O Poder
Judiciário como fator de insegurança jurídica
Roberto Amaral
O Estado de exceção se instala quando o
Supremo Tribunal Federal, partidarizado, adota dois pesos e duas medidas na
aplicação da lei.
O que correntemente denominamos ‘Estado
de Direito democrático’, pois há ‘Estados’ para todos os gostos e um extenso
cardápio de ‘direitos’ - nossa última Ditadura Militar (1964-1985), por
exemplo, era um Estado definido como burocrático-autoritário -, distingue-se
pelo fato de estar assentado em uma ordem jurídica legítima, isto é, derivada
da soberania popular, e democrática, assim caracterizada pelos direitos
assegurados, em igualdade de condições, a todos os cidadãos.
Um desses direitos é a existência de uma
ordem jurídica conhecida e estável, fundada numa legislação democrática e
igualmente conhecida e numa jurisprudência estabelecida, também estável e
também conhecida, construída pelo pronunciamento reiterado dos tribunais.
Por trás de tudo isso e dando-lhe
fundamentação filosófica, está a clássica divisão tripartite dos poderes
(Executivo, Legislativo e Judiciário), com suas competências privativas que, na
democracia, não podem ser invadidas.
A ordem constitucional depende da
chamada "harmonia de poderes": compete ao Legislativo formular as leis,
ao Executivo aplicá-las e ao Judiciário vigiar sua execução (é o que se chama
de controle jurisdicional).
Todo esse mecanismo – cujo objetivo é
assegurar a ordem jurídica democrática – assenta-se nos textos constitucionais,
cuja legitimidade decorre de sua origem, a soberania popular expressada
mediante uma Assembleia Constituinte.
Nessa engrenagem, cumpre a uma Suprema
Corte, no topo do Poder Judiciário, assegurar a incolumidade da ordem jurídica
constitucional e democrática, que impera sobre todos os poderes e sobre a
sociedade e seus agentes.
Quando essa segurança – ditada por um
direito (leis e jurisprudência) conhecido e estável – cessa, desaparece com ela
o Estado de direito democrático e emerge o Estado de exceção.
Assim, não há mais como falar em Estado
de direito democrático quando a Suprema Corte, por ofício guardiã da
constitucionalidade, invade a competência dos demais poderes e decide contra a
norma constitucional.
Isto vem ocorrendo no Brasil, por
exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determina a execução de pena
privativa da liberdade sem o seu trânsito em julgado, quando a Constituição
(inciso LVII do art. 5º) determina que “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença condenatória”.
O STF também investe contra a
Constituição quando permite que juízes de piso transformem a prisão preventiva,
pela sua duração, em verdadeira pena antes do julgamento. Ele desserve à
Justiça quando se atribui o direito de não estar condicionado por prazos.
O Estado de exceção se instala quando o
STF, partidarizado, adota dois pesos e duas medidas na aplicação da Lei.
Diante da mesma hipótese legal – as
nomeações do ex-presidente Lula e de Moreira Franco para o cargo de ministro de
Estado, acusadas ambas de manobra para obtenção do foro privilegiado, tivemos
duas decisões antípodas.
Numa delas, o ministro Gilmar Mendes,
conhecido pela sua ostensiva parcialidade partidária, decidiu anular a nomeação
do ex-presidente Lula para a chefia da Casa Civil do governo de Dilma Rousseff.
Em outra decisão, diante de pedido de
igual arguição, o ministro Celso de Mello sancionou a nomeação de Moreira
Franco, acusado nos inquéritos da operação Lava-Jato, para a Secretaria Geral
da Presidência de Michel Temer.
Ao rejeitar qualquer irregularidade na
nomeação de Moreira Franco, o favorito da Corte, o ministro Celso Mello está,
querendo ou não, afirmando que a decisão de Gilmar Mendes contra Lula foi uma
exceção à regra. A Justiça desaparece quando emerge o casuísmo.
Entrementes, pouco antes da concessão da
liminar pelo ministro Celso de Mello, o Tribunal Federal de Recursos da 2ª
Região decidira que Moreira Franco poderia ser nomeado ministro, mas "sem
o foro privilegiado" que até o reino mineral sabe que é inerente ao cargo.
Estultice ou mais uma incursão legiferante sob pretexto de interpretação
imaginosa da Constituição, violando seu texto?
Como tirar daí uma regra, um precedente
para julgar hipótese futura?
As duas liminares concedidas
monocraticamente, ainda não foram (serão um dia?) levadas ao pleno do Supremo,
e assim produzem efeitos e prejuízos irreparáveis antes de terem o mérito
julgado.
O STF, a despeito da Constituição,
interfere no Legislativo, seja impondo procedimentos que não lhe cabe ditar,
seja legislando.
Recentemente, o ministro Luiz Fux
concedeu liminar - sempre elas! - para escancarar o ativismo de juízes e
ministros, e mandou o Senado da República devolver à Câmara dos Deputados o
famoso pacote de medidas autoritárias elaborado por jovens procuradores, jejunos
em História e Sociologia.
Refiro-me às “10 medidas para acabar com
a corrupção”, entre as quais está a aceitação, contra o réu, de provas mesmo
ilícitas, desde que ‘obtidas de boa-fé’.Segundo o ministro, o Congresso havia
alterado dispositivos do projeto original.
Ou seja, senadores e deputados estão
acusados de haver legislado, função precípua para a qual foram eleitos e da
qual não podem declinar!
Não estamos em face de casos isolados. O
ministro Roberto Barroso, tido como bom constitucionalista e liberal, mas
exorbitando de sua competência, determinou que a Lei Geral de Telecomunicações,
aprovada no Senado, não fosse enviada à sanção presidencial, até que todos os
recursos apresentados contra a tramitação da lei fossem apreciados.
Em dezembro último, o ministro Marco
Aurélio Mello mandou afastar o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) da presidência
do Senado, sabendo, pois não é analfabeto, que essa decisão só poderia ser
tomada pelo plenário do Senado.
E há outros procedimentos irmãos de
velhos expedientes de reles chicana, como o do ministro Gilmar Mendes, o
inefável, segurando por quase dois anos a decisão (já aprovada por maioria) do
STF de proibir o financiamento empresarial das eleições, cujo potencial de
corrupção está escancarado pelas investigações da Lava-Jato.
Mas o ministro não se emenda e em
entrevista recente, falando como presidente do Tribunal Superior Eleitoral
(STE), volta a defender o financiamento privado do processo eleitoral.
Na mesma sequência, e em casuísmo
inaceitável, o STF, por decisão de sua Segunda Turma, decidiu que o
ex-presidente José Sarney (PMDB-MA), sem mandato eletivo, seja, em processo
aberto pela Lava-Jato, protegido pelo foro privilegiado.
E mais recentemente decidiu que a doação
legal a partidos ou políticos pode ser considerada legal ou não. Fica ao
critério do Procurador Geral, do relator, ou do Olimpo.
Ao protagonismo do STF, como coletivo,
soma-se o ativismo individual de ministros e juízes de primeira instância.
O juiz Sérgio Moro, autoinvestido no
papel de advogado de defesa do ainda presidente da República, opôs censura, por
‘impertinentes’, a 21 das 41 perguntas formuladas pelo seu comparsa Eduardo
Cunha.
Essas mesmas perguntas, por exemplo: “Qual
a relação de Vossa Excelência com o senhor José Yunes? O senhor José Yunes
recebeu alguma contribuição de campanha para alguma eleição de Vossa Excelência
ou do PMDB?”, foram aceitas, porém, em outro processo, corrente em Brasília,
por outro juiz federal, Vallisney de Souza Oliveira.
Entrementes, uma quase delação do
advogado José Yunes, amigo íntimo de Temer e seu ex-assessor na Presidência,
revelariam a procedência das insinuações de Eduardo Cunha.
Como é sabido, Yunes confessou haver
desempenhado o papel de mula (termo retirado da gíria dos narcotraficantes) na
intermediação de milhões de reais entre o doador (Odebrecht) e o receptador, o
hoje ministro Eliseu Padilha (PMDB-RS), alvo de dezenas de citações dos
delatores da Lava-Jato.
A transação teria sido acordada em 2014,
em jantar no Palácio Jaburu, onde morava o então vice-presidente da República e
presidente do PMDB, que teria presidido o convescote.
A ausência de critério alimentada pelo
histrionismo de juízes ávidos de notoriedade se caracteriza pela corrente de
decisões que se atropelam e se contradizem em todas as instâncias.
Uma das características dos Estados de
exceção é a facilidade com que o direito – a norma — é alterado pela ordem
dominante. Assim, nada obstante haver ditado por intermédio de um Congresso
ilegítimo uma Carta Constitucional, a ditadura militar conservou, até seus
últimos vagidos, o poder de criar novas normas (Atos institucionais e, deles
derivados, Atos Complementares) através dos quais fazia face aos fatos novos
que se interpunham ao seu império.
Mutatis
mutandi essa adaptação do Direito à
nova ordem, autoritária, se faz, presentemente, pelo STF, "adequando"
sua jurisprudência, suas falas e seus silêncios aos interesses hoje
hegemônicos.
Assim está a revogação do princípio da
presunção da inocência, conquista do mundo civilizado, transformada em
convicção preconcebida da culpa. O princípio segundo o qual o ônus da prova cumpre
ao acusador – apotegma que remonta ao Direito mais remoto – transformou-se numa
expressão vazia, sem sentido.
Na ditadura franca dos militares não
havia, como há nas democracias, a exigência de sentença transitada em julgado
para que o acusado fosse considerado culpado e, assim, condenado.
Naquela altura, o inimigo era culpado
pelo simples fato de ser inimigo do regime, e assim, antes de julgado, era
preso; só então, após sua confissão, obtida sob tortura, era aberto o processo
que formalizaria a pena já em curso, a cadeia ou o ‘desaparecimento’.
Mas então estávamos em uma ditadura.
Diante de um Congresso que não honra o
mandato da soberania popular, empenhado em limitar direitos de toda ordem; de
um Executivo ilegítimo gerido por agentes da corrupção; diante de um STF
partidarizado e casuísta, arbitrário na medida em que avança sobre as
competências privativas dos demais Poderes; diante do discurso da ordem
autoritária; a batalha que se oferece às forças progressistas é a defesa da
ordem constitucional e democrática, a batalha pelos direitos e pelas
igualdades.
* Jornalista, professor e ex-ministro de
Ciência e Tecnologia
Fonte: Blog do Roberto Amaral