Segurança alimentar está sob risco de retrocesso no governo Bolsonaro
Reportagem de Karina Gomes na Deutsche-Welle Brasil.
“Quem tem fome tem pressa.” Com a frase simbólica, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, liderou em 1992 o Movimento pela Ética na Política. Era um clamor de organizações da sociedade civil contra a corrupção numa época em que mais de 32 milhões de brasileiros passavam fome no país. A intensa mobilização articulada durante o governo de Itamar Franco resultou na criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto pelo presidente Jair Bolsonaro no seu primeiro dia no Planalto.
O órgão consultivo era diretamente ligado à Presidência da República e formado por dois terços de representantes de organizações da sociedade civil. As políticas originadas no Consea, com a participação democrática e voluntária dos membros, tiveram um papel-chave para tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU, em 2014, e tornaram o órgão uma referência internacional.
“De onde o Betinho estiver, ele está realmente desesperado com a situação que estamos passando. Começamos 2019 praticamente certos de que entraremos de novo no Mapa da Fome da ONU ou estaremos muito próximos de voltar, e é exatamente neste ano que se extingue o Consea”, afirma Kiko Afonso, coordenador da ONG Ação da Cidadania, organização fundada por Betinho e que trabalha por políticas públicas contra a fome e a miséria.
“É um surrealismo que só o Brasil consegue produzir. O governo olhar para a extinção do conselho como algo positivo é algo incompreensível”, lamenta.
A Medida Provisória 870∕2019, a primeira assinada por Bolsonaro, alterou as disposições da Lei Orgânica de Segurança Alimentar (Losan), de 2006, que tem o objetivo de assegurar o direito humano à alimentação adequada. O governo extinguiu as atribuições do Consea e também revogou os pontos sobre a composição do conselho.
As diretrizes e programas sobre segurança alimentar e nutricional estão agora vinculadas ao Ministério da Cidadania. Não se sabe se a sociedade civil ainda terá voz nas políticas de segurança alimentar.
“O Consea deixa de ser o coração da Presidência da República, como um órgão estruturante, e passa a ser apenas um apêndice das políticas públicas do governo”, explica Larissa Mies Bobardi, professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP) . “Isso é uma grande perda.”
A ONG Ação da Cidadania publicou uma nota de protesto ao governo. “Na prática, o Consea está sendo extinto. Funcionários já estão sendo informados de que serão realocados para outras áreas. Há um desmonte”, diz Afonso. “Ninguém foi informado sobre isso. Queremos abrir um canal de diálogo com o governo para a volta do Consea. Calados não podemos ficar diante dessa arbitrariedade.”
Com o aumento dos índices de desemprego e miséria no país, é dado como praticamente certo que o Brasil voltará em 2019 à lista de países onde a fome é alarmante no mundo. Dados divulgados pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em setembro do ano passado mostram que o combate à fome no Brasil se estagnou. Em 2017, mais de 5 milhões de brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar.
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