quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Por que eles querem que o Brasil esqueça Lula? Da retrospectiva 2016 de Carta Maior

04/11/2016 00:00 - Copyleft

Por que eles querem que o Brasil esqueça Lula?

Por que com ele é como se Getúlio falasse; ou Allende para os chilenos; ou Perón para os argentinos; ou Cárdenas para os mexicanos. Com uma diferença: Lula vive

por: Saul Leblon

Roberto Parizzoti
 
Respira-se um cheiro azedo de fardas, togas e ternos empapados da sofreguidão nervosa que marca as escaladas de demolição do Estado de Direito nos solavancos da História.
 
Consulte os anos 30 na Alemanha, os 50 do macarthismo norte-americano, os 60 da ditadura brasileira, os 70 do massacre chileno...
 
Há um clima de dane-se o pudor por parte das elites e da escória que a serve.
 





Faz parte desses crepúsculos institucionais a perda dos bons modos e a convocação das milícias, enquanto o jornalismo isento finge não ver a curva ascendente do arbítrio.
 
Com a mesma desenvoltura com que se anistia montanhas de dólares remetidos ao exterior,  classifica-se o MST como ‘movimento criminoso’.
 
Persegue-se e intimida-se estudantes secundaristas com lista de nomes exigindo que se delate endereços de colegas ocupantes ...
 
Invade-se a bala dependências e movimentos sociais e  de metralhadora em punho escolas tomadas por adolescentes que reclamam o direito de opinar sobre a própria educação.
 
Ensaios da orquestra.
 
Decibéis crescentes, afiados pelo mesmo diapasão ecoam de diferentes pontos do país.
 
Só não ouve quem não quer. 
 
Há dinheiro, patrocínio e poder em jogo na incapacidade auditiva para ouvir os gritos da democracia sendo violada na sala ao lado de onde se discute a ‘reconstrução do Brasil’.
 
A conveniência reflete a insurgência que se esboça.
 
A resistência ao golpe escapa ao que se supunha ser o alvo isolado e triturado pela centrífuga da Lava Jato.
 
Adolescentes falam o que a vastidão dos votos nulos, brancos e abstenções cifraram nas urnas municipais, quando suplantaram os vitoriosos de São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre...
 
Se as duas vozes se fundirem num idioma único, o que acontecerá?
 
O cheiro azedo exalado das fardas, togas e ternos de corte fino, empapados da sofreguidão  nervosa, reflete essa esquina incerta da História para a qual caminha o país.
 
A truculência policial e midiática sobe rápido os degraus da exceção.
 
Essa é a hora diante da qual a resistência progressista não pode piscar.
 
Daí a importância da campanha lançada neste dia 10 de novembro para sacudir a hesitação em defesa do óbvio.
 
O óbvio hoje começa por defender Lula.
 
Porque sem defender Lula, não será possível defender mais ninguém, e mais nada, do galope   desembestado da ganância no lombo da violência fardada e da cumplicidade togada.
 
Por ninguém, entenda-se o Brasil assalariado e o dos mais humildes.
 
A imensa maioria da população.
 
Aquela que vive do trabalho, depende de serviços públicos, tem seu destino  atado ao do país, ao do pre-sal, ao da reindustrialização,  ao da democracia social, carece de cidadania, respira salário mínimo e enxerga na previdência o único amparo à velhice e ao infortúnio.
 
Lula é a espinha histórica das costelas de resistência que precisam se unir para conter a demolição em marcha disso tudo.
 
Desempenha essa função por uma razão muito forte.
 
Essa que o milenarismo gauche parece ter esquecido --ou hesita em saber que sabe--  enquanto aguarda o juízo final  de Moro para recomeçar do zero.
 
‘Recomeçar do zero’ é a profilaxia recomendada pelos sábios do golpe em todas as frentes.
 
Desde a demolição dos direitos trabalhistas, à revogação da soberania no pre-sal, passando pela Constituição de 1988, o Prouni, a previdência ...
 
Mas, principalmente: recomeçar do zero esquecendo Lula.
 
Porque ele é  –ainda é Lula--   a inestimável  referência de justiça social na qual a imensa parcela dos  brasileiros de hoje e de ontem se reconhecem.
 
É dele a voz que quando  fala e é ouvida  no campo e nas cidades.
 
Mais que simplesmente ouvida: respeitada e compreendida.
 
A diferença dessa voz é que ela não carrega só palavras.
 
Carrega experiência, luta, erros, acertos, raiva, riso, derrotas, vitórias, cujo saldo são conquistas coletivas encarnadas em holerite, comida, emprego,  autoestima e esperança.
 
É como se Getúlio Vargas falasse.
 
Ou Allende para os chilenos.
 
Ou Perón para os argentinos.
 
Ou Cárdenas para os mexicanos.
 
Com a vantagem avassaladora que tanto incomoda a elite.
 
Lula está vivo.
 
Caçado, esfolado, picado e salgado.
 
Mas  vivo.
 
Mais que vivo: ele lidera todas as pesquisas de intenção de voto com as quais seus algozes testam a eficácia da chacina de reputação, a mais violenta desde Getúlio, que escandaliza a opinião jurídica e democrática do mundo.
 
Lula é a espinha dorsal de cuja destruição depende o êxito do torniquete implacável de interesses mobilizados contra a construção de uma democracia social na oitava maior economia do mundo, na principal referência da luta apelo desenvolvimento no espaço ocidental.
 
FHC disse em um debate no jornal O Globo, há cerca de quinze dias: 
 
‘Sem Lula o PT seria penas um partido médio; com ele torna-se um perigo nacional’.
 
No fundo quis dizer: ‘Sem Lula, o Brasil se torna uma nação média, humilde, bem comportada.
 
Com Lula, o Brasil se torna um gigante de soberania, com capacidade de aglutinação popular  e mundial em torno da justiça social –de consequências perigosas’
 
É claro como água de fonte.
 
Lula representa esse diferencial inestimável.
 
Ele fala com quem Malafaia  gostaria de falar sozinho.
 
Com o Brasil que os Marinhos gostariam de monopolizar sem dissonâncias.
 
Por isso o  milenarismo gauche que reage à ofensiva conservadora aceitando a pauta do juízo final de Moro,  flerta com a eutanásia.
 
‘Recomeçar do zero’ é tudo o que o conservadorismo mais cobiça para quebrar o coração da resistência ao golpe.
 
O coração da resistência ao golpe consiste em não aceitar o fuzilamento sumário do legado de doze anos  de luta por um desenvolvimento mais justo e independente.
 
Ademais dos erros e equívocos cometidos inclusive por Lula  –que não podem ser subestimados e devem ser discutidos amplamente-- os acertos mostraram a viabilidade de se construir uma democracia social no Brasil do século XXI.
 
Não, isso não é pouco.
 
Olhe o mundo ao redor: isso é muito.
 
E, principalmente, tem lastro popular.
 
A sociedade marcada por uma das mais iníquas divisões de renda do planeta, referendou esse projeto por quatro eleições presidenciais sucessivas.
 
Duas com Lula; outras duas com Dilma, sendo Lula seu maior fiador e cabo eleitoral. 
 
Sim, com erros, alguns grotescos.
 
Mas o fato é que a elevada probabilidade desse projeto ser revalidado em um quinto escrutínio presidencial, em 2018  --agora modificado pelo esgotamento do ciclo de alta nos preços das commodities, que lubrificou a resistência das elites aos avanços anteriores--  precipitou o golpe de 31 de agosto.
 
O milenarismo gauche quase esquece tudo isso enquanto aguarda o juízo final.
 
Nele, o juiz Moro e seus querubins  darão cabo de Lula e propiciarão aos sobreviventes o  único destino que lhes cabe: recomeçar do zero.
 
Ou até abaixo do zero.
 
Para quem sabe ter direito  –um dia— a mil anos de salvação individual e sobrenatural.
 
Milenaristas eram os pobres, os miseráveis brasileiros de Canudos.
 
Aqueles que aguardaram com Antônio Conselheiro a justiça divina sonegada pelo latifúndio e pela República que, afinal, destinou-os  à injustiça eterna.
 
É o que acontecerá de novo se o Brasil progressista aceitar a ideia de Moro de faxinar a história de sua ‘nódoa inaceitável’: Lula.
 
Se aceitar, o Brasil vai virar uma imensa Canudos, depois do massacre.

Leis de exceção e a vergonha da magistratura DA RETROSPECTIVA 2016 DA CARTA MAIOR

17/10/2016 11:14 - Copyleft

Leis de exceção e a vergonha da magistratura

Filme de Costa-Gavras relata a origem comum dos estados autoritários e como se dão as coisas neles: decide-se dar à polícia carta branca para atuar.


Léa Maria Aarão Reis**
Reprodução
Há filmes que de tempos em tempos devem ser revistos. Permanecem sempre novos e universais. São os verdadeiros clássicos. Assim como ocorre com livros aos quais se recomenda várias leituras ao longo da vida, algumas produções políticas do diretor grego Constantin Costa – Gavras, naturalizado francês, de 83 anos, são clássicas. Z (de 1969), A Confissão (1970), Estado de sítio (72) Amém (2002)  e Seção especial de justiça, de 1975.
 
Mesmo na mais frívola irresponsabilidade, com esses filmes fica mais difícil ignorar a origem comum dos estados autoritários e como se dão as coisas neles. Desenha-se, nos filmes de Costa-Gavras, o processo de deterioração do caráter dos protagonistas da vida pública que sucumbe ao sofrer repulsivas torções e distorções, ou diante de pressões e ameaças políticas e policiais - veladas ou não -, ou face à chance, de repente aberta, de legalizar o assalto ao poder. 
 
Section speciale, co-produção França, Itália e Alemanha, oferece uma régia lição sobre o assunto, com os diálogos magistrais do escritor Jorge Semprún, comunista militante do Partido Comunista Francês, de primeira hora da época, assim como foi seu companheiro Costa-Gavras. Ele mostra a naturalidade das tenebrosas transações que ocorrem no mundo sombrio manipulado pelos donos ilegítimos do poder, nas ditaduras e nos estados de exceção – como o que está vigente no Brasil sob ocupação, hoje: um Estado de Exceção dentro do Estado de Direito, como disse há dias o jurista Pedro Serrano.*
 
No caso do filme, o cenário é a França ocupada de Pétain em agosto de 1941 e nela a justiça colaboracionista: ministros germanófilos, juízes hipócritas, promotores e procuradores subservientes,  advogados indiferentes, os carreiristas e os dissimulados; traidores e covardes de todos os tipos e calibres.





 
Para a corja, o fantasma da época foi o ‘’abismo da Espanha’’ quando era preciso evitar, a todo custo, que a França escorregasse para ele. O inimigo eram os anarquistas, comunistas e gaulistas. “Simpatizantes dos  partidos de esquerda,” um procurador conselheiro da corte especial alveja, no filme, à semelhança do ministro da justiça do momento, aqui,  mais preciso ao dizer: eles são ‘‘a escória da terra.”
 
A certeza nesse ambiente era a entrada dos exércitos alemães em Moscou, breve.
 
Enquanto membros do governo francês cultivavam pompas e vaidades na estação de águas de Vichy, em Paris jovens estudantes comunistas resistentes praticavam um atentado, no metrô, e matavam a queima roupa um alto oficial da marinha alemã nazista. A retaliação foi imediata. Para a punição exemplar, os alemães decidem fazer uma centena de reféns na cidade e decapitá-los na Plâce de la Concorde. Mas são dissuadidos e lembrados da guilhotina em praça pública, um dos emblemas da revolução de 1789.
 
A partir do episódio, a narrativa do filme segue desvendando as manobras do submundo jurídico para a criação fulminante (todas as medidas excepcionais devem ser promulgadas com rapidez para deixar atônita a população) de uma corte especial que julgasse resistentes e presumíveis maquis, em um tribunal de exceção com tintas de legalidade - a section speciale. Seis presos seriam escolhidos entre comunistas, judeus ou comunistas judeus acusados de pequenos delitos. Julgados a portas fechadas. Á sua revelia eles estavam previamente condenados à pena de morte.
 
Decide-se dar à polícia carta branca para atuar. A lei de exceção, por ser como tal, era retroativa. ‘’São medidas que servem à situação, mas não à Justiça,’’ reagem alguns juristas renitentes. Em seguida serão convencidos e cooptados. 
 
“Jogamos a Justiça na ilegalidade e a vergonha sobre a magistratura,” bradam. “Não. Trata-se de promover a ‘’salvaguarda nacional’’, replicam os que procuram comprar para si a boa consciência. “Aqui, não se trata de Justiça”, argumentam. “Vamos salvar cem reféns e para isto precisamos de seis condenados à morte.”
 
No início, alguns juízes ensaiam resistir à promulgação da lei antiterrorista que permitirá condenar qualquer um a qualquer hora. 
 
O leitor observa semelhanças? 
 
“A razão de estado deve ditar as decisões jurídicas,’’ justifica a si mesmo um magistrado. E prosseguem a farsa e a burla do julgamento até que um dos réus, (já condenado sem o saber), Sampaix, jornalista do jornal L’Humanité, órgão do Partido Comunista Francês, o PCF, decide mostrar que o rei está nu.”O povo francês julgará este dia,” diz. 
 
Em certo momento das discussões a incerteza bate à porta de um dos procuradores. “E se os alemães atolarem na profunda Rússia e os americanos chegarem às costas da Inglaterra?” Os demais tergiversam.
 
No fim de Seção Especial de Justiça os seis presos escolhidos entre a ‘’escória’’ das esquerdas são executados. Uma legenda informa: “Na Libertação, nenhuma medida séria foi tomada contra os magistrados que participaram dos tribunais de exceção. Eles funcionaram durante toda a ocupação.”
 
Todos aqueles juristas da section speciale, no entanto, foram julgados pelas suas próprias consciências, como anteviu Sampaix, o jornalista do L’Humanité, olhando-os cara a cara, diante da corte de exceção, recusando o embuste da defesa.




* O  jurista Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP lembra que ‘’no caso Lula, o TRF-4 assumiu que está praticando a exceção, que a Lava Jato é um caso excepcional e, portanto, devem ser suspensas as normas gerais no caso, para o juiz atuar como queira. A Lava  Jato não precisa seguir as regras de processos comuns.” ( Rede Brasil Atual).
 
** Jornalista

Para ministro do TST, terceirização faz de pessoas mercadorias Da retrospectiva 2016 da Carta Maior

24/11/2016 15:20 - Copyleft

Para ministro do TST, terceirização faz de pessoas mercadorias

Segundo magistrado, argumento de que flexibilização cria empregos é falácia, ativismo do STF preocupa e o mercado não deve ditar funcionamento da sociedade


Vitor Nuzzi - Rede Brasil Atual
reprodução
São Paulo – Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) desde 2006, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, mineiro de Belo Horizonte, 55 anos, é uma das vozes críticas do Judiciário às ideias de flexibilização da legislação. Considera "falácia" a afirmação de que mexer nas leis criaria condições para o crescimento e a criação de empregos. "Qual é a base empírica dessa informação? Nenhuma, zero", reage. Também critica o projeto de terceirização (PLC 30) prestes a ser votado no Senado. "Rompe a lógica do Direito do Trabalho, porque diz que o ser humano passa a ser mercadoria."
 
Juiz há 30 anos – seu pai exerceu a mesma função por mais de quatro décadas –, Vieira de Mello lembra das origens do Direito do Trabalho, e seus princípios sociais, ao refutar outra afirmação comumente repetida, inclusive pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, de que o ramo trabalhista do Judiciário age de forma protecionista em favor do trabalhador. É a lei que protege, afirma, lembrando que se trata de uma relação entre desiguais.
 
Ele cita dado do Conselho Nacional de Justiça, segundo o qual quase 70% das ações referem-se a verbas rescisórias. "Onde é que está o excesso de proteção?", questiona. O magistrado foi um dos 18 juízes do TST, de um total de 27, a assinar ofício endereçado à presidenta do STF, Cármen Lúcia, criticando Gilmar Mendes por ataques à Justiça do Trabalho. A reação mostra que há uma posição majoritária no ramo trabalhista contra os ataques vindos de setores defensores da flexibilização. "Não é análise de mercado que vai ditar o funcionamento de uma sociedade. Porque quando você parte de uma premissa de que o mercado se tornou mais importante que o direito, então necessariamente acabou o direito, porque o pensamento é todo econômico."
 
O ministro também manifesta preocupação com uma decisão de Mendes, que deu liminar a uma entidade patronal suspendendo os efeitos de Súmula 277, do TST. O texto mantém a validade de convenções e acordos coletivos mesmo após a vigência, até a renovação. Ele observa que em uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), como no caso, a decisão monocrática (de um juiz) só cabe em casos de extrema urgência. Em relação à 277, a liminar foi dada depois de dois anos. Não há urgência alguma, diz o juiz do TST. "É a conveniência de quem decidiu", afirma.





 
Vieira de Mello considera temerário que o STF se debruce sobre temas trabalhistas. "Penso eu que não deveria o Supremo avançar sobre isso. Essa é uma questão que deveria o Parlamento resolver de alguma maneira. A decisão ataca um ponto, mas não as consequências que vão decorrer dessa decisão. São inúmeras, seja quanto à terceirização ampla, seja quanto negociado sobre o legislado. Tem inúmeras repercussões que não se fecham a partir da decisão judicial, que deveriam ser legislativas."
 
O Direito do Trabalho é um elemento da ordem jurídica que cria harmonia, dá prevalência à dignidade do trabalhador. O cidadão puramente com seus direitos políticos não é capaz de realizar sua plena identidade, ele tem de trabalhar para que tenha existência digna


 
Era uma norma (Súmula 277) que dava segurança às partes, inclusive o setor patronal?
 
Para ambas. Porque se você também mantém o que estava, evita os dissídios de greve. E possibilita que o empregado possa reivindicar mais ou rever alguma outra coisa que esteja incompatível com o momento que a empresa ou a categoria esteja vivendo. Você parte da ideia de que o contrato é de prestação sucessiva. Como é que num dado momento vai a zero, e aí você aguarda o julgamento de dissídios que demoram, para depois ter efeitos retroativos?
 
A categoria fica desprotegida...
 
Qualquer contato que você celebre com pessoa física ele segue, ele nunca vai a zero. Aqui na Justiça do Trabalho estamos diante disso de novo, contrato em que vai ao marco zero.
 
Tem se falado muito sobre um suposto protecionismo da Justiça do Trabalho, que de alguma maneira protegeria o trabalhador e prejudicaria as empresas. Como o senhor vê essa questão? A Justiça do Trabalho, por sua natureza, é protecionista, quer dizer, ela está cumprindo o seu papel?
 
Veja, vamos tentar colocar as categorias cada qual em sua prateleira. A legislação trabalhista nasceu como uma legislação que surgiu e se afastou do Direito Civil, porque tinha como escopo a regulamentação de uma relação jurídica assimétrica. Não há como se estabelecer prestações comutativas desse contrato, porque não há igualdade entre empregado e empregador – e nunca haverá. Então, ela é, por sua substância, uma legislação de ordem pública, ou seja, é inderrogável e irrenunciável.
 
Se é inderrogável e irrenunciável, o descumprimento dessa legislação gera a atuação da Justiça do Trabalho como forma de proteger o trabalhador materialmente. Então, não é a Justiça que está protegendo os trabalhadores, a lei protege, porque protege uma relação assimétrica, de desigualdade, de subordinação. Quando você ingressa num patamar de aferição de igualdade econômica no Brasil, hoje o nosso é um dos países que tem maior índice de desigualdade social.
 
Como é que se pode falar que o empregador e o empregado estão em igualdade de condições? É melhor, então, revogar a legislação trabalhista e vamos deixar o Direito Civil, de onde ele veio, como um ramo anárquico àquele, porque no Direito Civil civil se previa uma igualdade. Eu não consigo raciocinar com essa máxima que foi colocada.
 
Agora, você diz que os empregadores se queixam... O problema é que eles têm a capacidade de unificar uma queixa, que os trabalhadores não têm. Porque, se nós formos aferir, o grau de descumprimento da legislação trabalhista é altíssimo. Isso não foi considerado nesse análise. E não teria nenhuma sanção ao descumprir a lei? Quando o juiz interpreta o comando da lei, que é imperativo, ele está protegendo?
 
Essa é a obrigação do juiz do Trabalho. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) soltou recentemente uma estatística em que 68% das reclamações trabalhistas dizem respeito a verbas rescisórias e uma parcela salarial, ou salário-família, FGTS, seguro-desemprego ou uma prestação salarial não paga. Onde é que está o excesso de proteção, se quase 70% das ações dizem respeito a uma verba rescisória? Quer dizer, o discurso não fecha e torna-se falacioso.
 
O senhor falou que é melhor, então, revogar o Direito do Trabalho. Será que não é isso que alguns setores querem?
 
É exatamente isso que eles querem. Com esse discurso falacioso, só pode voltar para esse prisma. Se eu disser que a negociação coletiva vai resolver tudo... Qual a necessidade de uma norma jurídica de ordem pública se eu posso negociá-la, desde que seja o sindicato? E como é que o sindicato pode negociar se a representatividade dele é questionada, e eu não posso questionar minha representatividade, embora a Constituição diga que eu não sou obrigado a me filiar? O jogo está todo torto. Não tem como você vir com um discurso de purismo, que o sindicato representa... Alguns, sim, uma pequena parcela no Brasil tem essa representatividade, essa expressividade, mas não 80% ou 90% deles. Era preciso mudar isso tudo para que pudéssemos ter uma verdadeira legitimidade que decorreria da representatividade, e não da autoridade de uma lei.
 
Quer dizer, fazer primeiro uma reforma sindical...
 
Para que possamos estabelecer esses parâmetros. E, de outro lado, quando se fundamentam as convenções coletivas e os acordos, apenas se tem o estabelecimento de cláusulas, não diz o que aconteceu no passado. É o que eu disse, você rompe a cadeia, dizendo que vai ao marco zero quando termina o prazo de vigência. Porque não tem mais história, é como se eu afastasse a história da categoria.
 
Ainda não há previsão de quando o pleno do Supremo julgue isso, qual o cenário para as categorias que têm data-base, por exemplo, nos primeiros meses de 2017?
 
A partir da liminar, tudo já caiu. Todo o instrumento coletivo cuja vigência se encontrar após a decisão da liminar foi a zero, todo, até que ele (Gilmar Mendes) coloque o processo para apreciação do plenário. E mais: na ADPF somente matéria de extrema urgência é que deveria ser decidida monocraticamente, há uma restrição legal. E não obstante a matéria foi decidida monocraticamente depois de dois anos.
Não temos uma Constituição liberal nem social. Ela estabelece como fundamento da ordem jurídica a dignidade da pessoa humana, e em seu outro inciso a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Ou seja, ela faz um equilíbrio.


 
Isso eu iria perguntar: qual a urgência que se apresenta, depois de tanto tempo?
 
Nenhuma. É a conveniência de quem decidiu.
 
Na semana passada, em São Paulo, houve um encontro nacional de advogados trabalhistas. E a avaliação de consenso é de que a Justiça do Trabalho está sendo atacada por ser vista como empecilho para as reformas, para a flexibilização da lei, para a terceirização. O sr. também vê isso?
 
É preciso que nós tenhamos um marco inicial para raciocinar em torno desse tema. O marco inicial, na minha concepção, é o seguinte: estamos numa Constituição, num Estado democrático de direito. Não temos uma Constituição liberal e nem temos uma Constituição social. Essa Constituição estabeleceu como fundamento da ordem jurídica a dignidade da pessoa humana, e em seu outro inciso a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Ou seja, ela faz um equilíbrio. Eu não estou num Estado liberal, porque senão seria livre iniciativa, e não estou num Estado social porque seria exclusive a valorização do trabalho humano.
 
Então, o Direito do Trabalho é um elemento da ordem jurídica que cria uma harmonia porque dá prevalência à dignidade do trabalhador, a sua identidade como trabalhador – porque o cidadão puramente com seus direitos políticos não é capaz de realizar sua plena identidade, ele tem de trabalhar para que tenha uma existência digna. Aí se diz o seguinte: a Justiça do Trabalho tem obstaculizado o desenvolvimento do país, porque se flexibilizar o país terá mais condições de crescimento.
 
Duas falácias. Primeira falácia: a legislação trabalhista não é rígida, e sabemos que não é, posso despedir, tem denúncia vazia, tem uma série de coisas. Só tenho as garantias mínimas inscritas na Constituição, ela já sofreu inúmeras reformas. E, de outro lado, você diz que se houver flexibilização nós teremos mais emprego. Qual é a base empírica dessa informação? Zero. Nenhuma.
 
Não há nenhum estudo científico que diga que se houver flexibilização, vamos ter mais emprego e mais garantia de emprego. Ao contrário, quando você teve um país em que havia um menor índice de desemprego e uma empregabilidade alta, com reconhecimento, nós tínhamos, primeiro, circulação de dinheiro no mercado, e com isso você tinha uma inversão econômica que possibilitava um desempenho melhor, inclusive observando mercado interno.
 
De outro lado, você tem uma possibilidade de que as classes sociais ascendam em razão da constituição de configurações sociais, políticas e jurídicas novas, a partir do trabalho. Agora, se eu não tenho nada, isso vai ser a melhor para a economia? Ou se eu precarizar todo mundo, colocar todo mundo ganhando salário mínimo, que é o que vai ocorrer, e todas as construções históricas dessas categorias vão desaparecer? Porque não vai sobrar nada, todo mundo vai ser terceirizado.
 
Porque eu vou te contratar como jornalista se eu posso contratar como terceirizado? Isso vai fazer com que se estabeleçam melhores condições aqui no Brasil? Tem dois livros do Joseph Stiglitz (economista norte-americano, vencedor do prêmio Nobel em 2001), agora estudando a economia americana, ele diz que isso tudo é uma balela: se não houver uma inserção do trabalhador no âmbito das empresas, com uma sensação de pertencimento, não haverá economia, porque acabou a classe média americana, em razão desse raciocínio.
Eu queria que alguém provasse que flexibilizar cria empregos. O que vamos ter é o seguinte: dentro da classe de empregos formais reconhecidos, os terceirizados vão subir de 12% para quase o total.


 
Olha o que se fez em Portugal, na Espanha, na Itália, na Grécia, com relação às reformas que vieram precarizar as relações de trabalho. O resultado está lá. Você vai a Portugal, o país está recrutando idosos do mundo inteiro para morar lá, porque os jovens foram embora, todos os contratos são a prazo certo. Que economia é essa? Eu queria que alguém provasse que flexibilizando teremos mais empregos. O que nós vamos ter é o seguinte: dentro da classe de empregos formais reconhecidos, os terceirizados vão subir de 12% para quase o total.
 
Nós tínhamos é de estabelecer uma legislação que desse maiores garantias a esses terceirizados, e aí a reforma sindical poderia ajudar, porque se eles se integrassem num ramo de atividade teriam maior força de negociação, mas você dissolveu a categoria profissional, ela vai ficar desmembrando em não sei quantos sindicatos.
 
Com esse projeto que está para ser votado no Senado...
 
Esse projeto de terceirização rompe a lógica do Direito do Trabalho, porque diz o seguinte: o ser humano passa a ser uma mercadoria. Eu tenho uma empresa para locar ser humano, e a razão pela qual o Direito do Trabalho nasceu foi para dizer que isso não poderia acontecer. Qual a atividade da sua empresa? Locar ser humano.
 
Essa questão está nos princípios da OIT (Organização Internacional do Trabalho), não é?
 
Isso é o princípio básico que gerou toda a legislação trabalhista. O Código Civil falava em locação de mão de obra, que foi aí que nós surgimos. Revogaram isso e apareceu o Direito do Trabalho. Agora, o que está acontecendo? É o Direito do Trabalho voltando para o Direito Civil, com uma roupagem nova.
 
É um passo, ou muitos, para trás?
 
De muitos séculos, diria eu.
 
Esse ofício que os senhores encaminharam ao Supremo, a maior parte dos ministros do TST, mostra que dentro do Judiciário há uma reação contra isso, digamos majoritária?
 
É majoritária. Sem dúvida, no Judiciário trabalhista, há expressiva maioria no sentido da proteção do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho. Veja, ninguém está defendendo causa própria. Se alguma coisa mudar, obviamente tudo vai ser realocado, todos nós. Estamos defendendo é um ideal de um país mais justo. A nossa ideia é que não se pode viver sob a égide de uma Constituição liberal econômica. Não é análise de mercado que vai ditar o funcionamento de uma sociedade. Porque quando você parte de uma premissa de que o mercado se tornou mais importante que o Direito, então necessariamente acabou o Direito, porque o pensamento é todo econômico. Isso é o liberalismo clássico de centenas de anos atrás, e é o que estamos vivendo, incrivelmente, no século 21, o retorno à prevalência do mercado sobre o próprio Direito.
Como é se pode imaginar uma sociedade em que vamos ver um retorno quase ao século 19, em que o trabalhador vai trabalhar 12 horas, sabe-se lá, tem crianças, adolescente, jovens... Isso é barbárie


 
E não é só o Direito do Trabalho, que é o primeiro ponto. Depois vai ter o ambiental, tudo vai se justificar por força do desenvolvimento, então vamos acabar com tudo, desmatar tudo, acabar com os rios. Olha o resultado da Samarco aí, a importância de uma legislação e de ordem pública, que preserva valores difusos. Como é que se pode imaginar uma sociedade em que nós vamos ver um retorno quase ao século 19, em que o trabalhador vai trabalhar 12 horas, sabe-se lá, tem crianças, adolescente, jovens... Isso é barbárie.
 
Estamos no século 21, o homem já desenvolveu tecnologias expressivas, de conhecimento, de evolução, quando se falava que a ideia era aproximar-se do maior número de horas de lazer, estamos voltando pra estaca zero, uma elite de 1% que tem o equivalente a 90% da população. É esse o país que nós queremos? Eu sou juiz, meus filhos estão estudando para fazer concurso, trabalham. Quem vai ser sugado por esse efeito, que é como se você destampasse uma piscina e a água descesse toda, é a classe média. O filho da classe média vai ser terceirizado. A não ser que ele seja um gênio e tenha expressividade, aí ele vai conseguir um espaço diferenciado no mercado. Então, estamos caminhando para esse futuro a meu juízo nefasto, triste, em que a sociedade vai ser dividida em duas castas. Uma minoria, que é dona de tudo, e o resto, que trabalha para comer, para sobreviver.
 
Há algumas matérias no Supremo relativas à terceirização ou ao negociado sobre o legislado. É possível evitar que elas prosperem?
 
Veja bem, não seria esse o papel do Judiciário. Penso eu que não deveria o Supremo avançar sobre isso. Essa é uma questão que deveria o Parlamento resolver de alguma maneira. A decisão ataca um ponto, mas não as consequências que vão decorrer dessa decisão. São inúmeras, seja quanto à terceirização ampla, seja quanto negociado sobre o legislado. Tem inúmeras repercussões que não se fecham a partir da decisão judicial, que deveriam ser legislativas. A desconstrução das categorias, como é que se resolve isso, quem representa quem? O que faz com a pulverização, com a convenção coletiva, com as vigências de prazo? Tem uma série de coisas que dependem de uma reforma legislativa. Acho que o prudente seria deixar com que o Parlamento resolvesse. Bem ou mal, ele resolveria de um jeito ou de outro, e aí far-se-ia o controle de condicionalidade, ou de ilegalidade de A ou de B nas circunstâncias que se apresentarem. Agora, o risco desse ativismo é muito complexo. Por mais que haja uma boa intenção, uma necessidade, uma aparência de que é extremamente importante, mas isso é um pilar, uma coluna de um grande edifício sustentado por várias colunas. Se tirar uma, corre o risco de tudo cair.
 
Entre os seus pares no Tribunal Superior, qual é o sentimento?
 
Veja, nós somos juízes. Se o Supremo vier a decidir, nós vamos acatar e ver como ficará todo o sistema. Vamos ter de fazer uma reconstrução por meio da interpretação a partir daquilo que for decidido. Agora, o que nós estamos tentando é alertar a sociedade que não estamos defendendo interesses próprios, mas interesses da própria sociedade. A legislação trabalhista foi uma construção de muitas lutas sociais, não foi edificada simplesmente porque o Parlamento quis. É uma coisa que historicamente tem de ser tratada com certo equilíbrio, porque ora vamos ter governos mais liberais, ora mais sociais, e aí a lei não vai ficar indo e voltando. Então, uma reconstrução deveria se dar pela ordem legislativa, levando em conta tudo que se construir ao longo de anos, e não do interesse momentâneo ou oportuno como se fosse uma norma de Direito Financeiro ou Tributário para resolver uma questão temporal. O Direito do Trabalho é atemporal.


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