terça-feira, 26 de junho de 2018

Política Lula e o amor que deixa marcas: Picasso e Flavio José

Política

Lula e o amor que deixa marcas: Picasso e Flavio José

A mensagem que os golpistas deveriam adotar é aquela parte da canção que diz, "sei que errei, tô aqui para te pedir perdão". Não o farão.

 
26/06/2018 09:26
Guilherme Santos/Sul21
Créditos da foto: Guilherme Santos/Sul21
 
Um país que até há poucos anos era um exemplo de democracia social “mínima”, respeitado pelas nações mais importantes do mundo – independentemente do seu regime  econômico – hoje rasteja na “exceção”. É um país cujo Sistema de Justiça coloca no cárcere, de forma inconstitucional, o seu maior Presidente dos últimos tempos, dilapida o patrimônio público com a destruição da Petrobras e congela o seu Orçamento em Saúde e Educação, no mais brutal ataques aos pobres desde o “arrocho salarial”, na época do regime militar. Um governo gerenciado por um grupo de denunciados e processados por corrupção. 

 Trata-se de um novo tipo de poder autoritário, construído pela mídia oligopólica e pelos empresários neoliberais oportunistas, que depois de orientarem o seu programa reformista de barbarização social, começam a devorar seus domadores designados, através dos leões da especulação financeira. De olho nas eleições, este novo sistema de poder precisa manter Lula fora do jogo, de preferência matá-lo -politicamente ou fisicamente se preciso for- pela humilhação e pela desonra. O  roteiro do golpismo precisa excluir a soberania popular do sistema político, para que a madrugada suja do fascismo, se necessário, possa irromper.

 A música de Flávio José, “Espumas ao vento” – linda e comovente confissão brega de traição e reconciliação amorosa – tem duas mensagens sibilinas para o momento político atual. Aqueles que vivem a política ou controlam os cordéis de uma consciência pública exausta e tristonha – pelas perdas ou pelo ódio – deveriam atentar para estas vozes do acaso, fora do mercado. Os golpistas as receberão nos faustos do poder que usufruem de forma ilegítima, mas Lula as receberá no fundo do cárcere, onde está por ter sacado da miséria 40  milhões de brasileiros que, para pensarem livremente, precisavam primeiro comer e vestir. Estes não o esquecerão.

 A mensagem que os golpistas deveriam adotar é aquela parte da canção que diz, “sei que errei, tô aqui para te pedir perdão”. Não o farão. Preferem prestar contas ao mercado abstrato onde as pessoas concretas não os ouvem e bajular os comandantes mentais do oligopólio da mídia  do que ter a humildade histórica de reconhecer seus erros destrutivos. A mensagem que Lula deverá receber, porém, é aquela que virá dos porões do transatlântico neoliberal, hoje transformado num barco-fantasma, que singra o oceano do medo: “o amor deixa marcas que não dá pra apagar”. 

 A primeira mensagem vai cair no coração vazio do arbítrio dos juízes da exceção, mas a segunda vai perfurar docemente o coração quente de Lula e se aninhar nele como um pássaro que se recolhe ao calor vital da sua origem. As marcas deixadas por Lula, no coração do povo pobre do Brasil, no ar seco caatinga, nas mães com o leite ressecado pela fome do Brasil profundo, nos velhos agricultores que viram a luz elétrica pela primeira vez, nos milhões de jovens das famílias de salário-mínimo do Prouni não serão esquecidas, pois são marcas do amor, deixadas nos trabalhadores que viram seus filhos crescerem sem fome, estáveis em espaços iluminados da memória que a exceção não apaga, a prisão não bloqueia, a manipulação midiática não extingue.

 É verdade que ainda há um certo amortecimento na consciência popular, em virtude hipnose fascista promovida, massivamente, pelos meios de comunicação mais conhecidos contra Lula, o PT e a esquerda. Mas isto vai passar e será superado. Mais cedo ou mais tarde. Picasso, numa carta escrita em 18 de abril de 1917, ao seu amigo Guillaume Apollinaire (originária de Nápoles) lhe diz não sem certa ironia esperançosa, a respeito de um assunto pessoal em aguardo: “estou com a ‘troupe’, à espera de que os leões comam o domador”. Nós não estamos esperando, mas os leões do golpe já estão lambendo os lábios para comer – ali adiante – Temer e os seus domadores de opereta, que os próprios leões colocaram no poder.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

*Publicado originalmente no Sul21

Histórias do Futuro Os canis da civilização e a crueldade dos poderosos

Histórias do Futuro

Os canis da civilização e a crueldade dos poderosos

 

 
26/06/2018 09:03
John Moore / Getty Images
Créditos da foto: John Moore / Getty Images
 
A desordem mundial planteada pela globalização neoliberal protecionista mostrou na última semana dois de seus sintomas de crueldade, pondo em evidência a maior crise humanitária desde a II Guerra Mundial. Segundo Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), existem na atualidade 65 milhões de deslocados pelas guerras, invasões militares, pela fome, pela desertificação e pelos conflitos étnico-religiosos, registro que parece não incomodar as grandes potências, ainda que se disponham a realizar conferências internacionais para abordar essas tragédias, mas sem mostrar resultados aceitáveis, e muito menos ações para solucionar os problemas.

Em 2015, as publicações do mundo replicaram a foto de Aylan Kurdi, o menino sírio de três anos falecido numa praia turca. Aylan vivia em Kobane, uma cidade no norte da Síria onde o denominado Estado Islâmico enfrentava os combatentes curdos. Devido aos perigos dos bombardeios e perseguições, a família de Aylan decidiu escapar. Esta semana, Yanele Dennisse Varela Sánchez, uma menina hondurenha de três anos, foi fotografada e videogravada enquanto sua mãe era presa ao tentar entrar nos Estados Unidos, no Texas.

A desordem mundial imperante nos apresenta lúgubres fotos que sintetizam uma descomunal tragédia da qual os países desenvolvidos são duplamente responsáveis: por um lado, por participar de muitos dos conflitos que provocam os grandes deslocamentos populacionais. E por outro ao não assumir que um mundo crescentemente desigual provoca conflitos, resistências, migrações e ressentimentos sociais explosivos.

As migrações só vão ser reduzidas através de uma lógica de paz, de cooperação, de redução dos conflitos e dos programas de desenvolvimento. Os países que geram essas migrações são aqueles nos quais o que mais circula são as armas, em conivência com empresas extrativas dispostas a esvaziar a terra (com eficiência e rapidez) de qualquer riqueza útil.

Existem três grandes “focos” de expulsão de habitantes no mundo, e nos três se observam com claridade a participação dos países mais desenvolvidos: na fronteira norte da América Latina há um conflito armado entre vários exércitos privados, ligados a empresários do narcotráfico, que se associam com vendedores de armas. Estes últimos – radicados nos Estados Unidos e protegidos pela Associação do Rifle – oferecem o aparato bélico em troca das drogas. Em fevereiro deste ano, o jornal The New York Times informou que 213 milhões de armas “migraram” dos Estados Unidos à sua fronteira do sul do país no último ano, permitindo a continuidade da sangrenta pandemia criminosa que assola o país vizinho. Em 2017, se registraram 30 mil homicídios no México, alcançando uma das médias mais altas de assassinatos por quantidade de habitantes em toda a região.

O segundo foco de onde tentam escapar centenas de milhares de pessoas é o norte da África. Provêm de países subsaarianos e daqueles que – como no caso da Líbia – tiveram suas redes estatais reduzidas à inexistência, após os bombardeios e invasões militares “humanitárias” provocadas pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, a partir da chamada “primavera árabe”. Além disso, houve guerras civis no Sudão e na Somália, marcadas pela lógica fundamentalista cuja origem inicial foi o financiamento dado pelo Ocidente para conter processos políticos nacionalistas, laicos e progressistas. Grande parte do resultado destas intervenções “civilizatórias” geraram a implosão de diversos Estados nacionais, sua conseguinte fragmentação territorial e de suas capacidades governamentais (em dissolução), além do fluxo de armas distribuídas entre os grupos participantes das disputas.

O terceiro foco é o asiático. Se concentra ao redor das guerras da Síria, do Iêmen, do Afeganistão e do conflito consistente na perseguição dos muçulmanos em Myanmar contra os Rohingya. Nos três primeiros casos, existiram intervenções militares diretas de Washington, orientadas a destruir seus oponentes geopolíticos, elevando os níveis de conflito e – na imensa maioria dos casos – provocando maiores dificuldades que as que (propagandisticamente) se pretendiam evitar.

Migração e guerra
Em meio a este conflito global, os meios hegemônicos de comunicação mostram habitualmente as reiteradas tragédias migratórias nas fronteiras dos países desenvolvidos. Paralelamente, se mostra a estes últimos como “vítimas” destas “desordens populacionais”, sem fazer menção às várias causas que contribuíram ao seu desenvolvimento. Não se fazem menção a que 85% dos refugiados de todo o mundo sobrevivem em países não desenvolvidos: Turquia, Paquistão, Uganda, Líbano e até a Venezuela são alguns dos países que mais vem dando abrigo aos deslocados pelas guerras, geralmente próximas às suas fronteiras. Uns dos casos menos conhecidos é o que se refere à República Bolivariana, que mesmo enfrentando uma profunda crise econômica (causada pelo bloqueio comercial e financeiro dos Estados Unidos) já deu asilo a 200 mil colombianos que fugiram da guerra civil do país no país nos últimos 50 anos, segundo a ACNUR.

Bogotá assinou um convênio com Washington em 1999, o mesmo ano em que Hugo Chávez chegou ao poder eleitoralmente. Um dos pontos desse acordo consistia em reduzir as plantações de coca e ao mesmo tempo mitigar a pressão paramilitar sobre as populações em risco. Quase 20 anos depois dos compromissos assumidos pelo então presidente Andrés Pastrana – e a sugestiva ampliação das bases do Comando Sul dentro do seu território – a extensão total dos cultivos de coca cresceu 52% só no último biênio, multiplicando também a quantidade de população camponesa que migrou.

Os conflitos bélicos e as invasões – lideradas por países desenvolvidos – não só foram utilizados para comercializar armas e implantar governos títeres, como também foram a justificativa para autorizar a entrada de corporações de segurança privada (verdadeiros exércitos de mercenários) que absorvem parte dos recursos desses governos e que, ao mesmo tempo, são sua guarda pretoriana, e a garantia da entrada das corporações multinacionais, ávidas de extrair a maior quantidade de recurso naturais no menor tempo possível.

O outro benefício dos processos migratórios (hoje silenciado pelos países desenvolvidos) tem sido a capacidade de regular o valor da força de trabalho através dos migrantes. Os turcos na Alemanha e os mexicanos nos Estados Unidos ocuparam muitos postos de trabalho durante as últimas cinco décadas, por salários menores aos demandados pelos nativos desses países, fazendo com que o valor da força de trabalho seja nivelado por baixo, e contribuindo com melhores níveis de rentabilidade dos empresários.

Os canis do Texas
Segundo o último censo do país das listras e das estrelas, a população que denominam (com evidente desprezo) como “hispana”, chegou a 57,5 milhões de habitantes em 2016, cerca de 17% da população total. Entre eles, 37 milhões são estadunidenses de nascimento, embora uma imensa porção continue portando status de ilegal. Essa realidade os torna cidadãos carentes de direitos, que não podem votar e sem acesso ao seguro de saúde. Por sua parte, aqueles hispanos que possuem identidade registrada carregam o complexo de cidadão de segunda categoria em comparação com os WASP (sigla de white anglo saxon protenstants, os brancos protestantes descendentes dos anglo-saxões), que atribuem a si a identidade legítima, primordial e fundadora da nacionalidade estadunidense.

Esta escassez de empoderamento dos hispanos é o que explica – segundo as investigações mais recentes – a desmotivação que os leva a não se inscrever nos registros eleitorais. Quase 9 milhões deles são cidadãos elegíveis (com direito a votar e serem votados) que poderiam exercer seus direitos políticos.

Além disso, duas terças partes dos hispanos se encontram em situação precária, seja porque são ilegais, possuem residências temporárias ou porque sentem que trairiam as suas origens se assumissem outra nacionalidade. Por último, ainda prevalecem os sutis mecanismos dispostos a mantê-los afastados de toda e qualquer associatividade capaz de plantear reivindicações. Dessa forma, os empresários contam com mão de obra barata e ao mesmo tempo disciplinada (e não sindicalizada), claramente incapacitada de defender seus direitos coletivos.

Há cerca de cinco anos, a quantidade de pedidos de asilo e o êxodo proveniente das árias em conflito vem se incrementando. Segundo os cálculos da ACNUR, a cada minuto 31 pessoas abandonam seus lugares de residência para escapar de matanças, guerras civis, bombardeios contra a população civil ou deslocamentos forçados. Um total de 26 milhões de cidadãos do mundo têm status de refugiados e 10% deles são latino-americanos, que também são expulsos de suas terras por grandes fazendeiros que buscam estender os seus cultivos.

Jaulas e balsas
Donald Trump assinou no dia 20 de junho uma ordem executiva que extingue o protocolo de separação de menores migrantes de seus adultos acompanhantes, mas advertiu que seguirá com sua tolerância zero com aqueles que tentam entrar no território estadunidense. A imensa maioria dos que arriscam suas vidas para cruzar a fronteira sul estadunidense procedem das Antilhas, da América Central, da Colômbia e do México. Em todos esses países, o narcotráfico, as forças paramilitares a seu serviço e a grande presença de armas norte-americanas são os fatores que fazem com que, nos últimos anos, milhões de pessoas busquem outros lugares para ter seus empregos e dar educação aos seus filhos.

Um dos objetivos de Trump ao impor sua campanha anti imigratória é (segundo os parlamentares democratas) uma forma de extorsão para conceder a ele poderes especiais para reduzir o asilo e outorgar, através do Congresso, a faculdade para dispor dos 25 bilhões de dólares necessários na construção de sua maior promessa de campanha: o muro fronteiriço, que ele originalmente exigiu que fosse financiado pelo México. Este é o cenário que levou um dos países mais poderosos e ricos do mundo a manter cerca de 2 mil crianças presas em jaulas – chamadas pelos guardas fronteiriços de “canis” –, separadas dos seus familiares adultos, até a semana passada.

Simultaneamente, no Mediterrâneo, o navio Aquarius chegou ao porto de Valência, na Espanha com 629 migrantes a bordo, depois de ser rejeitado pelo principado de Malta e pelo novo governo italiano, comandando pela Liga Norte, um dos partidos de direita que agitam a bandeira da crise econômica como mecanismo para instaurar campanhas xenófobas. O último capítulo de sua propaganda racista foi divulgado na última quinta-feira (21/6) pelo próprio líder dessa formação política, Matteo Silvani (também ministro do interior), quem propôs um censo da população cigana radicada na península, com o objetivo de detectar aqueles que devem ser expulsos.

Esta também é a postura dos governos húngaro e austríaco, que propõem instalar forças armadas de ocupação no norte da África para impedir que as balsas e navios se lancem ao Mediterrâneo. As crônicas trágicas aumentaram nos 6 meses de 2018, chegando a um total de 771 pessoas falecidas. A primeira semana de junho teve 68 pessoas resgatadas numa balsa à deriva na costa da Tunísia. Ademais foram achados 52 cadáveres e outras 60 pessoas permanecem desaparecidas.

Em 13 de maio de 1939, o navio Saint Louis zarpou de Hamburgo levando 930 refugiados judeus (a maioria alemães) que escapavam da perseguição nazi, buscando asilo. Chegaram a Cuba e foram rechaçados por pressões do Departamento de Estado estadunidense que exigiu que não fossem aceitos. Na Flórida aconteceu a mesma coisa. Logo tentaram o Canadá, e o fracasso se repetiu. Tiveram que voltar à Europa. Grande parte dos seus passageiros foram enviados aos campos de extermínio.

A civilização ocidental costuma catalogar como “barbárie” tudo aquilo que lhe é alheio. Talvez seja a causa pela qual Trump decidiu abandonar o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas na última semana. O umbigo da civilização ocidental parece estar mais sujo do que aquilo que os seus próprios portadores conseguem perceber. O que não se pode por jaulas é transformado em perigoso ou invisível.

A mesma motivação racista nega a conformação multiétnica da Argentina, como foi explicado por Mauricio Macri, ao descrever seu imaginário país como composto por exclusivamente por “descendentes de europeus”.

Há uma infinidade de fotos penduradas nas paredes da História, mas nestes dias só se podem ver aquelas que mostram a morte e as lágrimas. A primeira, acompanhando as ondas que molham o corpinho ainda tíbio de Aylan Kurdi. As segundas, arrasadas pelas lágrimas de Yanele Dennisse Varela Sánchez, que atravessam a consciência do mundo como um punhal. As paredes onde essas fotos estão penduradas são as da pretendida civilização, e estão cada vez mais descascadas.

Jorge Elbaum é sociólogo, doutor em Ciências Econômicas e analista sênior do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

www.estrategia.la

Eduardo Galeano e seu amor pelo futebol


Eduardo Galeano e seu amor pelo futebol

Embora o adepto possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela da sua televisão, prefere cumprir a peregrinação até ao lugar onde possa ver em carne e osso os seus anjos a lutar num duelo contra os demónios da jornada

 
26/06/2018 11:22
 
 
O adepto

Uma vez por semana, o adepto foge de casa e vai ao estádio.

Ondulam as bandeiras, soam as matracas, os foguetes, os tambores, chovem serpentinas e papel picado: a cidade desaparece, a rotina esquece-se, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe as suas divindades. Embora o adepto possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela da sua televisão, prefere cumprir a peregrinação até ao lugar onde possa ver em carne e osso os seus anjos a lutar num duelo contra os demónios da jornada.

Aqui o adepto agita o lenço, engole saliva, engole veneno, come o boné, sussurra preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita golo ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o adepto é muita coisa. Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os árbitros foram comprados, todos os rivais são trapaceiros.

É raro o adepto que diz: “A minha equipa joga hoje”. Diz sempre: “Nós jogamos hoje”. Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, da mesma forma que os outros onze jogadores sabem que jogar sem claque é como dançar sem música.

Quando o jogo termina, o adepto, que não saiu da arquibancada, celebra a sua vitória, que goleada fizemos, que coça que nós demos, ou chora a sua derrota, roubaram-nos outra vez, árbitro ladrão. E então o sol vai embora, e o adepto vai-se. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto se vão apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o adepto também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o adepto afasta-se, dispersa-se, perde-se, e o domingo é melancólico transformado numa quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval.

Texto extraído do livro Futebol ao Sol e à Sombra de Eduardo Galeano. Disponível aqui

*Publicado originalmente na Esquerda.net

VISITA DE PENCE AO BRASIL REFLETE PESO DO INTERVENCIONISMO DOS EUA

O lupanar do pensamento em Roda Viva

O lupanar do pensamento em Roda Viva

Reprodução/TV Cultura
Na primeira metade do século 19, indignado com as trampolinagens dos que usavam os jornais para a autopromoção, difamação de adversários, intrigas e picaretagens de todo o tipo, Honoré de Balzac, na obra prima "As Ilusões Perdidas", livro dos livros da majestosa "Comédia Humana", qualificava a imprensa da época como o "lupanar do pensamento".
A fértil imaginação e o agudo senso de realidade do maior de todos os escritores franceses não imaginaria, contudo, o nível de abjeção, indignidade, desonra e sujeira a que poderiam decair os meios de comunicação do Brasil de quase dois séculos depois.
Pois foi a isto que chegou o programa de entrevistas Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, na noite da segunda-feira (25), quando a entrevistada foi a pré-candidata do Partido Comunista do Brasil à Presidência da República, Manuela D ´Ávilla.
O que, em condições normais seria uma entrevista política para ajudar o eleitorado a se esclarecer num quadro nebuloso e confuso, transformou-se num festival de horrores, uma sucessão de despautérios e sandices, protagonizadas por um conjunto bizarro de entrevistadores, com a "moderação" de um vira-casaca. Não eram entrevistadores em cena, mas verborrágicos e ignorantes inquisidores, que sequer sabiam formular questões, coligir dados, contextualizar informações.
Mal-educados e boçais, interrompiam a entrevistada, cortavam-lhe a palavra, incapazes de ouvir e responder os argumentos. Uma mal ajambrada bancada composta por fascistas notórios, neoliberais de carteirinha, repórteres monitorados à distância por chefes de redação de decadentes jornalões - e um yuppie fantasiado de filósofo, apologista dos movimentos de "regime change" das redes sociais.
A pré-candidata, eloquente, impávida e digna, era solenemente ignorada pela bancada quando expunha suas ideias, um desrespeito também ao público, que a julgar pela repercussão das suas declarações acompanhou com vivo interesse e apoio. O desdém dos entrevistadores com a verdade era ainda mais óbvio quando a representante do PCdoB defendia valores humanistas, o programa político de combate às desigualdades, de luta pelo desenvolvimento nacional e outros temas caros ao debate político e ideológico indispensável para tirar o Brasil da pior crise que enfrenta desde sempre em sua tortuosa história como nação.
Os frequentadores do lupanar, corrompidos pela senil ideologia burguesa e imperialista, brandiam frases desconexas que se ouvem desde os tempos da guerra fria sobre grandes vultos da história de lutas pela emancipação dos povos, como Stálin e Mao Tsetung, e tentavam intrigar o Brasil com um país vizinho e irmão, a Venezuela. Embriagado por um ódio figadal a tudo o que é humano - sentimento antípoda ao dos comunistas e democratas - um deles, coordenador da campanha de um fascistoide, defensor do estupro e da tortura - gritava histrionicamente em favor da "castração química para estupradores".
Em coro, os inquisidores repetiam irritados que Lula está preso por ser culpado de crime de corrupção, diante da afirmação serena e firme da pré-candidata, de que não só Lula é inocente, como detém o direito legítimo a candidatar-se à Presidência da República.
Nunca se viu semelhante truculência num programa de televisão dedicado a entrevistas políticas. Por um motivo essencial, que não deve escapar à percepção de todas as correntes progressistas: no centro da Roda Viva estava uma pré-candidata do Partido Comunista do Brasil. É sempre bom lembrar que a fúria anticomunista, quando desencadeada por meio de atos e fatos, atinge todos os democratas e liquida a democracia.