quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O rio que desceu a Paulista já mudou o país

06/09/2016 00:00 - Copyleft

O rio que desceu a Paulista já mudou o país

O noticiário borbulha de recuos e dúvidas 'da base' em relação à agenda de arrocho, vendida até domingo como 'salvação da lavoura'.

por: Saul Leblon

Roberto Parizotti
O que era verdade no Brasil até sábado, deixou de sê-lo a partir de domingo.

Um banho de rua a renovou a agenda da nação.

O levante de 100 mil pessoas contra o golpe desautorizou a soberba conservadora e sacudiu a letargia de setores progressistas.

Gigantesca no tamanho, ampla na pluralidade e democrática nas bandeiras, a mobilização que tomou conta de São Paulo depois de o governo ter tentado proibi-la, reafirmou a experiência social: nas encruzilhadas da história, os fatos caminham à frente das ideias.






Hoje, a ‘naturalização’ do golpe na mídia cedeu lugar à discussão de uma viabilidade difícil, vinculada ao êxito improvável de um leque de medidas antissociais postas em xeque pela rua.

O protesto mudou o país pautado pela mídia, reordenou fatos, naufragou versões, lavou a poeira da prostração, desmentiu a correlação de forças pró-golpe, inoculada pelo colunismo isento.

Da avenida icônica do capitalismo brasileiro, a correnteza percorreu cinco quilômetros até o estuário popular do Largo da Batata, na zona oeste da capital, onde o terror uniformizado do PSDB de São Paulo tentou substituir a política por porrada.

Perdeu duplamente, como polícia e como política.

A estética de uma tropa de ocupação esmagando o anseio democrático pacífico informa melhor sobre a natureza de quem governa do que o incansável jogral do poder e da mídia.

O chanceler Serra terá dificuldades crescentes na escalada que se prenuncia para convencer de que não é o punho de renda de uma usurpação violenta do poder.

A desmenti-lo emerge a força de novas narrativas que saíram da rua para redesenhar a percepção interna e internacional do país,

Quais?

Em primeiro lugar, a que desmentiu o divisor de águas mais geral, que dava o jogo como decidido.

Não está.

O golpe de mão de 61 senadores que se avocaram mudar o pacto da sociedade sem consulta-la não resolveu, antes agravou os conflitos da delicada transição de desenvolvimento vivida pelo Brasil.

Parte expressiva da sociedade recusa a tutela não solicitada.

Em segundo lugar, o caudal de domingo esfarelou a tese conservadora de que ‘apenas’ simpatizantes do PT e de Dilma não aceitariam ‘a solução constitucional’ cometida no dia 31 de agosto;

Definitivamente, é maior que isso.

A indignação que verteu para ruas e avenidas no domingo, drenou geografias sociais e políticas bem mais amplas: mais para máxi do que para o ‘míni’, do chanceler; mais para os cem mil, do que para os ‘40 vândalos’, do presidente usurpador.

O erro conservador não se limita ao cálculo das proporções.

A terceira revelação trazida pelas águas da história toca um ponto crucial.

A reportagem de Carta Maior tem chamado a atenção para ele, um fenômeno silencioso mas progressivo nas manifestações contra o impeachment: o afluxo de extratos de classe média mais estabelecidos e de meia idade para a rua.

Neste domingo, o que era silencioso ganhou voz e peso de um protagonista tão marcante quanto a presença da juventude e das forças populares que tomaram a Paulista.

E isso não é pouco.

Na verdade, é muito.

Significa que a régua de corte da rejeição à ruptura constitucional de 31 de agosto subiu as escadarias da pirâmide de renda e refletiu o teto de tolerância de um segmento formador da opinião pública.

Gente que ainda lê e assina jornais, por exemplo, vazou seu inconformismo para a rua, entre outras razões, talvez, porque os jornais que lê, assina ou assiste já não contemplam mais suas convicções democráticas.

Era preciso leva-las diretamente ao asfalto.

E eles deram o passo para além da hesitação do conforto e da cautela.

Há desdobramentos dentro disso e eles remetem ao passo seguinte da luta contra o golpe.

O rio da história que desaguou no Largo da Batata, sugestivamente, não defendia esse ou aquele partido, essa ou aquela liderança política.

Nos cinco quilômetros de percurso do planalto à várzea do Pinheiros, gentilmente assombrados pela cavalaria motorizada de Alckmin em arranques valquirianos, não se ouviu outra palavra de ordem, exceto uma causa.

A mais devastadora de todas à sobrevivência de um golpe de Estado: o clamor por eleições diretas.

Quarta novidade derivada dessa: a largueza desse jorro encorpa e dá pertinência histórica à proposta do ex-presidente Lula, apresentada dois dias antes da manifestação, na reunião do Diretório Nacional do PT.

Qual seja, opor ao golpe uma Frente Ampla à moda uruguaia, que comporta partidos, centrais, movimentos, personalidades, intelectuais, juristas e artistas de todos os matizes e colorações progressistas e democráticas da sociedade.

Entenda-se por isso que a maior liderança política do país e principal esteio do PT não reivindica a direção da resistência ao golpe. Propõe-se a participar dela em regime colegiado com outras forças credenciadas pela rua e pelo mandato da trajetória e da biografia.

Finalmente, mas não por último: a consolidação e a expansão desse escudo dificultará, sobremaneira, a promessa do golpe ao mercado de curar os desequilíbrios fiscais –a ‘gastança petista--  agravando desequilíbrios sociais e humanos que compõem a secular desigualdade brasileira.

O noticiário das últimas horas está cravejado de recuos, dúvidas e sinais de defecção ‘da base’ em relação à agenda de arrocho, vendida até domingo como a salvação da lavoura nacional.

A dissipação coloca Temer num corner entre a sobrevivência política da sua ‘base’ e a  ganância imediatista do mercado.

Esse garrote tem um calendário apertado de ajuste das tarraxas.

A escória parlamentar que ‘legitimou’ o assalto ao poder em aliança com a mídia, o dinheiro e o judiciário é o flanco mais imediatamente exposto dos quatro.

Primeiro, nas eleições municipais de outubro próximo; e, em 2018, em um sortido cardápio de escrutínios para presidente, governadores, senadores e deputados.

Aceitará ir para a linha de frente do matadouro, decepar direitos e escalpelar conquistas, como exigem o PSDB e a mídia --que condicionam o apoio à entrega do serviço, e o mercado financeiro, que ameaça revogar o único lastro do governo, a ‘melhora’ das expectativas?

O rio que desceu a Paulista corroeu e continuará a erodir os barrancos dessas margens frágeis.

O conflito entre a rua e a agenda da qual o golpe é refém é inconciliável.

O governo-abutre não reserva qualquer espaço à principal tarefa do desenvolvimento, que é justamente civilizar o mercado pela universalização de direitos, como aspira a cidadania brasileira.

O que se preconiza é de uma violência inexcedível em regime democrático e muito provavelmente incompatível com ele.

Uma esmagadora engrenagem foi acionada para tomar de volta tudo aquilo que transgrediu os limites da democracia formal, e que o ciclo iniciado em 2003, com as limitações sabidas, exacerbou em um resgate social inconcluso, mas transgressivo para a tolerância secular da plutocracia.

Um paradigma de eficiência feito de desigualdade ascendente, incompatível com a Constituição Cidadã de 1988, é a panaceia vendida agora como fatalidade à nação.

O que se ameaça é regredir aquém do ciclo da redemocratização, que contestou a eficiência econômica construída à base de ditadura, tortura e censura.

Talvez tenha sido aí que se rompeu o limite do tolerável para a classe média não petista, crítica –e até muito crítica-- dos erros recentes do PT.

Mas que deixaria a condição de indiferença quando ficou claro que o legado da geração que –direta ou indiretamente-- devotou a juventude à luta contra a ditadura, atravessou a idade adulta na campanha das Diretas-já e não aceita viver em um país aquém das estacas fincadas ali, estava sendo triturado em nome de uma restauração tardia, anacrônica e globalmente contestada da agenda neoliberal dos anos 90.

Esse sentimento ecumênico dá à bandeira da Frente Ampla o requisito de um protagonista social que a conduza.

A semente que está na rua já venceu a prostração, a indiferença e o conforto das delegações e desabafos digitais.

Cada vez mais, cobrará coerência organizativa em todas as instâncias democráticas, a partir de agora.

A das eleições municipais, inclusive.

A inércia ainda suscita cenas como a do recente debate entre candidatos a prefeito de São Paulo, quando Erundina e Haddad realçaram mais as divergências – justas, respeitáveis-- do que a premente e delicada convergência que estão desafiados a ajudar a construir.

A inércia é compreensível.

Mas a ficha precisa cair.

A determinação central da vida brasileira mudou.

Passa da hora de o campo progressista superar sectarismos e prioridades corporativas para enxergar a floresta além da clareira particular de cada projeto secundário.

Forças incontroláveis buscam atrelar destino da nação a uma disjuntiva em que, para vencerem, a sociedade terá que ceder a cidadania, renegar o passado, renunciar ao futuro, divorciar-se da esperança.

Acontecerá se o escudo progressista piscar e se dividir.

O interregno neoliberal implantado pelo PSDB nos anos 90 foi um ensaio disso. Só possível dissimulado na catártica operação de guerra de um país unido contra a hiperinflação.

Nunca mais as urnas endossaram o lacto-purga da panaceia mercadista.

Derrotada em 2002, 2006, 2010 e 2014, a nova oportunidade só se apresentou agora – ainda assim para um golpe, a salvo das urnas.

Embala-a nada menos que a nitroglicerina acumulada pela sobreposição de um ciclo de desenvolvimento que se esgotou, associado a uma crise mundial capitalista, que se arrasta há oito anos. 

O prazo de capacitação para uma alternativa democrática é exíguo.

Mas ganhou seu protagonista encorajador nas manifestações do último fim de semana.

A Frente Ampla é o ponto de fusão disso. Seu desafio agora é dar ao ‘rio de domingo’ a vazão transformadora que magnetize a repactuação do país e negocie a retomada do desenvolvimento justo, ansiado pela maioria da sociedade.

Grito dos Excluídos reúne milhares de pessoas em São Paulo para protestar contra golpe e governo Temer

Grito dos Excluídos reúne milhares de pessoas em São Paulo para protestar contra golpe e governo Temer

Com ato pacífico e polícia 'ordeira', 22°Grito dos Excluídos também foi marcado pela luta em defesa dos direitos civis e trabalhistas, ameaçados pelo novo governo
"Como podemos comemorar a independência da pátria se sofremos um golpe?", questiona Maria dos Remédios, que saiu cedo de casa, em São Mateus, zona leste da capital paulista, para reivindicar a saída de Michel Temer da presidência da República, novas eleições e a manutenção de todos os direitos civis e trabalhistas. Com ela, cerca de 15 mil pessoas protestaram na Avenida Paulista, na manhã de hoje (7), durante o 22° Grito dos Excluídos. A estimativa é dos organizadores.
Enrolada em uma bandeira do Brasil preta, representando o luto, com uma faixa vermelha, representando a luta, feita por ela mesma, Maria garante não ter medo da repressão. "Trouxe uma flor para dar aos policiais, caso eles venham pra cima da população", afirmou. Ela se disse desacreditada da política partidária: "hoje é preciso fazê-la nas ruas".
Agência Efe

Marcha saiu da praça Oswaldo Cruz, onde se inicia a Avenida Paulista, em direção ao Parque do Ibirapuera
A musicista Marina Salomão também garantiu que não sairá das ruas até que o golpe seja derrotado. "Não quero a volta dos anos 70", disse ela, que tem na família um parente desaparecido durante o período da ditadura civil-militar. "Estamos sofrendo cassação de direitos que há tempos não se via. Isso é muito grave. Não podemos sair das ruas", afirmou.
Muitos jovens também compareceram ao protesto. Saídos do bairro dos Pimentas, em Guarulhos, um grupo formado nas aulas de um curso pré vestibular popular teme que o novo governo liquide os avanços em educação conquistados nos últimos anos. "Sofremos muito com a desigualdade. Isso é muito forte na educação. Todo o acesso à universidade que ocorreu nos últimos anos pode ser liquidado pelo golpe", explicou a estudante Daiana Domingues.
A marcha saiu da praça Oswaldo Cruz, onde se inicia a Avenida Paulista, por volta de 10h30. Sem portar os equipamentos repressivos dos últimos protestos, poucos policiais acompanharam os manifestantes, que caminharam pela Paulista, tomaram a Avenida Brigadeiro Luis Antônio e rumaram ao Parque do Ibirapuera. Na descida, juntaram-se à marcha o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e o ex-senador Eduardo Suplicy.

Kenarik Boujikian: A polícia vandaliza o direito de protesto

Desfile de 7 de setembro tem gritos de 'Fora Temer'

'Paralimpíada começa em clima de crise política sem precedentes'



No trajeto, próximo ao Parque do Ibirapuera, a manifestação passou em frente à sede do PMDB, que estava resguardada por forças policiais. Os manifestantes afirmaram que o partido é "golpista" e "traidor da nação brasileira". O ato seguiu pacifico até o obelisco do Parque, que também contava com forte presença policial.
Agência Efe

Em protesto contra Michel Temer, manifestantes trocam nome de rua em placa em São Paulo
O coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP) Raimundo Bonfim, ressaltou que o ato pretende exigir eleições diretas, a saída de Temer da presidência da República e a manutenção dos direitos civis e trabalhistas, rechaçando, principalmente, as reformas da Previdência e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
"Temer assumiu falando em pacificação. Mas o que tem ocorrido é uma grande resistência nas ruas. Tem protesto todos os dias e nem a aposta na violência policial tem intimidado a população. Isso porque os excluídos sabem que não terão vez nesse governo. Os golpistas só querem ampliar o número de excluídos do país", afirmou Raimundo.
O presidente da CUT, Vagner Freitas, destacou a capacidade de resistir e lutar, além da esperança do povo trabalhador, forças desconhecidas pelos golpistas. "Eles não nos conhecem. Acharam que podiam dar um golpe e ficar por isso mesmo. Eles têm poder: polícia, imprensa, empresários e um Congresso corrupto. Mas não têm o povo trabalhador do lado deles", afirmou.
Freitas disse ainda que está sendo articulada uma mobilização na próxima Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em outubro, nos Estados Unidos para denunciar os ataques à democracia patrocinados pelos setores conservadores do país. "Eles não querem ser chamados de golpistas. Quer ser presidente? Vença eleições. Nós vamos dizer ao mundo inteiro que é golpe", concluiu.
Originalmente publicado na Rede Brasil Atual

Precisamos ocupar as ruas, diz criador do Médicos pela Democracia

O impeachment e o papel do STF


O impeachment e o papel do STF

O Supremo tem o dever de analisar o afastamento de Dilma tanto na forma quanto no mérito
por Pedro Estevam Serrano e Anderson Medeiros — publicado 01/09/2016 12h47, última modificação 01/09/2016 12h59
Antonio Cruz / Agência Brasil
STF
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal avalie o impeachment
impeachment é um mecanismo do Legislativo para controlar determinados agentes políticos do Estado. Talvez por essa razão, por muito tempo, sustentou-se que referido processo e respectivas sanções possuiriam natureza essencialmente política, o que subtrairia, inclusive, o seu controle jurisdicional no que tange aos seus aspectos materiais. 
O apartamento entre o Direito e a política é uma crença resistente ao tempo. Entretanto, não há conteúdo politicamente independente do Direito. Especialmente considerando que o impeachment possui relação umbilical com os princípios republicano e democrático, não se pode subtrair ao controle jurisdicional a aplicabilidade dos referidos elementos constitucionais orgânicos e de estabilização. 
A Constituição não é um mero instrumento de aferição de parametricidade formal dos atos estatais. É preciso que se promova uma reorientação dos chamados conteúdos políticos tendo em vista a normatividade da Constituição. 
A Constituição institucionaliza, juridicamente, as relações políticas. Isto é, ela conforma o político e traduz-se numa insindicável vinculação jurídica aos atos políticos. Portanto, em linhas gerais, a Constituição representa uma resposta, dada pela recursividade do próprio Direito, à dinâmica da polis. 
A crise do Estado de Direito legalista, bem como o esgotamento do paradigma legal como única “tecnologia disciplinar”, conforme expressão de Michel Foucault, abriu caminho ao surgimento do que podemos chamar, vulgarmente, de Estado constitucional, o qual implicou, por exemplo, no rompimento do modelo de “democracia radical”, exacerbadora da vontade majoritária. 
Do mesmo modo, as ideias de supremacia e força normativa à Constituição geraram a necessidade de um órgão regularizador do sistema, a Justiça constitucional, destinada a realizar o reconhecimento das fontes normativas e verificação da adequação dos seus produtos. Por essa razão é que, inclusive, reputa-se à Justiça constitucional condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito. 
A conformação jurídico-constitucional do poder democrático e a juridicização da organização do poder político impõem que o poder político seja exercido conforme o figurino do Estado constitucional. 
Assim considerando, o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão de soberania do Estado dotado de jurisdicionalidade e a quem compete realizar, precipuamente, a guarda da Constituição, possui competência para examinar, inclusive no seu aspecto material, a decisão que condenou a presidente da República à perda do seu mandato. Do contrário, a autocontenção deslegitimadora da sua relevante função pública representaria o esvaziamento da sua função de contrapoder político.
No Estado Democrático de Direito não há espaço no qual ele não penetra. O caráter político de um ato não exclui o conhecimento jurídico do mesmo. Não há função política do Estado senão nos quadrantes da Constituição. 
Jon Elster assinala que a Constituição, na democracia, atua como mecanismo de autolimitação e de precomprometimento aos órgãos ordinários de decisão política. Assim, é preciso que recordemos a releitura do autor de uma passagem da Odisseia de Homero, na qual Ulisses determina que o amarrem ao mastro de uma embarcação para não sucumbir ao canto das sereias.
Para o autor, a Constituição, nas democracias, possui finalidade similar às referidas amarras quando se destina a proteger determinados valores face às inconsistências temporais e de paixões momentâneas dos órgãos do Estado. 
Espera-se, assim, que o STF valha-se da prudência de Ulisses e não sucumba ao canto das sereias e promova a análise de justiciabilidade, material e formal, da decisão que condenou a presidente da República à perda do seu mandato.
*Pedro Estevam Serrano é professor de Direito Constitucional da PUC-SP e Anderson Medeiros Bonfim é especialista em Direito Econômico pela FGV-SP.

Fonte: Carta Capital

Os marajás do Judiciário e do MP, protagonistas do impeachment

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Política

Sistema de Justiça

Os marajás do Judiciário e do MP, protagonistas do impeachment

Juízes e procuradores ganham fortunas, lutam por mais no Congresso e, diz sociólogo, insuflaram impeachment com 'moralismo de ocasião'
por André Barrocal — publicado 02/09/2016 13h25, última modificação 03/09/2016 12h15
Dorivan Marinho/SCO/STF
STF
Ministros do Supremo Tribunal Federal durante sessão de abertura do ano judiciário de 2016, em fevereiro
Quando estava no poder, Dilma Rousseff reuniu-se certa vez com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, para conversar sobre a crise política, mas o convidado só queria falar deaumento de salário do Judiciário. No comando do julgamento da petista no Senado, o ministro aproveitou para pedir por lá a aprovação de uma lei de reajuste para o STF.
O comportamento de Lewandowski, que pelo cargo simboliza o Sistema de Justiça (Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Geral da União), dá vida a um diagnóstico feito pelo sociólogo Jessé Souza. O Brasil, segundo ele, tem hoje um “aparelho jurídico-policial” bastante ativo na defesa de interesses corporativos. Uma casta jurídica, diz, “composta pelos verdadeiros marajás do Estado brasileiro” e peça valiosa no impeachment.
Do “complexo jurídico-policial” descrito por Souza, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor de ciência política da Universidade Federal Fluminense, fazem parte juízes, procuradores de Justiça e policiais federais. As duas primeiras categorias estão entre os mais altos salários pagos no serviço público e as mais caras do mundo.
O juiz Sergio Moro embolsou 651 mil reais em 2015, média mensal de 54 mil. Corregedora-nacional de Justiça até meados de agosto, Nancy Andrighi recebeu 40 mil por mês, de janeiro a julho de 2016, na qualidade de ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Mesma média, em igual período, recebida pelo presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti. O procurador-geral da República,Rodrigo Janot, chefe do Ministério Público (MP), ganhou 35 mil reais por mês. Exceto em junho, quando levou 54 mil, em razão das férias.
O salário dos togados do STF é o valor máximo que deveria existir no setor público, de acordo com a Constituição. Está em 33,7 mil reais. Vários “penduricalhos” (auxílios etc) garantem ao Judiciário e ao MP contracheques mais gordos, como os de Moro, Andrighi, Robalinho e Janot.
Em algumas ocasiões, os valores explodem. Em abril, o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Operação Lava Jato, recebeu 86.850,59 reais. Dois meses depois, a ministra do STJ Regina Helena Costa ganhou 83.322,35 reais.
Uma lei foi enviada ao Congresso em 2015 por Dilma para disciplinar os penduricalhos e fazer o teto salarial do funcionalismo valer de fato, mas está parada entre os deputados.
Se o lobby de Lewandowki no impeachment der certo, a remuneração no STF subirá 16%, para 39,2 mil reais mensais. Valor proposto para o procurador-geral em outra lei a tramitar no Senado. As duas foram aprovadas em junho pelos deputados, os mesmos que seguram o projeto do teto.
Uma lei sancionada em julho por Michel Temer subiu em 41% os vencimentos dos funcionários do Judiciário e em 12%, os daqueles do MP. Um impacto estimado pelo Ministério do Planejamento de 2 bilhões de reais ao erário este ano.
“A casta jurídica”, diz Souza, “consegue pornográfico aumento nos seus salários já nababescos, em meio à grave crise, e mostra todo o seu descaso e descolamento da realidade social vivida pelos outros cidadãos.”
Mesmo sem reajustes, o Brasil ocupa, com folga, o posto de campeão mundial em despesa com tribunais, ao menos no Ocidente. Uma liderança apontada pelo professor Luciano da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no estudo “O custo da Justiça no Brasil”, de 2015.
Aqui, gasta-se com o Judiciário 1,3% do PIB, a geração anual de riquezas do país. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, 0,14%. Na Colômbia, 0,21%. No Chile, 0,22%. Em Portugal, 0,28%. Na Alemanha, 0,32%.
“Mesmo ostentando esses números hiperbólicos, a prestação da tutela jurisdicional, no Brasil, é uma das mais morosas do mundo, refletindo a ineficiência do Estado como prestador de serviços públicos”, diz o desembargador Reis Friede, vice-presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da Segunda Região, em artigo publicado em junho no jornal O Estado de S. Paulo.
O orçamento do MP também é sui generis. Equivale a 0,32% do PIB, de acordo com o estudo de Da Ros, acima do gasto com o Judiciário de vários países. Na Itália, pátria daOperação Mãos Limpas, a Lava Jato de lá nos anos 1990 e a inspiração de Sérgio Moro no século XXI, morde 0,09%. Em Portugal, 0,06%. Na Espanha e Alemanha, 0,02%.
Tudo somado (Judiciário, MP, Defensoria Pública, Advocacia Geral da União), o Brasil possui um Sistema de Justiça de 1,8% do PIB. Algo como 100 bilhões de reais anuais.
Esse “gigantismo”, escreve Da Ros, deveria tornar o “complexo jurídico” um tema de interesse geral, devido aos efeitos macroeconômicos e nas prioridades de investimento do setor público. “O debate sobre o tipo de país que o Brasil quer ser crescentemente deverá levar em conta também o tamanho da comunidade jurídica que a sua população pode e/ou deseja sustentar”, diz.
A “casta jurídica” dona de gordos proventos, segundo Jessé Souza, foi um dos protagonistas do impeachment, análise feita por ele no livro A Radiografia do Golpe, recém-lançado pela editora Leya.
O impeachment, diz a obra, resulta de uma combinação de interesses. No topo da hierarquia, a elite econômica, insatisfeita com as escolhas feitas pelo PT. Esta elite teria dois “braços armados”, o Congresso e a mídia, influenciados por financiamento eleitoral e publicidade, respectivamente. Haveria, por fim, “um aliado de ocasião”: o “aparelho jurídico-policial do Estado”.
O “aliado de ocasião” foi decisivo, segundo o livro, para empurrar parte da sociedade à causa do impeachment. Por duas razões, basicamente.
De um lado, por identidade social. “Existe uma correspondência perfeita entre a classe média e a classe média alta que saíram às ruas com o perfil do novo tipo de operador jurídico que se instala no Estado”, escreve o sociólogo.
De outro, por oferecer um motivo para milhares de pessoas engrossarem passeatas “Fora Dilma”, a corrupção. “A Lava Jato criou um verdadeiro campeonato entre as diversas corporações jurídicas para ver quem ganha o troféu de 'guardião da moralidade pública'.”
Um “falso moralismo”, segundo Souza, pois mostra indignação com a corrupção, algo existente mundo afora, mas não com a escandalosa desigualdade social, mais típica do Brasil. Uma desigualdade para a qual a “casta jurídica” contribui com seus generosos holerites.
No caso dos magistrados, o “falso moralismo” talvez tenha ainda uma outra explicação. Ex-corregedora nacional de Justiça, a juíza baiana Eliana Calmon acha que uma das empreiteiras baianas enroscadas na Lava Jato corrompeu tribunais. “Não é possível que aOdebrecht levasse 30 anos de intimidade com o poder público, com o governo, sem a conivência do Judiciário”, diz.
O fato de o “complexo jurídico-policial” ser um “aliado de ocasião” do poder econômico, do Congresso e da mídia explica por que já se percebe um racha na coalizão pró-impeachment.
O aumento do salário de ministros do STF e do procurador-geral gera briga em Brasília. O PMDB de Temer é a favor das leis. O PSDB, segundo maior partido governista, é contra, por causa do efeito cascata. O reajuste se multiplicará a juízes e promotores pelo País, devido a regras constitucionais. Polêmica a descambar para ameaças de PSDB e DEM de romper com Temer.
Outro racha está nos rumos da Lava Jato. Em junho, o STF impôs à operação uma derrota de caráter simbólico, ao negar a prisão de um trio da pesada do PMDB, os senadores Renan Calheiros e Romero Jucá e ex-presidente José Sarney. Prisões solicitadas por Janot com base justamente na acusação de o trio tentar atrapalhar as investigações.
Mais recentemente, após dois anos de sintonia com a República de Curitiba (Moro, procuradores, policiais federais), o ministro do STF Gilmar Mendes atacou a operação.Bastou a negociação de delações premidas com executivos das empreiteiras OAS e Odebrecht indicar que tucanos graúdos serão alvejados. Mendes, como se sabe, é íntimo do ninho tucano.
O “partidarismo” da operação, diz Jessé Souza, tem agora que penetrar em terreno minado e abranger antigos aliados. “Esse é o aspecto central da crise atual. A luta de morte entre os políticos e os operadores jurídicos pelo espólio político do golpe.”

Fonte: Carta Capital