segunda-feira, 27 de março de 2017

Previdência: uma reforma draconiana justificada por mitos e palpites catastrofistas sobre o futuro


SÁBADO, 25 DE MARÇO DE 2017

Previdência: uma reforma draconiana justificada por mitos e palpites catastrofistas sobre o futuro

Será preciso entrar no mercado de trabalho com 16 anos e permanecer no emprego formal por 49 anos ininterruptos.

Eduardo Fagnani

A Reforma da Previdência unifica as regras para todos os segmentos, acabando com diferenciações previstas pela Carta de 1988, dadas as assimetrias entre gêneros e entre campo e cidade. Homens e mulheres, rurais e urbanos, trabalhadores privados e servidores públicos terão de comprovar idade mínima de 65 anos e 49 anos de contribuição para terem acesso à aposentadoria com valor integral. Nesse caso, será preciso entrar no mercado de trabalho com 16 anos e permanecer no emprego formal por 49 anos ininterruptos. Se estudar e começar a trabalhar com 24 anos (média da OCDE), terá aposentadoria integral aos 73 anos.

Como amplamente demonstrado no documento “Previdência: reformar para excluir?”, trata-se de aberração confrontada com as condições do mercado de trabalho e com a realidade socioeconômica e demográfica trabalhista do país. A reforma é injusta por impor, num país desigual, regras ainda mais rígidas que as praticadas em nações igualitárias, onde a idade de 65 anos e tempo de contribuição de 35 anos "não é o mínimo, mas a referência". É um escárnio inspirar a reforma brasileira em modelos de países igualitários, porque há um abismo a separar o contexto histórico e as condições de vida daquelas nações e o contexto histórico e condições de vida vigentes no Brasil, sociedade com longo passado escravagista, de industrialização tardia e com incipiente experiência democrática.

Essas diferentes condições traduzem-se em profundas desigualdades e heterogeneidades socioeconômicas, demográficas e regionais. O documento deixa esse ponto claro ao apresentar diversos indicadores comparativos (Brasil e países desenvolvidos). A conclusão é facilmente compreendida pela seguinte alusão futebolística: em todos esses indicadores, os países desenvolvidos estão na “Série A” e o Brasil na zona de rebaixamento da “Série D”. A gravidade desse quadro se intensifica se olharmos essas desigualdades no contexto da heterogeneidade regional brasileira. Menos de 1% dos mais de 5500 municípios brasileiros tem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) semelhante aos países europeus. Mais de 65% deles possui IDH "Médio" (semelhante ao de Botsuana), IDH "Baixo" (padrão verificado em Zâmbia) e IDH "Muito Baixo" (algo próximo da Etiópia). No Município de São Paulo a expectativa de vida média é de 76 anos, mas em Cidade Tiradentes não ultrapassa 54 anos. Esse é um retrato do Brasil.

Ao unificar as regras para todos os segmentos, o governo ilegítimo desconsidera as desigualdades de gênero e as heterogeneidades da zona rural brasileira. Como se sabe, mais de 70% da pobreza extrema está situada na zona rural do Nordeste. Não é justo que o trabalhador rural do Nordeste do Brasil seja submetido a regras de aposentadoria mais exigentes que as aplicadas ao trabalhador urbano da Escandinávia. Uma das maiores crueldades é a elevação da carência mínima, de 65 para 70 anos, para a concessão do benefício assistencial (BPC) a idosos socialmente mais vulneráveis (renda familiar per capita de ¼ do salário mínimo) e portadores de deficiências, que hoje beneficia mais 16 milhões de pessoas. Esse indivíduo, expulso do sistema, se chegar aos 70 anos, será condenado à pobreza extrema, até que morra, pois receberá pensão inferior de valor arbitrado pelo governo.

Em síntese, o ímpeto destruidor da reforma que se estuda no Brasil extingue o direito a proteção à velhice garantido no artigo 25 da clássica Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, pois a maior parte dos brasileiros não gozará os benefícios do direito humano a um padrão de vida que assegure atenção à saúde e bem-estar a cada um e respectiva família, inclusive "o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle".

Com a reforma, os trabalhadores ativos sem proteção (37% do total) jamais serão integrados; e a eles, se juntará uma massa de novos trabalhadores expulsos, pelo aumento da informalidade (vide Reforma Trabalhista), por não terem capacidade contributiva, por não terem saúde para continuar no trabalho, e por saberem que é inútil contribuir para fazer jus a benefício inatingível. Daí advém uma grave consequência: a quebra financeira da previdência social, pela retração das receitas provenientes das camadas mais pobres, intensificada pela fuga das classes mais ricas para o setor privado. “Reformar hoje, para quebrar amanhã” seria o slogan mais apropriado para a reforma de Temer.

Premissas questionáveis

É fato que a população está envelhecendo. Mas isso não implica aceitar o fatalismo demográfico e a ideia de que "não há alternativas". Democracias desenvolvidas enfrentaram e superaram essa questão no século passado e gastam mais que o dobro em previdência, como proporção do PIB, na comparação com o Brasil.

Essa visão catastrofista apoia-se no aumento da "razão de dependência de idosos" (menor proporção de trabalhadores contribuintes, para maior número de aposentados). Esse indicador parte de premissa falsa: o financiamento da previdência não depende unicamente da contribuição do trabalhador ativo. Os constituintes de 1988 se inspiram no clássico modelo tripartite de financiamento da Seguridade Social amplamente difundido na Europa a partir de 1945 onde, atualmente, quase 50% dos recursos provem da “contribuição do governo” (impostos gerais).

Outro equívoco é que esse indicador expressa relações produtivas características da Segunda Revolução Industrial centrada na superada “base salarial fordista”. Com a Quarta Revolução Industrial, nesse século 21, a estrutura de impostos deve deixar de incidir sobre a base salarial (que só diminui) e passem a incidir sobre a renda e riqueza financeira (que só aumenta). Também é preciso considerar que o problema não está na demografia, mas no fato de o Brasil não ter ainda modelo econômico compatível com as necessidades do seu próprio desenvolvimento.

O "déficit" da previdência é outra "bomba relógio" de ficção. Tem-se aí uma típica "pedalada" contra a Constituição, pois o Brasil, desde 1988, segue o modelo tripartite clássico de (Empregador, Trabalhador e Governo) adotado em diversos países da OCDE para financiar a Seguridade Social. E, para que o governo passasse a ter recursos para cumprir sua parte no financiamento da previdência, os constituintes de 1988 criaram três novas contribuições sociais. O famosíssimo suposto "déficit" vem de a área econômica de sucessivos governos não contabilizar a "Contribuição do Governo" como receita da previdência. Desde 1989, a área econômica captura esses novos recursos criados pela Constituição de 88. E o Ministério da Previdência não considera a previdência como parte da seguridade; assim fazendo desobedece o que determinam os artigos 194 e 195 da Constituição. Em suma, o “déficit” é fruto do recorrente desprezo pela Constituição da República.

Palpites catastrofistas sobre o futuro. 

“Se nada for feito” o "déficit" da previdência “será de 17% do PIB” diz o Ministério da Fazenda. Economistas ligados aos bancos dizem que “atingirá 23% do PIB”. É uma vergonha que previsões deste tipo sejam feitas sem amparo científico. É um escárnio que a extinção do direito a proteção à velhice no Brasil seja justificada pelo terrorismo econômico com base em “modelos” de projeção atuarial ultrapassados, sucateados e, intencionalmente, enviesados.

Até o dia 14 de março último a sociedade não conhecia o tal “modelo” que endossa o cataclismo anunciado. Nesse dia, um grupo de pesquisadores, denunciando o fato, lançou o documento “A Previdência Social em 2060: as inconsistências do modelo de projeção atuarial do Governo brasileiro”. E, pasmem, no dia seguinte, na audiência da Comissão que trata da PEC 287 no Congresso Nacional, um representante do Ministério da Fazenda disse que o governo agora tem um novo “modelo”. Entretanto, em sua exposição, apresentou planilhas “elaboradas na noite anterior”.

É digno de nota que em resposta aos Requerimentos de Dados sobre Benefícios solicitados pelo Deputado Ivan Valente (PSOL-SP) e pelo Senador Lindberg Farias (PT-RJ), o Ministro da Fazenda emitiu Nota (GGEDEA n.05 de 13 de março de 2017) explicitando as limitações para o atendimento das demandas parlamentares, por tratar de “uma extração onerosa, tanto em termos financeiros como em tempo necessário para a sua execução, cujo valor não está previsto no orçamento atual da Secretaria de Previdência com a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev)” (grifos meus). 

Outro problema aventado pelo Ministério da Fazenda é que após extinção do MPAS, o INSS “passou a ser uma autarquia subordinada ao Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA)”. Em função desses fatos, o Ministro sugere que os requerimentos parlamentares sejam encaminhados para a Dataprev e MDSA!

Há, de fato, um modelo? Ou se trata de mais e mais palpites bem informados, meras conjecturas sem amparo técnico e científico? Quais parâmetros suportam tais projeções tendencialmente ruinosas? Quais variáveis são utilizadas? Quais premissas embasam os prognósticos para 2060? Se há modelo, ele deve ser objeto de amplo debate. Dada a importância crucial dessas projeções para as decisões que serão tomadas no presente, a sociedade e o Parlamento tem o dever de exigir que o governo abra a "caixa preta" e apresente para a sociedade os critérios utilizados para sustentar seu discurso.

Em suma, estamos na iminência de uma reforma radicalmente excludente da Previdência que é justificada por números supostamente “irrefutáveis”, mas desconhecidos dos brasileiros que serão as vítimas da reforma-catástrofe.

Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT-IE-UNICAMP) e coordenador da rede Plataforma Política Social (www.plataformapoliticasocial.com). 

Texto original:
 CARTA MAIOR

Previdência: o rei está ficando nu

SÁBADO, 25 DE MARÇO DE 2017

Previdência: o rei está ficando nu

As pessoas começam a perceber que a previdência está equilibrada em termos financeiros. Caso insista na aprovação da maldade, o rei corre risco de ficar nu

Paulo Kliass *


A dinâmica do movimento político é mesmo surpreendente. Já dizia o falecido político mineiro Magalhães Pinto que a política é como as nuvens no céu: você olha em um determinado momento, está de um jeito. Passados alguns minutos, você vai conferir a configuração acima da tua cabeça e está tudo mudado. Se já é difícil entender o fenômeno em si, a tarefa torna-se ainda muito mais complexa ainda quando se tenta fazer algum tipo de previsão.

Depois de ter conseguido aprovar a chamada “PEC do Fim do Mundo” no final do ano passado com relativa facilidade na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o governo começa agora a enfrentar a realidade da chamada resistência generalizada. Aquela emenda constitucional estabelecia o congelamento das despesas sociais do orçamento por longos 20 anos e foi aceita pela maioria dos parlamentares ainda muito influenciados pelo discurso uníssono do governo e da imprensa em torno da necessidade imperiosa de um ajuste fiscal rigoroso.

Apesar de todo o debate que os opositores tentamos abrir na sociedade a respeito da irresponsabilidade criminosa subjacente àquela medida, o fato é que a reação popular não foi forte o suficiente para impedir o avanço da proposição e sua aprovação em 13 de dezembro. Até a data parece ter sido escolhida com bastante empenho e atenção pelos dedicados assessores palacianos. Em 1968, no mesmo dia, havia sido editado o famigerado AI-5, quando o Brasil mergulhou de forma profunda na pior fase da ditadura militar.

Não obstante a amplitude do arsenal de maldades envolvidos na mudança constitucional válida por 2 décadas, talvez a pulverização das atrocidades a serem cometidas no futuro tenha dificultado o sentimento de revolta da maioria da população. Por mais que o Brasil esteja afundado em uma crise econômica e social sem precedentes, assistimos a um inexplicável grau de apatia e consentimento das forças sociais. Essa relativa passividade fica ainda mais difícil de ser compreendida em se tratando de redução das verbas públicas dedicadas a temas como previdência, saúde, educação, assistência e tantos outros tão necessários em momentos como o que vivemos atualmente.

Reforma da Previdência: desaprovação generalizada.

No entanto, a reforma da previdência oferece um quadro bastante distinto. A proposição é muita mais incisiva em mudanças objetivas e claras. Em se tratando de uma PEC que retira direitos de forma ampla e universal, quase todos os indivíduos são atingidos - de forma direta ou indireta - pela matéria. Seja pelo risco oferecido aos que já estão aposentados, seja pela retirada de direitos dos que ainda estão na vida laboral ativa, seja ainda pelo completo descrédito que oferece às futuras gerações que ainda pretendem ingressar na fase de trabalho de suas vidas.

Assim, a questão política fica mais sensível e as próprias pesquisas encomendadas pelo núcleo duro do governo sistematicamente têm apresentado um cenário de elevada impopularidade dos temas sugeridos para a mudança previdenciária. Tendo já decorrido mais da metade do mandato dos parlamentares eleitos em outubro de 2014, os deputados começam a colocar na balança também a reação dos eleitores frente a tal medida. O Presidente começa, literalmente, a temer sobre a sua capacidade de tratorar o Congresso, como ocorreu em dezembro.

As advertências começam a pipocar aqui e ali. Dissidências no interior da própria base aliada são reveladas e emergem na superfície do cenário da disputa de poder. Líderes políticos conservadores se levantam quando o tema volta à baila, como Paulinho da Força Sindical ou dirigentes do PTB, como Arnaldo Faria de Sá. Ainda que não tenham abandonado seu perfil conservador em termos de projeto de país, tais referências do quadro partidário mais à direita expressam também o sentimento de suas bases sociais. Nesse debate, em particular, a contestação aberta da política oficial em matéria considerada “estratégica” pelo Palácio do Planalto não deve ser menosprezada.

Assim, o governo reconhece a importância de tais sinais emitidos e é possível que passe a levá-los em consideração . Por exemplo, pode incorporar a leitura da temperatura a partir da métrica oferecida pelos termômetros desses políticos de sua base, mas que mantêm algum grau de contato com o sentimento do pulso popular. Não é por outra razão que até mesmo o relator da matéria, escolhido por sua extrema lealdade e dedicação ao projeto de Temer, já sinaliza para a necessidade de alguns recuos organizados na tropa aliada. O deputado Artur Maia (PPS/BA) já avisou que a reforma não será aprovada da “forma como foi enviada” pelo Executivo. Isso significa que já avança a incorporação de críticas ao projeto.

Rachas na base aliada.

De outro lado, o núcleo duro começa a enfrentar problemas com os próprios partidos da base aliada. Estão aí alguns dos exemplos mais recentes de questionamento da capacidade de manter o grupo unido na defesa das maldades. Esse foi o caso sintomático das manifestações de caciques do PMDB a favor da liberação do voto dos deputados do partido, bem como o anúncio do PROS e do PSB de que seus integrantes votarão contra o texto enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional.

Nesse contexto ganhou relevância também a atuação pró ativa do amplo leque de entidades, especialistas e pesquisadores envolvidos com o tema. Apesar do evidente boicote patrocinado pelos principais órgãos de comunicação às vozes críticas ao projeto de Temer, conseguimos furar o cerco à informação por meio das redes sociais e até mesmo por meio de peças publicitárias encaminhadas por associações que se manifestaram claramente contra a proposta redutora de direitos.

Nesse momento em especial, a divulgação das informações reveste-se de fundamental importância. À medida que a população vai tomando consciência a respeito do tamanho das maldades incluídas no texto da PEC 287, cada vez mais vai ficando difícil para o governo conduzir a tramitação com a folgada maioria que ele se gaba de manter no interior do Parlamento. Mais debate e mais luz no assunto reforçam o sentimento de indignação popular contra a medida. E esse movimento coloca mais interrogação na cabeça dos deputados preocupados com sua imagem eventualmente arranhada perante o eleitorado.

Ainda que a preocupação não tenha se convertido em desespero, a luz amarela parece ter acendido nos dirigentes do governo. A tentativa destrambelhada de promover censura à divulgação de material contrário à Proposta revela tal dificuldade em lidar com a generalização crescente das críticas. Essa mesma motivação levou o Executivo a se apoiar em um esquema de publicidade típico de quem se vê acuado em sua estratégia. Na direção oposta a todo o discurso a respeito da crise fiscal e da necessidade de cortar despesas secundárias, o governo paga verbas milionárias para difundir a campanha mentirosa a favor das mudanças nas regras previdenciárias.

Os grandes jornais e as redes de televisão martelam cotidianamente as versões patrocinadas pelo Ministério da Fazenda a respeito da urgência da matéria e da catástrofe iminente caso a medida não seja aprovada. Matérias e colunas de “especialistas” buscam desqualificar os argumentos apresentadas pelos estudos que negam o “déficit estrutural” do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Esse é o caso do excelente documento “Previdência: reformar para excluir?” conduzido pela ANFIP e pelo DIEESE. Ali estão apresentados os números baseados nas estatísticas oficiais da administração pública federal e que evidenciam a manipulação de informações para justificar o desmonte previdenciário.

Isolamento de Temer e impopularidade da reforma.

As pessoas começam a perceber que o sistema da seguridade social está equilibrado em termos financeiros. Existe até mesmo um orçamento anual aprovado pelo poder legislativo tratando do tema que engloba previdência, saúde e assistência social. O ponto sensível é que o Executivo se apropria das fontes de receita tributária que deveriam ser destinadas para esse fim e as utiliza para promover o famigerado superávit primário.

Na verdade, o problema de imagem começa em casa. É amplamente conhecido o fato de que o próprio Temer se aposentou aos 54 anos e recebe mensalmente salários somados a benefícios previdenciários em valores altíssimos. Ora, nessas condições, como justificar politicamente que o problema se resolveria com elevação da idade mínima para 65 anos, a exigência de 49 anos de contribuição e a proibição de acumulação para os setores da base de nossa pirâmide social?

Quase todos os dirigentes políticos que se lançam a clamar contra os supostos abusos do regime previdenciário estão no conjunto dos que usufruem dos benefícios desse mesmo sistema. Além disso, uma boa parte deles deverá constar da tão aguardada quanto temida “lista de Janot” - quando finalmente deverão ser oficializados os boatos vazados a respeito dos denunciados em esquemas de corrupção em vários níveis de governo e de ampla coloração partidária.

O aprofundamento da crise econômica e seus efeitos sociais operam como condimento para o crescimento da insatisfação popular e para o aprofundamento dos índices de impopularidade de Temer. O governo vai perdendo quadros e os colaboradores que ficam aos poucos vão perdendo as respectivas vestes. As denúncias de corrupção não cessam de vir à tona, mas o governo nada faz com os acusados de sua proximidade. Ao contrário, a cada dia que passa o presidente perde mais o prurido e o pudor. A sua imperdoável fala no dia internacional das mulheres revela sua enorme dificuldade de operar em sintonia com seu tempo e com as aspirações da maioria da população.

Caso insista na aprovação da maldade previdenciária, o rei corre risco de ficar nu.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Texto original: CARTA MAIOR

HISTÓRIA O sítio da tortura

O sítio da tortura

Na zona sul de São Paulo um sítio isolado guarda histórias de terror que podem ajudar a entender um dos pontos obscuros da ditadura, os centros clandestinos de tortura. E a assombrosa colaboração civil
“Você está em poder do braço clandestino da repressão. Ninguém pode te tirar daqui”, é o que você ouve quando chega no sítio, depois de mais de uma hora metido no banco de trás do fusquinha com um capuz quente na cabeça, e a cabeça entre as pernas.
Você foi apanhado na Avenida Brigadeiro Luis Antônio, uma das mais movimentadas de São Paulo. Te enfiaram dentro do carro, dois homens grandes, meteram o capuz. Então você é todo ouvidos e corpo, e cada balanço ou ruído vai se gravando na sua mente tão vivo que você se lembrará deles para o resto da vida.
Minutos depois, pegam a estrada. Tráfego intenso. Saem da cidade, estradinha de terra, passa um trem, devagar. Quando o carro finalmente estaciona, você ouve a frase de boas-vindas e, apavorado, consegue memorizar o chão de cimento, por onde é empurrado antes de ser arremessado por escada que leva a um lugar subterrâneo. Os seus algozes chamam aquilo de “buraco”, com razão. Não há tijolos, nem paredes, o calor é forte, cada vez que você apalpa à volta, caem blocos de terra molhada. O chão é lodoso. Seu cativeiro é úmido e infinito.
Quando te tiram a roupa – você vai ficar assim por muito tempo. Primeiro: o pau-de-arara. Trata-se de um invento simples, bem brasileiro. Uma barra de ferro apoiada sobre cavaletes, onde te penduram enrolado, pesando sobre os braços e pernas. Eles te batem, te chutam, dão choque elétricos; nada de maquininha de Tio Sam, são fios desencapados que chegam diretamente no sovaco, na barriga, na boca.
Se divertem com isso, assim como se divertiram desde sempre aqueles que têm o poder de torturar. Quando você fraqueja, te levam a outra sala – piso de taco – onde perguntam tudo o que sabe, que atordoado você tenta esconder. Eles não vão te deixar em paz.
Você se pergunta: por que está ali?
É 1975. Já se passaram dez anos desde o golpe militar no Brasil. O novo governo dos milicos (general Ernesto Geisel) prometia uma volta pacífica à democracia, com um governo civil.
Depois de prender centenas de opositores, mandar milhares para o exílio e exterminar os grupos de resistência armada, a ditadura começava a querer ser vista como “ditabranda”. É claro que você não acreditava, mas estava em todos os jornais. De qualquer forma, você era conhecido publicamente, não devia temer. Jamais se envolveu na luta armada; advogado, comunista do Partidão (PCB), foi vereador e deputado federal, você sempre acreditou na política. Pela sua atuação, já havia sido preso. Mas torturado, jamais. Até o dia 1 de outubro de 1975.
Você já tinha ouvido falar nesse tipo de lugar. O chachoalhar do carro rumo à zona rural só confirmou que você iria sofrer mais – que iria morrer. Não estavam te levando para uma delegacia, onde bem ou mal alguém poderia te ver e lembrar de você. Estava caindo nos braços clandestinos do horrendo regime militar.
Existiam dezenas de lugares como esse. Eram os centros clandestinos de tortura. Ao mesmo tempo em que o governo militar começava a falar em abertura, os milicos e policiais civis usaram esses lugares para seguir com seu velho método de fazer as coisas. Em meados da década de 70, o governo falava em acabar com as torturas, e os “teatrinhos” foram banidos: aquelas cenas de falso tiroteio armadas para encobrir a morte de gente que fora na verdade morta sob tortura (era assim que os policias chamavam a encenação descarada).
Nos centros clandestinos, torturava-se em segredo, e não raro se sumia com os corpos. Muitos dos desaparecidos da ditadura brasileira passaram por eles.
Ali, fora do aparato oficial, podia-se massacrar ao ar livre. No seu caso, a tortura usava o que o sítio tinha a oferecer: as árvores, o açude, os dois lagos.
Segundo: a sufocação. Eles te levam para um córrego raso, com pedras no fundo. Ali, soltam água de uma espécie de reservatório e você é jogado para baixo, ralando nas pedras as feridas do corpo. Terceiro: a “piscina”, como eles chamam, na verdade um poço lamacento onde te afogam segurando sua cabeça. Quarto: a árvore. Pendurado pelos pés, você recebe socos, choque elétricos. Um químico é jogado sobre seu corpo, arde. Seus gritos se misturam ao de outras pessoas, que você ouve estarem sendo torturadas – homens, mulheres.
Um dia, te tiram dali, apressadamente. Dizem que seu sumiço foi denunciado no congresso nacional e na assembléia do Rio de Janeiro. Vão ter que te liberar. Seu martírio acaba numa casa, na periferia de uma cidade. Um médico o visita diariamente, para assegurar que você estará “apresentável” quando for solto. No dia 22 de outubro de 1975, finalmente você tira o capuz.
O seu nome é Affonso Celso Nogueira Monteiro. Em 2011, aos 89 anos, os olhos ainda ficarão opacos quando lembrar daqueles dias e o seu corpo, envelhecido, guardará ainda todas as marcas. Você é o único prisioneiro que saiu com vida da Fazenda 31 de Março – nome do sítio clandestino de tortura, uma homenagem à data do golpe militar de 1964.
Quarenta anos depois, a fazenda continuará lá, com a mesma cara, esquecida pelo tempo, escondida numa estrada de terra no bairro de Parelheiros, na zona sul de São Paulo, bem na divisa com Itanhaém e Embu-Guaçu.
Muitos não tiveram a mesma sorte. Antônio Bicalho Lana e sua companheira Sônia Moraes, ambos da guerrilha Ação Libertadora Nacional (ALN), foram assassinados no sítio em 1973. Depois, foram levados até o bairro de Santo Amaro, onde se encenou um tiroteio – mais um dos “teatrinhos”. Foram enterrados em vala comum. Ali também mataram o líder estudantil Antonio Benetazzo, em 1972, preso na Vila Carrão, norte de São Paulo. A versão oficial, veja, é depois de preso ele teria se jogado sob as rodas de um caminhão. Foi enterrado como indigente.
Fagundes, o “pacificador”
O sítio 31 de março é a prova de que existia uma rede de locais clandestinos de tortura no Brasil nos anos 70. Mas, como grande parte da história da ditadura militar brasileira, jamais se investigou como e quando foram usados.
No Brasil, diferente de países vizinhos como Chile e Argentina, jamais um único militar foi punido pela tortura sistemática adotada pela ditadura. Naqueles países, lugares como esse viraram museus, memoriais às vítimas, marcos históricos para que o passado não volte.
Os sítios da tortura só eram possíveis por causa do apoio de civis, gente endinheirada que apoiava a ditadura e emprestava seu imóveis para a repressão. Nenhum deles jamais foi levado à justiça.
O “dono” do sítio 31 de Março era um empresário mineiro, Joaquim Rodrigues Fagundes. Acusado de grileiro, ele se apossou da terra nos primeiros anos da década de 70. Chegou tocando o terror: junto com capangas, exibiam armas de uso exclusivo das Forças Armadas, invadiam a casa de moradores, chegaram a surrar um deles para que “desse o fora”, como se dizia na época.
Fagundes se gabava de ser amigo do “pessoal do Doi-Codi”, a central mlitar que comandava a repressão. Seu caseiro na época, Alcides de Souza, reconheceu que ele emprestava o sítio para os milicos fazerem treinamento. “Tem vez que chegam aqui dois mil homens – acampam, correm pra cá, pra lá, dão tiros, cortam a mata”, disse.
Fagundes era dono da Transportes Rimet Ltd, na Moóca. Sua empresa não fazia muita coisa. Tinha um único cliente, a estatal Telesp – Telecomunicações de São Paulo, que na época controlada pelos militares do governo paulista. Ali na Moóca, era sempre visto acompanhado pelos bravos amigos de farda, como o coronel Erasmo Dias, conhecido por tere invadido a universidade católica (PUC) e metido ferro nos estudantes. Ele mesmo ia uma vez por semana até a sede do Doi-Codi, na rua Tutóia. “Ele tinha autoridade, andava com os milicos”, lembram os vizinhos.
Quando não tinha ninguém gemendo ou sufocando, a turminha de Fagundes usava o sítio para churrascos e almoços festivos. Vinham nomes como mesmo Erasmo Dias, bem como o Coronel Brilhante Ustra, cujo comando do Doi-Codi foi marcado por mais de 500 denúncias de tortura, e o delegado da policia civil Sérgio Paranhos Fleury, que comandava esquadrões das morte antes da diutadura, e o massacre dos opositores depois. Só a nata da repressão. “O Fleury era amigão da gente” lembra Alcides, o caseiro.
A ajuda de Fagundes foi reconhecida. Em 30 de junho de 1977, recebeu a Ordem do Mérito do Pacificador, por “serviços prestado ao país”. O mineiro tinha tanto orgulho da sua ligação com o exército que, logo abaixo da placa com o nome da fazenda 31 de Março colocou outra, dizendo: “proprietário: pacificador Fagundes”.
Jamais foi militar, jamais teve um cargo oficial. E jamais foi chamado a prestar contas pela sua atuação.
Pelo contrário. Em 1984, recebeu uma comenda do Exército, tornando-se, oficialmente, “comendador”, título que consta ainda hoje na sua lápide no Cemitério da Quarta Parada, zona leste de São Paulo. O país agradece.
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Fonte: Pública

Uruguai registra aumento de 1,5% do PIB em 2016 e tem 14º ano seguido de crescimento econômico

Uruguai registra aumento de 1,5% do PIB em 2016 e tem 14º ano seguido de crescimento econômico


Economia uruguaia acelerou no último ano, já que em 2015 a expansão do PIB foi de 1%; país se distancia de problemas econômicos enfrentados por vizinhos Brasil e Argentina
A economia uruguaia alcançou em 2016 seu 14º ano consecutivo de crescimento, com o aumento do PIB (Produto Interno Bruto) registrado no ano de 1,5%, chegando a US$ 55,266 bilhões, informou na quinta-feira (23/03) o Banco Central do Uruguai (BCU).
A cifra indica a aceleração da economia uruguaia no último ano, já que em 2015 a expansão do PIB foi de 1%, assim como o distanciamento do Uruguai dos problemas econômicos enfrentados por seus vizinhos – em 2016, o PIB do Brasil teve redução de 3,6%, enquanto o da Argentina caiu 2,3%.
Segundo a consultora econômica CPA Ferrere indicou ao jornal uruguaio El País, Montevidéu registrou crescimento médio de 1,7% nos últimos três anos, enquanto Buenos Aires e Brasília tiveram contração de -2,3% e -0,8%, respectivamente.
Danilo Astori, ministro de Economia e Finanças do Uruguai, declarou na última semana que o país “se sobrepôs a este impacto” regional e “agora esperamos começar lentamente a recuperar níveis de crescimento maiores do que os que temos tido nos últimos dois anos”.
Matt Rubens / Flickr CC

Brasileiros e uruguaios terão mais facilidade para obter visto de residência no dois países

Inflação sobe 2,5% na Argentina em fevereiro; em 12 meses, índice atinge 25,4%

G20 não cita luta contra protecionismo e mudanças climáticas, refletindo posição dos EUA

Venezuela, Peru, Canadá e mais 10 países se unem a banco de desenvolvimento liderado pela China

 
Como indicou o BCU, “o incremento no nível de atividade em 2016 se explica pelas taxas positivas na maioria dos setores, destacando-se por sua incidência os aumentos em transporte, armazenamento e comunicações, como resultado do crescimento das telecomunicações e do fornecimento de eletricidade, gás e água (de 15,6%), devido à maior proporção de energia elétrica gerada a partir de fontes renováveis”.
A instituição afirmou também que o aumento nestes setores “foi parcialmente neutralizado por quedas na construção e em comércio, reparos, restaurantes e hotéis, explicado pela queda na atividade comercial”. As exportações tiveram queda de 1,4%, assim como as importações, de 2,9%, o que determinou “que o volume do saldo comercial com o exterior resultasse menos negativo do que o do ano anterior”, disse o BCU.
Consultoras financeiras ouvidas pelo El País expressaram seu otimismo e colocaram sua previsão de crescimento para a economia do Uruguai em 2017 entre 2% e 3%.

Chilenos saem às ruas em 'maior marcha da história' contra sistema de previdência


Chilenos saem às ruas em 'maior marcha da história' contra sistema de previdência


Ato pede substituição do atual sistema, privatizado em 1981 por Pinochet, por sistema tripartite; mais de 90% dos aposentados do Chile recebe pensões inferiores a 154 mil pesos mensais (233 dólares)
Atualizada às 18h45
O movimento No+AFP (Não mais Administradora de Fundos de Pensões) convocou para este domingo (26/03) um novo ato contra o sistema previdência do Chile, privatizado em 1981. Atos em todo o país, apoiados por diversas organizações sociais e trabalhistas, fazem da manifestação “uma das marchas históricas, talvez a maior da história”, afirmou Luis Mesina, porta-voz do movimento, durante entrevista coletiva neste sábado (25/03).
Segundo os organizadores, cerca de 800 mil pessoas participaram do ato em Santiago, totalizando mais de 2 milhões em todo o país. A polícia chilena, por sua vez, cifrou em 50 mil o número de participantes. No ano passado, cerca de 1,3 milhão de pessoas saíram às ruas em todo o país em agosto, e 750 mil manifestantes participaram da marcha anterior, de 24 de julho. 
“Chamamos todas as famílias trabalhadoras do Chile para marchar massivamente este domingo para deixar claro que não queremos mais AFP, nem privada nem estatal, e não toleraremos reformas cosméticas que não dão solução real às baixas pensões nem à farsa permanente das quais os trabalhadores chilenos têm sido vítimas há mais de 36 anos”, declarou Mesina. O dirigente ainda afirmou que espera “que isso gere um impacto e vençamos esta indolência de parte das autoridades políticas que não querem escutar este clamor que pede a restituição de um direito fundamental”.
Reprodução/Twitter NoMasAFP

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No ano passado, a presidente Michelle Bachelet propôs um projeto de lei de reforma do sistema previdenciário, mas que não eliminaria o regime privado, agregando a este uma espécie de AFP estatal. “Deveremos realizar mudanças dos parâmetros utilizados para avaliar as pensões e assegurar que o sistema não só seja justo como também sustentável”, afirmou Bachelet. “Iremos criar uma administradora de fundos estatais que acolha os trabalhadores que hoje carecem de cobertura previdenciária”, acrescentou.
As AFPs, empresas dedicadas a gerir o dinheiro dos contribuintes reservados à aposentadoria futura, surgiram durante a ditadura militar de Augusto Pinochet, que buscava uma forma de superar a crise econômica investindo as contribuições dos trabalhadores no mercado de capitais. Em poucos meses, surgiram no país 14 novas companhias dedicadas a este mercado, que prometiam uma aposentadoria de luxos e extravagâncias.
O movimento No+AFP propõe a substituição das administradoras por um sistema de distribuição com caráter tripartite e solidário, com financiamento por parte do empregador, Estado e trabalhador. Atualmente, mais de 90% dos aposentados do Chile recebe pensões inferiores a 154 mil pesos mensais (233 dólares), quase a metade do salário mínimo legal. O valor da aposentadoria que os trabalhadores recebem é determinado pela flutuação do mercado e o rendimento dos fundos alimentados pelos assalariados que depositam mensalmente nas AFP 10% de seu salário bruto.

Projeto coordenado pelo MST alfabetiza mais de 7 mil pessoas com método cubano


Projeto coordenado pelo MST alfabetiza mais de 7 mil pessoas com método cubano


Processo aconteceu ao longo de todo o ano de 2016; segunda etapa pretende dobrar o número de pessoas alfabetizadas
O Maranhão tem cerca de um milhão de analfabetos, quase 20% de sua população, segundo os mais recentes dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A situação se agrava no meio rural, onde o índice sobe para aproximadamente 40%. Estes números deixam o estado atrás apenas do Piauí e Alagoas na taxa de analfabetismo no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013. Porém, foi sob este cenário que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) coordenou um curso de alfabetização de jovens e adultos no estado do Maranhão ao longo de todo o ano de 2016, desenvolvido por meio de uma parceria com o governo do estado a partir de uma proposta do próprio MST, tornando-se a principal referência da Jornada de Alfabetização desenvolvida pelo governo Flávio Dino (PCdoB).
Ao longo desse período, mais de 7 mil pessoas foram alfabetizadas por meio do método do cubano “Sim, eu posso!”. O projeto se propôs a atuar nos 30 municípios com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixos do Maranhão. A parceria com o MST se deu inicialmente em oito destes municípios: Aldeias Altas, Água Doce do Maranhão, Santana do Maranhão, Governador Newton Bello, São João do Caru, São Raimundo do Doca Bezerra, Jenipapo dos Vieira e Itaipava do Grajaú.
Em termos absolutos, foram muitas as pessoas alfabetizadas nesse processo. Mas quase nada em termos percentuais, já que representa menos de 1% da demanda maranhense. Por isso, a meta é dobrar a quantidade de pessoas alcançadas no estado em 2017, já que no final de fevereiro os representantes do governo do Maranhão garantiram essa ampliação.
“Eu nunca tinha estudado, nunca tinha tido a oportunidade, agora eu quero mais”, afirma Manoel Vieira de Sousa, 67 anos. Seu Manoel, com os olhos iluminados, entre feliz e orgulhoso, fez questão de escrever algumas palavras para demonstrar o seu recente aprendizado. Porém até chegar a este momento, muito esforço teve que ser empenhado. “No começo, a dificuldade foi grande, eu não sabia nada, não conhecia as letras”, explica o camponês, falando das primeiras aulas, comentando também sobre a alegria de sua esposa, ao vê-lo lendo. “Ela ficou muito, muito animada”, conta.
Essa foi apenas a segunda vez que a experiência do Sim, eu posso ocorreu no Brasil fora dos assentamentos do MST. A primeira foi no Ceará, na periferia da cidade de Fortaleza. Segundo Simone Silva Pereira, dirigente do MST no estado, esse tipo de trabalho, fora das bases do movimento, “é um passo num processo de emancipação da classe” como um todo.
Simone explica que o programa não se resume apenas ao processo de alfabetização. “As pessoas discutem sobre alimentação saudável, o problema da violência contra a mulher, a necessidade de todos continuarem estudando. No processo foi construído toda uma pauta de reivindicações”, destaca. Para ela, as pessoas envolvidas “vencem uma descrença e recuperam uma esperança”.
É o que conta, por exemplo, a educadora Alexandrina Silva Lima, do município de Santana do Maranhão, que neste processo alfabetizou a mãe de 65 anos, uma tia, além de outras 13 pessoas. Alexandrina diz que o sentimento de vergonha é comum entre as pessoas que não sabem ler e escrever, e esse é um dos primeiros obstáculos a ser superado. “É o medo de virar chacota”, explica. No seu caso, ela montou a sala de aula em casa, com mesas e cadeiras que não estavam sendo utilizadas por uma escola. Isso facilitou o acesso das pessoas de sua família. “Em casa eles ficaram mais à vontade”, disse a educadora.
Para a execução do projeto foram contratadas 702 alfabetizadores e 71 coordenadores, que formaram 628 turmas e trabalharam sob o comando político pedagógico do MST. Na parceria realizada, o governo entrou com a estrutura e a logística, enquanto o movimento garantiu o método, a mobilização e a coordenação geral. Em cada um dos oito municípios havia, permanentemente, dois representantes do MST, acompanhando de perto cada detalhe do processo.
Juliana Adriano/MST

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Dificuldades
No entanto, nem tudo caminhou conforme o planejado. Alguns obstáculos colocaram maiores desafios no desenvolvimento do programa, como a própria dificuldade de se chegar aos povoados. Em alguns casos só é possível chegar por meio de moto ou carro traçado, o que dificultava inclusive o transporte dos aparelhos de TV, utilizados nas aulas. Soma-se a isso as chuvas, estradas ruins, ausência de local adequado para instalar salas de aula, a necessidade dos educandos de conciliar o estudo com o trabalho, os filhos pequenos de alguns, o cansaço pelo ofício na roça, a descrença generalizada no serviço público, a desmotivação inicial de muitos, entraves burocráticos e, no caso de alguns indígenas, até a comunicação entre educadores e educandos por conta do idioma.
O relato de algumas educadoras aponta que alguns tinham dificuldade até para segurar o lápis. Além da dificuldade de ler e escrever, muitos têm problemas de vista. O planejamento previa começar as aulas somente após a chegada dos óculos. Houve atraso na entrega, por parte do poder público. Em alguns casos, a espera durou quatro meses, e algumas aulas tiveram que começar sem os óculos, com os alunos reclamando de dor nos olhos ao forçar a vista durante os estudos.
Todavia, o saldo positivo superou as dificuldades enfrentadas das mais diversas formas. Em Itaipava do Grajaú, por exemplo, o pedreiro Emanoel Alves dos Santos, de 37 anos, conta que sua alfabetização serviu de grande estímulo para seus dois filhos que estão cursando o ensino médio e fundamental.
A intenção central do programa, porém, é que essa política de educação, somada à políticas de saúde e geração de trabalho dê mais qualidade de vida à população local. “Se o agricultor estiver alfabetizado, melhor ele aprenderá a usar as tecnologias e terá maiores condições de aumentar sua produtividade e melhorar sua renda”, explica o secretário de estado de agricultura familiar, Adelmo Soares.
Metodologia
Em geral, é preciso apenas quatro meses para que a pessoa aprenda a ler a escrever pelo método de alfabetização “Sim, eu posso!”. Num primeiro momento, os educandos têm a ajuda de vídeo aulas por meio de uma teledramaturgia (telenovela).
Após os quatro meses o projeto avança para os chamados “Círculos de Cultura”, uma metodologia de educação popular baseada nas propostas do educador Paulo Freire. Nessa fase, há quatro temas básicos que orientam o aprendizado: cultura, trabalho, participação política e história.
As salas de aula são instaladas onde é possível. Além de escolas públicas, clubes, associações, sindicatos, terreiros de cultos afros, salões de igrejas cristãs, espaços comunitários de aldeias indígenas, casas de educandos e de educadores e até bares viram salas de aula. Em Santana do Maranhão, por exemplo, a educadora Maria do Socorro Costa Saraiva, entre idas e vindas, pegava alguns dos seus educandos de moto e levava até o local onde faziam o processo de formação.
Para Lizandra Guedes, militante do MST e uma das coordenadoras da jornada, tem ocorrido um verdadeiro mutirão com este processo. “Essa tem sido a realidade em todos os municípios onde acontece o programa. A Jornada de Alfabetização virou uma jornada de solidariedade pelo ato de ler e de escrever. Muitos sujeitos têm se somado”, aponta.
Juliana Adriano/MST

Salas de aula são instaladas onde é possível, desde escolas públicas até espaços comunitários e bares
No município Jenipapo dos Vieiras, por exemplo, que tem o 6º pior IDH do estado, a jornada atingiu 30% da população analfabeta. Lá foram formadas 72 turmas, sendo que 24 delas em aldeias indígenas. Em algumas, parte dos habitantes nem sequer sabiam falar português. Dessa forma, o “Sim, eu posso” foi um curso para aprender a falar, ler e escrever em um novo idioma. Tereza Paiva, assistente social e militante do MST, explica que o papel dos educadores neste caso era “dar acesso ao saber sem alterar a cultura”.
Era comum nas aldeias indígenas de Jenipapo dos Vieiras a busca dos caciques pelas aulas, já que várias desses locais não têm ensino regular. Segundo Tereza, em uma turma de 15 alunos matriculados, mais de 20 pessoas assistiam às aulas, entre adultos e crianças indígenas. Na Aldeia Kriuli, o pequeno Hamilton Guajajara, de 10 anos, que nunca tinha ido à escola e que começou a frequentar as aulas apenas para acompanhar seu pai, em quatro meses já passou a escrever seu nome e o dos colegas.
Entre uma história e outra, Teresa Paiva avalia que “no método convencional o indivíduo aprende a ler e escrever num período médio de um ano de atividade escolar. No método utilizado no Maranhão em cinco meses se atinge esse patamar, estudando apenas duas horas por dia.”
Dos 9.492 educandos matriculados no "Sim, Eu Posso!", aproximadamente 75% foram efetivamente alfabetizados, o que totalizou os mais de 7 mil jovens, adultos e idosos que tiveram a oportunidade de enfrentar o desafio de vencer o analfabetismo.
Um exemplo desse sucesso é contado pela Tereza, quando num Povoado de Lagoa do Coco, em Jenipapo dos Viera, uma professora foi às lágrimas ao ver um pai, recém-alfabetizado, muito emocionado, conseguindo escrever a primeira carta para seu filho, que mora fora do Maranhão. No mesmo município, uma das 72 turmas pediu beca para a formatura do programa. Embora não houvesse orçamento para isso, a festa aconteceu do mesmo jeito. Com poucos recursos levantadas pela turma, os alunos improvisaram os chapéus a partir de borracha de EVA e fizeram as becas com o tecido TNT. Após a formatura, os educandos, já sabendo ler e escrever, realizaram o desejo de jogar os chapéus para cima, seguindo uma tradição de escolas e universidades pelo mundo a fora.
Próximos passos
Os próximos dois meses serão de mobilização e preparação de educadores e coordenadores para mais uma etapa do programa. O Secretario de Educação, Felipe Camarão, afirmou que o processo para a próxima etapa do programa já estão bem avançadas.
Segundo ele, alguns dos municípios que participaram da primeira etapa também podem ter como meta a superação real do analfabetismo. Um deles, segundo o Secretário, é Aldeias Altas - que na primeira Jornada reduziu em 35% o número de analfabetos.
Edição: Luiz Felipe Albuquerque

Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato