quarta-feira, 6 de julho de 2016

Chove dinheiro na austeridade

Lambança fiscal de Temer, o fracasso de Macri, a infecção global de juros negativos e a expansão mundial do gasto público anunciam o fim de uma era.

por: Saul Leblon

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A indulgência da mídia com a lambança fiscal no país é reveladora da cumplicidade de certo  jornalismo com o golpe que assaltou  o poder democrático no Brasil há 40 dias.
 
E que há 40 dias e 40 noites faz chover dinheiro em Brasília.
 
Sitiado entre a impopularidade, o fisiologismo  e a vassalagem à finança, o golpe se sustenta com padrões de gastos sem precedente em governos anteriores, acusados diuturnamente de irresponsabilidade nas contas públicas.
 
Guardiães da fé num paraíso pavimentado por populações a pão e água, colunistas econômicos mostravam-se implacáveis com as gestões progressistas nesse quesito. 





 
Foram decisivos em contagiar empresários hesitantes à greve do capital, que paralisou a economia e construiu a profecia do caos. 
 
Dilma Rousseff pode assim ser excomungada, jogada aos leões, por pecados supostos que o cerco a seu governo semeou.
 
A gastadora, enrustida em acrobáticas pedaladas -- das quais não se conseguiu prova nem a existência, muito menos a responsabilidade—não teria mais condições de dirigir uma nação carente de confiança, equilíbrio e austeridade.
 
Para o mercado retomar o investimento haveria de sair.
 
Assim se fez.
 
O que se seguiu, porém, exala um cheiro forte de enxofre que vem da sacristia, ao lado do altar erguido aos mercados racionais.
 
Ali os fundamentos do golpe tem sido violados de modo recorrente, com a profana cumplicidade das sentinelas na mídia.
 
A tradução contábil dessa ménage à trois, como se sabe,  é que a previsão do déficit fiscal no governo da ‘gastadora’ Dilma praticamente dobrou na ‘austeridade’ do seu algoz.
 
Criou-se uma licença para a lambança de quase R$ 80 bilhões, totalizando um pontapé de R$ 170 bi no traseiro dos ratzinguers que ainda resistem nas redações.
 
Agora, o chefe da Casa Civil do golpe, Eliseu Padilha, já fala que ‘seria ótimo repetir o déficit de R$ 170 bi em 2017, conforme o Valor desta 3ª feira.
 
O golpe já autorizou reajustes constrangedores na folha do judiciário.
 
Comprou apoio dos governadores com R$ 50 bilhões de débitos facilitados.
 
Liberou R$ 21 bi do bloqueio provisório no orçamento deixado por Dilma.
 
Elevou em 12% o Bolsa Família --depois de a mídia demonizar os 9%  fixados por ela antes do golpe.
 
No momento, assiste-se a uma liberação inédita e intempestiva de emendas parlamentares para deputados e senadores.
 
Brasília patina na lambança entre a oferta fisiológica de apoio e a demanda golpista.
 
A R$15, 3 milhões por cabeça, o golpe quadruplicou o valor médio das dotações previstas aos parlamentares, gerando uma concentração recorde de recursos para a Câmara e o Senado nesta época do ano.
 
Serão espetados, desse modo, mais R$ 9 bilhões entre o coração e a goela dos pregadores da austeridade.
 
Nesse São João fiscal, o estouro das contas não assusta mais quem devia.
 
A tolerância com o pecado a varejo, explicam colunistas da solução final, visa atingir a pedra filosofal de todos os males.
 
Qual?
 
A Constituição de 1988.
 
Entre as prioridades legislativas pós-impeachment está o projeto de um teto de ferro para os gastos públicos a partir de 2017. 
 
O garrote vai ferir de morte a universalização dos direitos sociais incorporados à Carta de 88  pelo impulso do então vitorioso ciclo de lutas contra a ditadura.
 
Ou seja, a ‘gastança’ que se entrega agora com as duas mãos será tomado de volta com os  dois pés.
 
No pescoço da população mais pobre. ‘Na hora propícia, haverá medidas impopulares’, confirmou Temer a uma plateia ansiosa de ruralistas, na 2ª feira.
 
O plano é reduzir em 30% o tamanho do Estado.
 
Um congelamento real de gastos sociais encolherá a participação relativa da saúde, da educação, das aposentadorias e outros benefícios no crescimento efetivo de receita em anos vindouros.
 
O excedente subtraído ao bem-estar social será transferido ao bem-estar antissocial.
 
Beneficiará os que vivem de juros da dívida pública e fazem disso seu elo com o país.
 
Os fins justificam o intermezzo da gastança, apressam-se em explicar os ratzinguers das redações.
 
Votado o impeachment, a boa doutrina cuidará de implantar as técnicas para extrair o suor adicional da população, sem ônus para o patrão.
 
Nisso se fia a consciência culpada das redações, mas a fé talvez não seja suficiente para materializar a alquimia esperta.
 
Experiências mais avançadas no mesmo rumo, com os mesmos ingredientes de sal grosso e açoite, ademais de levadas em ambiente político até mais favorável, patinam em pedagógica marcha à ré 
 
O ‘chanceler’ Serra sabe do que se trata.
 
Seu amigo argentino, Maurício Macri, legitimado pelas urnas para reverter as bases da era Kirchner, jogou a toalha depois de seis meses de resultados econômicos pífios.
 
Relevantes, porém, para  cravarem  uma perda de 20% na aprovação ao seu governo.
 
Assumidamente neoliberal, Macri está fazendo uma baldeação a contragosto, do arrocho para algo mais perto do incentivo ‘populista’ ao consumo.
 
Lá como cá, competitivos  gravatinhas das redações não se cansaram em pontificar a receita redentora inversa para os ‘desmandos do kirchnerismo’.
 
Até que o lacto-purga foi entronizada na Casa Rosada, em dezembro de 2015.
 
A saber:  recuperar a confiança dos investidores limpando os desmandos fiscais (cortando subsídios), desregular intervenções heterodoxas nos mercados, arrochar assalariados e funcionalismo, vender e privatizar tudo o que restou, calar vozes críticas com a asfixia econômica e o cercear mídias não alinhadas --casos da TeleSur, de programas radiofônicos e jornais progressistas. 
 
Lembra algo?
 
Efeitos colaterais seriam tratadas como tal: ossos do ofício.
 
Nivelado o terreno, a contração do gasto público despertaria a expansão saudável do investimento privado, e então o resto se arrumaria.
 
Macri esperou seis meses pelo acionamento hidráulico dessas comportas.
 
Mas a transposição para o vertedouro  dos mercados perfeitos, cantado em verso e prosa pelo jornalismo conservador e os economistas de banco, não ocorreu.
 
Aconteceu outra coisa.
 
O amigo de Serra passou a ver as eleições legislativas de 2017 aproximarem-se perigosamente no horizonte, na razão inversa  da dissipação dos seus índices de popularidade.
 
Em noventa dias  de receituário ortodoxo, o número de pobres na Argentina aumentou em 1,4 milhão de pessoas. 
 
O crescimento de cinco pontos fez a taxa de pobreza saltar para 34,5%.
 
Ao final do governo Cristina era de 29%, declinante.
 
Macri acaba de anunciar um reajuste nas aposentadorias que custará R$ 16 bilhões ao Tesouro.
 
Quer acudir depressa a anemia do consumo. 
 
Com o mesmo objetivo ampliou a isenção do imposto de renda.
 
E vai devolver 15% de taxas sobre alimentos à população pobre.
 
O neoliberal, pelo qual o conterrâneo Papa Francisco não disfarça a antipatia, parece já não se importar com um déficit público que avança na direção inversa à indicada pelas sentinelas das redações.
 
A meta era reduzi-lo a 4,8% do PIB neste primeiro ano de governo, 1,2 ponto abaixo do ‘desgoverno Cristina’.
 
Em seu lugar brotou um esticão de 5,2%  em relação ao primeiro semestre de 2015.
 
O fracasso em atrair investimentos com a retração do Estado desarranjou todo o edifício  estratégico do arrocho argentino.
 
A montanha desordenada de ideologia e realidade apita alertas ao Brasil.
 
Há mais coisas entre o céu e a terra das quais depende a retomada do investimento do que o simplismo hidráulico em que se baseiam os sermões do púlpito midiático.
 
Por exemplo, há uma ordem econômica mundial que passou a fazer água desde o colapso financeiro de 2008 e nunca mais se recuperou.
 
A economia mundial deriva há oito anos.
 
Um divisor da história escava a sua dobra em nosso tempo.
 
Sem ceder à xenofobia que vende aos pobres a ardilosa versão de que o seu inimigo é o outro pobre de língua estranha, como diz Piketty,  é preciso retomar o comando sobre o destino da sociedade. 
 
A façanha só é plausível com ferramentas políticas que incorporem à soberania democrática  a incidência do mercado global no local.
 
O laissez passer aos capitais voláteis –a desregulação da conta de capitais, um dos dogmas da cartilha neoliberal que até o FMI já questiona—  sabota na origem esse requisito para inaugurar o passo seguinte da luta pelo desenvolvimento.
 
Ninguém vai comandar o próprio destino, nem as urnas, nem governos, nem Estados se essa nova ferramenta colonial do poder financeiro não for enfrentada.
 
É o nó górdio que a rudimentar singeleza do arrocho ortodoxo desdenha.
 
Os economistas Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo, em dois artigos recentes no jornal Valor(‘Foi o patrão quem mandou’, de 07/06/2016 e ‘Admirável Mundo Velho’,28/06), mostram como esse constrangimento subverte mesmo os que se aplicam em fazer a lição de casa neoliberal. 
 
No capitalismo ‘globalizado’,’financeirizado’, dizem eles, ‘as políticas econômicas "internas" estão limitadas pela busca de condições atraentes para os capitais em movimento’ (...) assim (...) a descuidada abertura da conta de capitais aprisionou as políticas econômicas;  ‘taxas reais de juros não podem ser reduzidas abaixo de determinados limites exigidos pelos investidores .... a volatilidade dos fluxos financeiros (tornou-se assim) o fio desencapado que detona choques de juros na instância fiscal e traumas de valorização/desvalorização do câmbio, desorganizando as expectativas de longo prazo, leia-se, as decisões de investimento’.  ‘A ocorrência desde 1980 de aproximadamente 150 episódios de convulsões associadas a fluxos de capitais em mais de 50 mercados emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard, Dani Rodrik, de que esses "dificilmente são efeitos ou defeitos secundários nos fluxos de capital internacional; eles são a história principal", enfatizam Belluzzo e Galípolo.
 
A captura da política monetária pela conta de capitais ajuda a entender como o Brasil, apesar de acumular superávits fiscais por 16 anos seguidos, entre 1998/2013, conforme Belluzzo e Galípolo, viu sua dívida, ainda assim, crescer do equivalente a 40% do PIB para 58% dele, mesmo com aumento de 6% da carga fiscal registrada no período.
 
A chave do paradoxo evidencia a inadequação do arrocho fiscal nos seus próprios termos.
 
Noventa por cento do déficit público brasileiro no 1º trimestre deste ano deve-se ao pagamento dos juros siderais da dívida, e não aos gastos adicionais com pessoal ou políticas de desenvolvimento.
 
Fosse o país dotado de um espaço ecumênico de mídia, capaz de debater as consequências desse ardil para o desenvolvimento, possivelmente a sociedade não estaria nesse momento refém de ‘salvadores’ da categoria de um Cunha ou um Temer.
 
Ou capturada por instituições sombrias, como o califado de Curitiba e uma Suprema Corte anexada aos violadores do Estado de Direito.
 
O dramático corte de direitos e investimentos previsto pelo golpe não vai destravar a encruzilhada em que se encontra o Brasil. 
 
Deve agravá-la, como mostra a prefiguração argentina, pelo simples fato de que aprofundará a recessão e turbinará a incerteza, inibindo mais o investimento privado.
 
A anemia do comércio mundial fecha o lacre com duplo cadeado.
 
De um lado, a retomada pelas exportações fica mais difícil, sobretudo agora que o Brexit adicionou freios à já mitigada recuperação europeia. 
 
De outro, a taxa de juros absurdamente elevada no Brasil entope o país de capitais especulativos, sem opção num mundo em que 30% dos títulos públicos oferecem remuneração negativa.
 
O resultado é a valorização do real, que dificulta adicionalmente a exportação e recoloca para o país a imperiosa necessidade de repactuar o motor do seu desenvolvimento.
 
O fiasco de Macri e a necrose europeia mostra que os mercados aos quais se pretende delegar o destino da sociedade, não vão a lugar algum sem políticas de Estado indutoras e garantidoras da estabilidade do investimento público e privado.
 
A pergunta a responder é qual Estado, mas ela não deve ser dirigida ao golpe, nem será respondida pelo jornalismo de arrocho.
 
A questão da democracia para quê, para quem e como é a esfinge que desafia as forças progressistas na questão crucial subjacente ao passo seguinte do desenvolvimento: quem terá o poder de decidi-lo?
 
A solução hidráulica com a qual a mídia doutrinou o debate econômico por aqui – ‘sai Estado, entra mercado; sai consumo, entra arrocho’—  colide com o seu próprio sujeito.
 
É o que mostra a lambança fiscal de Temer, o recuo de Macri, a infecção de juros negativos no mundo (US$10 trilhões de títulos públicos pagam menos que a inflação) e a tendência global, pela primeira vez em seis anos, de que os gastos governamentais cresçam acima do PIB em 2016.
 
Vive-se, como se vê, uma travessia de época que o golpe prometeu equacionar empurrando o país na ladeira de onde o mundo tenta sair. 
 
Não é tarefa para golpes, mas para uma repactuação corajosa entre desenvolvimento e democracia.

Moro e Carpentier dentro da democracia

Moro e Carpentier dentro da democracia

Jessé Souza lembra que se quisermos ir além das aparências, devemos ir além do que as instituições 'dizem de si mesmas'.


Tarso Genro
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O admirável livro "O Continente Submerso" (1988) de Leo Gilson Ribeiro, autor que já tinha publicado em 1964, um outro grande livro denominado "Os cronistas do absurdo -Kafka, Brecht, Büchner, Ionesco"-  traz "perfis e depoimentos" de grandes escritores da América Latina, independentemente das suas posições políticas pessoais. São posições verbalizadas ou escritas que -pela sua grandeza literária e humana- de algum modo contribuem para responder a uma pergunta axial, que ainda nos desafia:  "para onde vai a América Latina?". Para onde vai nossa democracia, para onde vão as nossas experiências de luta, até onde nosso continente aguenta a dependência subordinada, gerada por uma dívida pública nascida de décadas de apropriação privada do Estado?

 

Lá estão Borges, Vargas Llosa, Juan Rulfo, Carpentier, Cabrera Infante, Octávio Paz, Neruda, Manuel Scorza, entre outros grandes do Continente. Livro admirável, porque acima das contingências políticas que viveram cada um desses autores -alguns em conflito com a Revolução Cubana, outros com as ditaduras ou governos oligárquico-autoritários- Leo Gilson conseguiu extrair de cada biografia literária ou de obras desses autores, algo de grandioso para a questão da nossa cultura. E, em consequência, para a questão democrática latino-americana,  que se aguçou fortemente nos últimos 50 anos.

 

Quando Leo Gilson trata de Alejo Carpentier, depois de referi-lo como um autor que acumula séculos, "talvez milênios mesmo, de cultura" (a semelhança do mexicano Octávio Paz),  lembra uma citação de Goethe, feita por Carpentier (extraída do Fausto) destinada a situar o nascimento recente do continente: "Acabamos de chegar e não sabemos como foi. Não nos pergunteis de onde viemos: baste-nos saber que aqui estamos". E estamos cada vez mais dramaticamente acossados, pelas novas formas de império e por novos protocolos de dominação.

 






De certa forma, a resposta de Carpentier resume a "questão democrática" que estamos vivendo hoje no Brasil e no Continente. Nos países da América Latina, a crise da democracia -diferentemente dos países que amadureceram revoluções burguesas cujas democracias estão definhando-  expressa-se como verdadeiro parto. É um "nascimento" democrático, em confronto com a decadência definitiva do liberalismo político tardio. Aqui, portanto, não se trata de uma reforma ou do "renascimento" democrático, mas do parto de novas formas democráticas, em condições históricas adversas, dentro de uma revolução que, nos seus lugares de origem,  não renovou nem criou novas instituições em mais de duzentos anos de vida.

 

Aquela frase de Saint-Just sobre a Revolução Francesa, citada por um personagem de Manoel Scorza, bem serviria para interpretar  o desejo de democracia e de efetividade dos direitos, que permeia a nossa questão democrática: "A Revolução só deve deter-se na felicidade".  Tomando historicamente a felicidade coletiva como "plenitude democrática" (não um remoto socialismo) pode-se dizer que,  enquanto nos países de democracia política madura, o que bloqueia a felicidade é o "ajuste" (que pode ser feito sem alterar as velhas instituições políticas)  aqui, o que bloqueia a democracia é a radicalização da "exceção". Dentro da crise, a "exceção" se completa, para poder promover o "ajuste" por fora da instituições tradicionais do Estado de Direito.

 

Em 2008 o grande jurista Luigi Ferrajoli  -teórico do direito e da democracia como são os verdadeiros juristas- publicou o seu livro "Democracia e Garantismo" (Editorial Trotta, Madrid), através do qual reúne seu legado teórico e doutrinário, onde constatando a insuficiência da formas jurídicas e políticas atuais do Estado Constitucional, propugna por novas instituições e técnicas de garantia dos direitos fundamentais, "que ainda estamos longe  de ter elaborado e assegurado".  A democracia constitucional, para Ferrajoli, é  fruto de uma mudança radical de paradigmas sobre o papel do direito nos últimos 50 anos, que ainda não tomamos consciência suficientemente. Os dirigentes nacionais e regionais da OAB, especialmente o seu Presidente do Conselho Federal, em regra deveriam ser "apenados" por assembleias gerais de advogados, nos Estados, para uma leitura compulsória desta obra.

 

A "exceção" no Brasil, por exemplo -poderiam se dar conta eles- se infiltra no tecido constitucional com um apoio social bastante amplo, pelos "resultados" que oferece, imediatamente, na luta contra a corrupção. O seu objeto, porém,  não é a luta contra a corrupção, mas estabelecer um nexo, entre a corrupção e a necessidade do "ajuste",  ele mesmo a suprema corrupção das funções do públicas do Estado. E o "ajuste" não pode ser feito sem esta decomposição, que passa pela manutenção do sistema político, ofertante gracioso de  uma Confederação de Investigados e Denunciados, dispostos -pela sua situação penal precária- a cumprirem a trajetória do "ajuste".

 

Isso, certamente, não poderia ser feito sem um controle da opinião pela mídia oligopolizada, numa democracia em que as amplas massas de cidadãos e famílias estão no limite da pobreza e, se perderem algo do seu poder aquisitivo, chegam à miséria. A mídia oligopolizada, antiesquerda, antiPT e antidemocrática, encarrega-se de instalar um Tribunal Político, que precede as condenações e absolvições penais, as prisões e conduções coercitivas e a manutenção indefinida de prisões preventivas. Estas, mantidas sem condenação -para buscar delações premiadas e manipuladas- são o atestado mais evidente de uma "exceção", não juridicamente declarada, mas de fato instalada.

 

O que deve nos opor à "Síndrome de Moro", que afeta o nosso Estado Constitucional, não é o seu resultado contingente de ataque à corrupção, que é sempre bem-vindo e sempre terá alguns resultados positivos, ainda que limitados a um período  e a algumas facções sociais e políticas. O que deve nos opor a esta doença da democracia, semelhante ao que ocorreu na República de Weimar, que inclusive se fez à luz da indiferença de determinados setores democráticos covardes é a sua manipulação, falta de profundidade e instrumentalização para fins políticos imediatos e eleitoreiros. 
 

Na verdade, estes processos anticorrupção estão sendo feitos dentro da dialética "amigo-inimigo" (da formulação pró-nazista de Schmit),  distantes das formulações de Ferrajoli, pela instalação de novos paradigmas para afirmação dos direitos fundamentais. Por isso é golpe, não revolução moralizadora, o que está ocorrendo no país. E este, assim deve ser tratado,  pelos verdadeiros democratas, socialistas, centristas democráticos ou quaisquer outros que defendem  -para hoje-  a democracia social, contra a barbárie neoliberal.  Jessé Souza, num livro que celebra a obra e a vida do grande Raymundo Faoro  -que felizmente não acompanha os procedimentos dos seus sucessores atuais-  lembra que, se quisermos ir além das aparências, devemos ir além do que as instituições "dizem de si mesmas".  E o que a democracia diz de "si mesma", hoje, é decidido não pelo contencioso político democrático, na esfera pública da Constituição, mas  pelo oligopólio da mídia, que percorre o caminho do "ajuste", como uma versão do "Sendero Luminoso" do rentismo liberal.


Créditos da foto: reprodução

'Uma ALCA hoje seria um desastre'

'Uma ALCA hoje seria um desastre'

Em entrevista, Celso Amorim explicou por que continua defendendo uma política exterior 'altiva e ativa' e comenta sobre os perigos do governo de Temer.


Martín Granovsky, para o Página/12
Antônio Araujo
Celso Amorim representa o que ele mesmo classifica como “uma política exterior ativa e altiva”. Aos 74 anos, o diplomata que foi chanceler dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, liderando o Itamaraty durante oito anos na década passada, além de ter ocupado o Ministério da Defesa durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff, forma parte de um grupo que assessora o secretário-geral das Nações Unidas em questões de saúde e crises sanitárias. Mas ele também tem tempo para a política e a investigação, e apresenta seu novo livro, e conversou com o diário argentino Página/12 para falar dele.
Em meio ao processo de golpe vivido no Brasil, Amorim falará sobre sua obra mais recente nesta segunda (4/7), em São Paulo. O livro se chama “Teerã, Ramalá e Doha – Memórias de uma política externa ativa e altiva”. O autor estará presente para autógrafos e conversas com os presentes e com aqueles que assistirão o evento via transmissão por streaming. O evento é organizado pelo CLACSO, em conjunto com o Instituto Lula, a Fundação Perseu Abramo, a Frente Brasil Popular, a Fundação Friedrich Ebert e o Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais.
 
– Michel Temer encabeça um governo golpista ou interino?
– Prefiro evitar um problema semântico. O que acontece no Brasil é como se a mudança de governo na Argentina, a sucessão entre Cristina Kirchner e Mauricio Macri, se desse sem uma eleição que a validasse. Sem entrar nos aspectos técnicos, na minha opinião a acusação contra Dilma Rousseff não é firme, a suspeita de que cometeu um delito de responsabilidade fiscal não se sustenta nos fatos. Além disso, o mecanismo do impeachment não está feito para mudar um governo por outro de tendência opositora. Num sistema presidencialista, somente o povo votando pode tomar essa decisão. Se não é assim, a legitimidade política, no sentido weberiano da expressão, está em risco. Quando aconteceu o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, havia um grande sentimento de união nacional. Hoje acontece o contrário. Não sei se o governo de Temer vai conseguir se manter ou não. Se prospera, teremos um longo período de dificuldades. Eu estive nos Estados Unidos quando houve o processo de juízo político contra Richard Nixon, que renunciou antes da Câmara de Representantes tratar do seu caso em plenário, e também acompanhei o juízo a Bill Clinton, que foi considerado culpado pelo Senado. Ninguém pensava que um juízo político a Nixon teria como resultado imediato a sua substituição, sem eleições, por George McGovern, um democrata que se opôs à Guerra do Vietnã. Tampouco um juízo a Clinton poderia levar a um governo, por exemplo, do ultraconservador Jesse Helms. A mudança total de orientação político-ideológica não é o objetivo do impeachment.
 
– Os peritos do Senado determinaram, em parecer difundido nos últimos dias, que Dilma não cometeu delito.




–Sim, foram bastante claros. Numa dessas acusações já se estabeleceu que a presidenta não teve nenhuma participação. Ou seja, sequer houve uma ação, nem boa nem ruim. As decisões foram tomadas por funcionários que atuaram utilizando o que acreditavam que era a regra, e que havia sido realizado nos governos anteriores, de diferentes tendências políticas.
 
– O que mudou na política exterior com a dupla Serra-Temer?
– Para realizar uma boa política exterior é preciso ter um governo com legitimidade e apoio interno. Lula possuía ambos os fatores, além do que ele mesmo significava como símbolo: um operário que chegou a ser presidente. A visão de Lula sobre o mundo reconhecia o rol que o Brasil podia ter na região e no planeta, não só para defender os próprios interesses do país, mas também para ajudar em processos de evolução nas relações internacionais. A gente às vezes diz que o Mercosul foi um fracasso, mas o Mercosul evoluiu. A integração avançou e tivemos a criação da Unasul, da CELAC (Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos). Coisas que não havíamos visto em 200 anos de vida independente, e que ocorreram na América Latina em apenas uma década. E, claro, Lula não fez isso sozinho, todo o continente participou dessa construção. Apesar das dificuldades, as relações com os países sul-americanos nunca foram tão boas. Mantendo, sempre, a pluralidade ideológica. Com a Argentina, obviamente, as relações foram ótimas, mas também com a Venezuela de Hugo Chávez e com a Colômbia de Álvaro Uribe. O que muitos hoje não percebem é que a integração, e isso se vê agora na Europa, não é só uma questão de aumento de comércio.
 
– Que outras coisas servem para medir o nível de integração, além do comércio?
– O esforço para aprofundar a paz e a cooperação, que é o que sempre desejamos na América do Sul. E essa visão do mundo permitiu que nós pudéssemos nos aproximar da África e dos países árabes. Criamos o grupo IBAS (Índia, Brasil e África del Sul), e logo vieram os BRICS, do desejo da Rússia e da China de participar do IBAS. Junto com a Argentina, tivemos um rol importante na negociação do G-20 comercial. Resistimos à ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), porque era um acordo que não era bom para a região, e não porque era uma questão de doutrina. Não favoreceria a nossa agricultura e criaria dificuldades, por exemplo, em termos de propriedade intelectual. Fizemos isso sem perder as boas relações com a Europa (criamos uma associação estratégica com eles) e com os Estados Unidos. Lula e George Bush conversaram em Camp David. Participamos, em negociações com o Irã, em parte por pedido de Barack Obama, e demonstramos que era sim possível chegar a um acordo, como ficou demonstrado dois anos depois. Tínhamos uma visión no sentido de buscar um mundo cada vez más multipolar.
 
– Serra propôs, sem dar maiores detalhes, a ideia de “flexibilizar o Mercosul”.
– Num mundo de grandes blocos o pior que podemos fazer é debilitarmos a nós mesmos. Pode ser que Serra mude a política exterior, mas se insistir nas declarações iniciais sobre a flexibilização do Mercosul deveria saber o que um projeto de união e vocação, como é o Mercosul, significa a longo prazo. Não pode ser só uma área de livre comércio, sem significado político. No final dos Anos 50, havia dois projetos na Europa. Um deles era o mercado comum europeu. O outro era a área europeia de livre comércio. O que ganhou foi o primeiro projeto. Quem se lembraria de uma área de livre comércio? Ninguém. As áreas de libre comércio vão e vêm. A Unasul criou o Conselho de Defesa Sul-americano. Essas coisas valem muito, e seu legado se mantém vigente.
 
– Em suas dez diretrizes para os diplomáticos do Itamaraty, José Serra disse que não fará uma diplomacia ideológica, e que a mesma “não estará a serviço de um só partido”. Você se sentiu aludido por essa afirmação, tendo sido o chanceler de Lula durante os oito anos de governo?
– É muito curioso. Quando a direita está no poder, diz que sua diplomacia é de Estado. Quando a centro-esquerda governa, a direita critica que a diplomacia por ser “ideológica”. Ideológico é sempre o outro, não? O problema é que a direita no poder mantém os interesses de sempre, os da elite política e social, e os confunde com os interesses do Estado. Mas o que corresponde ao Estado está na Constituição brasileira. Lá estão estabelecidos os princípios de autodeterminação, de não intervenção, de solução pacífica das controvérsias e de integração latino-americana. Buscar a prosperidade por acordos bilaterais de livre comércio é política de Estado e buscá-la por negociações multilaterais na OMC é ideológico? Estabelecer a OMC como instância prioritária não tem nada de esquerda, tampouco é uma atitude partidista. E criticar estas políticas é supor, equivocadamente, que assinar acordos é fácil. Não é, pelo contrário. É mais fácil falar do que fazer.
 
– Qual é a sua opinião sobre o programa de Temer, “Uma ponte para o futuro”?
– É um programa partidista. Representa os objetivos das classes dominantes. O que nós fizemos, por outro lado, tem a ver com os interesses da população brasileira: desenhar uma visão mais nacional, distribuir melhor a renda, buscar uma política industrial própria…
 
– Em 2005, os países do Mercosul, junto com a Venezuela, que ainda não era membro pleno, fecharam a porta para a formação da ALCA. Deveriam formá-la agora? A cúpula de Mar del Plata ficou obsoleta?
– Uma ALCA hoje seria um desastre. Seguiria o critério dos acordos de última geração, como o TPP (sigla em inglês do Tratado Trans Pacífico), com cláusulas inaceitáveis, ao menos para o Brasil. Já eram inaceitáveis inclusive antes do Lula. Por exemplo, na forma de solucionar diferendos entre investidores estrangeiros e o Estado.
 
– Também deveriam ser inaceitáveis fora do Brasil.
– Porque essas cláusulas sobre propriedade intelectual, inclusive nos Estados Unidos, geram grande resistência popular. O questionamento é grande, porque estão feitas para favorecer as multinacionais, e não as pessoas. Se esse problema já é real hoje nos Estados Unidos, imagine o que aconteceria nos nossos países. Voltando à questão da ALCA, as negociações em 2005 já estavam paralisadas e a Cúpula de Mar del Plata foi a pedra definitiva.
 
– Um acordo entre o Mercosul e os Estados Unidos seria possível?
– Não tenho porque excluir essa possibilidade. Mas em outras condições e com outras concessões. Pensar na ressurreição da ALCA é um absurdo. E para que seja conveniente uma negociação pragmática com os Estados Unidos, antes devemos seguir trabalhando na diversificação das relações. Se não, se pagará um preço muito alto. Mas se liquidamos a união aduaneira do Mercosul a capacidade de negociação será bastante reduzida. Tabaré Vázquez disse uma vez que nós “podemos ter alguma negociação comercial, sempre que não se vulnere o coração do Mercosul”.
 
– Vejo que você continua sendo um grande defensor do Mercosul.
– É que eu sempre busco números, para poder conversar sobre temas como este. Nos últimos anos, o comércio interno no Mercosul se multiplicou por doze, enquanto o comércio mundial se multiplicou por quatro no mesmo lapso. Nós nos beneficiamos pelo intercambio recíproco de produtos de alto valor agregado. Mas também há problemas que devem ser resolvidos, com o diálogo e não com a subordinação de cada país a uma potência de fora da região.
 
– O que deveria ser feito com respeito à crise venezuelana?
– No passado, países como Argentina, Brasil e Chile tiveram um papel importante. Hoje, há poucos governos que podem ajudar num diálogo, que é indispensável, entre o governo e as forças políticas de oposição. Isso foi o que nós fizemos em 2003, com o Grupo de Amigos da Venezuela. Foi formado em 2002, depois do golpe, e incluiu o Brasil, Chile, Espanha, Estados Unidos, México e Portugal. E Chávez evidentemente estava de acordo. Agora, o ideal seria potenciar a presença da Unasul, com a colaboração de ex-presidentes e ex-primeiros-ministros, como já acontece com a mediação de Leonel Fernández (ex-presidente da República Dominicana) e José Luis Rodríguez Zapatero (ex-presidente da Espanha). O diálogo envolve concessões dos dois lados. Chávez compreendeu isso naquele momento. Aceitou um referendo revogatório e admitiu a presença de observadores internacionais. Maduro é um presidente eleito, isso é um fato. Existe uma oposição forte, que tem a maioria do Legislativo, também é um fato. Seria bom se Maduro e a oposição estivessem dispostos ao diálogo. A voz do Brasil está debilitada, devido à sua situação interna, e não deve fazer sugestões que piorem o clima na Venezuela. Por sorte, vejo que aí sim existem uma certa prudência, que se demostrou na atitude cautelosa durante a discussão da Carta Democrática, na OEA (Organização dos Estados Americanos).
 
– Brasil e Argentina deveriam se integrar à Aliança do Pacífico? Deveriam ser observadores?
– Sempre se pode observar. Se o Mercosul em conjunto fosse observador seria muito bom. Mas há uma certa visão mistificada da Aliança do Pacífico. Ele comercializam mais com o Mercosul que entre os países da própria aliança. Os quatro membros têm uma atitude similar diante do comércio internacional. Não incluem normas sociais ou de vantagens mútuas de residência ou segurança social. Por outra parte, é bom recordar que já temos acordos de livre comércio com todos, exceto com o México – houve tentativas de aproximação em seu momento, mas os mexicanos não quiseram. Para dizer a verdade, o que eu menos gosta na Aliança do Pacífico é o nome.
 
– Por que?
– Passa a sensação de que você está junto com alguns países e contra outros. Como a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Separar Atlântico e Pacífico também soa como algo excludente. Lula, Néstor Kirchner e os presidentes da década passada buscaram reforçar a integração sul-americana com todos os governos, com independência das afinidades políticas, unindo o Atlântico e o Pacífico, e não separando-os. Estive presente em Assunção quando foi criado o Mercosul, em 1991. Posteriormente, pouco antes da cúpula de Ouro Preto, em 1994, surgiu uma tendência a buscar um acordo separado com o NAFTA (sigla em inglês do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, entre México, Estados Unidos e Canadá. Mas terminando de responder a sua pergunta: por que integraríamos a Aliança do Pacífico se não estamos no Pacífico? Por que buscar uma volta a velhos acordos se hoje temos, a nível sul-americano, um acordo como a Unasul? Por que aceitar regras de comércio e serviços que não nos convêm?
 
– Você hoje integra um organismo da ONU sobre a saúde. Que efeito negativo teriam as regras comerciais usadas no TPP neste setor?
– Já participei de várias comissões criadas pelo secretário-geral da ONU sobre o Ebola e sobre o acesso aos medicamentos. Essas regras criam mais restrições à possibilidade de ação autônoma dos países em desenvolvimento. As condições para se fabricar genéricos se incrementariam, e com isso aumentariam os preços. A Argentina tem uma indústria de genéricos importante, por exemplo, e seria prejudicada.
 
– O livro que você apresenta fala de “uma política externa ativa e altiva”.
– Não só ter uma postura mais altiva com respeito à agenda internacional como saber como criar esse parâmetro. Não aceitar coisas impostas e que não correspondem aos nossos interesses. A visão contrária é a que pede um Brasil modesto, que se desentenda da solução dos grandes problemas internacionais. O Brasil é mais forte com a integração – disso não há dúvida –, mas ao mesmo tempo não desconhecemos que somos o quinto país em população e em território, além de ser a sétima economia do mundo. Não podemos estar ausentes dos grandes problemas internacionais. Seria una posição subalterna. Não podemos nos esconder da globalização. O problema é como fazer parte dela. Uma possibilidade é a postura passiva. A outra é ser um país ativo na OMC (Organização Mundial do Comércio), na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), na OMS (Organização Mundial da Saúde), na América Latina, nos BRICS, na integração com os países árabes, no G-20 financeiro, onde conseguimos mudar as quotas dentro do FMI e do Banco Mundial, com a ajuda da Argentina e da Turquia. A criação do banco e do fundo de contingência por parte dos BRICS demonstrou que as alternativas são possíveis.
 
– Você tem já uma perspectiva do mundo depois do “brexit”?
– Creio que haverá uma negociação mais difícil entre a Europa e o Mercosul, porque o Reino Unido era uma força que facilitava a liberalização comercial, o que nos favorecia. A França tem outra postura. Nós já estamos vendo uma grande turbulência nos mercados internacionais, e existe a possibilidade de que isso aprofunde tendências recessivas, ou a não recuperação das economias europeias. Um mau sinal, porque a demanda dos países da União Europeia é importante para nós. Me preocupa também a tendência a um nacionalismo que não é como o nosso, que é como um instrumento de desenvolvimento interno, e sim uma volta ao passado, no sentido de radicalizar as diferenças e interesses locais.
 
– O acordo entre o Mercosul e a União Europeia não é uma ALCA com a Europa?
– Não. A ALCA tinha uma visão ideológica de como deveria ser o mundo. Por isso é difícil, embora não impossível, uma negociação com os Estados Unidos. Com a União Europeia nós não discutimos temas como sede de solução de controvérsias nem propriedade intelectual. Somente formas de acesso aos mercados.
 
– Nós vemos diferentes fenômenos acontecendo na América do Sul: a crise na Venezuela, o afastamento de Dilma Rousseff no Brasil, o triunfo de Macri na Argentina. O que você acha que acontece no continente?
– Acontecem várias coisas. Falemos também de algo positivo, como o acordo de paz na Colômbia. Ao final, ficou demonstrado que o diálogo era necessário. Não podíamos intervir, mas evidentemente pudemos facilitar as condições para um diálogo que conduzisse em direção à paz. E então eu pergunto: se foi possível um diálogo entre o governo colombiano e a guerrilha das FARC depois de tanta violência, como não será possível haver outros diálogos entre os nossos países?
 
– Você é dos que pensam que a nova situação política da América do Sul é produto da influência dos Estados Unidos?
– Tento não cair em teorias conspirativas, mas faço como um humorista brasileiro, o fato de que eu não seja paranoico não quer dizer que as teorias não me persigam. Nós cometemos muitos erros. No caso do Brasil, não conseguimos mudar um sistema político privilegia quem tem muito dinheiro e favorece a corrupção. Deve se fortalecer as investigações mas também a neutralidade das mesmas. Muito dinheiro e muitos partidos é uma combinação ruim. É preciso mudar o sistema político, trocar por um mais racional e compatível com os interesses do povo. De forma geral, eu diria que houve vários fatores que já não existem. Todos os nossos países aproveitaram o boom do crescimento da China, e agora vivemos outra situação nesse sentido. Penso em Raúl Prebisch (economista argentino, destacado intelectual da CEPAL – Comissão Econômica Para a América Latina) e sua teoria da deterioração dos termos de intercambio. E isso leva a turbulências. Uma coisa é desenvolver uma política social de distribuição nesse contexto e outra é quando as classes alta e média alta sentem que vão perder muito dinheiro. No caso do Brasil, também acontecem algumas coisas estranhas: espionagem na Petrobras, no setor de energia nuclear, no sistema de promoção de exportações e no Banco Nacional de Desenvolvimento. Muitos problemas são endógenos, nacionais, mas também há uma correlação entre a espionagem e algumas investigações. Falo da utilização da causa judicial, porque um Poder Judiciário independente é importante, sobretudo se atua de forma neutra. Me preocupa ver um Brasil com sua empresa petroleira debilitada, com sua energia nuclear em xeque e com fragilidades maiores nas empresas de construção de obras públicas ou nos instrumentos de promoção de exportações.
 
Tradução: Victor Farinelli


Créditos da foto: Antônio Araujo