“O país não quebra se a reforma da Previdência não passar, isso é terrorismo”, diz doutor em economia
O discurso unificado e uniforme de que a reforma da Previdência seja fundamental e urgente para o país preocupa Onofre Portella. O economista é mestre em História Econômica, doutorando em Economia e professor de Economia Internacional e Macroeconomia na Faculdade Rio Branco.
Portella acredita ser necessária uma reforma, mas não essa que aí está. Segundo o professor, a proposta capitaneada por Paulo Guedes tem um cunho de concentração de renda, alinhado com o direcionamento da política econômica do atual ministro que é radicalmente neo-liberal e objetiva colocar o capital financeiro no poder.
Para o professor Portella, o formato da PEC é altamente excludente e uma afronta à Constituição Federal de 1988 que tem um caráter solidário de proteção social a indivíduos expostos à vulnerabilidade.
DCM – Ouve-se um mantra vindo de todos os lados, inclusive da oposição, de que “é preciso fazer a reforma”. É mesmo preciso?
Onofre Portela – “É. Mas pela evolução do perfil etário do Brasil, pelo envelhecimento da população. Temos que repensar isso. Mas em hipótese alguma quebrar o caráter da nossa Previdência Social. Vamos trabalhar em tempo de contribuição, em idade mínima, mas junto com outras medidas.”
Quais?
“Macroeconomicamente. Estamos à deriva. Não temos uma política de emprego, não temos uma política de exportação, de alinhamento internacional. A questão é mais ampla.”
O discurso oficial é o de que só a reforma poderá ocasionar uma recuperação da economia, como se fosse um gatilho e a resposta viesse automaticamente no curto prazo. É isso mesmo?
“Não. Posso garantir que não há esse vínculo tão imediato. Esse discurso já foi usado na reforma Trabalhista, disseram que ela criaria 6 milhões de empregos imediatamente. Não aconteceu. Era um discurso para obter a aprovação e baratear nossa força de trabalho. Como está desenhada, a reforma da Previdência transfere um dinheiro que hoje está no orçamento da União, que é do brasileiro e retorna para o brasileiro, para o capital financeiro. É uma ampliação da apropriação do esforço de trabalho da população pelo capital financeiro.
Mas existe um déficit, ou não?
“Não tem nem mesmo o consenso de que exista um déficit. Tem gente graúda, estudiosa do assunto, que jura de pé junto que não tem déficit. Gente séria que afirma que isso é fabricado. Na verdade se retira dinheiro da Previdência para cobrir outras necessidades. Então o déficit é, no mínimo, muito discutível.”
Como se discute os números e cálculos utilizados se eles foram decretados sigilosos?
“Exatamente. Isso é um absurdo. Por que essa postura tão pouco transparente?”
Em relação à idade mínima e tempo de contribuição, é possível um cálculo único, regras únicas, para uma população tão desigual como a brasileira?
“Entendendo a Previdência Social como um vetor para diminuir essa concentração de renda, como um vetor que inclua pessoas. Eu ampliaria a cobertura da Previdência como foi feito com a população rural, como foi feito com o emprego doméstico. É preciso ampliar e garantir um salário crescente. Nós temos hoje uma política de salário mínimo que não vai nem acompanhar a inflação. Isso é terrível, é excludente, é uma política de concentração de renda. A partir do momento que você aumenta o salário e a Previdência se incumbe de distribuir isso, aí você está no caminho correto.”
Por falar em salário, não há um contrassenso entre as medidas que passaram na reforma Trabalhista e o argumento da baixa arrecadação da Previdência? Afinal, salário implica emprego formal e a reforma Trabalhista empurrou as modalidades de pessoa jurídica e informalidade, estimulou o ‘empreendedorismo’ para um número muito grande de trabalhadores…
“Na verdade é tudo uma coisa só. A reforma Trabalhista tem por função baratear a força de trabalho e a reforma da Previdência tem por finalidade transferir o recurso do capital para a dimensão financeira, então a receita fica como uma coisa secundária, pois o Estado não tem mais essa obrigação. Ele vai se liberar de bilhões que hoje coloca na mão do trabalhador com a cobertura do déficit, mas é bom que se diga, um dinheiro que retorna imediatamente para o Estado na forma de impostos. Esse circuito é um esquema keynesiano, que financia a retomada da economia. Tenho certeza que vingando a capitalização, esse dinheiro estará concentrado nas grandes corporações financeiras e não haverá esse segundo passo para consumo. Estaremos num ciclo vicioso, a cada giro estaremos mais dentro do buraco.”
É o que o senhor classifica de ‘lógica perversa’?
“Ela quebra o ciclo de solidariedade, de humanidade que está refletido na Constituição Federal. Toda constituição revela o espírito de uma sociedade, e essa reforma do Paulo Guedes vai na direção oposta daquilo que foi escrito lá em 1988.”