quarta-feira, 4 de maio de 2016

Um golpe dos donos de escravos no Brasil?



Um golpe dos donos de escravos no Brasil?

Greg Grandin

Entre os opositores da combatida - e ameaçada de perder o cargo - presidente do Brasil, Dilma Rousseff, existe um grupo com interesses comuns que se pensava haver perdido seu poder político há cerca de um século: os donos de escravos. Há alguns dias um artigo no The New York Times, que documentou os muitos crimes dos políticos envolvidos no processo de impeachment, disse o seguinte acerca de Beto Mansur, um ardoroso deputado em sua oposição ao Partido dos Trabalhadores : “Ele é acusado de manter 46 trabalhadores em suas fazendas de soja no Estado de Goiás em condições tão deploráveis que os investigadores disseram serem eles tratados como escravos modernos.”

A  escravidão não é, claro, o principal eixo de conflito entre o governo do PT e seus opositores. Outros – incluindo Mark Weisbrot, Glenn Greenwald, David Miranda, Andrew Fishman, Gianpaolo Baiocchi, Ben Norton e Dave Zirin – documentaram os muitos e diferentes interesses de classe e de status que se aliaram, usando o bordão da “anti-corrupção” tanto para desviar a atenção de sua própria venalidade como para começar a reversão das políticas levemente redistribucionistas do PT, que vem governando o Brasil desde 2003 .

Quando se menciona a escravidão, isto é geralmente feito como uma herança. O Brasil importou mais africanos escravizados que qualquer outra nação americana, e foi o último país do hemisfério a abolir a instituição, em 1888. Como é o caso das nações historicamente fundadas sobre o colonialismo e a escravidão, a política econômica federal do PT, orientada para o alívio da pobreza e redução da desigualdade, tem um viés racial. Isto era verdade em 1964 quando um governo levemente reformista foi derrubado em um golpe (como minha colega da MYU, Barbara Weinstein, escreve em seu maravilhoso novo livro The Color of Modernity: São Paolo and the Making of Race and Nation in Brazil - A Cor da Modernidade: São Paulo e a Formação da Raça e da Nação no Brasil). E é verdade hoje, 56 anos depois.

Mas, na verdade, a escravidão ainda existe no Brasil, na Amazônia (como escrevi em Fordlândia, com base nesta investigação da Bloomberg), e cada vez mais nas plantações de soja do interior. A escravidão moderna é, como um funcionário do Ministério do Trabalho o declara, uma "parte essencial da economia globalizada, orientada para a exportação, sobre a qual o Brasil prospera." Os trabalhadores são coagidos quer por meios violentos, quer por força de seus débitos a fornecer trabalho sem compensação e forçados a suportar as condições mais desumanas. Eles forjam ferro-gusa para alimentar a indústria de aço do Brasil, colhem soja, derrubam florestas tropicais, cortam cana-de-açúcar e servem como empregadas domésticas.

Uma das primeiras coisas que o governo do PT fez quando assumiu em 2003, depois que Luiz Inácio Lula da Silva alcançou a presidência, foi criar uma “lista suja” de “centenas empresas e empregadores individuais que foram investigados por fiscais trabalhistas e descobertos como usuários de escravos. Os empregadores nesta lista estão impedidos de receber empréstimos do governo e têm restrições colocadas sobre as vendas de seus produtos." O PT também intensificou os esforços para "emancipar "os escravos modernos:" Em 2003, um plano nacional de erradicação do trabalho escravo atualizou a legislação e introduziu um sistema de procuradores e juízes do trabalho. "Entre 2003 e 2015," o governo resgatou 44.483 trabalhadores do que chama "condições análogas à escravidão."

A "lista suja", juntamente com outras iniciativas abolicionistas do PT, provocou uma reação por parte daqueles interesses econômicos que lucram com a escravidão moderna. No final de 2014, a Suprema Corte do país (STF), que tem apoiado decididamente os que desejam o impeachment da Dilma, emitiu uma liminar contra o Ministério do Trabalho para que este suspendesse o lançamento de uma nova lista de donos de escravos. A decisão foi tomada para favorecer a associação dos proprietários e construtoras do Brasil. E muitos desses interesses, incluindo políticos ruralistas como Beto Mansur, encontram-se entre aqueles que pressionam para a queda de Dilma e a destruição do PT.

O principal grupo de lobby da agroindústria brasileira, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária, que apoia a derrubada de Dilma, tem se oposto à "lista suja" há anos. Uma investigação feita pelo Repórter Brasil, uma ONG que combate o trabalho forçado, revela que os partidos políticos por trás do impeachment (incluindo o Partido do Movimento Democrático do Brasil, o partido de Eduardo Cunha, o líder do Congresso da Câmara dos Deputados do Brasil e que organizou o impeachment) são aqueles que receberam a maior parte das doações políticas de empresas que lucraram com o trabalho escravo.

Os lucros produzidos pelo trabalho escravo no Brasil são relativamente insignificantes se comparados à riqueza dos principais promotores da crise política: as elites ligadas às finanças, à energia, à mídia e à industria. Mas a luta em torno da escravidão no Brasil revela o que em última análise está em jogo no conflito. Muitos dos políticos agora que procuram derrubar Dilma ficaram muito ricos ou representam outros que se enriqueceram exponencialmente durante os bons tempos da primeira década dos mandatos do PT, aproximadamente de 2003 a 2013, durante os dois mandatos de Lula e o primeiro da Dilma. No entanto, eles jamais aceitaram a ideia de que deveriam subordinar seus interesses particulares ao projeto maior do PT, a despeito do fato de que foi este projeto – incluindo uma leve redistribuição – que impulsionou o consumo interno e os tornou espetacularmente ricos.

A exportação de soja explodiu sob o governo do PT, dando origem a toda uma classe de barões no interior, alguns dos quais, incluindo homens como Mansur detêm assentos no Congresso. E apesar dos esforços agressivos do PT para erradicar a escravidão moderna, o trabalho forçado na verdade aumentou sob seu governo, na medida em que cresceram as indústrias que utilizaram trabalho forçado, entre as quais eles a da soja, a do etanol e a do açúcar.

A escravidão, conquanto relativamente pequena frente ao quadro maior do mercado de trabalho do Brasil, representa a fina borda de um princípio mais amplo: o direito das elites brasileiras de explorarem os seres humanos e a natureza tão implacavelmente quanto o desejarem. Como já está amplamente divulgado, a presidente eleita duas vezes no Brasil está hoje prestes a ser afastada do cargo, o que pode acontecer logo na primeira semana de maio. Sua destituição pode ser chamada de muitas coisas, entre elas um golpe da mídia e um golpe constitucional. Pelo menos em parte, ela é também um golpe dos donos de escravos.

* Publicado originalmente na revista The Nation, a mais antiga dos EUA, fundada em 1865, e uma das mais bem conceituadas por sua seriedade.

É na fraqueza alheia que o covarde usa seu punhal



É na fraqueza alheia que o covarde usa seu punhal

FERNANDO BRITO

Assim como a coragem de um homem não é determinada apenas pelo que faz, mas pelo momento em que o faz, também é assim que se lhe mede a covardia e o prevalecimento.

Rodrigo Janot, que é senhor dos dias, semanas, meses e até, como no caso de Aécio Neves, anos que leva a apresentar ao STF seus pedidos de investigação, escolheu estes dias, em que – na prática, ainda que não na teoria – se julga o afastamento da presidente Dilma Rousseff, tecnicamente por um “crime” que, além de incrível” nada tem a ver com corrupção, Petrobras ou eleição, para enviar ao STF o “listão” que junta gatunos àqueles que teriam “o domínio do fato”, isto é, sem o conhecimento dos quais as falcatruas não poderiam ter ocorrido.

E nesta, omissiva e covardemente, suprime o nome de Dilma, que guarda para incluir dentro de uns dez ou doze dias, quando ela estiver afastada da presidência, o que não tem o menor sentido técnico, pois era ela a presidente do Conselho de Administração da empresa.

Justamente para não contaminar uma coisa com outra, até porque são casos que se arrastam há meses, porque não espera. Porque, na Justiça brasileira, esperar ou não esperar virou parte do jogo político. O STF espera há quatro meses para decidir se afasta Cunha, porque desejou dar a ele poder para derrubar Dilma. Rodrigo Janot não espera justamente pelo mesmo: para enterrá-la.

Janot sabe que, fazendo isso, fornece cal para a pá da mídia não apenas acabar com qualquer esperança de que se pudesse ter uma decisão equilibrada no Senado como, também, que ajuda a reduzir a onda de indignação nacional que se seguirá.

Interfere, assim, num julgamento e no desfecho de uma crise político-institucional com uma ação que, do ponto de vista legal – sem sequer discutir seu mérito ou demérito- nada tem juridicamente a ver com ela.

Oportunista é palavra fraca demais para definir tal gesto.

Sórdido e covarde são palavras que vestem melhor este comportamento.

Engana-se quem acha que a tomada do poder será incruenta e voltará a fluir o jogo de “vossa excelência prá lá. data vênia pra cá”.

Vai acontecer uma guerra de extermínio, onde o “republicanismo” do Governo Dilma, tratando as instituições como se fossem dignas de respeito e zelosas de seu equilíbrio parecerá, na melhor e mais gentil das hipóteses, como ingenuidade infantil.

Fernando Henrique Cardoso não foi para o inferno por ter imposto o engavetador Brindeiro na PGR. Ao contrário, escapou dele.

Na semana seguinte à deposição de Dilma será Lula preso, não duvidem.

É bom que se diga isso ao povo.

Para que o povo entenda que prender o Lula é peça fundamental para tudo o que vão lhe fazer em matéria de arrocho, de maldade, de saque a seus direitos.

Não quer dizer que não tenham existido falcatruas, mas falcatruas sempre existiram e qualquer um que, como eu, já as veja há mais de meio século, nunca vieram ao caso, menos ainda a este ponto, mesmo quando todas aquelas excelências já eram juízes e promotores. Procure um político punido por Sérgio Moro no imenso desvio do Banestado e confira se não é assim.

Mas desta vez é preciso levar as coisas até aí, porque é preciso preparar o genocídio trabalhista e social que virá por aí…

É golpe, sim



É golpe, sim
Roberto Amaral
A quais razões terá atendido o ministro Celso de Mello quando decidiu ingressar de mala e cuia no grupo dos colegas boquirrotos, pronunciando-se sobre o mérito de matéria que brevemente, sabe ele e sabe todo o mundo, deverá julgar?
Pois o ministro procurou as câmeras de tevê do complexo golpista para, reforçando-o, declarar que o golpe parlamentar, que atinge a presidente Dilma Rousseff na plenitude de seu mandato, não era golpe, e por isso ganhou as manchetes que os jornais careciam para gritar a favor do impeachment sabidamente ilegal, escandalosamente à míngua de fundamentação constitucional: a inexistência, cobrada pelo art. 85 da Constituição Federal, de crime de responsabilidade.
E o ministro sabe disso. Mas o STF é servidor do formalismo (e do poder) com tal convicção religiosa que, aos tempos da ditadura, da qual foi parceiro, não tremia em suas bases jurídicas ao negar sistematicamente habeas corpus a perseguidos políticos, invocando a vigência dos atos institucionais.
De todos os modos, sua declaração deixou ainda mais exposta a participação do STF na conspiração golpista de nossos dias. Diz o decano e alguns colegas de baixa nomeada, antecipando voto em provável demanda no STF, que o golpe foi formalmente legal, o que atestaria a inexistência de golpe. Um sofisma. Ora, a forma não é o conteúdo e o golpe não está na forma, mas na sua essência.
O ministro não explica, porém, porque o STF não julga o mérito da liminar esdrúxula de seu colega Gilmar Mendes, que proíbe a presidente da República de nomear ministros e igualmente não explica porque não julga o pedido de afastamento do presidente da Câmara Federal, o réu Eduardo Cunha, peça essencial do golpe e por isso preservada de julgamento até aqui.
Seu pedido de afastamento da presidência da Câmara, que conspurca, foi apresentado pelo procurador-geral da República no dia 16 de dezembro de 2015 e consta de 183 páginas e nove anexos, e seu objetivo, está lá escrito, é “proteger a Lava Jato e a dignidade do Parlamento”.
O correntista suíço, ainda deputado, é acusado, na mesma peça, de “destruir provas, pressionar e intimidar vítimas” razões que têm levado muitos acusados às grades da PF em Curitiba. Mas ele permanece livre e poderoso porque o STF não julga o pedido do procurador.
Estimam observadores que o STF “lavou as mãos para não intervir na domesticidade do Legislativo”. Ora, esperar pela ação da Câmara, controlada pelo réu, é contribuir para a impunidade. Não julgar, é uma forma de julgar. Toda e qualquer demora do STF será registrada pela História como conivência, pois se sabe que há um acordo visando a proteger Cunha: PMDB/PSDB/DEM e penduricalhos têm dívida de gratidão com quem lhes deu o poder negado nas urnas.
O parlamentarismo e o presidencialismo conhecem fórmulas distintas de substituição do chefe do governo. Nos regimes de gabinete há o voto de desconfiança que destitui o primeiro-ministro (e o gabinete) sempre que este se encontre em minoria parlamentar. É ato tipicamente político.
No parlamentarismo, o presidente é geralmente eleito pelo voto popular (França, Portugal, Itália, por exemplo) e cabem-lhe simplesmente as funções de chefe de Estado e em alguns casos o comando da política externa. Nas monarquias parlamentares (Inglaterra, por exemplo), o “rei reina, mas não governa”. As funções de governo e de Chefe de Estado são atribuições do primeiro-ministro, eleito pelo Parlamento, expressão do poder popular.
No presidencialismo há apenas duas formas de mudança do presidente, a clássica, do golpe de Estado clássico (com violência ou não) e a constitucional, via impeachment, nas hipóteses previstas pela constituição. Quando esse se processa sem o atendimento à prescrição constitucional, volta-se para a primeira hipótese e para a classificação de golpe de Estado. É o caso atual.
Dilma é vítima de golpe de Estado e é irrelevante a afirmativa de que a figura do impeachment está prevista na Constituição Federal e é igualmente irrelevante o fato de o STF haver disciplinado o rito de seu julgamento nas duas casas do Congresso. O que se discute não é a forma. Mas a inaplicabilidade do remédio extremo na ausência de crime de responsabilidade, nos termos, repito, do art. 85 da Constituição Federal.
A acusação à presidente – na peça vestibular, na Comissão, no Plenário da Câmara, na Comissão do Senado – não conseguiu indicar uma só hipótese de crime de responsabilidade, e não foi por deslize administrativo que ela está sendo punida, mas por haver perdido maioria no Congresso e isso é uma violência inominável no leito do presidencialismo.
Trata-se, pois, de ato político, estritamente político-partidário, aliás revelado à saciedade nos votos esdrúxulos do 17 de abril, um infindável desenrolar de queixas, queixumes e mágoas ao lado de um vazio de acusações objetivas. Eis o golpe e, para essa configuração, é irrelevante se o agente foi o Congresso ou um destacamento militar.
Os parlamentos e os judiciários cumprem o papel que antes era atribuído às Forças Amadas, no caso vertente, animados pela coalizão formada pela mídia, o grande capital, os partidos conservadores e o complexo Judiciário-Ministério Público-Polícia Federal.
Foi assim com Manuel Zelaya (Honduras, 2009), cassado pelo Judiciário; com Fernando Lugo (Paraguai, 2012), cassado pelo Congresso. Nada de novo mesmo entre nós. Esse golpismo soft, que os alemães chamam de kalter Putsch (golpe frio) é conhecido de nossa história política, desde o Império.
Registra-se o contragolpe de Lott,no 11 de novembro de 1955, quando o Congresso Nacional, em uma assentada, declarou o presidente (Café Filho) e o vice-presidente (Carlos Luz) incapazes de exercer a presidência da República, depondo-os. Golpe que posteriormente seria sancionado pelo STF.
Foi nosso Congresso que, sem vícios formais, implantou o parlamentarismo em 1961, um efetivo golpe contra os poderes de João Goulart, eleito para um mandato presidencialista. Foi o presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, que declarou vaga a presidência da República, quando o presidente João Goulart estava em território nacional, e assim e por isso deu posse na presidência ao deputado Ranieri Mazzili, presidente da Câmara dos Deputados.
Era a forma de dar passagem legal ao golpe militar de 1964. Esse mesmo Congresso pouco depois elegeria o primeiro ditador, o general Castello Branco, e a seguir todos os generais-presidentes-ditadores previamente eleitos pelo generalato para a chancela de um Congresso de cócoras, mas funcionando, porque de seu funcionamento precisava a ditadura para dizer que formalmente vivíamos num Estado formalmente constitucional!
As instituições sempre a serviço do príncipe do momento.
O fruto do golpe contra Dilma será um governo sem respaldo na soberania popular, mácula incurável. Um governo derivado de um esbulho; carente, de toda e qualquer sorte de legitimidade, à míngua de qualquer respaldo ético, pois arquitetado na traição e operado por um deputado-réu, senhor de baraço e cutelo de um colegiado sobre o qual pesam acusações as mais graves.
O fruto desse golpe será um governo unilateralmente pró-mercado, pró-negócios, chefiado por um político menor, sem respaldo popular. Seu “vice”, objeto de inumeráveis inquéritos no STF responde a processo no Conselho de Ética da Câmara.
A História terminou?
Independentemente do desfecho imediato da crise política, permanecerá intocada a fratura exposta da crise de legitimidade que corrói os poderes da República, e ameaça a democracia representativa, qual a praticamos, reclamando a reorganização política do País. O Estado de hoje não mais atende às necessidades de nosso desenvolvimento e da complexidade que caracteriza a mudança social em andamento.
A crise política é o anúncio de um fim de ciclo e indica, no horizonte, o novo ciclo que se está costurando nos escaninhos insondáveis do processo histórico. Aos movimentos sociais cabe preparar-se para uma longa e dura jornada de lutas em defesa dos direitos trabalhistas e sociais e da soberania nacional. Afinal, o que está em jogo é o Brasil das próximas décadas.
Fonte: Blog do Roberto Amaral – 04/05/2016