Um golpe dos
donos de escravos no Brasil?
Greg Grandin
Entre os opositores da combatida - e
ameaçada de perder o cargo - presidente do Brasil, Dilma Rousseff, existe um
grupo com interesses comuns que se pensava haver perdido seu poder político há cerca
de um século: os donos de escravos. Há alguns dias um artigo no The New York
Times, que documentou os muitos crimes dos políticos envolvidos no processo de
impeachment, disse o seguinte acerca de Beto Mansur, um ardoroso deputado em
sua oposição ao Partido dos Trabalhadores : “Ele é acusado de manter 46
trabalhadores em suas fazendas de soja no Estado de Goiás em condições tão
deploráveis que os investigadores disseram serem eles tratados como escravos
modernos.”
A
escravidão não é, claro, o principal eixo de conflito entre o governo do
PT e seus opositores. Outros – incluindo Mark Weisbrot, Glenn Greenwald, David
Miranda, Andrew Fishman, Gianpaolo Baiocchi, Ben Norton e Dave Zirin –
documentaram os muitos e diferentes interesses de classe e de status que se
aliaram, usando o bordão da “anti-corrupção” tanto para desviar a atenção de
sua própria venalidade como para começar a reversão das políticas levemente
redistribucionistas do PT, que vem governando o Brasil desde 2003 .
Quando se menciona a escravidão, isto é
geralmente feito como uma herança. O Brasil importou mais africanos
escravizados que qualquer outra nação americana, e foi o último país do
hemisfério a abolir a instituição, em 1888. Como é o caso das nações
historicamente fundadas sobre o colonialismo e a escravidão, a política
econômica federal do PT, orientada para o alívio da pobreza e redução da
desigualdade, tem um viés racial. Isto era verdade em 1964 quando um governo
levemente reformista foi derrubado em um golpe (como minha colega da MYU,
Barbara Weinstein, escreve em seu maravilhoso novo livro The Color of
Modernity: São Paolo and the Making of Race and Nation in Brazil - A Cor da
Modernidade: São Paulo e a Formação da Raça e da Nação no Brasil). E é verdade
hoje, 56 anos depois.
Mas, na verdade, a escravidão ainda
existe no Brasil, na Amazônia (como escrevi em Fordlândia, com base nesta
investigação da Bloomberg), e cada vez mais nas plantações de soja do interior.
A escravidão moderna é, como um funcionário do Ministério do Trabalho o
declara, uma "parte essencial da economia globalizada, orientada para a
exportação, sobre a qual o Brasil prospera." Os trabalhadores são coagidos
quer por meios violentos, quer por força de seus débitos a fornecer trabalho
sem compensação e forçados a suportar as condições mais desumanas. Eles forjam
ferro-gusa para alimentar a indústria de aço do Brasil, colhem soja, derrubam
florestas tropicais, cortam cana-de-açúcar e servem como empregadas domésticas.
Uma das primeiras coisas que o governo
do PT fez quando assumiu em 2003, depois que Luiz Inácio Lula da Silva alcançou
a presidência, foi criar uma “lista suja” de “centenas empresas e empregadores
individuais que foram investigados por fiscais trabalhistas e descobertos como
usuários de escravos. Os empregadores nesta lista estão impedidos de receber
empréstimos do governo e têm restrições colocadas sobre as vendas de seus
produtos." O PT também intensificou os esforços para "emancipar
"os escravos modernos:" Em 2003, um plano nacional de erradicação do
trabalho escravo atualizou a legislação e introduziu um sistema de procuradores
e juízes do trabalho. "Entre 2003 e 2015," o governo resgatou 44.483
trabalhadores do que chama "condições análogas à escravidão."
A "lista suja", juntamente com
outras iniciativas abolicionistas do PT, provocou uma reação por parte daqueles
interesses econômicos que lucram com a escravidão moderna. No final de 2014, a
Suprema Corte do país (STF), que tem apoiado decididamente os que desejam o
impeachment da Dilma, emitiu uma liminar contra o Ministério do Trabalho para
que este suspendesse o lançamento de uma nova lista de donos de escravos. A
decisão foi tomada para favorecer a associação dos proprietários e construtoras
do Brasil. E muitos desses interesses, incluindo políticos ruralistas como Beto
Mansur, encontram-se entre aqueles que pressionam para a queda de Dilma e a
destruição do PT.
O principal grupo de lobby da agroindústria
brasileira, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária, que apoia a
derrubada de Dilma, tem se oposto à "lista suja" há anos. Uma
investigação feita pelo Repórter Brasil, uma ONG que combate o trabalho
forçado, revela que os partidos políticos por trás do impeachment (incluindo o
Partido do Movimento Democrático do Brasil, o partido de Eduardo Cunha, o líder
do Congresso da Câmara dos Deputados do Brasil e que organizou o impeachment)
são aqueles que receberam a maior parte das doações políticas de empresas que
lucraram com o trabalho escravo.
Os lucros produzidos pelo trabalho
escravo no Brasil são relativamente insignificantes se comparados à riqueza dos
principais promotores da crise política: as elites ligadas às finanças, à
energia, à mídia e à industria. Mas a luta em torno da escravidão no Brasil
revela o que em última análise está em jogo no conflito. Muitos dos políticos
agora que procuram derrubar Dilma ficaram muito ricos ou representam outros que
se enriqueceram exponencialmente durante os bons tempos da primeira década dos
mandatos do PT, aproximadamente de 2003 a 2013, durante os dois mandatos de
Lula e o primeiro da Dilma. No entanto, eles jamais aceitaram a ideia de que
deveriam subordinar seus interesses particulares ao projeto maior do PT, a
despeito do fato de que foi este projeto – incluindo uma leve redistribuição –
que impulsionou o consumo interno e os tornou espetacularmente ricos.
A exportação de soja explodiu sob o
governo do PT, dando origem a toda uma classe de barões no interior, alguns dos
quais, incluindo homens como Mansur detêm assentos no Congresso. E apesar dos
esforços agressivos do PT para erradicar a escravidão moderna, o trabalho
forçado na verdade aumentou sob seu governo, na medida em que cresceram as
indústrias que utilizaram trabalho forçado, entre as quais eles a da soja, a do
etanol e a do açúcar.
A escravidão, conquanto relativamente
pequena frente ao quadro maior do mercado de trabalho do Brasil, representa a
fina borda de um princípio mais amplo: o direito das elites brasileiras de
explorarem os seres humanos e a natureza tão implacavelmente quanto o
desejarem. Como já está amplamente divulgado, a presidente eleita duas vezes no
Brasil está hoje prestes a ser afastada do cargo, o que pode acontecer logo na
primeira semana de maio. Sua destituição pode ser chamada de muitas coisas,
entre elas um golpe da mídia e um golpe constitucional. Pelo menos em parte,
ela é também um golpe dos donos de escravos.
* Publicado originalmente na revista The
Nation, a mais antiga dos EUA, fundada em 1865, e uma das mais bem conceituadas
por sua seriedade.