Apostas golpistas causarão explosões sociais na América latina
Darío Pignotti
Ela promete lutar todos os dias, com
todas as suas forças, contra este golpe de Estado em curso, que provavelmente
se definirá no final de agosto, após os Jogos Olímpicos, quando o Senado,
dominado pela oposição, votará pela continuidade ou pelo fim do seu mandato.
Dilma acaba de chegar a um amplo salão
de paredes de cristal, um dos mais deslumbrantes da residência oficial que
ocupa, por sua condição de Chefe de Estado, apesar de estar suspensa do cargo
enquanto o impeachment tramita e o governo está nas mãos do mandatário interino
Michel Temer, o principal responsável, junto com o poderoso deputado Eduardo
Cunha, da ofensiva parlamentária iniciada em abril.
Ao lado da anfitriã, sobressai um quadro
de traços modernistas – “Colhendo Café”, da pintora Djanira – onde três
camponesas trabalham, uma ao lado da outra, numa fazenda.
Dilma Rousseff nos recebe sem protocolos
e ajeita o blazer cinza claro, com um gesto de quem diz “mãos à obra”. Antes de
começar a gravação da entrevista exclusiva, ela recorda sua viagem ao México,
em maio de 2015, e comenta: “gostaria de voltar com mais tempo para visitar
museus e ver o quadro sobre Emiliano Zapata que, pelo que sei agora, está na sala
de reuniões do La Jornada”.
Dilma abandona o tom afável quando se
refere à traição do agora governante interino Michel Temer, cuja gestão está
dominada pelo corrupto Eduardo Cunha, sobre quem paira a suspeita – embora sem
denúncia específica – de ter subornado dezenas de parlamentares para que
votassem a favor da abertura do processo de impeachment.
A presidente conta alguns pitorescos
episódios diplomáticos e questiona o atual governo por sua disposição em se
alinhar com Washington, enterrando a política com ênfase na integração
latino-americana, que foi promovida pelos governos do Partido dos Trabalhadores
(PT).
Já quase meio-dia, o sol domina por
completo a Sala do Estado, sobre a ala oeste do palácio, avivando os vermelhos
e amarelos das flores e dos tucanos que se espalham pelo quadro do artista
chileno Kennedy Bahia.
“Podemos começar a gravar, presidenta?”.
Sim, ela autoriza a entrada da equipe de documentaristas que a segue, faça
chuva ou faça sol, para que também registre este momento histórico, no qual o
gigante latino-americano enfrenta sua crise política mais grave desde o fim da
ditadura militar, no ano de 1985.
Dilma Rousseff fala sobre a conspiração
da qual é vítima, e a situa no contexto de um subcontinente que vislumbra
confrontações políticas e sociais, e democracias cada vez mais debilitadas.
Considero importante estudar as raízes
desta nova forma de golpe que ocorre na América Latina. O primeiro que vemos é
o comportamento das elites, formando alianças amplas para derrotar os governos
populares, para impedir que continuem com seus programas sociais e de impulso
ao desenvolvimento.
Vemos também que o padrão de golpe
mudou. Nos Anos 60 e 70, o paradigma era o golpe militar, com as oligarquias
utilizando as Forças Armadas para separar os governos legítimos do poder.
O mais estranho é que este novo
paradigma golpista procura manter uma aparência institucional. Estou falando
dessa modalidade iniciada em Honduras, quando derrubaram o presidente Manuel
Zelaya (2009), e que depois se impôs no Paraguai, com a queda de Fernando Lugo
(2012), e que agora chegou ao Brasil. Sem esquecer as tentativas de
desestabilização contra os governos de Evo Morales e Rafael Correa.
·
Em 2012, a
senhora repudiou o golpe contra Fernando Lugo. Imaginou que seria a próxima
vítima?
Sinceramente, jamais imaginei, não
acreditava que se chegaria a violar, no Brasil, a cláusula democrática
estabelecida dentro do MERCOSUL e da UNASUL, para preservar os governos
constitucionais. Jamais pensei que se orquestraria um ataque contra mim, que
fui eleita por mais de 54 milhões de cidadãos, numa conspiração liderada por
alguém (Michel Temer), que não tem um voto sequer. Além disso, ver como estão
ferindo seriamente a democracia que tanto nos custou recuperar, este golpe nos
desprestigia perante o mundo. Do ponto de vista estritamente jurídico, este
impeachment existe sem que haja nenhum delito imputado contra a minha pessoa. E
isso não sou eu que digo, foi a conclusão de um grupo de peritos convocados
pelo Senado, e depois confirmado pela Procuradoria Geral da República.
México
1968, Rio 2016
Assim como nas vésperas dos Jogos
Olímpicos do México, em 1968, o Brasil enfrenta um clima político enrarecido
nas semanas prévias ao começo do evento esportivo que se iniciará com a cerimônia
no legendário estádio do Maracanã.
No Brasil, e especialmente no Rio de
Janeiro, se respira um ar político contaminado. Com um presidente em exercício
questionado por sua falta de legitimidade e rejeitado por 87% dos brasileiros,
segundo uma pesquisa de junho deste ano.
As favelas em pé de guerra contra a
polícia e dezenas de milhares de efetivos militares convocados para ocupar os
morros e impedir qualquer revolta popular.
Alguns ministros avisam que haverá mão
dura contra os inconformados com a nova administração, que são comparados com
guerrilheiros urbanos, uma forma de intimidar os ativistas do PT e os
camponeses sem terra que convocaram mobilizações em defensa da democracia.
·
Acredita que os
Jogos possam ser marcados pela repressão?
Em primeiro lugar, quero dizer que não
há nenhuma hipótese de que haja um massacre, como o que houve em Tlatelolco, em
1968, mas, lamentavelmente, há sim uma forte tendência a uma maior presença
policial e militar nas ruas, durante os Jogos. Não creio que o Brasil seja
objeto de um ataque terrorista, mas é necessário ter cautela, não podemos
descartar as ameaças, então é preciso que haja controles, porque vemos o que
ocorreu em Paris e em Nice, por exemplo. No Brasil, há uma preocupação nesse
sentido, eu entendo as autoridades, mas é preciso avaliar se depois das
Olimpíadas se mantém o mesmo aparato, o que seria algo inadmissível.
Repressão
política
A presidenta Dilma não acredita “que as
Forças Armadas se prestem a esse papel. O rol delas e o de dissuasão, não de
entrar em confronto direto. Quem deve atuar é o aparato policial. Além disso,
manifestação não é terrorismo. É um direito legítimo”.
·
A CUT e o MST
foram os que convocaram os protestos?
Nós não controlamos esses movimentos.
Não somos responsáveis por eles. Agora, creio que é lógico que haja
manifestações durante as Olimpíadas.
·
O presidente da
CUT foi acusado de incitação à violência.
Isso é um erro grave, porque a defesa da
democracia jamais pode ser confundida com incitação à violência. Nós jamais
permitimos que se reprimam as manifestações em favor do impeachment.
·
A senhora teme
que haja repressão contra as mobilizações convocadas durante os Jogos?
Seria grave se o interino Ministério da
Justiça, ou qualquer outro, agisse para criminalizar as mobilizações. Lamento
imensamente que o ministro interino da Justiça (Alexandre de Moraes) equipare
as manifestações com uma forma de guerrilha urbana. Isso compromete a
democracia. É algo típico, ver como esses processos golpistas buscam calar as
manifestações, que os governos que não têm a legitimidade do voto sejam
intolerantes. Golpistas sempre querem o silêncio. Por outro lado, nós jamais
criminalizamos as mobilizações pelo impeachment, porque a legitimidade que um
governo eleito possui nos permite escutar todas as vozes e conviver com as
manifestações contrárias.
Democracias
desvalorizadas
·
Imagina explosões
sociais em cadeia na América Latina?
Creio que aqueles que estão apostando
nesses golpes na América Latina correm o risco de causar uma desestabilização
profunda. Esses processos golpistas podem trazer consequências imprevisíveis. É
provável que haja (explosões sociais). Parece-me que nem os próprios golpistas
sabem o que poderá se desencadear no futuro. Lamentavelmente, o preço a se
pagar será bem alto. Você pode tentar esconder as coisas, mas, no fim das
contas, um golpe é um golpe. Ninguém pode ser tão ingênuo em achar que se dá um
golpe e tudo fica tal como estava. Ninguém pode supor que esses processos
ilegítimos não deixam suas marcas.
·
Uma paisagem
regional sombria, num mapa global incerto.
Veja o que está ocorrendo no mundo, com
esta globalização, que beneficiou as grandes empresas oligopólicas, enquanto
originou um retrocesso para o conjunto da população, que está padecendo as
consequências sem que ninguém ofereça nenhuma compensação. Nos Estados Unidos,
nós temos cidades imensas que estão afundadas na decadência e na pobreza. É um
quadro tão grave que até a imprensa neoliberal reconhece que é um problema
grave, que haja uma desigualdade crescente e a concentração chegue a um ponto
em que um 0,01% da população acumule quase 40% da renda.
Se os lucros aumentam em mais de 300% e
o salário cresce 10% ou 12% durante um período bastante extenso, é sinal de que
em breve teremos conflitos. É inexorável que haja consequências graves num
sistema onde a maioria perde seus direitos básicos. Esses processos, ademais,
são os que acabam gestando o surgimento de soluções raras, os que permitem que
apareçam fenômenos como o de Donald Trump.
·
Os salvadores da
pátria.
O que já sabemos é que, em todos os
lugares que observamos, os salvadores da pátria, na verdade, não fazem outra
coisa senão comprometer a sorte de quem eles supostamente salvam. Não tenho
dúvida de que se todo este processo de exclusão causa semelhante impacto na
economia mais desenvolvida do mundo, como a dos Estados Unidos, é porque
estamos diante de um fenômeno que também repercutirá no Brasil. Essa
repercussão econômica se verá agravada pela crise política e institucional que
temos por causa do golpe.
·
Os Estados Unidos
apoiaram o golpe?
Creio que nestes golpes não existem
essas interferências externas tão claras, como nos golpes militares. Agora são
as próprias forças internas as grandes responsáveis. As elites dos nossos
países não requerem dos Estados Unidos.
·
Não houve nenhuma
interferência externa?
Agora, se você me pergunta sobre os que
se beneficiaram do golpe, eu digo que há vários, em diversos graus. Então, se
poderia dizer que, em favor do golpe, estão aqueles grupos interessados em pôr
as mãos na Petrobras, com suas imensas reservas na área do Pré-Sal (águas
ultraprofundas).
Em favor do golpe, podem estar aqueles
que não querem ter a concorrência das grandes empresas construtoras brasileiras
no mercado internacional. Temos que recordar que, nos últimos anos, tivemos
empresas brasileiras que estavam se internacionalizando, a um ritmo muito
significativo, e conquistando espaços. Estou me referindo à construtora
Odebrecht, que participou na obra de Mariel, (o novo porto cubano), e que
também atua em Miami, no México e em outros países. Há outras companhias
nacionais com forte presença internacional, como poderia ser o caso da Andrade
Gutiérrez. Enfim, são várias participando em diferentes áreas, e com sucesso, e
isso afeta interesses. Pode-se supor que alguns concorrentes dessas empresas
brasileiras que citei têm peso político em nosso país, e pode ser (que tenham
participação no golpe).
Banalidade
do mal
Já se passaram 13 anos desde que Luiz
Inácio Lula da Silva chegou ao poder no Brasil, em janeiro de 2003, para um
mandato que, com a revalidação na reeleição de 2006, se estendeu até o dia 31
de dezembro de 2010, véspera do dia em que sua companheira e ministra da Casa
Civil, Dilma Rousseff, o sucedeu.
Aos verdadeiros poderosos, aqueles que
sobrevivem às administrações presidenciais, sempre pareceu inaceitável ter que
suportar a presença do PT no comando do Estado.
No recente dia 12 de maio, pouco depois
de se apossar do Palácio do Planalto, o mandatário interino Michel Temer
suprimiu as imagens publicitárias e os slogans da era petista, para
estabelecer, como novo lema oficial, o antigo “Brasil, ordem e progresso”, que evoca a simbologia militar.
Paulatinamente, o novo governo interino foi
desalojando toda a iconografia da era petista. Inclusive, despediu o garçom que
serviu café a Dilma e Lula durante anos, acusado de ser petista.
Talvez Temer ainda não tenha retirado os
quadros de mulheres trabalhadoras do pintor modernista Di Cavalcanti, que Dilma
ordenou que fossem colocados próximos ao seu escritório, no terceiro andar do
Planalto, mas provavelmente o fará caso seja finalmente confirmado no cargo
para o qual não foi eleito.
Em sua última trincheira, o Palácio da
Alvorada, Dilma Rousseff fala sobre continuar lutando todos os dias, com o
mesmo otimismo, e de sua admiração pela pintora surrealista espanhola Remedios
Varo, uma lutadora.
Ela liga seu tablet para mostrar pinturas
de Varo.
“Adoro suas obras. Foi uma artista
ma-ra-vi-lho-sa, que lutou pela República na Espanha, e depois teve que se
asilar no México. Quando voltar ao México, quero ir a alguma de suas
exposições”.
A conversa retoma o teor político, e
volta a abordar o impeachment que se tramita no Senado – que hoje é integrado
por 81 legisladores, a maioria opositores à presidenta eleita e ao PT. Para ser
absolvida e poder voltar ao seu cargo, ela necessita contar com o apoio de 27
congressistas, número que, no momento, parece improvável.
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Ainda é possível
vencer no Senado?
Creio que vale a pena citar a Antonio
Gramsci, que nos dizia que temos que ser pessimistas com a razão, e otimistas
em nossas vontades. Sou muito otimista em minha vontade, porque creio que esta
luta é fundamental para o Brasil e para a América Latina, e ao mesmo tempo faço
uma análise realista sobre os pros e contra da realidade de cada dia.
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A senhora tem
falado com os senadores?
Sem dúvida. Converso com eles
habitualmente, mas não vou dizer o número de legisladores que nos apoiam hoje.
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Políticos e meios
de comunicação tentam impor a ideia de que tudo acontece dentro da lei. O
Brasil vive uma cotidianidade anormal?
Vou tomar emprestada sua definição para
descrever o momento que vivemos no Brasil. Na verdade, estamos diante de uma
cotidianidade anormal, na qual os que deram o golpe querem escondê-lo atrás do
processo de impeachment, da tramitação formal no Senado e do aparato
institucional, com todo o seu ritual. O que estamos vivendo é um quadro de
tranquilidade aparente, que cedo ou tarde terminará por colapsar, porque não se
pode se sustentar indefinidamente, esse ocultamento da realidade, e a realidade
é o golpe. Quem melhor descreveu este tipo de fenômeno foi a filósofa Hanna
Arendt, através da ideia da banalidade do mal. Não quero ser exagerada nas
comparações, mas quando vemos a forma como se está encobrindo a realidade de
forma premeditada, isso me lembra outras situações mais extremas, como as que
tratou Arendt quando escreveu sobre o processo contra o criminoso de guerra
nazi Adolf Eichmann. Ali, ela nos ensinou como é possível que o mal conviva
tranquilamente com o cotidiano, como o mal se esconde debaixo do aspecto neutro
de um burocrata da morte. Como Eichmann era capaz de chegar a sua casa e beijar
os seus filhos, como se não acontecesse nada de mais nos campos de
concentração.
Fonte: Carta Capital