domingo, 14 de agosto de 2016

Brasil: muitos juízes, pouco juízo



Brasil: muitos juízes, pouco juízo

Por Flávio Aguiar

“Viver é muito perigoso… Querer o bem com demais força, de incerto jeito,
pode já estar sendo se querer o mal, por principiar. Esses homens!”
O chefe de jagunços Riobaldo, através de
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.

Vivemos hoje no Brasil um movimento autoritário, golpista, cujo objetivo é aleijar a esquerda, alija-la da disputa política, enquadrar em alguma coisa penal o seu principal líder – aliás, um dos maiores que o Brasil, a América Latina e o mundo jamais tiveram – destituir a primeira mulher presidenta do Brasil e desorganizar a Constituição de 1988, no sentido de tomar de volta para as elites reacionárias aquilo que o povo obteve como conquista: a presença significativa no Orçamento Federal.
A vanguarda deste movimento – como em 54 a vanguarda do movimento reacionário foi o “Memorial dos Coronéis” que reclamava dos aumentos “excessivos” do salário mínimo – hoje se encontra em um movimento que reúne juízes, procuradores, setores da Polícia Federal, jornalistas que povoam a mídia corporativa com suas diatribes ensandecidas. Este movimento, empalmando a causa de partes da classe média, identificadas com valores da alta burguesia, e ciosas de privilégios que vêm sentindo como perdidos em nome de reconhecer direitos aos “baixios” da sociedade, vem procurando por todos os meios criminalizar as esquerdas. Brandem o hissope (instrumento para aspergir água benta entre os fiéis de um rito religioso) da luta anticorrupção, mas enquadram o cenário político com um único olho, o que mira as esquerdas.
Nisto, nada há de novo na frente ocidental. Movimentos deste tipo sempre produziram um tipo especial de agentes do aparato jurídico, amparado pelo policial, que se caracteriza pela truculência em relação a suas vítimas, transformadas em réus de processos em que devem provar sua “impossível inocência”, ao invés do contrário – e pela subserviência ao que identificam como os valores dominantes nos “apartamentos de cobertura” da pirâmide social. “Impossível inocência”: a expressão se refere ao fato de que estas vítimas são pré-julgadas culpadas, e apenas depois se tornam réus.
O agente modelar deste tipo de operação é aquele que, esteja onde esteja, usurpa funções. O juiz se faz promotor, e acusa. O promotor se faz juiz, e julga. O policial se faz de ambos, investiga, mas acusa e julga. E hoje, no Brasil, tudo fica acobertado pela mídia corporativa, que recebe os vazamentos ilegais, acusa e julga. E os réus condenados previamente que provem sua inocência, uma tarefa impossível dentro das balizas desta mesma mídia, que já pré-julgou tudo e condenou todos os que quer condenar.
Há modelos históricos para este tipo de operação. Em outras vezes já apontei alguns. Roland Freisler, o juiz preferencial do regime nazista na Alemanha, que acusava e julgava, e gritava impropérios a seus réus nos tribunais. Andrey Vychiinsky, o juiz preferido de Stalin, que fazia o mesmo do lado soviético. Joseph McCarthy, o senador norte-americano que, nos anos cinquenta, denunciava, acusava, e julgava, embora no momento não estivesse num tribunal, seus acusados de fazerem atividades comunistas e antiamericanas (bolivarianas?).
Agora estamos diante de movimentos semelhantes. Com um agravante. Vychinsky e Freisler, como tinham o apoio integral dos seus líderes, não precisavam da mídia. McCarthy sim, e obteve, até o ponto em que a própria mídia começou a destrui-lo, a partir de um programa apresentado por Edward R. Murrow, na televisão, que denunciou o quanto o senador por Wisconsin se valia de uma clima opressivo criado pelo anticomunismo comum nos Estados Unidos durante a Guerra Fria.
Da mesma forma, este esquadrão de juízes, promotores e policiais que querem aleijar a esquerda, criminalizando-a com exclusividade, a ponto de se cogitar a absurda cassação do registro do PT (como se fez com todos os partidos em 1964, com o Partido Comunista em 1947, e novamente com todos os partidos na “ouverture” do Estado Novo), arma processos cujo resultado é definido de antemão: se cais na rede de acusados, estás condenado. Kafka, no Brasil de hoje, seria um autor realista, com seus O processoO Castelo, etc. Mas estes Robin Hoods dos mais ricos precisam e dependem da mídia. Dos “vazamentos seletivos”.
Deve-se revisitar um filme excepcional: O julgamento de Nuremberg, versão de 1961, dirigida por Stanley Kramer, que deu a Maximilien Schell o Oscar de melhor ator e a Abby Mann o de melhor adaptação de roteiro. O filme trata do julgamento de um grupo de juízes alemães que desistiram de seus princípios diante dos (des)mandos do regime nazista. O principal deles é Ernst Jennings (Burt Lancaster), um reputado jurista liberal que, dentre outros, julgou o caso de um cidadão judeu (baseado em eventos reais) acusado de ter relações sexuais com uma menor ariana (Judy Garland). Como ele mesmo confessa, embora houvesse indícios de que o acusado tinha propensões pedófilas, não havia provas. Mas isto não importava, sublinha Jennings em seu mea culpa. O acusado, confirma ele, não foi condenado porque seria um criminoso, mas porque era judeu. Ele estava condenado de antemão.
O mesmo acontece hoje, mutatis mutandis. Na sanha de condenar Lula e o PT – além de Dilma – a horda de juízes, procuradores e policiais é movida pela sentença que já traçaram. Assim como a horda de deputados e de senadores que votam pelo impeachment de Dilma não se baseia em nada real, apenas sua sede meio vampiresco de sangue e da ridícula (na verdade) fama que conseguiram, pela TV, em escala mundial, além dos favores do interino. Se for condenado, Lula não o será por algum crime que tenha cometido, mas porque é Lula, o presidente criativo que deve e vai figurar no panteão nacional ao lado de Vargas e Pedro II.
Faz algum tempo que este bando que o persegue – com apoio e instigação da mídia reacionária – não consegue encontrar algo novo contra ele. Então ficam requentando pratos feitos: a delação do Delcídio, o sítio em Atibaia, que não rendem muito, apenas o suficiente para que a nossa mídia provinciana e intempestiva produza manchetes na tentativa de neutralizar a verdadeira devastação que vem sendo feita nas hostes do governo provisório e adjacências.
Uma advertência deveria ser feita a estes Moros, Gilmares, Janots e janotas que se assemelham aos coronéis de 54. Freisler, Vychinsky, McCarthy entraram para a História. Na lata de lixo.
***
Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). 

A AMEAÇA EM GESTAÇÃO É ALGO MAIS PROFUNDO QUE A TRADICIONAL TROCA DE GUARDA

A ameaça em gestação é algo mais profundo que a tradicional troca de guarda
Roberto Amaral
O presidente do TSE, o inefável ministro Gilmar Mendes, após inexplicado café da manhã com a cúpula do PSDB, determinou a abertura de processo com vistas à cassação do registro do Partido dos Trabalhadores (PT), o partido da atual presidente da República e do ex-presidente Lula, enfim, partido que ganhou as quatro últimas eleições presidenciais.
A proscrição de um partido politico não é fato trivial em uma democracia. Na República inaugurada em 1946, no governo do Marechal Dutra e no auge da Guerra Fria, foi cassado o registro do Partido Comunista do Brasil que emergiria após mais de uma década de clandestinidade elegendo pouco mais de uma dezena de deputados federais e um senador (Prestes).
A exclusão dos comunistas do sistema político-partidário é consumada em janeiro de 1948, com a cassação dos mandatos de todos os parlamentares. Em seguida, o Brasil rompe relações diplomáticas com a União Soviética, caminhando para além das recomendações do Departamento de Estado dos EUA.
A última vez em que tivemos cassação de partidos políticos – e foram todos os de então – ocorreu com o Ato Institucional nº 2, de 1965, sustentado pelas baionetas do regime castrense.
O ministro Gilmar Mendes, “aquele que não disfarça”, é relator das contas de campanha da presidente Dilma Rousseff. Apesar de aprovadas essas contas, o ministro, militante irresignado, continua pedindo apurações, determinando diligências.
Foi também esse ministro o relator do mandado de segurança interposto pela advogada Marília de Paula Silveira – (professora do Instituto do qual o ministro é sócio majoritário) – com pedido de liminar, por ele concedido, impedindo a posse de Lula na chefia da Casa Civil da presidente Dilma e assim interferindo, direta e deliberadamente, na crise politica, visando ao seu agravamento e a uma saída contra o governo Dilma.
Não estamos diante de fato isolado, mas da demonstração de como o STF, por um de seus membros e agora presidente do TSE, participa, como ator, do golpe de Estado atípico em curso hoje no Senado Federal.
A iniciativa do ministro é concertada na primeira instância com iniciativas que – desde Sergio Moro até um juiz anônimo de uma vara federal do Distrito Federal, passando pelo Ministério Público de São Paulo – visa a, depois da humilhação e do linchamento moral, de que se encarregou a grande mídia, transformar Lula em réu, em condenado, em presidiário, afastando-o de qualquer possibilidade de disputa das eleições prometidas para 2018.
O golpe quer garantias de longevidade. Aliás – e eis um segredo de polichinelo – Lula já está, e de há muito, condenado, e para sua prisão já foi preparada a opinião pública; resta engendrar a acusação e organizar o processo.
Na insaciável fome de poder do novo Moloch não basta, portanto, a apropriação do mandato de Dilma Rousseff; mesmo ainda não concluída a manobra do impeachment, os presumidos novos donos do poder já cuidam de evitar o retorno dos decaídos.
Se é impossível derrotá-los seguindo o rito democrático das eleições, eliminem-se Lula e o PT. Se é impossível afastá-los da liça, elimine-se o processo eleitoral. É preciso liquidar o PT e jogar ao mar suas cinzas para que jamais renasçam, seja ele mesmo, seja o que chegou a representar no processo político brasileiro, incluídas as lutas sociais e sindicais e a organização popular pós-ditadura.
Esse é o preço antecipadamente cobrado para que tenhamos as eleições de 2018, porque essas terão de ser eleições consagradoras do status quo: o projeto neoliberal-conservador não pode ter sua continuidade ameaçada pela soberania popular.
O sistema tem viva a memória de 1956, quando o varguismo golpeado em 1954 retornou ao poder com as eleições de Juscelino e Jango.
Eleições sim, mas apenas com segurança.
O que fazer, porém, com as regras do jogo democrático? Às favas com elas, como louvava o coronel Jarbas Passarinho, recomendando ao general Costa e Silva a assinatura do Ato Institucional nº 5, conhecido como ‘o golpe dentro do golpe’.
O honrado senador Cristovam Buarque (com quem tive a honra de integrar o primeiro ministério do presidente Lula, não sei se ele ainda se lembra disso), na companhia de seus agora colegas Romero Jucá e Ronaldo Caiado, dirá que tudo isso está na ordem natural das coisas, lembrando certo personagem de Voltaire: “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”.
Só não vê o curso do golpe quem não quer. Ou quem não pode vê-lo para não entrar em crise com o próprio passado. E o golpe que nos assusta não é apenas este que se apresenta ameaçando efetivar a troca da presidente eleita por um vice perjuro e sem voto, porque o golpe é isto que se expõe à luz do dia, mas é também o que se escamoteia, o que se sonega, o que está por vir e que apenas se insinua nos atos do governo interino: a regressão social, a regressão política, a regressão econômica, a regressão conservadora. Enfim: a busca retroativa do passado travestido de modernidade.
O golpe em curso se distancia do putsch e da quebra da legalidade, o que, aliás, não representa qualquer novidade em nossa história, pois as elites econômicas sempre dispuseram de juristas competentes todas as vezes em que tiveram de intervir para ‘corrigir’ o processo eleitoral, pois o nosso presidencialismo admite eventuais vitórias de representantes de forças populares dissociadas do bloco hegemônico.
Esse golpe, contrariando o modelo clássico, não veio de surpresa, nem lançou mão da violência clássica. Tampouco se construiu de uma vez; é golpe de caráter continuado, que se instala através de manobras sucessivas, peça por peça, que, começando pela tomada do poder político, caminhará para a construção de uma nova hegemonia, conservadora, nos planos político e econômico.
Cuidadosamente planejado, instala-se como uma efetiva sedição levada a cabo nas entranhas do poder. Na busca do formalismo legal (os autores dos golpes, de todos os golpes em todo o curso da história, deles se envergonham), o golpe adquire sua feição transformista com a roupagem do impeachment, mas de um impeachment sem o crime de responsabilidade exigido pela Constituição, num julgamento de cartas marcadas, com votos já negociados e já anunciados.
É o velho e sonhado projeto político-empresarial que, com o concurso de setores majoritários do Poder Judiciário (em suas diversas instâncias, inclusive no STF) e de setores da burocracia estatal e do Ministério Público Federal, objetiva a remoção de um governo legítimo, derivado do voto e comprometido com os interesses populares, e sua substituição por um arranjo das elites para pôr em prática, projeto em curso, uma agenda antipopular que nenhum candidato defenderia em campanha eleitoral, e cuja efetivação – quem viver verá — exige um governo autoritário amparado por uma ordem legal adequadamente revista, como, aliás, já vivemos mais de uma vez, na história republicana.
É a promessa de uma ‘ditadura de novo tipo’, como primeira consequência do golpe parlamentar. Do pacto de elites receberá o apoio estrutural necessário, enquanto os meios de comunicação assegurarão o monopólio ideológico, fechando o círculo.
No altar desse pacto governante brilha o poder do chamado “mercado”, o ‘Rei Sol’ da modernidade, agente político sem carteira de identidade, sem CPF, sem residência conhecida, sem rosto, mas (por isso mesmo?) onipresente, poderoso, vigilante, fazendo efetivos seus interesses de classe. O projeto, de hoje e de sempre, não é necessariamente a presidência da República – o poder simbólico –, que pode ser exercido por delegação (como, aliás, ocorre nesta interinidade), mas o poder real, que já abocanhou com garras e presas e dele não se deixa apartar, como a hiena faminta que não abandona a presa.
É o controle do Ministério da Fazenda e suas adjacências, do Banco Central, do comércio externo, abocanhado pelo delatado chanceler, eterno presidenciável.
O ‘primeiro-ministro’ desse parlamentarismo de conveniência é o banqueiro goiano assalariado da banca internacional, Henrique Meirelles, cuja missão (ele cumpre missão, não se trata de sujeito histórico), anunciada, é um programa que compreende juros altos, ajuste rigoroso para os pobres e facilidades para o 1% que controla a Avenida Paulista, livre fluxo de capitais, flexibilização dos direitos trabalhistas e mais restrições aos aposentados, revisão das politicas de compensação social, desarticulação da escola pública, fragilização do Estado e desnacionalização da economia – a começar pela desmontagem do pré-sal.
Enfim, trata-se da implantação de governo que, como a gestão Campos-Bulhões de 1964, só pode ser sustentado por um regime burocrático-autoritário, naquele momento uma ditadura franca, agora, uma ordem constitucional ‘revisitada’ que dispensará a voz das casernas.
O que nos espreita no horizonte a olho nu é algo mais profundo, mais sério e ameaçador do que uma tradicional troca de guarda. Entre o céu e a terra há algo mais que a troca de Dilma por Temer. De uma forma e de outra, sem que a soberania brasileira tenha sido ouvida, perpetra-se o fim do Estado de bem-estar social prometido pela Constituição de 1988.


Fonte: Blog do Roberto Amaral, 14/08/2016

Serra quer implodir o Mercosul

Serra quer implodir o Mercosul

Por Marcelo Zero, Brasilia, 10 de agosto 16
Todas as alegações ridículas do governo golpista brasileiro e de seus sócios minoritários contra a Venezuela não passam de cortina de fumaça pseudojurídica para encobrir um fim político mesquinho: suspender a Venezuela do Mercosul a qualquer custo
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O governo golpista do Brasil, juntamente com seus sócios paraguaios e argentinos, decidiu não reconhecer a presidência pro tempore da Venezuela no Mercosul. Além disso, agora se recusa a participar de quaisquer reuniões ou atividades presididas pela Venezuela.
Ora, o governo golpista não pode deixar de reconhecer a presidência da Venezuela, pois ela está prevista claramente na normativa do bloco. O artigo 12 do Tratado de Assunção, que fundou o Mercosul, estabelece que a Presidência do Conselho se exercerá por rotação dos Estados Partes e em ordem alfabética, por períodos de seis meses. Por sua vez, o Protocolo de Ouro Preto, que definiu, em 1994, a estrutura institucional do Mercosul, estipula, em seu artigo 5, que a Presidência do Conselho do Mercado Comum será exercida por rotação dos Estados Partes, em ordem alfabética, pelo período de seis meses.
Trata-se de regra clara, autoaplicável e automática. Deixando a presidência a Argentina, assume o Brasil, deixando Brasil, assume o Paraguai, deixando o Paraguai, assume o Uruguai e deixando o Uruguai, como ocorreu agora, assume a….. Venezuela. O Tratado de Assunção é claro, o Protocolo de Ouro Preto é cristalino e a ordem alfabética, para os alfabetizados, é evidente.
Ao contrário da falsidade alegada pelo governo golpista brasileiro, não é necessário nenhum ato do Conselho do Mercado Comum para validar juridicamente essa rotação automática da presidência do Mercosul. Não há uma única decisão do Conselho do Mercado Comum sobre isso. Sendo a Venezuela Estado Parte do Mercosul e estando ela no pleno gozo de suas prerrogativas como membro do bloco, e está, ela tem de assumir a presidência. Essa é a regra acordada entre os Estados Partes e aprovada por seus poderes legislativos.
Mas, como se sabe, o governo golpista do Brasil não gosta muito de respeitar regras democráticas. Para quem teve o desplante de cassar mais de 54 milhões de votos, colidindo com a Constituição, afrontar tratados internacionais é como tirar doce de criança.
E, para um governo de acusados de corrupção, que cinicamente acusou a honesta presidenta Dilma Rousseff de crime para tentar se safar da Lava Jato, a exportação da hipocrisia é algo natural. Assim, o insigne Barão da Mooca, digno sucessor do Barão do Rio Branco, alega, como desculpa para sua decisão, que a Venezuela não cumprirá “disposições essenciais” à sua adesão ao bloco econômico; e que “torna-se evidente que se está diante de um cenário de descumprimento unilateral de disposições essenciais para a execução do Protocolo de Adesão da Venezuela ao Mercosul, que deverá ser avaliado detidamente à luz do direito internacional”.
Tal alegação é cômica. É de conhecimento até do reino mineral que nenhum Estado Parte do Mercosul cumpre integralmente com as normas acordadas do bloco. Nenhum. Inclusive o Brasil. Por isso, muitos protocolos e acordos importantes até hoje não conseguiram entrar em vigor. Por exemplo, o Brasil até hoje não ratificou o PROTOCOLO DE COLÔNIA PARA A PROMOÇÃO E PROTEÇÃO RECÍPROCA DE INVESTIMENTOS NO MERCOSUL. Tampouco ratificou o PROTOCOLO SOBRE PROMOÇÃO DE INVESTIMENTOS PROVENIENTES DE ESTADOS NÃO PARTES DO MERCOSUL e o ACORDO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA DO MERCOSUL, só para citar alguns. O mesmo ocorre com todos os outros membros do bloco.
Mas além de não terem ratificado vários protocolos e acordos negociados no âmbito do bloco, os Estados Partes também não cumprem, muitas vezes, as regras já em vigor. Nenhum membro do bloco, inclusive o Brasil, cumpre a Tarifa Externa Comum (TEC) em toda a sua amplitude. Mesmo as regras comerciais intrabloco muitas vezes são descumpridas. Basta olhar, a esse respeito, as inúmeras reclamações, principalmente na área comercial, que os membros do bloco fazem contra outros membros, tanto no âmbito do Mercosul, quanto até mesmo no quadro da OMC.
Portanto, quando o Brasil, Argentina e Paraguai reclamam que a Venezuela não está cumprindo ainda com todas as regras do seu Protocolo de Adesão ao Mercosul, é como assistir os rotos, bem rotos, falando do esfarrapado.
Quanto ao conflito interno da Venezuela, que é muito grave, ele não pode servir de motivo para impedir a Venezuela de assumir a presidência. Afinal, o Brasil vive situação semelhante, com o agravante de que aqui a ordem democrática já foi quebrada. Impeachment sem crime de responsabilidade é golpe. Atentado grave contra o Estado Democrático de Direito. Ergo, quem violou o Protocolo de Ushuaia foi o Brasil.
Todas essas alegações ridículas do governo golpista brasileiro e de seus sócios minoritários contra a Venezuela não passam de cortina de fumaça pseudojurídica para encobrir um fim político mesquinho: suspender a Venezuela do Mercosul a qualquer custo. Repete-se no Mercosul o que aconteceu no Brasil: inventam uma regra jurídica inexistente ou interpretação estapafúrdia de uma regra para tentar justificar um fim político concreto. No Brasil, foram as “pedaladas fiscais”. No Mercosul, é essa invencionice ridícula de que a presidência rotativa tem de ser aprovada pelos demais Estados Partes. O governo golpista brasileiro conseguiu exportar o modus operandi do golpe para o Mercosul.
No entanto, o golpe no Mercosul não é apenas para tirar a Venezuela do bloco. A eventual suspensão da Venezuela é apenas meio para um fim maior.
O chanceler do governo golpista brasileiro nunca escondeu seu total desprezo pelo Mercosul e a integração regional. Segundo ele, o Mercosul foi “uma farsa”, um “delírio megalomaníaco, que paralisou a política de comércio exterior brasileira.”.
Assim, a agenda de Serra para o Mercosul é sua implosão. Ele quer acabar com a união aduaneira do bloco, de modo a celebrar, com celeridade, acordos de livre comércio com quem “realmente importa”: EUA, União Europeia, Japão etc. Ele deseja transformar o Mercosul em mera área de livre comércio, uma espécie de Alcasul escancarada à concorrência predatória das nações mais industrializadas, na qual cada país fará o que bem entender. Se a Argentina quiser fazer um acordo de livre comércio com a China, tudo bem. Se o Paraguai quiser fazer um acordo de livre comércio com os EUA, tudo bem. Dessa forma, o bloco se diluirá na “globalização” e nas “cadeias internacionais de valor”. Perderá seu sentido estratégico de propiciar inserção soberana dos seus membros no cenário mundial.
Ora, a Venezuela é, atualmente, um obstáculo a essa implosão estratégica do Mercosul. Esse é o motivo último pelo qual ela tem de ser afastada. A questão democrática e o descumprimento de regras são desculpas esfarrapadas.
O pior de tudo isso é a cegueira estratégica dos golpistas. O Mercosul, com sua união aduaneira, ainda que incompleta, é vital para nossos interesses. Em 2002, exportávamos somente US$ 4,1 bilhões para o Mercosul. Já em 2013, incluindo a Venezuela no bloco, as nossas exportações saltaram para US$ 32,4 bilhões. Isso significa um fantástico crescimento de 690%, quase de oito vezes mais, em apenas 11 anos. E cerca de 90% do que exportamos para esse bloco são produtos industrializados. Assim, esse mercado é crucial para nossa indústria. Mas vamos perdê-lo, caso a união aduaneira seja extinta.
A própria relação bilateral com a Venezuela beneficia muito o Brasil. Entre 2003 e 2012, nossas exportações para esse país irmão subiram de apenas US$ 608 milhões para US$ 5 bilhões. Nesse período, a Venezuela nos brindou com um superávit comercial acumulado de US$ 29 bilhões. Exportamos para lá desde alimentos até produtos manufaturados sofisticados. Além disso, a Venezuela é vital para desenvolvimento da nossa fronteira amazônica norte e desempenha papel fundamental para o suprimento de energia elétrica aos nossos estados da Região Norte. Por conseguinte, trata-se de uma relação estratégica para o Brasil, que não pode ser fragilizada por preconceitos políticos e ideológicos, os quais não cabem numa política externa responsável.
O governo golpista brasileiro, depois de ter dado um tiro na democracia, quer também dar um tiro no Mercosul e no pé do Brasil.
A política externa brasileira está entregue a quem quer entregar o Brasil.


Meirelles defende privatização de estatais aptas a serem vendidas

LAÍS ALEGRETTI
DE BRASÍLIA
10/08/2016  15h36

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, defendeu nesta quarta-feira (10) que todas as empresas estatais que podem ser privatizadas, parcial ou integramente, devem ser vendidas.
"É muito importante que não se fique com estatais apenas para tê-las dentro do Estado. [...] Estamos discutindo a privatização do IRB (Instituto de Resseguros do Brasil). Devemos esperar alguns meses, mas existe uma determinação clara de privatizar", afirmou o ministro.
Em almoço com parlamentares, Meirelles disse, ainda, que é necessário melhorar o desempenho e a governança das empresas estatais.
Folha mostrou que, na busca de reduzir o rombo das contas públicas no próximo ano, a Fazenda calcula que o futuro programa de privatizações e concessões do governo do presidente interino Michel Temer irá render entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões ao caixa do Tesouro Nacional em 2017.
O governo está montando a lista do que pode ser privatizado e concedido ao setor privado, mas já conta com a venda da Caixa Seguridade, IRB, participações da Infraero em aeroportos e concessões de rodovias, portos e aeroportos.
No fim de junho, durante reunião com sua equipe, Temer orientou seus ministros a levantarem em suas áreas "tudo o que puder ser privatizado e concedido ao setor privado".
Na ocasião, no entanto, o governo já havia decidido que não colocaria nada à venda antes do julgamento final do impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff. Só depois, caso se confirme a efetivação de Temer, o governo daria o sinal verde nesta área. 

E como anda a Taxa de juros, Selic?

Ao ignorar os problemas associados ao austericídio, a mídia insiste em martelar na suposta 'competência técnica' dos integrantes do alto escalão temerário.


Por Paulo Kliass *
Carta Maior, 10 de agosto 16



O esforço hercúleo realizado pelos grandes meios de comunicação para blindar os membros da equipe econômica do governo interino parece que tem obtido algum resultado sobre o comportamento das pessoas em geral. A situação de crise aberta só tem se aprofundado a cada dia que passa: desemprego, número de falências, redução do consumo e da massa salarial, diminuição das verbas orçamentárias para serviços públicos essenciais, entre tantos outros aspectos. Mas o Brasil das editorias de economia parece ser outro.
 
Ao ignorar os problemas associados à receita do austericídio, os jornalões e as telinhas insistem em martelar na suposta “competência técnica e qualificação profissional” dos integrantes do alto escalão temerário. Preocupados apenas em disseminar a visão parcial do financismo a respeito da terrível situação do País, a imprensa pouco se preocupa com o fato de que a inflação continua praticamente nos mesmos níveis de antes e que as empresas do setor financeiro são as únicas a apresentar, de forma continuada e sistemática, seus vergonhosos ganhos bilionários.
 
O Brasil corre o sério risco de penetrar na pior depressão de sua história no último século e mesmo assim os especialistas não se atrevem a criticar as opções de política econômica que vêm sendo implementadas pela dupla de banqueiros no comando do governo. Um ex-presidente internacional do Bank of Boston em sintonia com um dos diretores do Banco Itaú revelam a que tipo de interesse os responsáveis pela economia estão preocupados em atender. Henrique Meirelles na Fazenda e Ilan Goldfajn no Banco Central (BC) vêm atuando de forma harmônica entre si, com o firme propósito de manter arrochada a política monetária. O argumento retórico e conceitual permanece sendo a necessidade de protagonizar o bom e velho combate sem tréguas à inflação. Um enorme equívoco.
 




Tripé continua firme e forte.
 
E aqui começamos a responder a pergunta do título do artigo. Afinal, como anda a SELIC? Com a finalidade de montar um teto protetor aos (ir)responsáveis pela economia, a imprensa parece se esquecer do que vem acontecendo com a condução da política monetária. Talvez esse comportamento d esconder os males se justifique pelo verdadeiro desastre que continua a ser praticado nesse quesito. Para não perecer injusto, é necessário reconhecer que algumas palavras foram dirigidas a Goldfajn, sempre elogiosas. E aqui elas parecem uma verdadeira seção “Caras” de cobertura da economia, lembrando aos leitores que as decisões do COPOM serão liberadas mais cedo ao final das reuniões e que as atas serão redigidas em uma linguagem menos inacessível. Sim, mas e daí?
 
O fato relevante é que a política monetária não sofreu nenhuma alteração em sua essência. Assim como o tripé da política econômica, que continua inalterado, com a permanência das seguintes características: i) regime de metas de inflação; ii) taxa de câmbio flutuante, formada apenas pela oferta e demanda de divisas; e iii) esforço pela geração de superávit primário. A política monetária não mudou pelo simples fato de que a taxa oficial de juros permaneceu nos mesmos níveis estratosféricos de antes.
 
A primeira reunião do COPOM sob a presidência de Goldfajn deliberou pela continuidade da SELIC no patamar em que estava. Em 20 de julho último o colegiado anunciou que a taxa permaneceria em 14,25% anuais. Com isso, o Brasil teve a oportunidade de comemorar um ano dessa verdadeira desgraça que se abate sobre o conjunto da sociedade. Lembremo-nos todos que em 29 de julho de 2015, o mesmo COPOM havia decidido aumentar a SELIC dos então 13,75% para o nível em que estamos até hoje.
 
SELIC nas alturas: remédio equivocado.
 
Todos sabemos o enorme esforço a que indivíduos, famílias, empresas e governos são submetidos para suportar os efeitos provocados por tal orientação de política econômica. No entanto, o mais trágico é que nem mesmo os argumentos retóricos são sustentados quando se confrontam os dados da realidade. Por que a SELIC deve ser tão alta? Os manuais tradicionais de macroeconomia insistem que esse é o único mecanismo eficiente para combater a alta dos preços. Assim, para evitar a volta da inflação, a sociedade deveria sofrer mesmo com os efeitos recessivos derivados do arrocho monetário. Essa tese, por si só, já é bastante polêmica. Mas mesmo assim, a manutenção da SELIC nas alturas não atuou como elemento de redução da inflação.
 
Senão, vejamos. Em julho do ano passado, o IPCA acumulado de 12 meses havia atingido 9,6%. Realmente, um número preocupante, um tanto acima do teto da meta aceito pelos órgãos de governo e pactuado pelos agentes econômicos - 6,5% ao ano. Porém, o diagnóstico de que se tratava de um processo de alta de preços provocado por excesso de demanda não se justificava de forma alguma. Provocar recessão não era de modo algum remédio para aquele problema.
 
O resultado ao longo desse ano todo foi que a SELIC se manteve olímpica e a inflação praticamente não diminuiu desde julho passado. Pelo contrário, o IPCA se aproximou de 11% em janeiro e agora está por volta de 9% ao ano. Os únicos beneficiados por esse tipo de orientação foram os setores que se mantêm ancorados nos ganhos parasitas do reino das finanças. Vivemos o pior dos mundos: juros elevados e inflação também alta.
 
Além dos efeitos nefastos sobre o nível de atividades e as consequências sociais deles derivadas, a política monetária piorou ainda mais as dificuldades na seara da política fiscal. Ao longo desses mesmos 12 meses em que a SELIC esteve a 14,25%, o governo dirigiu o montante de R$ 450 bilhões do orçamento federal para o pagamento de despesas com juros da dívida pública. A lógica perversa do superávit primário exige um enorme esforço de contenção de gastos em saúde, educação e similares, ao passo que libera completamente as despesas de natureza financeira praticadas pelo Estado..
 
O mesmo BC que define a política monetária é também o órgão público responsável pela regulação e normatização das empresas que atuam no sistema financeiro. Apesar de tal atribuição legal e institucional, o banco não cumpre com tal papel. Pelo contrário, faz cara de paisagem frente às investidas dos bancos e demais empresas da área contra os interesses dos usuários, sejam empresas ou famílias. A cobrança sistemática de tarifas exorbitantes pelos serviços oferecidos é impressionante. A prática de spreads escandalosos sobre as operações de crédito é inaceitável. Ao longo desse mesmo ano aqui analisado, a média da taxa de juros para operações com pessoas físicas saiu de 58% para 71% ao ano. E a taxa média das operações com cartão de crédito aumentou 100 pontos percentuais ao ano, saindo de 371% para 471%. Uma loucura! Uma espoliação praticada com a devida chancela e subserviência do órgão que deveria fiscalizar os excessos praticados pelos bancos.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Em tese de doutorado, pesquisadora denuncia a farsa da crise da Previdência no Brasil forjada pelo governo com apoio da imprensa

Em tese de doutorado, pesquisadora denuncia a farsa da crise da Previdência no Brasil forjada pelo governo com apoio da imprensa

Denise Gentil-deficit da previdência
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Com argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.
O superávit da Seguridade Social – que abrange a Saúde, a Assistência Social e a Previdência – foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente de ordem financeira – condena a professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado “A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005” (clique e leia a tese na íntegra – livre de vírus).
Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.
Jornal da UFRJ: A ideia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?
Denise Gentil: A ideia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfarestate (Estado de Bem- Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo. O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.
Jornal da UFRJ: No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.
Denise Gentil: Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.
Jornal da UFRJ: A que números você chegou em sua pesquisa?
Denise Gentil: Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.
Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).
Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.
Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.
Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.
Jornal da UFRJ: Há uma confusão entre as noções de Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão. Isso é proposital?
Denise Gentil: Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.
É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de hoje, entretanto, frequentemente isola a Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo, um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.
Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas circunstâncias.
Jornal da UFRJ: E são recursos que retornam para a economia?
Denise Gentil: É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.
Jornal da UFRJ: De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?
Denise Gentil: A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficou conhecida como o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo para as de menor.
Jornal da UFRJ: Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?
Denise Gentil: É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.
Jornal da UFRJ: O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar outras despesas?
Denise Gentil: A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento chamando de “Orçamento Fiscal e da Seguridade Social”, no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para cobrir o “rombo” da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente se passa?
Jornal da UFRJ: Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?
Denise Gentil: Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não estão suficientemente consolidados.
Jornal da UFRJ: Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?
Denise Gentil: Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.
Jornal da UFRJ: A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia de renda mínima para a população, tem papel importante como instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?
Denise Gentil: Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínimapara a população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e atenuado a desigualdade da renda.
Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de forma permanente.
Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que precisa ser transformada para que a distância entre ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada através de certos indicadores.
Jornal da UFRJ: Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos últimos anos?
Denise Gentil: A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para que haja mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal elemento que tem que entrar no debate sobre “crise” da Previdência. Não temos um problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.
Fonte: jornal da UFRJ