terça-feira, 10 de maio de 2016

180 dias que abalarão o Brasil





10/05/2016 00:00 - Copyleft

180 dias que abalarão o Brasil

O governo legítimo da Presidenta Dilma deve organizar uma agenda de prioridades para a resistência, traduzindo-a em um calendário de 180 dias de atividades.

por: Saul Leblon

Lula Marques
O angu golpista borbulha mas não dá ponto.

O alarido policial-midiático (uma extensão um do outro) difunde ilusões de consenso que embriagam o ambiente conservador.

A realidade do golpe, porém, é diferente da propaganda, como ficou nítido nesta 2ª feira, quando o novo presidente da Câmara anulou a sessão que votou o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. O apavoramento que o episódio gerou no golpismo evidencia o medo do que se seguiu: qualquer faísca de esperança levanta o país.

Rapidamente os vigilantes do golpe, tendo à frente as milícias do jornalismo embarcado, cuidaram de sufocar a transgressão ao enredo delicado.


Salvam-se as aparências, mas a inconsistência do angu piora com o aumento da temperatura. 

Caminha-se no chão mole de uma ruptura sem solidez, nem horizonte de futuro: um golpe que não se assume, mas que aos poucos é forçado a expor as garras de violência intrínsecas ao risco de se dissolver na contestação.

A impressionante convergência do que há de pior na sociedade –não estamos qualificando pessoas, mas interesses, diagnósticos, métodos, alinhamentos geopolíticos, padrões de civilidade, de jornalismo e, sobretudo, escolhas de desenvolvimento— leva alguns a confundir a borbulha do golpismo, a euforia, com hegemonia.

A aliança do baixo clero parlamentar com a plutocracia, da classe média fascistizada com o antipetismo histérico da mídia, bem como a do judiciário cúmplice com a toga acoelhada compõe, de fato, uma gordurosa coalizão da escória que avança para assaltar o poder no Brasil.

Daí a se confundir essa usurpação com o magnetismo que o uso da palavra hegemonia requer, vai uma grande diferença.

Hegemonia não significa apenas força, ainda que necessariamente a inclua.

Hegemonia implica, sobretudo, consentimento  --algo incompatível  com a natureza própria de um golpe.

Num caso, predomina a conspiração violenta; no outro, a capacidade de pactuar, de liderar, de arrebatar, de convencer, de arregimentar, enfim, de mobilizar corações e mentes para empreender o passo seguinte na vida de uma nação.

Quem o faria ? Temer?

Serra? Jucá...

...Janaína Paschoal?

O que esses timoneiros lograram de mais visível, com escoltas de nível equivalente na mídia e no judiciário, foi arquitetar o sequestro de um mandato portador de 54,5 milhões de votos.

O feito apoia-se em um massacre propagandístico só equivalente, ou superior, ao que antecedeu o golpe de 1964.

O que se conseguiu até agora foi gerar turbulência institucional, paralisia econômica, incerteza nos segmentos majoritários da sociedade, repulsa nas fileiras democráticas e apoio efetivo restrito a camadas conservadoras e na renda alta adestrada na crispação midiática.

Em uma sociedade trincada na vertical pelo esgotamento de um ciclo de expansão, essa dissolução apenas magnifica o desafio de se erguer linhas de passagem para um novo espaço de futuro.

O repertório que o golpe teima em enfiar goela abaixo da sociedade configura tudo menos a ‘ponte para o futuro’ que o publieditorial do jornalismo econômico acena para os mercados.

O que se preconiza, de fato, é  um  lacto purga em dose concentrada do arrocho neoliberal sistematicamente rejeitado pelas urnas em 2002, 2006, 2010 e 2014.

Esse é o embasamento histórico do golpe.

Se lograr êxito abrir-se-á uma temporada de 180 dias que abalarão o Brasil.

Um regime de exceção, dirigido por um agrupamento de interesses excludentes, tentará então  a temerária imposição ao país de protocolos e diretrizes não pactuados nas urnas, tampouco negociados em grandes mesas nacionais para as quais, inclusive, não dispõe de mandato e tampouco de mediadores reconhecidos. 

Escavar um fosso entre a representação política da sociedade e o poder de decisão sobre o destino do seu desenvolvimento é tudo o que a ganância cega das plutocracias pode almejar como êxito.

Isso dificilmente conseguirá prosperar em ambiente de vigência das liberdades democráticas.

Tampouco o sucesso nos seus próprios termos é plausível –ainda que a economia esteja no fundo do poço por conta, inclusive, de uma greve do capital golpista e alguma reação deva ocorrer.

Há inconsistências maiores, porém, que limitam o fôlego dessa empreitada.

Desdenhar dos partidos e entregar o destino da sociedade a uma lógica cega que se avoca autossuficiente e autorregulável, foi justamente o que se fez nas últimas décadas no mundo capitalista. 

O corolário desse voo cego foi a crise sistêmica de 2008, da qual a economia internacional está longe de haver superado. 

O golpe aposta sus fichas em ‘crescer para fora’  e ‘arrochar para dentro’  na crença em uma recuperação global da qual o próprio Fed duvida,  tendo renunciado a novas altas nas taxas de juros por isso, e a Europa, a cada dia, tem menos razões para acreditar.

Não há demanda no mundo depois de 40 anos de dilapidação neoliberal de direitos sociais e trabalhistas e do esgoelamento fiscal dos Estados nacionais, que abdicaram de arrecadar para se endividar. Hoje não dispõem de fôlego  nem de ferramentas (banco públicos de desenvolvimento, por exemplo) para investir e arrastar o capital privado, viciado na cocaína rentista.

A ilusão de que  replicar a receita fracassada da ortodoxia será suficiente para fazer decolar a economia brasileira explica o desdém com a crise de  hegemonia que move o golpe e, paradoxalmente, irá paralisa-lo logo em seguida.

A solução rasa e repetitiva do arrocho fiscal (corta, corta, corta) e monetário (juro alto) reflete um campo de visão de classe, endogenamente estreito.

O Brasil plano, feito de desafios monocausais, infantilmente atribuídos ao ‘lulopetismo’ pelo doutrina colegial do jornalismo conservador, simplesmente não existe. 

O relevo econômico do país inclui-se entre as encostas mais acidentadas do capitalismo mundial, graças à tradição secular de predadores, ora abrigada sob as asas do timoneiro Temer.

O que se desenha para os próximos 180 dias, assim, é um condensado acerto de contas de velhas e novas pendências trazidas de uma espiral histórica de confronto e crispação que se acomodou brevemente no ciclo de expansão recente (2004/2012), mas cuja recidiva explodiu com octanagem redobrada pela perspectiva de se quebrar o ciclo de treze anos de governos progressistas no país.

Com um agravante.

A paralisia econômica fundiu-se ao  enrijecimento de um sistema político incapaz de prover as condições, canais e  instrumentos requeridos à repactuação do  passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.

Herdado do ciclo da redemocratização, o sistema político do país reflete uma transição tutelada que inoculou no DNA da sociedade a incapacidade para renovar-se. 

O insulamento de uma representação política tragada pelo círculo vicioso dos interesses autorreferentes, culminou, assim, com a captura da nação por uma escória parlamentar liderada por um maestro da vigarice.

Desse ovo nasceu a serpente que agora almeja usurpar o mandato de uma mulher honesta em benefício de projetos e agentes que nunca dispuseram de voto para derrota-la.

O único antídoto a essa mistura de esgotamento e desespero conservador é a rua.

Sem votos, o chão firme dos interesses conservadores apoia-se  em duas hipertrofias –a do judiciário e a da mídia.

Ambas são   insustentáveis se a sociedade se erguer e se mobilizar, não aquecida por um incêndio passageiro.

Mas organizada de forma propositiva e assertiva na definição do que se aspira para a cidadania e a economia, com base em uma tríade:  redemocratização, desenvolvimento e  repactuação nacional.

O governo legítimo –o da Presidenta Dilma—deve organizar uma agenda de resistência que contemple essas prioridades, traduzindo-a em um calendário de 180 dias de atividades. 

Incluem-se aí debates, fóruns, mesas de negociação e conferências regionais por todo o Brasil , até desembocar no final do processo em uma gigantesca Conferência Nacional da Democracia e do Desenvolvimento, para sacramentar uma frente política e um Plano de Ação –para voltar ao governo ou para concorrer em 2018. 

Portanto, não se trata apenas de derrotar um golpe manco.

Mas de faze-lo desbravando um novo caminho, com uma nova frente de forças, capaz de empolgar o país com as possibilidades renovadas para o seu desenvolvimento, graças ao poder revigorado da democracia de dizer sim e não ao mercado.  

Isso é o que pode fazer dos próximos 180 dias a sepultura do golpe. E mais que isso:  o renascimento da esperança no país que poderíamos ser,  mas que ainda não somos.

A ver.

Fonte: Carta Maior

Fibrilação democrática: sobre o impeachment e o futuro que se descortina

Fibrilação democrática: sobre o impeachment e o futuro que se descortina

Os democratas não podem jamais tornar possível a maturação do ovo desta serpente cujo veneno provocaria a fibrilação do coração de nossa democracia.


José Carlos Garcia (1); Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (2)
roberto stuckert filho
A Folha de São Paulo publicou, em seu caderno Ilustríssima de 24 de abril, artigo do antropólogo Luiz Eduardo Soares intitulado Respiração artificial: Sobre o impeachment e suas implicações, no qual o autor faz uma crítica sobre o uso da expressão “golpe” para definir a forma concreta de condução do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, e procura fixar as bases (ou manifestar o desejo) de um processo de entendimento nacional. Dada a evidente finalidade daquele texto, hoje infelizmente rara, de buscar um campo de recomposição democrática que torne ainda viável a realização plena da política democrática na esfera pública, contendo os riscos de violências e de crescimento do fascismo social, cremos fundamental ingressar neste debate – com os mesmos objetivos, ainda que a partir de pontos de vista distintos.
 
Luiz Eduardo entende o que chama de “narrativa do golpe” como simplificadora e belicista, articulada a partir de intenções que secundarizam a qualificação dos fatos, tendendo ainda a gerar consequências extremamente negativas: se impeachment é golpe, como os membros da aliança anti-impeachment se relacionarão com as instituições que o legitimam – STF, MPF, Polícia Federal, Congresso Nacional, Forças Armadas, ou mesmo com a própria legalidade? Se golpe há, não haveria qualquer traço de legitimidade para o Vice-Presidente, apenas restando-lhe impor-se pela força bruta e pela impostura. E se o impeachment é um golpe, caberia às Forças Armadas agir em defesa da ordem constitucional, devendo a Presidente convocá-las e decretar o estado de sítio, prendendo os golpistas.
 
Como o ponto de partida de todo o seu raciocínio é a qualificação dos fatos, precisamos nos deter neste ponto. O impeachment, tal como encaminhado, é ou não um golpe? Para responder a esta questão, precisamos delimitá-la corretamente em relação ao debate nacional em curso: há absoluta clareza para todos os debatedores de boa fé de que o impeachment em abstrato não só não é golpe, como está expressamente previsto na Constituição. A discussão sobre golpe ou não golpe é, portanto, uma discussão sobre esta experiência histórica concreta de impeachment – ela reúne as condições constitucionais mínimas para ser sustentada dentro dos paradigmas constitucionais vigentes? Para uma resposta adequada precisamos compreender o que seja “golpe”. 
 
Ao contrário do que Luiz Eduardo Soares diz textualmente em seu artigo, “golpe de Estado” não é apenas uma categoria descritiva, mas um conceito, bastante bem sedimentado na Teoria Política. Suas origens históricas remontam à literatura política francesa, com a publicação, em 1639, da obraConsidérations politiques sur les coups d'État, de Gabriel Naudé, quando ainda diferia muito de seu uso contemporâneo. À época, o que Naudé entendia por “golpe de Estado” quase se confundia com “razões de Estado”, englobando até mesmo o massacre dos huguenotes na Noite de São Bartolomeu. Por outro lado, a análise clássica de Naudé implica a busca pela revelação das razões ocultas e dissimuladas do Príncipe em suas ações políticas excepcionais, fora do quadro do Direito e da Moral, por oposição a suas intenções manifestas. 

 
No Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio, Nicola Mateucci e Gianfranco Pasquino, de 1976, o verbete “golpe de Estado” discorre sobre sua história, origens e caracterização, ressaltando suas profundas modificações desde o início do uso da expressão, três séculos antes. Para Carlos Barbé, autor do verbete, em especial após o advento do constitucionalismo, a ênfase para a compreensão do conceito situa-se na referência “às mudanças no Governo feitas na base da violação da Constituição legal do Estado, normalmente de forma violenta, por parte dos próprios detentores do poder político”, resgatando mesmo a definição do Dicionário Larousse, que consagra a tradição francesa: o Golpe de Estado seria uma violação deliberada das formas constitucionais por um governo, uma assembleia ou um grupo de pessoas que detêm a autoridade.
 
A natureza violenta ou não do golpe como conceito prende-se à sua função como categoria descritiva da realidade e, portanto, à análise de sua casuística histórica. Como evidenciado, golpes são violações da Constituição do Estado “normalmente de forma violenta”, mas o uso da violência não é intrínseco ao conceito. Partindo do que então eram pesquisas recentes, Barbé afirmava que havia uma “proliferação de golpes, embora com características bem diferentes”. Às vésperas da publicação da primeira edição do Dicionário, em meados dos anos 70, “mais de metade dos países do mundo tinha Governos saídos de Golpes de Estado e o Golpe de Estado, por conseguinte, tornou-se mais habitual como método de sucessão governamental do que as eleições e a sucessão monárquica”, mas os seus atores haviam mudado, sendo, àquela altura e na maioria (não na totalidade) dos casos, “os titulares de um dos setores-chaves da burocracia estatal: os chefes militares. O golpe militar oupronunciamento, segundo palavra cunhada pela tradição espanhola, tornou-se, assim, a forma mais frequente do Golpe de Estado”.
 
É a partir da análise da nova casuística das instabilidades de governos democraticamente eleitos no mundo que precisamos definir se o conceito de golpe é ou não aplicável a casos concretos de deposição aparentemente constitucional do chefe de Estado, e não pelo uso das armas. Em recente estudo sobre o tema, Aníbal Pérez-Liñán (Presidential Impeachment and the New Political Instability in Latin America, Cambridge University Press, 2007), após analisar detalhadamente as crises presidenciais da América Latina no período de 1950 a 2004, conclui que, após 1990, emergiu um novo padrão de instabilidade política na região, em que formas de impeachment ou declaração de incapacidade dos chefes de Estado transformaram-se, mais do que os golpes militares, no mecanismo por excelência da deposição de presidentes eleitos, e que se criaram condições para sujeitar os legisladores a diferentes mecanismos de pressão para tomarem a iniciativa do impedimento presidencial. Como muitas das condições históricas modificaram-se intensamente, as elites civis não mais podiam invocar intervenções militares para resolver suas desavenças políticas, o que as levou a buscar mecanismos constitucionais para este fim. “O impeachment presidencial emergiu como o mais poderoso instrumento para desalojar presidentes ‘indesejados’ sem destruir a ordem constitucional”, como ele pontua. E adverte, ao final: “Golpes militares podem ter sido o drama do passado, mas há razões para acreditar que crises sem ruptura serão o drama da América Latina nos anos vindouros”.
 
O principal problema contido no texto de Soares, portanto, reside no que nos parece ser uma dupla inconsistência decorrente de uma severa redução narrativa: em primeiro lugar, ele reduz o fenômeno “golpe de Estado” a uma de suas múltiplas manifestações históricas, talvez aquela mais usual no nosso subcontinente, mas nem de longe a única possível, que é a usurpação pura e simples do poder político a partir de um putsch militar em que a violência das armas, efetivada ou prometida, se constitui em ingrediente essencial. Essa redução narrativa produzida pelo autor implica a redução subsequente, ou seja, o rol de reações ao golpe por parte do poder constituído que ele alinha mantem-se, coerentemente, preso à redução narrativa anterior – as reações listadas são típicas reações a golpes de violência real, inclusive a militarização da crise pelo uso defensivo das Forças Armadas.
 
Ocorre que o golpe de novo tipo, o que se esmera em apresentar uma fachada constitucional e legal, aquele que se realiza pelo uso dissimulado de recursos institucionais contra as próprias instituições, cuja legitimidade formalmente se reivindica, é sobretudo um golpe de violência simbólica, operado na esfera das instituições jurídico-políticas. A reação a este golpe – a um tempo midiático, jurídico, legislativo, levado a efeito através da utilização intensiva de recursos discursivos – não se dá pela força militar, mas na ativação conflitiva da esfera pública, única forma efetiva (política, e não militar) de impedir a concretização do golpe, ou ao menos colocar em questão sua legitimidade democrática. Preso a sua própria narrativa de golpe de Estado como golpe militar, herdada da tradição das últimas décadas na América Latina, Soares não consegue vislumbrar nem o mecanismo institucional que oculta o golpe, nem a forma adequada de sua revelação e de reação a ele, a saber, a ampliação do espaço democrático da política. 
 
Este o principal motivo pelo qual, na mais recente experiência latino-americana que se assemelha ao atual caso brasileiro, não houve uma evolução militar do conflito político: no caso de Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012, mesmo consideradas as imensas diferenças entre os dois países e suas circunstâncias políticas, assim como o golpe legislativo buscava uma forma aparentemente democrática para sua efetivação, evitando-se uma ruptura formal com a Constituição, assim também o Presidente deposto manteve seu compromisso com a continuidade constitucional, mesmo denunciando politicamente o golpe sofrido (no que foi acompanhado pela comunidade internacional, como restou evidente pelo conjunto de sanções e dificuldades para reconhecimento do governo posterior por parte das instâncias internacionais, principalmente regionais).
 
Por outro lado, dizer que a forma concreta de utilização do impeachment no caso atual é um golpe dissimulado contra a democracia não implica necessariamente uma teoria conspiratória global que nivele a forma de participação de todos os atores em cena: Soares menciona o Supremo, o Ministério Público, a Polícia Federal, o Congresso Nacional, as Forças Armadas, ou mesmo a própria legalidade como um todo (poderia ter incluído a grande mídia corporativa, peça-chave neste processo), mas é evidente que tais atores, absolutamente múltiplos e heterogêneos entre si, concorrem de modo inteiramente desigual e por motivações absolutamente díspares e por vezes mesmo inconciliáveis para o processo em curso. 
 
Esqueçamos por um momento as Forças Armadas, que se mantiveram adequada e constitucionalmente silentes neste episódio, e foquemos apenas em dois atores essenciais, o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal: declarações recentes de integrantes da força-tarefa da Operação Lava-Jato têm mesmo reforçado a intenção manifesta de, espelhados na Operação Mãos Limpas da Itália dos anos 1990, proceder a uma “limpeza” do sistema político como um todo, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, expressam seu temor pelo eventual cerceamento às investigações após eventual sucesso do impedimento presidencial; e em um contexto de grande pressão de opinião pública, fomentada por vários anos e em uníssono pela grande mídia oligopolizada, seria mesmo razoável esperar do Supremo Tribunal Federal um nível mais intenso de intervenção na dinâmica interna do Congresso Nacional que, para o bem ou para o mal, representa o eleitorado brasileiro? 
 
Não é preciso acreditar em uma conspiração ficcional de seriados de televisão americana e atribuir a estes vários atores tão diferenciados entre si uma “coordenação central do golpe” para que um golpe se produza – basta alinhar corretamente as peças no tabuleiro a partir da mobilização da opinião pública, do bombardeio midiático cerrado, constante e em várias frentes, em torno da criminalização de atores políticos (de forma seletiva ao menos no vazamento e amplitude da divulgação de escutas e delações premiadas), da geração e financiamento de entidades e grupos sem representação que assumam a convocação de massas, de uma estratégia política da oposição de bloqueio e sabotagem a qualquer iniciativa de governo para enfrentar um contexto de crise econômica,  e a preservação de uma continuidade formal da ordem constitucional para que os mecanismos de controle relaxem e se fragilizem. Estas instituições tenderão sempre a responder não de modo necessariamente instrumental ou estratégico, mas de acordo com suas autocompreensões normativas, cultura institucional e modo de atuação cotidiana, quadro que é previsível para quem efetivamente se beneficia do processo e move as peças. 
 
Como até mesmo os defensores do impedimento admitem, sua prática é e deve ser excepcional, não banalizada. Medida extrema que implica sempre a colocação em xeque da representação política e do voto direto de milhões de eleitores, seu uso deve ser reservado a hipóteses em que ao menos as acusações enquadrem-se inequivocamente no delineamento geral que a Constituição e as leis conferem aos crimes de responsabilidade – ainda que se possa controverter sobre a efetiva prática do crime pela Presidente. As acusações concretas que estruturam o pedido de impedimento da Presidente, tal como recebido pelo Presidente da Câmara dos Deputados, centram-se especifica e exclusivamente em seis decretos não numerados que abririam créditos suplementares em suposto desacordo com a lei orçamentária e as chamadas “pedaladas fiscais” no âmbito do Plano Safra. Ora, tem sido notória a intensa polêmica na comunidade jurídica nacional quanto à qualificação destes atos, mesmo em abstrato, como crimes em geral, quanto mais como crimes de responsabilidade, aptos à instauração do processo de impeachment contra a Presidente. Com base em critérios técnico-jurídicos que não vem ao caso detalhar aqui, por irrelevantes para o argumento, muitos juristas, inclusive opositores do Governo, tem-se manifestado pela inexistência, neste caso, de crime de responsabilidade na forma do art. 85 da Constituição e da Lei 1.079/50. Além disso, segundo a própria grande imprensa nacional, as mesmas práticas vêm sendo adotadas ininterruptamente no âmbito federal, ao menos desde os mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o mesmo ocorrendo hoje com pelo menos 16 governadores de estado no tocante às chamadas “pedaladas fiscais”. 
 
Nos parece evidente, independentemente de quaisquer posicionamentos quanto ao mérito, que acusações sobre cuja ilicitude há ampla controvérsia na comunidade jurídica, e que tem sido largamente aceitas como práticas de governo nos âmbitos federal e estadual ao longo dos anos, não podem servir como base jurídica aceitável para instauração de processo de impedimento, ao menos não sem levantar a fundada suspeita de desvio absoluto da finalidade do respectivo procedimento em relação aos seus contornos constitucionais, usando-se uma formatação constitucional abstratamente legítima para a obtenção de um fim político constitucionalmente inaceitável. É precisamente nesta retorção das normas constitucionais, no seu desvirtuamento conceitual para servir a um fim diverso daquele previsto na Constituição, que reside a adequação do uso da expressão “golpe” para designar as ações em curso no país: porque ele consiste no uso concentrado de uma profunda violência simbólica, viabilizada pela obtenção de maioria qualificada na Câmara e no Senado em oposição ao governo, com respaldo de parte importante da opinião pública, que implica a distorção acentuada do contexto constitucional autorizativo do afastamento presidencial, ainda que sob a tentativa de preservar a aparência de legalidade e de normalidade democrática.
 
A Operação Lava-Jato levantou uma quantidade impressionante de material tendente a demonstrar a prática de inúmeros crimes. Muitas condenações já aconteceram. Hoje se fala em suspender ou finalizar as investigações, quando elas sequer afetaram ainda todo o leque político nomeado nas delações – no governo ou na oposição. O prosseguimento das investigações, com seu espraiamento para partidos fora do bloco que até recentemente conferira sustentação política ao governo, assim como sua continuidade para os ex-aliados, seria essencial para o aprimoramento das instituições democráticas e representativas no país – ainda que muitas ressalvas possam ser feitas a parte dos procedimentos adotados até aqui pelas autoridades policiais e judiciais naquela Operação, e que ainda poderão receber revisão pelos tribunais superiores. Este prosseguimento até poderia, em tese, revelar novos fatos que demonstrassem a ocorrência de práticas criminosas que, desde que nos limites versados no § 4.º do art. 86 da Constituição, viessem a legitimamente sustentar o início de um processo de impedimento presidencial, sem qualquer mácula de golpe ou violência contra a ordem constitucional. 
 
Mas dar curso a um processo de impedimento com base em condutas cuja ilicitude não é clara sequer a vários especialistas de diferentes matizes técnicos, ideológicos e políticos, alinhados ou contrários ao atual governo, não pode ser senão uma temeridade inaceitável ante os princípios que norteiam nossa democracia. Qualquer estudante de Direito sabe que processos judiciais podem ser utilizados para fins ilegais ou imorais, e por isso os Códigos de Processo reiteradamente determinam que os juízes não permitam que isso aconteça. Reconhecer legitimidade a um processo de deposição da Presidente sem que a acusação formal seja inequivocamente apta a este fim é permitir que um processo constitucional seja distorcido para desvirtuar o resultado eleitoral e a soberania popular.
 
É nas ações comprometidas com a democracia e com o desvelamento do oculto, e principalmente na imprescindível necessidade de superar o evidente crescimento do fascismo social em curso no país, que temos maior acordo com Soares. Como ele bem pontua, é preciso superar os níveis de intolerância e o risco de derivação violenta da crise política, ainda que tal violência pudesse ficar restrita topicamente a certos atores. A divergência reside no preço político que cada um de nós entende razoável ser historicamente pago. Soares crê que a não utilização da expressão “golpe” possa desarmar em parte os espíritos, de sorte a tornar mais viável a possibilidade de articulação construtiva da divergência política e ideológica, ainda que ele mesmo considere que não há crime de responsabilidade no caso atual. Consideramos o preço muito alto para nossa tradição democrática.
 
Se há algo da tradição política do Brasil que nos parece relativamente consensual neste horizonte intensamente conflitivo é a persistência dos pactos de transição entre as elites sem superação ou resolução dos traumas do passado. Exemplo incontornável disso foi o fim do regime militar pós-64 e a estratégia de “abertura lenta, gradual e segura”, coroada com uma Lei de Anistia autopresenteada pelo regime que, ao contrário de alguns de nossos vizinhos, nos impediu, referendada que foi pelo Supremo Tribunal Federal, de investigar e punir torturadores e assassinos vinculados à institucionalidade ditatorial. O efeito disso sobre o grau de violência das forças policiais e sobre a fragilidade dos direitos e garantias individuais de suspeitos e réus no Brasil é algo que o próprio Soares relata consistentemente em muitos de seus excepcionais trabalhos acadêmicos. As dificuldades de funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, ou a patética aparição de defensores da “intervenção militar constitucional” ou de parlamentares que homenageiam torturadores em pleno Congresso Nacional, confirmam: o preço a pagar pelo entendimento não pode ser o confortável escamoteamento da verdade. 
 
A indispensável recomposição da qualidade dos enfrentamentos políticos em conflitos discursivos na esfera pública mobilizada, em sociedades que pretendem reivindicar validamente um Estado Democrático de Direito, somente pode repousar sobre o consenso mínimo existencial que esta sociedade se institui como paradigma geral de validade das ações e reações jurídico-políticas: a Constituição e os limites que ela impõe a todos os atores sociais. Se este paradigma é violentado, física ou simbolicamente, a denúncia desta violência é um ato inescapável àqueles que estão comprometidos com ela, e o preço a pagar por esta recomposição não pode ser o seu silenciamento. 
 
Outra coisa, com a qual concordamos, é que a forma desta denúncia deve-se limitar ao nível da política e da ação discursiva, vedando-se qualquer escalada de agressões recíprocas que fomente o crescimento de um fascismo social obviamente já presente e à espera de uma oportunidade histórica. Os democratas de quaisquer cores não podem jamais tornar possível a maturação efetiva do ovo desta serpente cujo veneno provocaria a imediata fibrilação do coração de nossa jovem e frágil democracia. Estes são os dois referenciais elementares que podem e devem unir apoiadores ou opositores do impeachment na reconstrução das pontes de compartilhamento da legítima e intensa divergência democrática: a defesa incondicional da Constituição, especialmente no que toca ao respeito à institucionalidade democrática e aos direitos e garantias fundamentais, e o isolamento absoluto de toda forma de fascismo social e de intolerância discursiva.
 
(1) Doutor em Direito pela PUC-Rio, membro do grupo de pesquisa  Democracia, Cidadania e Estado de Direito da UFF, juiz federal na 2a Região.
(2) Doutor em Sociologia pela UFRGS. Coordenador do PPG em Ciências Sociais da PUCRS.


Créditos da foto: roberto stuckert filho
 
 
Fonte: Carta Maior

E o Estado de exceção avança...


E o Estado de exceção avança...

Uma das principais pautas de todo esse imbróglio político atual é a destruição da Constituição Federal de 1988.


Jorge Luiz Souto Maior
reprodução
Os debates emocionados sobre a crise política têm ofuscado as mentes e, claro, também sou vítima disso.
 
Mas um aspecto pelo menos me parece claro: estamos verificando um avanço muito perigoso do Estado de exceção e, o pior, sob o aplauso dos “dois lados” que tomaram de assalto a vida social para fazer parecer que tudo no mundo gira ao seu redor.
 
A questão é que esses lados, por uma questão que já se tornou pessoal, entraram em uma espécie de jogo do vale tudo, pretendendo, inclusive, que todos participem dele, para que no clima da balburdia total não se consiga mais chegar a um raciocínio minimante voltado a uma crítica radical da realidade, que ponha em questão o modo de vida, o modo de produção, a forma de distribuição da riqueza produzida etc.
 
Vivemos o paradoxo do aprofundamento da superficialidade para a satisfação de interesses pessoais não revelados.

 
O maior problema disso é a perda do senso crítico, que deve ser também autocrítico.
 
Concretamente pode se exemplificar a situação com o que se passou com o julgamento do STF que determinou a “suspensão” do mandato de Eduardo Cunha.
 
Na histeria coletiva produzida pelo já apelidado “Fla-Flu” político, a decisão foi aplaudida por todos os lados. Mas o efeito disso é corroborar o Estado de exceção.
 
Lembre-se que para a realização da Copa instaurou-se, na Lei Geral da Copa (e também das Olimpíadas), um autêntico Estado de exceção, mas a população em geral, a grande mídia e boa parte da intelectualidade aplaudiram a medida ou se silenciaram a respeito, já que a muitos interessava a realização dos jogos, seja pela expectativa econômica (que se mostrou frustrada), seja pela ilusão da felicidade ou até por um certo patriotismo...
 
A atuação repressiva do Estado para abafar as manifestações populares, ou seja, para sufocar a democracia real, já havia sido, inclusive, fruto de um grande ajuste político por ocasião das manifestações de junho de 2013.
 
Fato é que essa “euforia” pela Copa favoreceu ao abalo do pacto social estabelecido na constituinte de 1987, que consagrou o Estado Social Democrático de Direito, e com isso avançaram as formas de exploração do trabalho e a supressão de direitos sociais, civis e políticos, com reforço das formas repressivas do Estado.
 
Mas muitos dos que aplaudiram o Estado de sítio então estabelecido, dizendo que a repressão se fazia necessária para conter a ação de “antipatriotas” que queriam manchar a imagem do país com as manifestações contra a Copa, viram-se depois vítimas do próprio veneno quando a fragilidade institucional permitiu que uma firula jurídica fosse apresentada como fundamento para a retirada de uma Presidenta da República democraticamente eleita.
 
Instaurou-se, então, como estamos vendo, uma contenda argumentativa, pautada por interesses pessoais partidária e associativamente comprometidos, cuja solução não guarda nenhum padrão de racionalidade lógica, tanto que Deus precisou ser invocado para fundamentar muitos votos.
 
O problema é que nesse quadro assumido da ausência de regras não há limites, ainda mais quando se tenta encontrar um ponto de equilíbrio no contexto do caos.
 
É o que se verificou no julgamento de Eduardo Cunha, que não foi outra coisa senão uma forma de levar adiante o conjunto de irracionalidades já instaurado.
 
Ora, se o Presidente da Câmara estava interferindo indevidamente na atuação da Câmara a tal ponto da própria Câmara não ter mecanismos para evitar isso, seria o caso de reescrever as regras da atuação institucional do Legislativo, declarando a sua falência.
 
Sem enfrentar a questão intrincada da artificial separação de poderes, parece-me que afastar, por decisão judicial, o Presidente da Câmara, em situação não abarcada por previsão legal, constitui, no mínimo, uma intervenção impertinente do Judiciário sobre o Legislativo.
 
Mas admitamos que a intervenção se justifique para a garantia da democracia. Então, a decisão só teria algum sentido se fosse tomada no primeiro momento em que essa atuação antidemocrática do Presidente da Câmara foi detectada. O afastamento determinado sete meses após uma atuação intensa, da qual resultaram, inclusive, a instauração e a abertura do processo de impeachment da Presidenta da República, não tem nenhum valor para a garantia da democracia, podendo ser visto, simplesmente, como um ato político votado à satisfação da vontade popular e também para não deixar Eduardo Cunha, “persona non grata”, na linha sucessória do suposto novo Presidente da República.
 
Disse o Ministro Lewandowisk, com boa dose de razão, que o tempo do processo não é o mesmo da política, mas o que se sabe é que o afastamento não foi determinado antes para que não parecesse uma interferência do Supremo sobre a atuação da Câmara no processo de impeachment. Então, a política determinou, sim, o tempo da atuação jurisdicional e de uma forma mais indevida, pois se havia a consciência em torno da ameaça à democracia que a presença do Presidente da Câmara representava não era possível deixá-lo nesta posição exatamente no momento em que se colocaria em maior prova o estágio de nossa democracia. Mal comparando, seria como deixar um pedófilo cuidar de crianças até que se encontrassem as condições políticas ideais para retirá-lo dessa condição.
 
E já se adiantaram alguns Ministros do Supremo no sentido de que essa decisão não produz efeito retroativo. Ou seja, para preservar a democracia admitem como legítimo que ela tenha sido arranhada por um tempo determinado.
 
Mas o pior não é isso. O mais grave é que os tais “dois lados” estão aplaudindo a decisão do Supremo, uma decisão que o próprio Supremo admite que foi uma “medida excepcional”.
 
De fato, foi uma decisão sem base constitucional e que, ademais, foi bem além do seu objetivo. Ora, se o problema era a atuação do Deputado na Presidência da Câmara, bastaria afastá-lo dessa condição e não retirá-lo da atuação parlamentar, até porque, como Dilma, Cunha foi democraticamente eleito e só pode perder o mandato pela vias adequadas, como, ademais, deveria estar ocorrendo com Dilma (e não está).
 
Sei que a decisão do Supremo não elimina o mandato, mas o suspende e ainda joga sobre a Câmara o peso político de uma manifestação meritória sobre a conduta do Deputado, contando, inclusive, com o apoio praticamente unânime da população.
 
Além disso, de forma contraditória, “suspende” o Deputado e mantém os seus salários e demais vantagens, sendo que nesse aspecto, ao menos, pode-se ver a vantagem de se superar a compreensão jurídica trabalhista de que a suspensão do contrato de trabalho impede o recebimento de salários...
 
Claro que não faço uma defesa de Cunha, mas acho que aplaudir uma decisão do Supremo que não tem base constitucional, que aniquila um mandato parlamentar sob o fundamento de preservar a democracia, que a própria decisão já admite que tenha sido arranhada pela atuação desse mesmo parlamentar, parece-me uma atitude que apenas reforça o Estado de exceção e que abre definitivamente a porta para que uma “caça às bruxas” se instaure por atuação do Supremo e das demais esferas do Judiciário, assim como das repartições públicas e privadas por aí... Ora, se fazem o que estão fazendo com uma Presidenta, se fazem o que fizeram com um Deputado Federal, o que não farão com os direitos civis, políticos e sociais do dito “cidadão comum”? E dentro de uma lógica autoritária instaurada (que ninguém se iluda), no conceito de “cidadão comum” incluem-se, como sempre, operários, comerciários, domésticas, bancários, metroviários, metalúrgicos, desempregados, mas também servidores públicos, professores, diretores de empresas, juízes, procuradores, promotores, advogados etc., cujas prerrogativas poderiam ser “suspensas” para atender a “vontade do povo”.
 
Como dito na decisão do Ministro Teori, há uma “vontade da Constituição”, sendo que o “imponderável é que legitima os avanços civilizatórios endossados pelas mãos da justiça”.
 
De forma bastante essencial, deve-se perceber que uma das principais pautas de todo esse imbróglio político atual é a destruição da Constituição Federal de 1988, notadamente no que ela representa de freio ao ideário neoliberal que avança mundialmente e conferir ao Supremo esse poder absoluto para passa por cima da Constituição põe em grave risco, sobretudo, a eficácia e mesmo a sobrevivência dos Direitos Sociais e Trabalhistas, até porque sem Cunha, como já se está dizendo, o Congresso não terá força para implementar as tais “reformas estruturais”, conservadoras, pretendidas pelo mercado.
 
Talvez não seja nada disso, mas é bom ficar alerta!


Créditos da foto: reprodução
 
 
Fonte: Carta Maior