sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Carlos Marighella: o negro baiano que incendiou o mundo


MEMÓRIA

Carlos Marighella: o negro baiano que incendiou o mundo

A história do comunista, poeta e homem solidário que deixou um legado de luta e resistência para o povo brasileiro

Brasil de Fato | Salvador (BA)
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Marighella conversando com trabalhador da linha férrea na hora do almoço. / Reprodução internet
Nessa edição zero, o Brasil de Fato Bahia homenageia Carlos Marighella, um negro baiano que dedicou a vida para lutar pela liberdade e por uma nova sociedade. Um homem a frente do seu tempo, que deixou um legado de luta e resistência. No último dia 5 de dezembro completou-se 106 anos de seu nascimento.. Entrevistamos seu filho, Carlos Augusto Marighella, que contou um pouco do Marighella filho, irmão e pai amável, solidário, aluno brilhante, poeta e amante das manifestações populares.
A ORIGEM DE MARIGHELLA
Carlos Marighella era uma pessoa comum, uma pessoa do povo. A nossa família é fruto da união de um operário italiano, Augusto Marighella, que veio para Salvador e trabalhou como mecânico, e uma negra hauçá vinda de Santo Amaro, Maria Rita do Nascimento. Eles casaram em Salvador, formando uma família com oito filhos. Moravam na Baixa dos Sapateiros, na Rua Barão do Desterro, onde meu avô tinha uma oficina. Meu pai foi o filho mais velho deles.
Quando meu avô chegava de noite em casa, trazia o jornal que meu pai gostava de ler. Trazia uma vela, porque Salvador não tinha luz à noite. Meu pai dizia que aguardava ansiosamente, porque era o momento que tinha pra ler e tomar conhecimento das noticias.
UM ALUNO BRILHANTE
Vó Mocinha, uma das minhas avós "postiças", contava que, desde pequeno, meu pai demonstrou ser uma pessoa especial e inteligente. Ela dizia que quando o levava para a escola, ele ia segurando a mão dela e lendo os letreiros de ônibus, anúncios em postes, e parava na frente da banca de revistas e lia os jornais.
Essa foi a primeira grande marca de meu pai. A ponto de, na escola secundária, responder a prova de física em versos e isso foi uma coisa inusitada. A prova ficou exposta no Colégio Central, como uma homenagem ao "aluno brilhante".
“Doutor, a sério falo, me permita,

Em versos rabiscar a prova escrita.
Espelho é a superfície que produz,

Quando polida, a reflexão da luz.
Há nos espelhos a considerar

Dois casos, quando a imagem se formar.”
(Trecho da prova de Física respondida em versos em 1923)
DE ESTUDANTE DE ENGENHARIA AO PARTIDO COMUNISTA

Como estudante na Escola de Engenharia da Bahia, Marighella foi correspondente da Revista Brasileira de Matemática, uma revista cientifica que discutia problemas de matemática.

A Escola de Engenharia, recentemente, me chamou porque selecionaram os 100 engenheiros mais importantes da Escola. Marighella consta como um dos nomes mais brilhantes, por seu desempenho e suas notas. Ele foi o único desses 100 que não se formou.
Um dia lhe perguntam: “Mas Marighella por que você, com um futuro tão brilhante, abandonou essa carreira, que lhe daria muita glória?”. Ele disse: “Abandonei a carreira para me dedicar à atividade politica, porque não via honra em ser engenheiro num país em que as crianças precisam trabalhar para comer”.
O Brasil tinha mais da metade da população analfabeta. E foi isso, provavelmente, que fez Marighella ingressar no partido comunista.Ele sempre teve esse espirito libertário, essa vontade transformadora. Entrou no PCB - Partido Comunista do Brasil e saiu da Bahia para ser o “Guerrilheiro que incendiou o mundo”. E dedicou toda a sua vida a luta politica a partir daí.
DEFENSOR DA LIBERDADE E INIMIGO DA DITADURA

Em 1932, foi preso por um poema sarcástico sobre o governador Juracy Magalhães, um interventor nomeado por Getúlio. Ainda na ditadura Vargas, foi preso novamente, passando nove anos. Saiu da prisão e se elegeu deputado Constituinte. Foi eleito em 1946 e em 1947 o PCB foi cassado, com o acirramento da disputa entre EUA e URSS. Era como uma democracia de “araque”.
Então, Marighella foi para a clandestinidade até 1955, quando Juscelino foi eleito e passaram a uma semilegalidade. Nasci em 1948 e só conheci meu pai quando tinha sete anos, apesar de conviver com a família. Minha mãe não conseguia me registrar como Marighella. E a escola ficava “aporrinhando” minha mãe para mandar o documento. Fiquei até essa idade sem documento.
Veio o golpe de 64. Foi terrível para nós. Fui separado de meu pai novamente. Morava com ele no Rio de Janeiro. A polícia invadiu o apartamento que morávamos, e levou tudo, até livros e roupas. Meu pai e Clara [a esposa dele] conseguiram fugir. Ele foi preso e sua foto saiu nos jornais. Aí fui identificado como um Marighella. Fui comunicado que não poderia estudar mais na escola por ser filho de um subversivo e voltei para a Bahia.

Naquela época ser um Marighella era não poder trabalhar. Eu mesmo passei na Petrobras e fiquei um ano até que descobriram que eu era filho de Marighella e me demitiram.
Em 1969, meu pai foi assassinado em uma emboscada em um Convento em São Paulo. E muita gente dizia: “Como que ele foi ao convento, sabendo que o momento era de risco?”. Mas ele foi ao Convento porque queria tirar os padres de lá. Imaginava que estavam correndo sério risco. Ele tinha esse senso de responsabilidade e de solidariedade.
A morte dele foi comemorada pela ditadura, pois era considerado seu “inimigo nº 1”. Não pela ameaça material que representava, mas pelo exemplo. Ele foi uma pessoa que deu exemplo, se sacrificou para ser coerente com sua postura politica. Era um incentivo a luta de resistência. A ditadura temia que o exemplo se propagasse.
APRECIADOR DAS MANIFESTAÇÕES POPULARES
Apesar do estigma de subversivo e terrorista, meu pai era carinhoso, uma pessoa risonha, fazia poemas, gostava de música e carnaval. Você via na expressão dele que gostava das manifestações populares. Tem uma história do dia que foi na Mangueira e ficou extasiado com o samba. Achava impressionante um povo pobre que vivia em barracos e conseguia se reunir pra cantar e dançar. Acho que se via naquelas pessoas. Ele que veio de uma família pobre e negra.
Chegou ao Rio e viu esses mesmos pretos ali sambando, alegres. Eu acho que ele via nessa expressão de felicidade um incentivo para ele lutar. É melhor lutar com pessoas alegres do que tristes, não é? A luta era a mesma, mas ele tinha certeza que estava lutando por um povo preparado para viver a felicidade, um mundo diferente daquele que essas pessoas viviam.
O LEGADO DE MARIGHELLA

Marighella foi uma pessoa grandiosa. Ao resgatar a memória dele, estamos prestando um grande serviço. São símbolos que podem nos inspirar para realizar as transformações na sociedade, fazer do Brasil um país novo, com um novo homem e nova mulher.
A família Marighella gostaria que a casa na Baixa dos Sapateiros, que hoje está em ruínas, virasse um memorial, permitindo que todos que reconhecem e tem orgulho de Marighella tivessem esse espaço vivo.

Em um evento que debateu a importância das eleições no Brasil, uma estudante do Colégio Carlos Marighella disse que, assim como meu pai, tinha vindo de uma família negra, pobre e da periferia e que o via como uma inspiração. Ela afirmou que, seguindo os seus passos, poderia realizar os sonhos que ele não conseguiu, que também eram os sonhos dela. Isso para mim foi uma síntese do porquê devemos resgatar a memória de Marighella.
Edição: Elen Carvalho

"Sobrevivendo no Inferno": 20 anos do disco que marcou a história musical brasileira

RACIONAIS MC'S

"Sobrevivendo no Inferno": 20 anos do disco que marcou a história musical brasileira

Obra do Racionais é, por si só, política de autoafirmação da população negra, sistematicamente exterminada há séculos

Brasil de Fato | São Paulo (SP)
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Lançado em dezembro de 1997, é um dos pilares mais sólidos que temos para dar base à uma reflexão sobre a história do povo brasileiro / Reprodução
Um dos maiores discos da música brasileira está completando 20 anos esse mês: "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais MC’s.
O quarto álbum dos caras. Ano de 1997. FHC na presidência do país. Ainda não havia metrô no Capão Redondo e o Cemitério São Luiz ainda era o cemitério com o maior número de jovens negros enterrados do mundo.
Sobrevivendo no Inferno não só foi um marco em termos estéticos e técnicos para o RAP nacional, mas foi e é um marco para compreender o Brasil. 
Eu tinha sete para oito anos. Mano Brown tinha 27 anos, a idade que tenho hoje.
Meu tio comprou o CD pirata, junto com o primeiro do Exaltasamba, e esses foram os CDs que mais ouvi no verão de 1998. Talvez tenha sido o meu primeiro contato com os Racionais, com o RAP. 
Minha memória é de um monte de meninos correndo atrás de bola na rua com um verso constante sendo repetido o tempo todo “dim dim dom, o RAP é o som”. E isso não apenas me marcou, mas marcou toda uma geração de jovens e adultos que entenderam, nesse disco, que os Racionais MC’s, desde 1989, tinham uma missão e não iam parar.
Por que esse disco é tão importante?
Simplesmente porque, até então, foi o disco que mais e melhor representou a experiência social, racial e emocional do jovem negro periférico. A profundidade e reflexão sobre a subjetividade, angústias, anseios, medos e desejos de um jovem negro, que ressoava com milhões de outros jovens negros no Brasil todo, nunca havia sido abordada de maneira tão poética e verossimilhante.
Há uma expressiva mudança sonora no disco, em relação aos outros trabalhos do grupo. É um disco com mais swing, menos mecânico, menos influenciado pelos grupos de RAP estadunidenses e pelo discurso pastoril de Martin Luther King e Malcon X, onde o discurso é imperativo: "Hey, faça isso. Não faça isso.".
No lugar disso, surgem outras reflexões mais existenciais sobre as escolhas feitas, sobre o futuro, sobre o próprio conflito ideológico do jovem politizado:

Eu já não sei distinguir quem tá errado. Sei lá, minha ideologia enfraqueceu. Preto, branco, polícia, ladrão ou eu, quem é mais filha da puta? Eu não sei (Formula Mágica da Paz).
Os Racionais estão muito mais conectados às suas referências locais e isso se reflete até na escolha das palavras, na dicção. As palavras já não precisam ser pronunciadas com todas as vogais perfeitas, por exemplo. As músicas são cantadas em um tom muito mais coloquial, com mais gírias, quer dizer, dialeto. 
É um disco com uma carga muito pesada, carregado de signos religiosos, tanto do cristianismo quanto da fé de matriz africana, o Candomblé e a Umbanda. 
A capa do disco é uma cruz de estilo gótico com o Salmo 23, porém, a primeira palavra do disco é Ogun Iê, saudação a Ogun, Orixá do candomblé e da umbanda, sincretizado com a santidade de São Jorge do catolicismo.
Em um show neste ano, Brown explica que essa influência religiosa, católica, gótica, veio da influência de rappers norte-americanos de Los Angeles, de imigrantes mexicanos e caribenhos, por exemplo, que demonstravam sua ancestralidade em suas músicas. 
O disco começa com a música Jorge de Capadócia de Jorge Ben, como se fosse, de fato, uma oração para o santo protetor ajudá-los a entrar em um campo de batalha. 
Brown reflete sobre o Gênesis e como o ser humano perverteu o que Deus criou e, após citar que apenas possui uma bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta, tenta sobreviver no Inferno.
Inferno esse narrado por Primo Preto, escancarando o violento abismo moral e social que reduz a vida do jovem negro a uma estatística, ao extermínio sistemático por via policial e estatal. Deixando bem claro que a vida do jovem negro em São Paulo é quase ou somente uma sobrevivência em meio a um holocausto urbano.

Minha intenção é ruim, esvazia o lugar
Assim, como um soco na cara, como uma bomba, começa o primeiro verso de Capítulo 4, Versículo 3.
O preto que cantava não tinha dó, não poupava palavras. O preto que cantava esses versos abriu um buraco enorme em relação a tudo que havia sido produzido em relação à cultura brasileira até então.
Nesse mesmo ano, Chico Buarque lançava "Carioca". Caetano Veloso lançava "Livro".
Apesar de serem grandes discos de dois grandes pensadores já muito reconhecidos da cultura nacional, "Sobrevivendo no Inferno" tem uma relevância astronomicamente maior do que as obras desses artistas consagrados da MPB. Carioca, apesar de se adensar na realidade e cotidiano do Rio de Janeiro, é extremamente superficial em relação ao relato sobre o cotidiano contado na própria voz dos Racionais MC’s.
Capítulo 4, Versículo 3, Estou Ouvindo Alguém me Chamar, Rapaz Comum, Periferia é Periferia, Mundo Mágico de OZ, Qual Mentira Vou Acreditar e Fórmula Mágica da Paz são músicas que criam atmosferas, cenários, sentimentos e cenas de riqueza profunda, jamais tratadas anterior ou posteriormente de forma equivalente.
Chamo atenção para Diário de Um Detento, que é a primeira música no cancioneiro brasileiro que também mais e melhor retrata a realidade de um dos fatos socioculturais mais comuns na formação desse país do que o café ou o açúcar, o encarceramento sistemático e violento do homem negro. Além disso, também expõe um dos fatos mais trágicos na história desse país: o Massacre do Carandiru, ocorrido em 1992.
Diário de um detento:
Essa música por si só já é um marco narrativo.
Racionais MC’s é um dos pilares mais sólidos que temos para dar base à uma reflexão sobre a história do povo brasileiro.
Pelo menos, no último século, consigo pensar em Racionais MC’s como parte de um processo iniciado pelos modernistas paulistas, Mario, Oswald de Andrade e Cia, na tentativa de criar, baseados na própria cultura e signos nacionais, uma identidade nacional, seguidos por uma gama de pensadores uspianos, como Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido, Caio Prado Júnior, Milton Santos e muitos outros outros que se debruçaram sobre as bases da cultura brasileira.
Estudiosos esses que influenciaram muitos artistas como, já citados, Chico Buarque, Caetano Veloso e toda Tropicália, movimento que utilizou de enorme bagagem intelectual, religiosa, e ,apoiado por uma crescente indústria radiofônica, consolidou, majoritariamente através da bossa nova, um uma imagem da cultura popular brasileira, por vezes, muito mais branca e fantasiosa.
E essa imagem, essa maneira que se havia consolidado o modo de pensar e cantar o Brasil foi quebrado (como reflete Chico Buarque sobre o fim da canção em entrevista em 2004) e ressignificado com a aparição desses quatro jovens pretos e pobres da Zona Sul e Norte de São Paulo.
“Sobrevivendo no Inferno” talvez tenha sido, por si só, mesmo antes do governo Lula, uma política de autoafirmação da população negra no Brasil, sistematicamente exterminada há séculos.
Cada letra desse álbum daria e já deu muitas teses.
Acho que me alonguei demais aqui.
*Victor Garofano é bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).
Edição: Vanessa Martina Silva

Gasolina sobe de novo. 30% em seis meses. E o silêncio dos “mileniuns”

Gasolina sobe de novo. 30% em seis meses. E o silêncio dos “mileniuns”

Aguarda-se, ansiosamente, que os integrantes do Instituto Millenium, thinktank da direita, promovam protestos contra os preços da gasolina que, com o aumento anunciado hoje, atingem 30% desde julho.
Dez vezes mais que a inflação do ano inteiro.
O Millenium, como alguns devem recordar, promovia aqueles “dias da liberdade do imposto”, nos quais alguns postos iam parar no Jornal Nacional, com os motoristas abastecendo pela metade do preço e prguejando contra o governo Dilma.
Agora, com o reajuste de reveillon, os preços aqui no Rio vão bater perto de R$ 5, pois já estavam, segundo a ANP, em R$ 4,54, na média, na semana anterior ao Natal, conforme registra O Globo.
Em dezembro de 2014, para grande  escândalo da mídia ela subiu 3% e chegou a R$ 3,50 nos postos mais caros da Zona Sul, onde agora está até por R$ 4,90, antes deste aumento. 40% a mais, no preço do mesmo local.
E o preço do petróleo, na época, era de 110 dólares por barril, enquanto agora anda rondando os 60 dólares.
Mas não há indignação, não há reportagens escandalosas, não há entrevistados vocife