nordestinos, como o Pe. Cícero, o Frei Damião, Pe. José Comblin entre outros. Eles inauguraram um outro tipo ação religiosa junto ao povo. Não negam os sacramentos, porém, mais importante é acompanhar o povo, defender seus direitos, criar por toda parte escolas e centros de caridade (de atendimento), aconselhá-lo e reforçar sua piedade popular. Esse é o tipo de padre adequado à nossa realidade e que o povo aprecia e necessita.
 
Esse era também o método do Pe. Cícero que se desdobrava em três vertentes: primeiro conviver diretamene com o povo, cumprimentando e abraçando a todos; em seguida visitar todas as casas dos sítios, abençoando a todos, a criação dos animais e as plantações; por fim orientar e aconselhar o povo nas pregações e novenas; ao anoitecer reunia as pessoas diante de sua casa e distribuía bons conselhos e encaminhava para o aprendizado de todo tipo de ofícios para tornarem independents.
 
Neste contexto o Pe. Cícero se antecipou ao nosso discurso ecológico com seus 10 mandamentos ambientais, válidos até os dias de hoje (“não derrube o mato nem mesmo um só pé de pau” etc).
 
O Pe. Comblin, eminente teólogo, devoto do Pe. Cícero e que quis ser enterrado ao lado do Pe. Ibiapina escreveu com acerto:”O Padre Cícero adotou amorosamente os pobres e advogou a causa dos nordestinos oprimidos, dedicando-lhes incansavelmente 62 anos de vida. E o povo pobre o reconheceu, o defendeu e o consagrou, continuando a expressar-lhe o seu devotamento, porque viu e vê nele o Pai dos Pobres. Antecipou em muitos anos as opções da Igreja na América Latina. É impossível negar a sincera opção pelos pobres, como foi dito por um deles:”Meu padrinho é padre santo/como ele outro não há/ pois tudo o que ele recebe/ tudo de esmola dá”(O Padre Cícero de Juazeiro, 2011 p.43-44).
 
Curiosamente, se recolhermos os muitos pronunciamentos do Papa Francisco sobre o tipo de padre que projeta e quer, veremos que o Pe. Cícero se enquadra. à maravilha, ao modelo papal. Não há espaço aqui para trazer a farte documentação que se encontra no meu blog (www.leonardoboff.wordpress.com) que recolhe minha intervenção em Juazeiro: “O Padre Cícero à luz do Papa Francisco”.
 
Repetidas vezes enfatiza o Papa Francisco que o padre “deve ter cheiro de ovelha”, quer dizer, alguém que está no meio de seu “rebalho” e caminha com ele. Cito apenas dois textos emblemáticos, um proferido ao episcopado italiano no dia 16 de maio de 2016 onde diz:”O padre não pode ser burocrático mas alguém que é capaz de sair de si mesmo, caminhando com o coração e o ritmo dos pobres”. O outro aos bispos recém sagrados no dia 18 de setembro de 2016:”o pastor deve ser capaz de escutar e de encantar e atrair as pessoas pelo amor e pela ternura”.
 
Estas e outras qualidades foram vividas profundamente pelo Pe. Cícero, tido como o Grande Patriarca do Nordeste, o Padrinho Universal, o Intercessor junto a Deus em todos os problemas da vida, o Santo cuja intercessão nunca falha. Os romeiros e devotos sabem disso. E nós secundamos esta convicção.
 
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu A nova evangelização: a perspectiva dos pobres, Vozes 1991.







Créditos da foto: ARQUIVO/RBA


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Observação deste blogueiro:  na Paraíba tivemos um padre cujo perfil se enquadra, perfeitamente, no modelo preconizado pelo Papa Francisco: o Padre Zé(Monsenhor José Coutinho).

21 chacinas mataram pelo menos 76 pessoas no Rio e você não ficou sabendo

12/04/2017 17:49 - Copyleft

21 chacinas mataram pelo menos 76 pessoas no Rio e você não ficou sabendo

À chacina de São Jorge se somam outras 20 ocorridas no último ano no Rio de Janeiro e que mataram pelo menos 76 pessoas, além de deixarem outras 45 feridas


Juliana Gonçalves e Cecília Olliveira - The Intercept Brasil
Foto: Ana Carolina Fernandes/Folhapress
No Rio de Janeiro, fim de semana é sinônimo de baile na favela. Na noite de 19 de fevereiro passado não foi diferente. Teve festa na comunidade de São Jorge, em Engenheiro Pedreira, na Baixada Fluminense. Mas o final dela não foi feliz para ao menos três pessoas que foram mortas durante uma operação policial do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) no meio do baile. Isso oficialmente. Moradores falam em dezenas de mortos, mas a delegacia responsável pelo caso nega.
 
À chacina de São Jorge se somam outras 20 ocorridas entre março de 2016 e março de 2017 no Rio de Janeiro e que mataram pelo menos 76 pessoas, além de deixarem outras 45 feridas, segundo levantamento feito por The Intercept Brasil, baseado em dados da plataforma colaborativa Fogo Cruzado. Ainda que no imaginário do estado elas pareçam coisa do passado – afinal, a memória logo remete a Vigário (1993), Candelária (1993) ou Baixada (2005) – as chacinas nunca deixaram de fazer parte da história recente do Rio, apenas não ganham mais qualquer atenção da opinião pública ou das autoridades.
 

 


 
Há um limbo entre as informações dadas por moradores, os informes da polícia militar – que na maioria das vezes são a fonte das notícias da imprensa – e os dados do Instituto de Segurança Pública do Estado (ISP), que só são divulgados em meados do mês seguinte ao ocorrido e já foram questionados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo DATASUS por ocultarhomicídios.
 
Esse vazio encontra amparo na existência de um esquema que ajuda a disfarçar os números. De acordo com o defensor público Antônio Carlos de Oliveira, existe uma forma sofisticada de execução na Baixada Fluminense que acaba apagando as informações sobre os crimes cometidos na região. “Temos notícia de execução e os corpos não chegam nem a aparecer mais no mesmo IML, a entrega desses corpos é pulverizada. Você vê chegar três corpos aqui, quatro corpos ali. Mais três em Campo Grande. Você não vê aquela situação concreta. Para quê? Para não chamar atenção. Porque se chegarem 10 corpos no mesmo IML, vão chamar atenção”, explicou em evento realizado no último dia 30 em lembrança aos 12 anos da Chacina da Baixada.
 

 
Por conta dessa pulverização estratégica dos corpos, é difícil comprovar denúncias como a da comunidade São Jorge. Por conta disso, o Fórum Grita Baixada e o Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu pediram que a Defensoria Pública da Baixada Fluminense solicitasse os registros dos Hospitais da Posse, em Nova Iguaçu, e de Japeri, além dos casos registrados na Delegacia de Homicídios de Belford Roxo e na 63º DP de Japeri.
 
Essa desassociação dos corpos que dificulta a identificação de uma chacina não é questionada. Chacina é o termo usado para a ocorrência de múltiplos assassinatos em uma mesma ação, em um mesmo local, mas ela não tem  uma tipificação específica no Código Penal. Por isso, a Polícia Civil não a contabiliza como tal, mas como homicídio culposo qualificado (com intenção de matar, por motivo fútil) e, por consequência, o ISP segue este padrão.
 
Para Renata Neder, assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil, há quatro pontos que colaboram para a invisibilidade das chacinas no Rio: a falta de prioridade do tema na política de segurança; o registro falho – falta acesso à informação e transparência; o local onde estas chacinas acontecem – periferia na região metropolitana; e o perfil das vítimas – jovens negros moradores de periferia. “Quem está morrendo nas chacinas determina o tratamento dado ao assunto pelo poder público”, afirma Neder. Para ela, é necessário haver uma mudança que desloque o foco da política de segurança da lógica da guerra e baseada no imediatismo para os homicídios.
 
Atualmente, o sistema de informações da Polícia Civil do Rio de Janeiro – base do trabalho das estatísticas do ISP e que deveria basear a construção de políticas públicas – está fora do ar por falta de pagamento da empresa terceirizada. Os registros podem ter sido afetados também pela greve de policiais, que já dura quase três meses.
 
“O Rio de Janeiro estava à frente dos outros estados em relação à produção de informação e à sistematização, mas este sistema está sendo precarizado. Quanto menos se conhece a realidade, menos você pode pensar políticas para incidir sobre ela. Como identificar que isso é um problema? Como saber grande parte dos homicídios acontecem no marco da chacina ou não se você não tem isso registrado? Como saber se as chacinas estão aumentando ou diminuindo? Ou que áreas são mais afetadas por esse tipo de ocorrência se isso não está registrado dessa maneira?”, questiona Neder.





 
Diante deste dado espantoso e questionada sobre a existência de políticas específicas de enfrentamento à chacinas, a Secretaria Estadual de Segurança Pública – que em tese é responsável por planejamento de políticas públicas na área – afirmou que o tema é de responsabilidade da Polícia Militar, que não respondeu ao contato feito pela reportagem.  Já a Polícia Civil informou que os dados referentes a chacinas estão contabilizados dentro do espectro geral dos homicídios dolosos e que os dados sobre elucidação desses crimes são divulgados semestralmente, mas são relativos há casos ocorridos há um ano e meio, para que haja tempo para investigação. O último dado disponível no site do ISP, portanto, é do primeiro semestre de 2015: 17.09%. Informações sobre as chacinas ocorridas em março de 2016 só serão divulgadas no primeiro semestre de 2018.

 


 

Falta Justiça



Da mesma forma que a opinião pública não toma conhecimento desses casos, a Justiça também não os enxerga. Essas pequenas chacinas, registradas apenas como homicídios,  não costumam ter um desfecho. Somente em casos com grande impacto na mídia, as investigações são concluídas.
 
A falta de justiça nestes casos pode se dar – para além da falta de prioridade na agenda política do Estado – devido à precariedade de investimentos na polícia, principalmente no setor de inteligência; falta de pagamentos aos policiais, que estão de greve; e até falta de estrutura física para a execução mínima de trabalho dos policiais civis, responsáveis pelas investigações. Para além disso, nas chacinas que envolvem policiais – como a da Baixada – a atuação do Ministério Público, que é responsável pelo controle externo da atividade policial, seria essencial. Mas levantamento feito pela Human Rights Watch mostrou que apenas 0,1% dos casos de execuções extrajudiciais cometidas por policiais entre 2010 e 2015 foram adiante.
 
Para o sub-coordenador do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do Ministério Público do estado (Geesp), Paulo Roberto Cunha Junior, existe entre os colegas a sensação de que o policial que mata está fazendo justiça, pois a vítima em questão teria envolvimento com o crime. “Durante toda a minha vida de promotor tive sempre que lutar contra o discurso de que esse policial estaria fazendo um bem.  “A morte é usada para emponderar um crime praticado por um agente de segurança pública. No caso da doutora Patrícia (Acioli) – juíza assassinada por PMs –, os policiais que a executaram não a executaram porque achavam estar fazendo certo, executaram porque usavam os autos de resistência fraudados para extorquir o tráfico e quando eles não puderam mais fazer isso eles começaram a perder dinheiro”, disse.
 


A chacina da Baixada foi a maior chacina já ocorrida no Estado do Rio de Janeiro, matou 29 pessoas sem envolvimento com crimes em 2005 e é um ponto fora da curva, por ter chegado a uma resolução. As investigações chegaram a 11 policiais, e cinco deles foram condenados.
 
“A comoção das famílias foi primordial para que a sociedade e os governantes se empenhassem, investigando para descobrir quem havia cometido aquele absurdo de matar 29 pessoas pelas ruas. Todos conheciam aquele grupo, que já era um grupo de extermínio da localidade e já tinha cometido muitos assassinatos. Só que eles tinham nítida confiança na impunidade. Mas como a comoção foi muito grande, não teve como eles saírem livres dessa história”, explica Luciene Silva, mãe de Raphael Couto, que morreu aos 17 anos na chacina da Baixada.
 
Depois da morte de Raphael, Luciene se tornou ativista contra a violência e passou a ajudar outras mães em situações semelhantes à sua. Nesse processo, conheceu outros familiares de  vítimas dos mesmos policiais que mataram seu filho. “Eu conheci uma mãe que teve o filho assassinado por integrantes da chacina, fomos no julgamento desse policial, que na chacina foi condenado apenas por formação de quadrilha. Se eles tivessem sido investigados e presos [pelos assassinatos anteriores] eles não teriam cometido a chacina aqui em 2005. Isso é um ciclo, outros policiais continuam matando e continuam trabalhando”, conta.
 
Da mesma forma que existe uma articulação para que os casos não sejam notificados, também existe para que os registrados não sejam de fato investigados. “Esses casos muitas vezes acabam sofrendo uma ociosidade muito grande por parte da Justiça, muitos não são julgados. O que acaba fortalecendo essa lógica de extermínio. Qualquer leitura de jornal da Baixada Fluminense  vai revelar que toda semana pelo menos um grupo de cinco, seis, sete pessoas é assassinado nos diferentes municípios”, comenta Adriano Araújo, coordenador do Fórum Grita Baixada.
 
Sem investigações, ou até mesmo notificações, as chacinas continuam acontecendo, como as 21 ocorridas nos últimos 12 meses, sem que ninguém, além das famílias das vítimas, se dê conta. “Quando eu enterrei o Raphael, a promessa que eu fiz era que eu não ia deixar ninguém esquecer do que aconteceu aqui (na Baixada). Essas vítimas continuam a cada dia aumentando cada vez mais”, afirma Silva.




Créditos da foto: Foto: Ana Carolina Fernandes/Folhapress