segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

"AJUDA HUMANITÁRIA" = ARMAS

Mino Carta sobre Moro: "Há medíocres que merecem mais respeito que ele"

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PHA : Gal. Heleno tem mesmo que grampear os bispos

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O nome da lei

Estado Democrático de Direito

O nome da lei

Pacote anticrime é simples demais para enfrentar o problema da criminalidade e da violência e complicado o suficiente para ser aprovado sem maior análise e discussão

 
11/02/2019 09:37
(Arquivo pessoal)
Créditos da foto: (Arquivo pessoal)
 
Recentemente, foi apresentado a governadores e ao Congresso Nacional o anteprojeto de lei batizado deanticrime, de iniciativa do Ministério da Justiça. Trata-se de proposta de modificação de leis penais, no sentido amplo – direito penal material e processual e normas de execução penal. Segundo o ministro, as medidas representam “grande avanço”. Vêm para cumprir a promessa de campanha de Jair Bolsonaro, para “endurecimento” da resposta penal ao crime organizado, ao crime violento e à corrupção. Sérgio Moro fez questão de demarcar o que entende ser o diferencial da proposta: “Não vimos nenhum projeto consistente, nos últimos governos, em relação a essas atividades”. Reconhece que “houve avanços” e menciona o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), cujo “grande mérito” atribui a Raul Jungmann. Nada, no entanto, comparável ao seu pacote anticrime, “diferente do que houve no passado”. 

Desde o momento em que aceitou o convite de Jair Bolsonaro para ocupar a pasta da Justiça, o ex-juiz de Curitiba havia manifestado a intenção de elaborar “uma série de propostas legislativas para melhorar o quadro legal contra a corrupção e o crime organizado”. Ainda em novembro de 2018, antecipava o objetivo de “reformas simples” para serem aprovadas em tempo breve. O pacote anticrime, no entanto, é simples demais para enfrentar o problema da criminalidade e da violência e complicado o suficiente para ser aprovado sem maior análise e discussão. 

Contém, para começo de conversa, impropriedades jurídicas, violações diretas a normas constitucionais, é mal redigido, inventa novas categorias de acusados ou deturpa conceitos consolidados do campo (como é o caso de “criminoso profissional ou habitual”). E ainda mais preocupante, surfa na onda populista, incentivando a crença ilusória de que o problema complexo da criminalidade, da violência, da segurança pública pode ser resolvido com simples reformas na legislação penal. 

A começar pelo nome da proposta, anticrime, como se assim não fosse todo o arcabouço penal. O nome da lei induz o pensamento de que as regras penais em vigor, cujos limites o juiz Sérgio Moro excedeu muitas vezes na direção da Lava Jato, é pró-crime. Nome sensacionalista, no característico estilo de promoção do salvacionismo penal. Moro sempre foi um defensor de causas, mas, nesse terreno, é bom desconfiar dos arroubos populistas e jamais acreditar em respostas simples. Não existem respostas simples para quem realmente quer mudar o quadro de violência e exclusão em que se transformou a segurança pública no Brasil.

O anteprojeto de Sérgio Moro é, ao contrário do que propagandeia, mais do mesmo. É a reconfiguração do histórico modelo dominante e persistente no País – centrado na prisão e na militarização das polícias ostensivas. Nele, tudo orbita em torno da prisão, reforçada como a principal resposta de controle do crime, verdadeiro upgrade repressivo-punitivo e, nesse sentido, realmente um “avanço”. E isso no Brasil, o terceiro país que mais prende no mundo, onde o abuso da pena privativa de liberdade e da prisão provisória, com a consequente superpopulação carcerária, tornaram os presídios “inadministráveis” pelo Estado. Onde as condições sub-humanas e as violações quotidianas de direitos converteram o sistema prisional em “estado de coisas inconstitucional” – nos termos em que proclamado pelo Supremo Tribunal Federal. Isso, convém repetir, quando o aumento impressionante dos números prisionais não correspondeu à redução da violência e da criminalidade. Essa deveria ser a razão definitiva para que a sociedade brasileira, no mínimo, desconfiasse das promessas do autor do pacote anticrime

Compreensível que enquanto juiz criminal, detentor de conhecimentos técnico-legais e ocupado em seu fazer diário de sentenciar – e, no seu caso, obcecado pelo “combate” à corrupção, a principal bandeira do “partido do judiciário” nos dias atuais – concebesse medidas visando ao aumento do poder discricionário do juiz criminal, voltadas à redução do seu volume de trabalho (entre outras, a plea bargain) ou à facilitação da “mão pesada” – em outras palavras, da ampliação do poder punitivo. Inaceitável, contudo, que, na condição atual de ministro da Justiça, não consiga ou não queira ver o problema em sua real dimensão, para oferecer à sociedade brasileira, aos agentes do sistema penal e da segurança pública uma proposta com verdadeiro impacto na realidade do sistema, produzindo, ainda que contra o senso-comum, efeitos concretos de reversão das mortes e da violência. Simples, aí sim, é navegar a favor do senso comum. Se aprovado, o pacote vai gerar expansão dos números prisionais e, ao mesmo tempo, explodir as penitenciárias, onde já não há vagas suficientes, abarrotadas que estão com os presos do tráfico e do roubo. Não é responsável, para dizer o mínimo, que um ministro da Justiça proponha medidas de enfrentamento da violência e da criminalidade sem pensar nas consequências humanas, sociais, administrativas ou na sobrecarga financeira para o sistema. Nenhum planejamento, meta nenhuma, nada de reforma administrativa, ausente qualquer medida preventiva.

A única meta confessada, o “endurecimento penal”, está programada para se realizar pela antecipação do momento da prisão, por meio do que o projeto assume como sendo “execução antecipada” de condenação em segunda instância e nas condenações do tribunal do júri, mas também pela via do retardamento do alcance da liberdade – criação de obstáculos à progressão no regime de execução da pena. Aqui, num embate direto e explícito com a autoridade do STF, os maiores problemas têm a ver com a inconstitucionalidade das previsões, algumas delas em choque frontal com precedentes do Supremo. 

Mais rigor penal ainda se obtém com a redução do acesso à justiça pela via recursal, menos prescrição e, enfim, na ampliação legal dos limites no uso da violência, seja pelo particular, seja pelos agentes estatais. Esse último caso diz respeito às propostas de redução e de isenção de pena nas hipóteses de abuso no exercício de direito, de reação desproporcional em face de perigo atual, de excesso no cumprimento do dever legal e na atuação em legítima defesa, quando a ação do sujeito (“agente”, na terminologia do direito penal) decorrer de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. A proposta do ministro traz uma previsão especial no caso do “agente policial ou de segurança pública”. Este estaria protegido pelo manto da legítima defesa por “prevenir” injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem ou “prevenir agressão ou risco de agressão a vítima refém durante a prática de crimes”. Aqui são muitas as considerações de natureza técnico-jurídica a serem feitas, mas algumas observações iniciais são necessárias. A discussão sobre o medo ou o susto (surpresa?) capazes de gerar intensa perturbação que afete “o agir como pessoa deliberativa”, na expressão do professor Juarez Tavares (“Fundamentos de Teoria do Delito”. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018), ou seja, que comprometam seriamente a capacidade de ação e resposta da pessoa, estaria mais bem situada em outro setor de análise penal que não o da existência de permissivo legal da conduta ou causa de exclusão de sua ilicitude. Esse exame deve ser – e já é – realizado no âmbito da chamada culpabilidade, mas a elucidação do tema exigiria uma resposta mais extensa do que comporta este artigo, além de uma boa tradução em linguagem mais aberta e comunicativa. O que o ex-juiz Moro não pode invocar é o desconhecimento desse “detalhe”. Enfim, é bem mais “simples” tratar do assunto na lei penal como causa de exclusão da ilicitude. Grave é fazer o contrabando da “violenta emoção” para o âmbito das causas de exclusão do crime. 

O Código Penal é expresso ao dispor que a “emoção e a paixão não excluem a imputabilidade penal” e que a “violenta emoção” pode, no máximo, reduzir a pena, mas nunca apagar o crime. Se aprovado, o contrabando vai abrir as portas para velhos fantasmas da impunidade que há muito já haviam sido varridos do ordenamento. É só imaginar situações que vão de brigas de trânsito ou de torcedores de futebol, passando pela violência doméstica e o feminicídio, até chegar aos conflitos do campo, da terra, nas ocupações de imóveis urbanos ou rurais. Ainda mais agora, quando a posse de armas de fogo é facilitada em nome desse sujeito abstrato construído na base do preconceito de classe pela execrável definição do “cidadão de bem” – que pode ser qualquer macho branco e proprietário de coisas e de pessoas, como esposas ou namoradas.

A respeito da proposta de reconhecimento de legítima defesa ao agente policial ou de segurança pública que previne agressão injusta e iminente ou risco de agressão a vítima refém há, igualmente, uma extensa análise a ser feita. Não é possível deixar passar em branco, entretanto, a impropriedade de se admitir, como defesa legítima, a prevenção de uma agressão ainda inexistente (defesa preventiva?). Se há agressão iminente não seria o caso de se falar em prevenção, mas em reação. Nessa condição, não há como avaliar o atributo da antijuridicidade do ato inexistente – a não ser que a injustiça de uma agressão ainda inexistente seja fruto de apreciação inteiramente subjetiva, o que contraria o próprio conceito – objetivo – de ilicitude ou antijuridicidade. Por outro lado, se a agressão injusta é iminente, ou seja, se está prestes a se materializar, a previsão legal em vigor já dá conta da situação, assim como já dá conta da hipótese do risco (iminência) de agressão a vítima refém, dispensando totalmente a bizarra “inovação”. Prevenção de agressão implica solucionar o intrincado problema de reação agressiva contra uma agressão inexistente. Aqui, se a hipótese é de agressão suposta, e desde que observadas outras circunstâncias previstas em lei, a questão convoca o tratamento do erro em direito penal, para falar de forma menos rebuscada. Finalmente, a expectativa da lei penal é que o policial em situação de legítima defesa atue sempre de forma ainda mais responsável e cuidadosa do que o particular, quando menos, porque a ele compete o dever de zelar pela incolumidade das pessoas e reduzir, ao máximo, a violência em relação ao próprio agressor. Mas não é esse o padrão de conduta da polícia mais letal do mundo – que também é a policia que mais morre nos tiroteios. 

A trágica realidade da atuação policial no Brasil demonstra que as propostas de Sérgio Moro estão na direção errada, na contramão do que seria esperado para enfrentar o problema das mortes de policiais e de civis envolvidos ou não diretamente no conflito. De acordo com o Atlas da Violência de 2017, em apenas em três semanas, nos cinco primeiros meses daquele ano, foram mortas no Brasil “mais pessoas do que o total de mortos em todos os ataques terroristas no mundo”. Na conclusão dos pesquisadores, o dado está a indicar um “padrão institucional” e não apenas “desvios de conduta” policial. Em 10 anos (2005-2015), mais de 318 mil jovens de 15 a 29 anos foram assassinados no Brasil. Mais de 92% desses homicídios atingem jovens do sexo masculino e a cada 100 pessoas mortas, 71 são negras. Uma pessoa negra no Brasil tem 23,5% a mais de chance de se tornar vítima de homicídio. Em 2015, em todo o País, ao menos 358 mortes registradas foram de policiais militares e civis. E tudo isso, vale lembrar, sem o auxílio providencial do mecanismo anticrime de Sérgio Moro, na conformidade do desejo do chefe do executivo, com a simpatia da bancada da bala e com o patrocínio dos donos do business das armas. 

Uma das frases mais repercutidas do ministro nesses últimos dias – “nós fazemos a lei buscando efeitos práticos, não para agradar, necessariamente, professores de processo, de direito penal” – é para a arena política, para insuflar e “agradar”, agora sim, a torcida punitivista. Essa torcida é formada pelo público que identifica “professores de processo e direito penal” como defensores de direitos humanos, isto é, “defensores de bandido”, no glossário bolsonarista. A fala grosseira é própria de quem despreza o debate e desqualifica opositores e críticos do seu pensamento. Coisa de autoridade que não admite contestação, postura antipolítica e antidemocrática. 

Afinal, de onde viria a análise qualificada da proposta senão exatamente dos professores, especialistas e pesquisadores? Impossível evitar a discussão em torno do pacote anticrime. E não são poucas ou irrelevantes as questões que suscita. A crítica, certamente, não virá da bancada da bala, mas os efeitos negativos da aprovação de uma proposta como essa serão suportados por todos. Ou melhor, considerando a tradicional distribuição desigual da pena criminal, a seletividade do sistema e a fulanização da corrupção, está claro, desde logo, que os efeitos serão suportados por uns muito mais do que por outros. Fica a conclusão de que o pacote saiu da cabeça de uma equipe que não dialoga com organizações civis e nem com especialistas da área, uma equipe encerrada em sua bolha de conhecimentos bacharelescos e sem nenhuma sensibilidade social.

Beatriz Vargas Ramos - Professora Adjunta de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Brasília - UnB, nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito; Mestre em Ciências Penais pela UFMG; Doutora em Direito pela UnB; Coordenadora do CEDD/UnB (Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação); Membro do NEVIS/UnB (Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança); Membro do GCCrim/UnB (Grupo Candango de Criminologia); Membro da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB; Membro fundador da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia); Ex-conselheira do CNPCP/MJ (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça).

O país devastado pela estupidez para saciar incautos

Estado Democrático de Direito

O país devastado pela estupidez para saciar incautos

O famigerado "pacote anti-crime" instaura, na prática, a pena de morte no Brasil. Pior, uma pena de morte que prescinde de julgamento. Ele o faz ao mudar o código penal no que se refere à ação policial

 
11/02/2019 10:57
(Arquivo pessoal)
Créditos da foto: (Arquivo pessoal)
 
Quem supôs que a cota de insanidade do governo federal, na área penal e da segurança pública, tivesse sido preenchida pela flexibilização da posse de armas, equivocou-se. Depois da tormenta, o dilúvio. O ante-projeto de Lei apresentado pelo ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, é um acinte à consciência crítica do país, uma agressão à sensibilidade moral, uma arrogante manifestação de desprezo pelas evidências disponíveis e uma demonstração de ignorância cabal do conhecimento acumulado nas últimas décadas. A proposta de Moro rasga a Constituição e o pacto social que ela consagra. 

O famigerado “pacote anti-crime" instaura, na prática, a pena de morte no Brasil. Pior, uma pena de morte que prescinde de julgamento. Ele o faz ao mudar o código penal no que se refere à ação policial. Afirma o ante-projeto: "§ 2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção."

Deve-se destacar que a alteração prevista será aplicada no país que, sabidamente, é um dos campeões mundiais da brutalidade policial letal e da impunidade desses crimes fatais perpetrados pelo Estado. Em 2017, houve 63.880 homicídios dolosos e 5.144 mortes provocadas por ações policiais -este último número termina representando um retrato subestimado da realidade, expressivo das dificuldades de produzir dados confiáveis, sobretudo quando se referem a eventos criminais sob responsabilidade do Estado. A qualidade das informações varia conforme os estados e os tipos criminais. No estado do Rio de Janeiro, entre 2013 e 2017, 13.387 pessoas foram mortas em ações policiais. Em 2018, ano da intervenção federal-militar, verificou-se um aumento de 36,3%: de fevereiro à terceira semana de dezembro, houve 1.287 vítimas letais da violência policial. Como ocorreram, no mesmo período, 4.127 homicídios dolosos, descontados aqueles decorrentes de ações policiais, concluímos que as vítimas da brutalidade policial letal correspondem a 31,18% do conjunto das mortes violentas intencionais no estado, que perfizeram, no período referido, o total de 5.414.

Além de implantar a pena de morte, na prática, legalizando o genocídio em curso, nas periferias e favelas, o ante-projeto do ministro Moro autoriza o "abate", facultando ao agente da Lei que atire para matar, não para defender a própria vida ou a vida de terceiros, mas ante "risco" de conflito armado:

"Art.25..................................................................................................................................
Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa:
I - o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem;"

Merece registro o fato de que o código penal em vigor, em seus artigos 23 e 25, já garante o direito à legítima defesa, tanto ao cidadão comum, quanto ao policial: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente os meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

O advérbio “moderadamente” corrobora a compreensão universalmente aceita pelas declarações dos direitos humanos e integra os protocolos de ação policial difundidos pela ONU e aplicados em países regidos pelo Estado democrático de direito. Significa o respeito ao chamado “gradiente do uso da força”, isto é, a noção de que o uso da força por parte de uma agência policial só é legítimo quando comedido, ou seja, quando mobiliza somente a força correspondente àquela empregada na resistência à ordem proferida pela autoridade, no estrito cumprimento de seu dever constitucional, e também correspondente aos riscos implicados para o profissional da polícia ou para terceiros. No caso extremo de agressão iminente ou atual à própria vida do policial, ou de terceiros, é legítimo, legal e necessário o recurso aos meios de defesa aptos a anularem esse ataque.

Quando o ministro Sergio Moro acrescenta ao artigo do código penal essa excludente de ilicitude mitigada, porque submetida ao escrutínio subjetivo do magistrado, seu objeto explícito é o “excesso”, ou seja, é o ato que transgride a normal legal. O ante-projeto prevê a possibilidade, a critério do juiz, de que seja aplicada apenas metade da pena ou mesmo de que não seja aplicada, “se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Desafio a leitora e o leitor a me apresentar uma situação, cujo desfecho inclua eventual ação “excessiva” por parte do policial, em que este não possa alegar, com verossimilhança, medo, surpresa ou violenta emoção. Ora, para que polícia, então? Milícias e linchadores cumpririam melhor o papel. Afinal, policiais são treinados e a instituição existe nos países democráticos justamente para que medo, surpresa e violenta emoção sejam enfrentados com método e racionalidade, a partir de treinamento técnico adequado. A essa proficiência chama-se profissionalismo. 

Nas polícias legal, técnica e democraticamente qualificadas, a mera possibilidade de envolvimento emocional com alguma causa ou circunstância é suficiente para determinar o afastamento da missão em pauta. Se nas grandes manifestações populares de junho de 2013, viam-se policiais visivelmente envolvidos com as mais fortes emoções, demonstrando ódio pessoal e júbilo pela vingança física, era porque os profissionais não haviam compreendido a natureza de sua função. Quando, em incursões nas favelas cariocas, eles agem como soldados em guerra, devotados a eliminar os inimigos, colocando em prática treinamentos nos quais entoam hinos que exaltam a morte de negros favelados, não estão exercendo o papel de polícia e comprovam que seus comandantes há muito traíram os compromissos constitucionais. Em vez de servirem à garantia de direitos, à defesa da vida e à segurança pública, os agentes estatais da brutalidade letal dão mostras de que se converteram em mecanismos de uma ciclópica e tirânica máquina de morte e degradação, que aprofunda o racismo estrutural e as desigualdades sociais, e termina por triturá-los também a eles, algozes e vítimas, nos embates fratricidas.

Se já havia cumplicidade por parte da Polícia Civil, do Ministério Público e da Justiça, em milhares de casos de execuções extra-judiciais no Brasil, posto que somente uma ínfima parcela é alvo de denúncia e julgamento, o que teremos depois da aprovação do ante-projeto? Querem uma pista? A cumplicidade sairá do armário, as execuções serão legalizadas, os policiais homicidas, condecorados. Já ouviram essa história antes? Pois é, ela não foi interrompida, mas será intensificada e se tornará ainda mais despudorada.

E o crime, o tal “crime organizado” de que falam? Esse vai muito bem, obrigado, e irá ainda melhor, na medida em que sua principal fonte de recrutamento, em vez de secar, tornar-se-á mais abundante: o encarceramento em massa. O ante-projeto aposta no incremento desse fluxo, que lhe parece, paradoxalmente, insuficiente. Se já temos cerca de 800 mil presos, a terceira população penitenciária do mundo e a que cresce mais velozmente desde 2002, sem que os crimes mais graves sejam contidos --pelo contrário, têm aumentado a quantidade de homicídios dolosos e demais crimes letais intencionais--, a qualquer observador sensato ocorreria pensar, refletir, sopesar custos e benefícios, estudar os dados, detidamente, ponderar, examinar informações e analisá-las, antes de repetir platitudes e insistir nas velhas práticas. 

O observador sensato, espécie em extinção no governo da ultradireita, concluiria que a abordagem adotada pelo país até aqui --isto é, o encarceramento em massa sobretudo dos jovens identificados em flagrante, negociando substâncias ilícitas-- só tem servido ao fortalecimento das facções criminosas que dominam o sistema penitenciário. Os crimes contra a vida permanecem impunes, sequer investigados, enquanto já são 28% os que cumprem pena por tráfico, tendo sido presos sem armas, sem praticarem violência, nem demonstrarem ligações orgânicas com organizações criminosas. 

As autoridades de Brasília, fossem minimamente racionais e objetivas, e menos escravas de concepções ideológicas mistificadoras -seria hilariante não fosse trágico ouvi-las dizer que desejam banir a ideologia e, pragmaticamente, apenas admitir a verdade que emana, sem mediações, da experiência real-, reconheceriam que mais de 80% dos presos o foram em flagrante e somente uma parcela ínfima dos homicídios são investigados, que as facções avançam com o encarceramento, que penas maiores nada acrescentam, apenas atendem ao anseio primário por vingança do populismo penal que grassa entre nós, e do punitivismo irracional. 

Houvesse juízes e legisladores em Brasília, governantes minimamente inteligentes, e uma pitada de bom senso, o óbvio ululante seria admitido: não adianta fazer mais do mesmo, esperando resultados diferentes. A guerra às drogas é uma estupidez, como o mundo ao nosso redor começa a compreender. Prisões não resolvem o problema complexo e multidimensional da insegurança pública. 

Nossa arquitetura institucional da segurança pública, que inclui o modelo policial, é um dinossauro em pleno século XXI, corroído pela mais desbragada corrupção, nutrida, sobretudo, pela leniência das autoridades e das instituições com a brutalidade institucionalizada, tema tabu, do qual as milícias constituem exemplo ostensivo e repulsivo. Destravar o debate sobre o tabu seria incompatível com um governo regressivo, que parasita o medo e o vasto repertório de preconceitos que o elegeu. Implicaria trazer a lume as problemáticas decisivas para o futuro pós-obscurantista -porque haverá um futuro- da sociedade brasileira: o racismo estrutural e as desigualdades.

No entanto, eis o que temos, ainda no início de fevereiro de 2019: uma sucessão de notícias imensamente tristes sobre realidades diferentes, entretanto unificadas pela dor comum das mães e das famílias: 10 jovens atletas do Flamengo mortos pelo fogo e 14 jovens do Catumbi mortos por armas de fogo de policiais. Esse é o Rio de Janeiro da negligência privada e da violência do Estado. O Rio das desigualdades, inclusive no acesso à Justiça. Tudo isso no rescaldo da tempestade, que também causou a perda de vidas, explicável principalmente pelo acesso desigual aos serviços públicos, à terra e à moradia. No fundo do quadro desolador, a pena de Lula dobra e Geddel, senhor de 51 milhões em espécie, é libertado. Enquanto isso, Sergio Moro, depois do decreto das armas, propõe anteprojeto que, na prática, como vimos, legaliza o genocídio perpetrado pelo Estado em favelas e periferias. 

Por isso, perdão, leitora, leitor, se você esperava um artigo solene e frio, impessoal. Essa realidade não cabe em adjetivos e provoca em mim, devo admitir, uma indignação inominável. 

Luiz Eduardo Soares é Antropólogo, cientista político, escritor e ex-secretário nacional de segurança pública

Pacote Moro: um projeto de antissegurança

Estado Democrático de Direito

Pacote Moro: um projeto de antissegurança

O roteiro de Sérgio Moro não oferece qualquer indicativo de resposta ao problema da violência, ou que seja capaz de evitar ou diminuir o cometimento de crimes. Não pode, em decorrência disso, ser considerado um projeto de segurança pública ou "anticrime"

 
11/02/2019 11:00
(Arquivo Pessoal)
Créditos da foto: (Arquivo Pessoal)
 
A minuta de projeto de lei apresentada pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro a governadores de Estado, no último dia 04 de janeiro, erroneamente apelidado de “projeto anticrime” repete, em larga medida, propostas já apresentadas ao Congresso Nacional, tanto no texto da autointitulada “10 Medidas Contra a Corrupção”, de autoria da força-tarefa da operação Lava Jato, quanto em projetos de autoria de parlamentares ligados à assim chamada “bancada da bala”.

O roteiro de Sérgio Moro não oferece qualquer indicativo de resposta ao problema da violência, ou que seja capaz de evitar ou diminuir o cometimento de crimes. Não pode, em decorrência disso, ser considerado um projeto de segurança pública ou “anticrime”. 

Escrito sem qualquer diálogo com especialistas, entidades ou coletivos sociais que tratam e acompanham o tema, e construído na ótica do recrudescimento das normas penais, processuais penais e de execução penal, criando tipos penais, aumentando penas e óbices na progressão de regime, o projeto contribuirá certamente para o agravamento do quadro e dos números do nosso dramático sistema carcerário.

Por um lado, o texto restringe direitos do indivíduo e por outro amplia o descontrole da atividade policial, instituindo verdadeira “licença para matar”. Utiliza expressões vagas, categorias sem respaldo conceitual ou segurança jurídica, algumas antes utilizadas e já sepultadas no ordenamento jurídico, tais como “informante do bem” e “conduta criminal habitual”. Possui, ainda, imprecisões técnicas como resultado de “risco de morte” com pena de até 30 anos, e quarentena no regime mais grave para iniciar a progressão, sem qualquer definição de prazo, ferindo de morte o princípio da legalidade, autorizando juízes a determinarem prisões de caráter indefinido (ou perpétua?).

Dialoga com a flexibilização de direitos constitucionais, trazendo para a legislação ordinária a execução provisória da pena e, ainda, no campo do inédito, nomeia organizações criminosas, listando aquelas que são publicamente reconhecidas como tais, como PCC e Comando Vermelho, mas curiosamente deixando de fora as milícias. Dá poderes ao juiz de autorizar gravações de atendimentos de advogados nos presídios federais.

Em conclusão, e deixando de analisar diversos outros pontos igualmente esdrúxulos, que comprometem seriamente sua constitucionalidade e juridicidade, tenho que a proposta não dialoga em nada com os problemas da sociedade brasileira no que tange a uma política pública de segurança. Disso tratam os especialistas, professores e pesquisadores que escrevem nesta publicação.

Tânia Maria S. de Oliveira é Pesquisadora do Grupo Candango de Criminologia – GCrim/UNB, Membra da Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, ABJD