sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Agência Pública No inferno faz frio

 

No inferno faz frio
por Paula Bianchi
 
Pisei em São Paulo numa madrugada de segunda e gelei com os 9°C de sensação térmica que me recebiam em pleno novembro.

Enquanto eu amaldiçoava o frio inesperado, o secretário-geral da ONU, António Guterres, abria seu discurso na Cúpula dos Líderes da COP27, que dessa vez acontece no Egito, com o pé na porta.

“Estamos em uma estrada para o inferno climático com o pé no acelerador”.

Essa estrada é a mesma que deixa mais fria a primavera paulistana e intensifica e torna mais frequentes eventos extremos como as chuvas que arrasaram os estados da Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Alagoas e Pernambuco no último ano, deixando ao menos 400 mortos.

É também o que debatem os líderes mundiais reunidos agora em Sharm El Sheikh e o que levou a Pública a enviar a repórter Anna Beatriz Anjos para cobrir in loco a conferência do clima da ONU. Acompanhar de perto as discussões sobre o futuro do planeta é essencial na editoria específica de emergência climática que criamos ainda no ano passado. 

Apesar de não vivermos cercados de negacionistas climáticos, como acontece em outros países, essa cobertura ainda passa longe de ter a atenção necessária, dado o tamanho da crise – ou inferno – de que nos aproximamos. 

Em um cada vez mais distante cenário em que o mundo seria apenas 1,5°C mais quente, como defendem os cientistas e conforme foi negociado no Acordo de Paris, em 2015, ainda precisaremos nos adaptar a desastres naturais e novembro mais frios, mas num universo passível de ser previsto pela ciência. Hoje, a temperatura está pelo menos 1,1º C mais quente do que era antes da industrialização, e as políticas atuais colocam o planeta na rota de um aquecimento global de cerca de 3,2°C até o final do século. 

O Brasil não está fazendo a sua parte para melhorar a situação. Pelo contrário. Uma das marcas do governo de Jair Bolsonaro foi o descaso com o meio ambiente, visto na desregulamentação da legislação ambiental e nos recordes nos níveis de desmatamento, além do aumento da emissão de CO2 – o que não vai terminar com a mudança de governo, como a Pública mostrou na série "Governadores contra o Clima".

Na Amazônia Legal, boa parte dos governadores reeleitos são associados ao bolsonarismo e têm grande influência na agenda ambiental, caso de Antônio Denarium, em Roraima, que vê o garimpo, e não a preservação da floresta, como futuro.

Além dele, outras figuras nefastas seguirão atuando nos bastidores e fora deles para continuar passando a boiada que Bolsonaro incentivou. Essas pessoas precisam ser escrutinadas, como o senador Zequinha Marinho, que há anos se dedica a abrir as portas para grileiros na Amazônia.

Há ainda empresas para quem povos tradicionais são meros empecilhos ao lucro e que também não devem mudar a rota, como as produtoras de óleo de palma Agropalma S.A. e Brasil Bio Fuels (BBF) que avançam sobre terras públicas no Pará independente da presença de quilombolas, indígenas e ribeirinhos.

“A guerra contra a natureza é em si uma violação maciça dos direitos humanos”, continua Guterres, ao defender que se a atividade humana é a causa do problema climático, é também a ação humana que deve ser a solução.

Após derrotar Jair Bolsonaro nas urnas, Lula já está na COP27, onde o mundo espera que ele recoloque o Brasil na rota do enfrentamento à emergência climática. Ontem ele se reuniu a portas fechadas com o enviado especial para o clima dos Estados Unidos, John Kerry, e também com Xie Zhenhua, o representante da China no evento. Além de encontros com outros chefes de estado e com o secretário-geral da ONU, Lula irá se reunir hoje com governadores da Amazônia e com representantes de povos indígenas e da sociedade civil. Ele também deve anunciar uma Autoridade Nacional para o Risco Climático e políticas reais de enfrentamento para essa que será, em breve, a principal questão do planeta.

"O combate às mudanças climáticas deve ser um compromisso do Estado brasileiro. Trabalharemos pelo futuro do nosso país e do planeta, que é um só e de todos", disse no Twitter o presidente eleito do Brasil, cujo discurso oficial hoje na plenária da ONU é um dos mais aguardados do evento que se encerra nesta sexta. 

Mesmo com o compromisso de Lula, não será fácil reverter os efeitos dos quatro anos de destruição do meio ambiente patrocinados pelo governo Bolsonaro. E mesmo com um novo líder no governo federal, ainda há forças poderosas que querem ver a floresta no chão para encher os bolsos de dinheiro. 

Aqui na Pública, nós precisamos da sua ajuda para seguir investigando quem sofre e quem lucra com as mudanças climáticas. O seu apoio é vital para fazermos ainda mais reportagens com a seriedade e a profundidade que a situação atual exige. Para a Pública, a solução passa sempre por fazer bom jornalismo. 
Paula Bianchi é editora e repórter de Clima da Agência Pública

Rolou na Pública
 

Quem está por trás dos bloqueios? A Pública apurou que Luciano Hang, dono das lojas Havan, e outros empresários catarinenses, como Emílio Dalçoquio, que ficou conhecido por incentivar a greve de caminhoneiros em 2018, tiveram ativa participação nas manifestações golpistas no estado desde o dia 30 de outubro. Um documento da Polícia Rodoviária Federal (PRF) ao qual a reportagem teve acesso com exclusividade aponta que caminhões a serviço da Havan foram enviados para os bloqueios. A reportagem foi republicada no Nexo, no Brasil de Fato e no Brasil 247.

Vitória indígena. De acordo com levantamento da Pública, em 48 urnas localizadas em territórios indígenas, espalhadas por 11 estados, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi unanimidade. Esse número de seções eleitorais representa cerca de um terço das 143 urnas em que o candidato do PT recebeu 100% dos votos válidos. Lideranças apontam a política anti-indígena de Bolsonaro como principal justificativa para o resultado dessas seções. A reportagem foi republicada na Revista Galileu e na Carta Capital.

Atenção, repórteres. Estão abertas as inscrições para as Microbolsas Petróleo e Mudanças Climáticas. Buscamos pautas que levem em conta principalmente os novos blocos de exploração na região amazônica e seus impactos socioambientais. Em parceria com o WWF-Brasil, a Pública vai contemplar quatro pautas com bolsas de R$ 8 mil, mentoria e publicação das reportagens no nosso site. As inscrições devem ser feitas até o dia 10 de dezembro por meio deste formulário

Prêmio IPYS. A reportagem “A máquina oculta de propaganda do iFood” ficou entre as finalistas e ganhou menção honrosa no Prêmio Latino-Americano de Jornalismo Investigativo. A reportagem mostrou as estratégias de agências de publicidade a serviço do app de delivery para desmobilizar movimento de entregadores. 

TIB


Quarta-feira, 16 de novembro de 2022
Contragolpe | COP-27 expõe os três Brasis sob Lula

Agronegócio, povos originários e governadores da Amazônia terão de se aproximar para retomar a agenda ambiental depois de quatro anos de destruição.
O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva está prestes a viver um teste de credibilidade junto a uma base eleitoral tão ou mais complexa que a de investidores do mercado financeiro. Está pronto para dar um cavalo de pau na área ambiental e retomar os marcos que o Brasil vinha construindo desde a Constituição de 1988. Isso depois de quatro anos de casuísmo e incentivo à exploração ilegal da Amazônia, que culminaram em trágicos registros de devastação da floresta, invasões de terras indígenas e execuções a sangue frio, inclusive de crianças. 

Na COP-27, no Egito, Lula vai reforçar o compromisso assumido durante a campanha eleitoral com o desmatamento zero na Amazônia e a indicação de um indígena para o futuro Ministério dos Povos Originários. Aqui entra outra pressa, muito mais real e letal que o sobe e desce da bolsa de valores e do dólar, que oscilaram semana passada depois da fala de Lula sobre teto de gastos e pobreza. Os indígenas querem que a nova pasta retome o processo de demarcação de suas terras, direito garantido pela Constituição e ignorado pela gestão de Jair Bolsonaro. 

A insegurança a que foram submetidos, incluindo o sucateamento da Funai, abriu as portas do inferno para a população originária. A nomeação do jornalista Sérgio Camargo para a Fundação Palmares, responsável pela formulação de políticas públicas para quilombolas, também fez parte da estratégia de tornar ainda mais vulnerável quem já não tem quase nada. 

As demarcações começaram logo após o fim da ditadura, em 1985, ainda com José Sarney — período em que 67 terras foram demarcadas, segundo o Conselho Indigenista Missionário, o Cimi. Tiveram um pico com Fernando Henrique Cardoso (145) e se mantiveram até os anos de Dilma Rousseff, ainda que em número bem menor (21). Somente Michel Temer e Jair Bolsonaro deixaram de fazer as demarcações, vistas como um instrumento fundamental para a proteção da floresta e da população indígena. Temer também flertou com a abertura das terras indígenas para a exploração, mas recuou diante da pressão internacional. 

Recuperar seis anos de abandono, incluindo uma passagem cruel durante a pandemia de covid-19, quando parte da população originária foi ignorada e outra chegou a receber cloroquina, vai requerer bem mais que compromissos cosméticos do governo federal. Especialmente quando o agronegócio mais agressivo ajuda a engrossar a fila de caminhões parados pelo país em protesto à vitória de Lula. A Folha de S.Paulo relatou, por exemplo, que a empresa Agritex, do Mato Grosso, enviou 12 caminhões para as manifestações antidemocráticas. 

A mesma COP-27 já mostra como há mais que um Brasil quando o debate é meio ambiente e crise climática. Os 600 brasileiros presentes na cúpula, inclusive, se dividem em três grupos. Um do governo federal, que está num pavilhão para "vender" a energia verde produzida no país. Outro dos estados amazônicos, que projetam a preservação e o desenvolvimento sustentável na região e que, portanto, não estão alinhados à política federal. Há, por fim, o espaço da sociedade civil, o Brazil Climate Hub, em que os grandes debates da COP acontecem. “Será que Lula vai ser capaz de unir esses três Brasis ou são esferas irreconciliáveis?", pergunta-se JP Amaral, da ONG Alana, que está no Egito para colocar os direitos das crianças e adolescentes no centro do debate sobre a crise climática. 

Lula seguiu para a COP a convite do governador do Pará, Helder Barbalho, que integra o segundo grupo da cúpula. Já lideranças indígenas, ativistas e parlamentares têm dado o tom da complexidade dos assuntos no Brazil Climate Hub. Num encontro semana passada, por exemplo, Sônia Guajajara, deputada federal eleita pelo PSOL, e Joênia Wapichana, deputada da Rede Sustentabilidade, estiveram ao lado do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso para falar sobre os desafios da aplicação das leis, quando o assunto é meio ambiente. “Sem demarcar as terras indígenas, regularizar terras quilombolas, valorizar os diferentes modos de vida e respeitar os direitos culturais, ninguém vai chegar a lugar algum”, alertou Guajajara, que é um dos nomes a compor a bancada do cocar no Congresso. 

Barroso, por outro lado, destacou como o negacionismo contaminou o tema. “O problema das mudanças climáticas é visto como algo político e, muitas vezes, é ignorado, ou há um negacionismo sobre o assunto, mesmo que seja comprovado de forma unânime pelos cientistas”, disse ele. 

A deputada indígena e o ministro do STF integram um dos Brasis que nem sempre vão convergir com o dos governadores presentes à COP. Nos últimos anos, milhões de cabeças de gado e plantações de soja tomaram áreas imensas da Amazônia Legal.  A dupla está ainda mais distante do outro Brasil em que o filme “Não olhe para cima” parece ter sido inspirado, mas que governou o país nos últimos quatro anos e ainda deixa rastros de destruição – como aconteceu na última sexta-feira, dia 11, em Boa Vista, Roraima: dois homens atiraram a esmo contra um acampamento dos Yanomami, matando uma mulher. O grupo indígena tem migrado para outras regiões, pois suas terras foram impactadas pela construção da Perimetral Norte, segundo a Hutukara Associação Yanomami.

Vai ser preciso bem mais do que lembrar dos povos indígenas durante a redação do Enem, cujo tema este ano foi “Desafios para a valorização de comunidades e povos originais”, para elevar a outra categoria o trato com essas populações vulneráveis. Especialmente num país com enorme apreço por obras de infraestrutura, como a usina de Belo Monte, liberada pelos governos petistas, e que abriram a Amazônia para o desenvolvimento a qualquer preço.

Para indígenas e quilombolas, o mais acertado para a reconstrução de uma política ambiental consistente é incluir, de forma efetiva, seus representantes para a formulação de políticas que os contemplem. Não só um titular do Ministério dos Povos Originários, como prevê Lula, mas em outras funções que agilizem o propósito de cumprir a Constituição, que prevê tanto o direito à terra como o respeito a seus costumes e línguas. Isso inclui adaptações para uma grade curricular específica em escolas indígenas, por exemplo. 

É com esse Brasil que o governo Lula vai firmar entendimentos a partir de agora, administrando frustrações em todos os campos para retomar a agenda ambiental que se tornou ainda mais urgente do que em seu primeiro mandato, 20 anos atrás. E, ainda, sob ataque dos que estão prestes a perder o poder de incendiar florestas sem prejuízos. Independentemente do que for pactuado esta semana na cúpula, é esse o país real que começa em 2023.
Carla Jimenez
Colunista

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