BROTOS
VERDES NO SERTÃO
Saul Leblon
Tem
um filme novo passando nas telas de cinema; não é a superprodução da Lava-Jato.
Invisível
na mídia conservadora, um Brasil pobre, mas teimoso em seu viço, emergiu nas
redes alternativas e delas atingiu uma parte do imaginário nacional em imagens
exuberantes.
O
que elas contam é a arrebatadora história de uma fronteira onde o Brasil
impossível se mistura ao da esperança.
Colhidas
ao longo da caravana na qual o presidente Lula percorre 25 cidades em nove
estados do Nordeste, desde o dia 17 de agosto, as imagens estabelecem um
contraste chocante com a estética e a agenda do país oficial.
Ambas
são recortes da mesma realidade.
Essa,
retorcida, convulsionada, exasperante, tal a distância estabelecida entre as
suas partes contrapostas, a partir do golpe que agora completa um ano.
A
dificuldade que tem a mídia conservadora de incluir os dois lados na sua pauta,
e de contemplá-los com o mínimo de equidade jornalística, ilustra o asfixiante
esgotamento do sistema de representação do conflito social na democracia
brasileira.
Não
há nesse momento nenhuma dimensão institucional na qual o Brasil possa se
enxergar por inteiro na diversidade de seus interesses e possibilidades.
Nem
o conservadorismo, essa é a verdade, se identifica plenamente com a sua
representação golpista.
Ademais
do habitual oportunismo, as dissidências no interior do PSDB refletem esse
descompasso.
De
um Congresso vocalizado pelo repertório do boi, da bíblia e da bala, tampouco
se espera a modulação das partes em um todo que contemple o interesse mais
geral da nação e do seu desenvolvimento.
Falta
ar democrático nos pulmões da nação.
Alvo-síntese
da gigantesca asfixia em marcha, Lula respondeu ao seu pretendido velório com
um salto para a vida que está desconcertando seus coveiros de togas e pautas.
No
histórico anseio nordestino por inclusão, o retirante de Garanhuns que se
tornaria o maior líder popular da história brasileira, foi escancarar a
existência de uma nação irredutível à estreiteza do projeto conservador imposto
ao conjunto da sociedade.
O
resultado é um transbordamento arrebatador.
Tudo
o que se pretendia envazar e lacrar por pelo menos vinte anos, como preconiza a
purga do teto fiscal, jorra em tintas de um vigor que cativa e desarruma a
narrativa da ordem usurpadora.
O
fato é que o morto, esse Brasil abduzido dos noticiosos, não apenas respira.
Ele
irradia a teimosa demanda por uma vida melhor e nisso converge o seu repto ao
de Lula.
Impactos
semelhantes ao desse transbordamento itinerante tiveram também, para citar duas
referências históricas, a Coluna Prestes, nos anos 20, e a Marcha sobre
Washington, organizada há 54 anos (agosto de 1963) por Martin Luther King, que
levaria 250 mil pessoas à capital norte-americana.
A
multidão incomum que afluiu a Washington de todos os cantos do país exigia
cidadania plena aos negros dos EUA.
Nos
dois casos, o sistema institucional ao redor mostrava-se impermeável à
expressão dos interesses externos aos círculos associados ao poder.
Nos
EUA, embora as Emendas à Constituição (13, 14 e 15) tenham estendido cidadania
e direito de voto aos negros desde o final da Guerra da Secessão (1861/65), na
prática as barreiras da pobreza e do preconceito interditavam o caminho para a
liberdade e a igualdade. O sistema político era funcional à exclusão.
A
Coluna Prestes percorreria 25 mil quilômetros no Brasil nos anos 1925, 1926 e
1927, empurrada igualmente pelo duplo efeito ejetor de um sistema oligárquico
fechado, ademais de varado por crise terminal.
A
República Velha tornara-se incapaz de responder aos desafios sociais e
econômicos de um país que deixaria de ser escravocrata, sem dispor ainda de uma
representação política capaz de expressar a nova diversidade dos seus
conflitos.
Essa
deficiência impedia o país de repactuar o passo seguinte da economia e da
sociedade, que se desdobrava em colapsos retroalimentados.
O
engessamento transbordou nas revoltas oriundas do próprio estamento
burocrático, refletindo uma circularidade ilustrativa da ausência de um projeto
para a nação que emergia.
O
Tenentismo foi a expressão fardada desse interlúdio convulsivo.
A
Coluna Prestes, a versão épica de uma fuga para frente, só concluída quando o
aguçamento da crise rachou o tenentismo e Prestes, anos depois, personificou um
lado da resposta ao aderir ao marxismo.
Sendo
uma mobilização em defesa de direitos negados e subtraídos, a exemplo das
marchas de Luther King, mas também a expressão de um Brasil interditado pela
obtusidade histórica das elites, como na República Velha, a caravana de Lula
carrega também o carisma da esperança, num intermezzo histórico em que um ciclo
de desenvolvimento se esgotou e outro precisa ser construído.
Sua
marcha, porém, encerra singularidades não negligenciáveis.
Prestes,
nos anos 20, a exemplo do Tenentismo, não tinha um projeto de nação no qual o
povo se enxergasse e fosse visto - por ele inclusive - como o protagonista
decisivo do processo.
Sua
coluna arregimentou adesões, mas não organizou a população por onde passava,
nunca vista como o novo sujeito histórico.
A
caravana de Lula tampouco se propôs, originalmente, a arregimentação popular
para a luta por uma democracia social efetiva, que inclui, mas vai além da
eleição de 2018 na construção de um novo sujeito coletivo.
Talvez
seja arriscado dizê-lo, mas as imagens insistem em sugerir.
Lula
e a caravana foram surpreendidos – como de resto, todo o país.
Multidões
imprevistas barraram a comitiva no interior nordestino, impedindo-a de
prosseguir com impressionante recorrência e determinação, exceto depois de
cumprido um acordo.
Qual?
Lula
falar à gente do lugar.
Falar
o que ele sempre disse e fez.
Mas
que desde 31 de agosto de 2016, o golpe, sua mídia, seus colunistas engomados,
os economistas de banco e suas prioridades argentárias decidiram sonegar.
Qual
seja, o lugar do povo brasileiro no bonde da nação.
O
que os barramentos queriam ouvir da voz rouca familiar é que o seu assento é um
direito e será restituído.
Os
fatos sugerem que a passividade meramente eleitoral talvez não seja mais o fio
condutor desse anseio.
Vale
recordar.
Um
dos episódios mais emblemáticos da luta antirracista nos EUA deu-se em 1955, em
Montgomery, na capital do Alabama,
Uma
negra, Rosa Parks, ocupou um assento nas fileiras intermediárias do ônibus e se
recusou a ceder o lugar a um branco, como mandava a lei segregacionista do
lugar.
Presa,
Rosa ganharia a solidariedade de um massivo movimento civil liderado, entre
outros, por Martin Luther King.
Um
ano depois, os negros conquistariam o direito de ocupar qualquer assento nos
coletivos de Montgomery.
O
que o golpe está dizendo – e o país sertanejo parece determinado a não
aquiescer clamando por alguém que o desminta - é que o povo brasileiro, a vasta
maioria da sociedade, incluindo-se boa parte das camadas médias, deve ceder seu
lugar no ônibus do desenvolvimento.
Para
quê?
Para
preservar a segurança e o conforto da riqueza e do poder em mais uma transição
turbulenta da história nacional.
As
cenas observadas no interior sertanejo sugerem a possibilidade de outra coisa.
Possivelmente
um horizonte mais amplo de participação, e mais profundo na resposta à crise,
do que o teto previsto pelo calendário eleitoral de 2018, ainda que sem
excluí-lo.
A
mídia conservadora desdenha dessa que talvez seja a novidade política capaz de
sacudir o tabuleiro de um golpe que apenas aguardaria a condenação agalopada de
Lula para consagrar seu xeque-mate contra o povo e o país.
Esse
lance derradeiro do jogo viciado talvez não seja mais suficiente.
As
manifestações populares no caminho de Lula podem indicar que a suposta passividade
atribuída ao povo brasileiro talvez decorra muito mais da falta de um
catalisador convincente – originalmente até involuntário, neste caso - do que
da prostração decorrente do conformismo ou da indiferença com a própria sorte e
o destino do Brasil.
O
transbordamento nordestino adiciona outras variáveis importantes à equação
sobre a qual o conservadorismo imaginava ter controle absoluto.
O
jogo está longe de terminar, é um primeiro ponto.
Mesmo
que Lula seja barrado na cédula de 2018 – como se planeja desde o início - seu
carisma e poder de liderança demonstram inegável resiliência, ademais de
ecoarem junto a uma juventude atenta que prestigia a caravana em cada parada.
Como
ele mesmo diz: se não for candidato, será o mais poderoso cabo eleitoral da disputa
de 2018. Ponto pacífico.
Mais
que isso: preso, tornar-se-á o símbolo carismático da injustiça social e
política a ser apeada. Pelo voto ou pela rua.
Há
outras novidades afloradas sob o sol do sertão.
Lula
continua a ser o líder popular de extração sindical que acredita na necessidade
da mobilização e da negociação para empurrar a fronteira da justiça social e da
correlação de força em cada ciclo de luta.
A
altura do sarrafo, porém, pautada pela origem de berço e de aprendizado
político, mudou de novo.
As
causas e consequências do golpe, ruminadas durante um ano de cerco impiedoso a
ele, à família, ao PT, ao governo Dilma e ao seu legado afloraram em brotos
verdes sob o sol sertanejo.
Lula
é um mestre da tradição oral. Pensa falando e fala pensando, talento de poucos
- Brizola era um caso - que dá fluência magnetizadora à oratória.
O
que ele pensou e disse às multidões que acorreram generosamente para ouvi-lo
revela sinapses amadurecidas, que esperavam o calor dos discursos massivos para
aflorarem.
Um
futuro governo popular – seu ou com o seu apoio – buscará alianças, reafirmou
mais e uma vez sua convicção.
Mas
o discernimento da sociedade sobre os desafios do país, requisito para uma
repactuação participativa do desenvolvimento – ou não haverá repactuação alguma
e sim rendição ao mercado - não pode mais ser manipulado diariamente, advertiu,
‘pelas mentiras da Globo’.
Lula
asseverou com todas as letras a determinação de atravessar um divisor sempre
evitado desde 2003: vai regular a mídia.
Não
abdica da interlocução ecumênica com o amplo espectro político do centro à
centro-direita.
Subiu
no palanque com Renan; jantou com a família de Eduardo Campos, foi elogioso a
prefeitos do PSDB, como o de Ouricuri (PE), que o recepcionaram com honras de
chefe de Estado.
Mas
vai revogar medidas antissociais e antinacionais tomadas pelo golpe, disse-o de
novo explicitamente.
Porque
acredita que só assim, com crescimento e soberania, será possível dilatar outra
vez a fronteira da inclusão social, que persiste como o seu Norte, seu Sul, seu
Leste e seu Oeste político.
Há
mais.
Lula
não subestima o poder de boicote do exército rentista.
Mas
vai utilizar um pedaço das reservas para compor um fundo garantidor do
investimento em infraestrutura, de modo a acionar a ignição do crescimento.
Vai
perseguir a retomada do PIB, do emprego e da renda.
E o
fará ainda que isso implique, de início, algum crescimento da dívida interna.
A
ressalva pressupõe medidas mitigadoras desse impacto, seja pela negociação,
seja pela redução do juro, seja por alguma forma de controle da conta de
capitais para evitar a previsível chantagem cambial.
Terá
que ser assim até que a recuperação da receita reequilibre o processo.
Alianças
pontuais que a correlação de forças determine ele as fará.
‘Quantos
representantes dos sindicatos nós teremos no Congresso? Cinquenta? Hoje são
três. A bancada ruralista tem 240’, argumentou em entrevista em Pernambuco,
questionado sobre o tema.
Ele
as fará, mas sob o escopo da nova altura do sarrafo.
O
conjunto sugere um líder em trânsito.
Sem
abdicar de seu enraizamento negociador, Lula talvez chegue ao final da caravana
receptivo ao broto mais viçoso da colheita nordestina.
Esse
que define a mobilização e a organização popular como a variável-chave na
reordenação democrática de um novo ciclo de desenvolvimento brasileiro.
Trata-se
de um passo crucial.
Já
no final do primeiro mandato da Presidenta Dilma, a quilha da governabilidade
progressista gritava a necessidade de outro mix entre a rua e a negociação
parlamentar.
Gargalos
clamavam a necessidade de mudar o lastro para o exercício do poder – e isso
implicava uma recomposição de prioridades, mas sobretudo do método de luta.
A
política fiscal contracíclica havia esgotado seu fôlego diante de uma
persistente desordem global do neoliberalismo. A escolha de um ajuste rápido
baseado em aperto de gastos e desvalorização cambial – para crescer ancorado em
exportações, subestimaria a natureza sistêmica da crise internacional e a
voracidade da conspiração doméstica.
Ao
negligenciar a dimensão política do impasse econômico, o governo perdeu o
lastro junto ao empresariado sem ampliá-lo no campo popular.
O
golpismo nativo – ademais do Departamento de Estado e suas sucursais no país –
farejou a deriva.
A
aliança da mídia com a escória, o dinheiro e o judiciário fez o resto.
A
exata compreensão da encruzilhada que propiciou o golpe de 31 de agosto se tornaria
assim uma questão de vida ou morte à retomada da iniciativa popular, que inclui
2018, repita-se, mas vai além da urna, imperiosamente.
A
caravana nordestina talvez tenha trazido a energia necessária para fazer girar
essa roda da história - na cabeça de Lula e nas fileiras progressistas que o
tem como referência.
O
desafio não é pequeno.
A
agenda antissocial e antinacional do golpe terá que ser afrontada por bandeiras
e projetos, mas, sobretudo por formas de organização que ofereçam ao conjunto
da sociedade uma nova referência crível de futuro e estabilidade para a
economia, o seu cotidiano e a sua esperança.
Foi
essa conjunção que talvez tenha começado a fazer sentido na atilada intuição de
Lula ao se deparar com o cerco das multidões num roteiro que escolheu as
estradas de um Brasil normalmente ignorado nas incursões aéreas dos políticos.
O
requisito subjacente a essa mutação é o desassombro para enxergar o esgotamento
de um ciclo e as balizas que podem pavimentar o próximo.
Entre
elas, como já se disse neste espaço, inclui-se o requisito de trazer uma parte
da classe média brasileira para fora da agenda do golpe e assim estender as linhas
de passagem entre uma nação dilacerada por fraturas imobilizantes e a
repactuação do seu desenvolvimento.
A
‘caravana’ capaz de semear esse broto verde nos redutos da classe média precisa
ser construída.
E
não poderá se pautar pelo acanhamento se não quiser fracassar esfericamente.
Contra
a espiral descendente vivida pelas faixas de renda média, atingidas globalmente
pela precarização do trabalho e o esgarçamento industrial, é inútil prometer
uma ‘volta’ a um status que sustentou a afluência no pós-guerra.
Esse
mundo de mobilidade ascendente de extratos de renda intermediária não voltará a
existir.
Nem
existirá outro que compense sem uma reforma tributária corajosa que atinja o
núcleo duro da riqueza, sobretudo a financeira.
Repita-se
o que expôs em artigo recente o economista Sergi Gobetti: a classe média com
renda de R$ 7.000 mensais, na verdade é tão vítima da injustiça fiscal quanto
os pobres. Proporcionalmente mais taxada que os ricos, ressente-se, como os
pobres, de um retorno equivalente em serviços públicos dignos e suficientes.
Encontra-se
nesse anseio sonegado a trilha da nova ‘caravana’ que desafia um futuro estirão
progressista de repactuação do país com o seu desenvolvimento.
O
gargalo mora mais acima.
Os
verdadeiramente muito ricos formam hoje 0,05% da população brasileira ativa -
detém 8,2% da renda.
Juntamente
com bancos e corporações, emprestam ao Estado o que deveriam pagar em tributos.
Recebem em troca 6,9% do PIB em juros, todos os anos.
Sua
riqueza é a contraface de uma dívida pública que avança para atingir 80% do PIB
e ameaça engarrafar a nação em um formol de arrocho e carência constitucional,
como quer o golpe.
É
nesse sumidouro rentista que se degradam e escasseiam os serviços públicos, de
cuja oferta e qualidade os pobres e a classe média reclamam com razão.
À
descrença, ao medo, à incerteza e à angústia que flertam com o autoritarismo
trata-se, portanto, de contrapor o horizonte de uma rede de segurança feita de
justiça fiscal, serviços públicos e espaços públicos de inédita audácia e
qualidade.
Só
recauchutar a máquina do desenvolvimento brasileiro, como em ciclos anteriores,
não basta mais.
É
preciso reorientar o seu rumo. A costura da travessia de excelência em serviços
públicos, infraestrutura em expansão e aderência à revolução tecnológica
envolve uma operação essencialmente política.
Alguém
precisa querer tenazmente esse Brasil.
Ou
seja, um sujeito coletivo que enxergue aí o requisito à vigência efetiva do
arcabouço de direitos inscrito na Carta Cidadã de 1988, que o golpe quer
destripar para tomar de volta o pedaço do PIB aí destinado à emancipação da
cidadania brasileira.
A
alternativa conservadora é regredir o eixo orçamentário para tornar a inclusão
social tão rígida quanto o eletrocardiograma de um morto.
Os
que hoje se avocam em depuradores da nação entendem desse açougue.
Eles
sangraram Getúlio em 54; sangraram Jango em 1964; sangrariam Lula em 2005 se
não tivesse reagido; sangraram a Presidenta Dilma em 2016 até derrubá-la.
Esse
retrospecto não endossa projetos exclamativos que descartem a
negociação (entre interesses distintos, por definição) na longa marcha para se
construir uma verdadeira democracia social no país.
Ao
contrário.
É
na renovada capacidade de arregimentar forças para liderar essa travessia, como
se viu nos transbordamentos massivos em torno da caravana nordestina, que se
reafirma o espaço de Lula à revelia dos seus algozes.
O
passo seguinte da marcha ficou esboçado nos brotos verdes aflorados no sertão.
Mas
o economista Ianis Varoufakis, ex-ministro das finanças da Grécia, que
experimentou na carne as feridas de uma negociação com o capital na era da
globalização, extraiu dessa experiência uma lição histórica que serve agora de
referência ao desafio posto diante do povo brasileiro e de sua principal liderança:
‘Só
tem algo a negociar quem está preparado para romper’.