O que restará do Brasil após a Lava Jato?
Explicar a política brasileira para o publico estrangeiro é tão difícil quanto traduzir Guimarães Rosa. É difícil explicar mesmo aos brasileiros, porque as verdades factuais mais singelas são diariamente soterradas sob toneladas de mentiras. Em geral, o público, doméstico ou estrangeiro, atêm-se às generalidades. Mas a verdade, assim como o diabo, mora nos detalhes, nas entrelinhas.
O Partido dos Trabalhadores (PT), que foi apeado do poder pelo impeachment, divulgou um comunicado, assinado por Carlos Zarattini, sua liderança na Câmara, que revela a esquizofrenia e caos que acometeu o sistema político brasileiro. O texto denuncia o governo Temer, acusando-o de “patrocinar um conjunto de manobras para literalmente bloquear Operação Lava-Jato, preservando assim o PMDB e o PSDB das investigações da força-tarefa”.
O título do artigo é: “Governo Temer quer acabar com Lava-Jato e entregar riquezas nacionais aos estrangeiros”
Acontece que a Lava Jato, que o lider do PT na Câmara agora defende com tanta garra das “manobras” do governo, é a mesma que acusa Lula de ser o “comandante máximo” dos esquemas de corrupção investigados pela operação.
O próprio PT, através de seus principais dirigentes, quadros e militantes, vários de seus parlamentares, além de seu presidente de honra, fundador, e candidato definido para as próximas eleições presidenciais, o ex-presidente Lula, vem denunciando a Lava Jato como uma operação desonesta, de natureza político-partidária, que tem agora como objetivo principal tirar Lula do páreo em 2018.
Como explicar, portanto, que o mesmo partido que acusa o governo Temer de querer “acabar” com a Lava Jato é também o partido mais prejudicado e mais perseguido pela Lava Jato. Pesquisas de opinião recentes demonstram que, apesar da operação ter atingido vários partidos, a grande maioria da população associa à Lava Jato ao PT. E foi justamente a Lava Jato que produziu a atmosfera de terror político e econômico, ao paralisar e destruir setores inteiros da economia, que levou ao impeachment.
A explicação é dura, mas simples: o PT se tornou como uma daquelas galinhas das quais se corta a cabeça. Elas continuam correndo para cá e para lá, desgovernadas, agitadas, sem saber, porém, para onde correr. E não é de hoje.
O público estrangeiro precisa entender o seguinte. O problema do Brasil não é a corrupção. A era petista foi um dos momentos com menos corrupção da nossa história. O governo federal inaugurou instrumentos de transparência que nunca existiram antes. Foram criadas agências de controle de gastos e combate a desvios que também não existiam. E, sobretudo, as instituições encarregadas de investigar a corrupção nunca tiveram tanta autonomia, recursos e apoio político, como a Polícia Federal e o Ministério Público. Foi o PT que criou toda a legislação anticorrupção que, em seguida, seria usada pelas instituições para destruir o próprio PT.
As estimativas de desvios feitas pela Lava Jato são inteiramente exageradas, com objetivo de produzir factoides de grande impacto na mídia. Era preciso criar uma narrativa, o de que a Lava Jato havia desbaratado a “maior corrupção da história”. Mentira. Não foi maior nada. Esse ranking de “maior da história” é absurdo, porque seria necessário que houvesse uma investigação similar em outro momento, e não houve, e que os valores fossem atualizados pela inflação, pelo tamanho do PIB, etc.
Em palestra recente na universidade de Columbia, patrocinada pela fundação Lemann, pertencente ao homem mais rico do Brasil, o juiz Sergio Moro admitiu que a Lava Jato provocou instabilidade, mas que, no futuro, isso se reverteria para o bem do Brasil, que se tornaria “mais competitivo”.
No encontro de Davos, que reúne grandes empresários e chefes de Estado do mundo inteiro, o presidente Michel Temer não estava lá. O principal representante do Brasil foi o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que foi abraçado pelo presidente do Paraguai (cujo governo nasceu também de um golpe), e deu uma entrevista afirmando que a Lava Jato é “pró-mercado”.
O desastroso efeito sistêmico provocado pela destruição das grandes empresas brasileiras de construção civil era óbvio, mas a loucura política instalada pelo impeachment cegou a todos. Os representantes da Lava Jato hoje procuram justificar a sua irresponsabilidade com argumentos ideológicos: a Lava Jato é pró-mercado e levará o Brasil a ser mais “competitivo”.
Além da destruição da economia, o efeito mais curioso da Lava Jato foi ter levado ao poder a nata da escória da política brasileira, incluindo aí um monte de investigados pela própria operação.
Aliás, isso explicaria a esquizofrenia da liderança do PT na Câmara. Setores do partido acreditam – com uma ingenuidade inacreditável – que a operação agora poderia atingir o PSDB e o núcleo duro do governo. O governo Temer, aproveitando o oportuníssimo acidente que vitimou o ministro Teori Zavascki, nomeou para o seu lugar o seu ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. A nomeação deverá ser facilmente confirmada por um Senado repleto de investigados pela própria Lava Jato. O próprio novo ministro do STF também é investigado pela Lava Jato.
A nomeação de Moraes, é importante ressaltar, foi acertada com a Globo, que está dando total apoio, como demonstra as posições de Merval Pereira, que representa a voz do patrão. A Globo sabe que não se trata de “acabar com a Lava Jato” e sim de mantê-la focada no PT – e prender Lula.
Outra confusão provocada pela transformação do debate político nacional num boletim da Lava Jato é que as pessoas falam em “delatados”, “investigados”, como se isso fosse uma figura penal associada à condenação. Não são. Ser “delatado”, ou “investigado”, não significa nada, porque é preciso provas.
As “delações” da Lava Jato são um capítulo à parte da política brasileira. Desde 2014, estabeleceu-se uma cumplicidade criminosa entre a Lava Jato e a grande imprensa, e pedaços de delações, antes mesmo de serem homologadas, em alguns casos antes mesmo de existirem (surgiam notícias sobre delações que ainda iriam acontecer), eram divulgados seletivamente à mídia. E tudo isso cumpria uma agenda estritamente política, voltada a fortalecer o discurso pró-impeachment e adensar as manifestações de protesto.
A quantidade de ilegalidades cometidas pela Lava Jato é inesgotável. Para começar, as prisões preventivas foram transformadas em instrumentos de tortura. O sujeito apenas poderia ter esperança de responder o processo em casa se aceitasse delatar, e a delação tinha de ser aquela desejada pela Lava Jato. Alguns importantes empresários da indústria da construção civil, responsáveis pelas principais obras de infra-estrutura do país, foram mantidos presos por mais de um ano, porque se recusaram a entregar no jogo de delação imposto pela Lava Jato. No caso da Odebrecht, a ira da Lava Jato pelo fato de seu presidente, Marcelo Odebrecht, ter se recusado a delatar Lula, foi tão grande, que a maior empresa de engenharia da América Latina foi literalmente pulverizada. Os operadores da Lava Jato, não satisfeitos em destruir os negócios da Odebrecht no Brasil, viajaram aos Estados Unidos para entregar informações sensíveis da empresa (fizeram o mesmo com a Petrobrás) às autoridades do Departamento de Justiça daquele país. O resultado é que a Odebrecht está sendo expulsa de todos os países em que possuía negócios.
A resposta da Odebrecht à violência de que foi vítima foi divulgar uma mega-delação, na qual derruba a narrativa central da operação, que punha Lula no centro decisório do esquema. A Odebrecht acusa os principais dirigentes do partido agora no governo, incluindo Michel Temer, além de próceres do PSDB, de receberem propina.
A resposta do destino à intenção da Odebrecht foi a morte de Teori Zavascki, e a entrada de Alexandre de Moraes, no STF, como revisor da Lava Jato…
Eike Batista, magnata falido, e Sergio Cabral, ex-governador do estado do Rio, também foram presos pela Lava Jato, num grande espetáculo midiático, e agora estão à espera de poderem fazer delação premiada. Não será nenhuma surpresa se corroborarem a tese preferida dos procuradores, ou seja, se apontarem o dedo para Lula.
O problema é que a Lava Jato não encontrou nenhuma prova contra Lula, que sempre manteve uma vida muito simples, morando no mesmo apartamento, numa cidade operária, há mais de trinta anos. Sem provas, a Lava Jato tentou, durante todo esse tempo, com ajuda de uma mídia histérica, acusar Lula de ser dono de um apartamento no Guarujá. Mas não tem provas disso. Lula explicou que cogitou, sim, em adquirir o apartamento, mas que decidiu não fazê-lo. É um apartamento simples, num prédio de classe média, numa área desvalorizada de uma cidade considerada fora de moda pela elite paulista. A imprensa explorou o fato de ser um “triplex”, sem jamais especificar que se trata do menor triplex de todos, com menos de cem metros quadrados, como se fossem três apartamentos minúsculos empilhados. A outra acusação a Lula é de que seria dono de um sítio em Atibaia, que ele frequentava. Também não há provas. O sítio pertence a um antigo amigo de Lula.
A Lava Jato acusa Lula de receber esse apartamento (que não é dele) e o sítio (que também não é dele) como propina pelos esquemas de corrupção na Petrobrás. Lula seria, neste caso, o corrupto mais modesto do mundo, ao pedir tão pouco por um esquema que, segundo a Lava Jato, movimentou bilhões de reais.
Enquanto a imprensa brasileira só fala de Lava Jato, e os partidos, à esquerda e a direita, tentam empurrar, um para o outro, a pecha de querer “acabar com a Lava Jato”, o regime político instalado pelo governo Temer deu uma guinada fortíssima à direita, congelou gastos em saúde e educação por vinte anos, destruindo ou reduzindo drasticamente qualquer tipo de política pública voltada para o desenvolvimento, tecnologia, moradia popular, programas sociais. Está cancelando projetos voltados para a indústria nacional. Afastou-se dos Brics. Praticamente cortou relações com países mais pobres, em especial na África, com os quais o Brasil tinha iniciado relações comerciais extremamente vantajosas para os exportadores brasileiros, em especial de produtos manufaturados. Os bancos públicos nacionais, principais responsáveis pelo Brasil ter resistido incólume à crise financeira que arrastou o mundo a partir de 2008, estão sendo reduzidos ou mesmo desmontados. A TV pública foi reduzida a escombros, e o pouco que resta dela perdeu qualquer resquício de autonomia e se tornou mera repetidora de notícias de interesse do governo.
O Brasil que surge da Lava Jato e do impeachment não é, definitivamente, um país mais “competitivo”, como quer Sergio Moro, nem “pró-mercado”, como pretende Rodrigo Janot. É uma economia arruinada, sem perspectivas, com instituições caóticas, agindo por contra própria. O judiciário passou a cassar resultados eleitorais sem nenhum pudor. Vereadores, deputados e senadores são presos sem que saibam de que são acusados, muito antes que possam se defender. Hoje eu fico sabendo, por exemplo, que o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, teve seu mandato cassado. O Rio de Janeiro, que já estava sem liderança desde que Pezão licenciou-se para tratar de um câncer, agora fica ainda mais desamparado, à mercê das artimanhas do governo federal, que tenta chantagear o estado para impor por aqui a privatização da Cedae (estatal de água).
Também hoje, um juiz baixou uma liminar que derruba a nomeação de Moreira Franco para um novo ministério criado só para ele pelo governo, com objetivo de lhe dar foro privilegiado e fazê-lo escapar das garras de Sergio Moro.
Ora, independente do caráter de Temer ou de Moreira Franco, o judiciário brasileiro está fora de controle. Fizeram a mesma coisa com Lula, impedindo-o de ser ministro. O judiciário avocou para si a responsabilidade de autorizar quem pode ou não ser ministro, e qual eleição pode ou não ser válida. Tudo isso antes de qualquer julgamento ou condenação, claro, porque senão não teria graça. Julgamentos demoram muito!, reclamam juízes e procuradores.
Talvez Sergio Moro esteja certo: o Brasil ficará mais competitivo no futuro, mas será porque terá de impor freios democráticos a juízes, procuradores e delegados. O Brasil precisa de autoridade, mas de uma autoridade chancelada democraticamente, através de eleições livres, justas, periódicas e competitivas. Este país de delatores, procuradores e juízes justiceiros não permitirá que a economia respire e está, de antemão, condenado ao fracasso.
O Rio foi uma das principais vítimas da Lava Jato. Antes dela, tínhamos uma próspera indústria de navegação, uma pujante indústria de petróleo e gás. Os portos foram renovados, com instalação de novas indústrias do setor químico e siderúrgico em áreas próximas aos terminais de embarque, e construía-se, em Itaboraí, a Comperj, a maior refinaria da América Latina. Tudo isso foi bruscamente paralisado, abandonado ou destruído. A receita fiscal, naturalmente, desabou, e o estado hoje está literalmente quebrado.
A Petrobrás, sob a gestão de Pedro Parente, indicado pelo governo Temer, iniciou uma campanha brutal de desnacionalização, inclusive discriminando empresas brasileiras, o que imagino será bem difícil para um estrangeiro acreditar, porque, de fato, não parece racional. Para a retomada das obras da Comperj, por exemplo, a Petrobrás não permitiu a inclusão de nenhuma empresa nacional.
Arpeggio – coluna política (quase) diária, por Miguel do Rosário